A Lei 13.491/17 e a ampliação da competência da Justiça Militar

Em 16 de outubro de 2017, foi publicada com vigência imediata a Lei 13.491, que modificou o Código Penal Militar e ampliou a competência da Justiça Militar. 

Nesse artigo abordaremos detalhadamente a mudança e as consequências práticas e jurídicas.

1. Da competência da justiça militar

À Justiça Militar compete julgar os crimes militares definidos em lei (artigos 124 e 125, § 4º, ambos da Constituição Federal).

Os crimes militares encontram definição no art. 9º do Código Penal Militar.

A Justiça Militar da União analisa somente a natureza do crime cometido para definir a sua competência, seja o acusado civil ou militar. Portanto, tem-se que a competência da Justiça Militar da União, por decorrer somente da matéria (crime militar), é ratione materiae.

A Justiça Militar estadual analisa a natureza do crime e a condição pessoal do acusado, na medida em que julga somente os militares (art. 125, § 4º, da CF). Portanto, a competência da Justiça Militar estadual é definida em razão da matéria e em razão da pessoa (ratione materiae e ratione personae).

Vamos abordar neste artigo as alterações promovidas pela Lei 13.491, de 13 de outubro de 2017.

Antes da alteração, o art. 9, II, do Código Penal Militar previa o seguinte:

II – os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando praticados:

Após a mencionada lei, passou a prever que:

II – os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal, quando praticados:   (Redação dada pela Lei nº 13.491, de 2017)

Nota-se, portanto, que houve uma ampliação dos crimes de natureza militar, uma vez que qualquer crime existente no ordenamento jurídico brasileiro poderá se tornar crime militar, a depender do preenchimento de uma das condições previstas no inciso II do art. 9º do Código Penal Militar.

Antes, o inciso II era claro ao dizer que somente os crimes previstos “neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum” eram crimes militares.

Isto é, somente os crimes previstos no Código Penal Militar eram crimes militares.

Com a alteração legislativa, a previsão é de que “os crimes previstos neste Código” (Código Penal Militar) e os “previstos na legislação penal” (todas as leis penais do país) também são crimes militares, quando preenchida uma das hipóteses do inciso II do Código Penal Militar.

As hipóteses previstas no inciso II do art. 9º do Código Penal Militar são, em síntese, os crimes cometidos entre militares; envolvendo militar em lugar sujeito à administração militar contra civil; militar em serviço ou atuando em razão da função, hipótese de maior incidência dos crimes militares; militar em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar contra civil; militar durante o período de manobras ou exercício contra civil; militar em situação de atividade, ou assemelhado, contra o patrimônio sob a administração militar, ou a ordem administrativa militar.

Como exemplo, podemos citar: a) crime de disparo de arma de fogo praticado por militar em serviço; b) crime de tortura praticado por policial militar em serviço ou em razão da função: c) crime de abuso de autoridade praticado por militar em serviço; d) assédio sexual; e) crime de possuir imagens de crianças e adolescentes em situações pornográficas, quando os militares a obtiverem em razão do serviço e tenham essas imagens não com a finalidade de comunicarem a autoridade competente.

Os crimes dolosos contra a vida de civil continuam sendo de competência do tribunal do júri, consoante art. 125, § 4º, da Constituição Federal. Isto é, os crimes de homicídio doloso, induzimento, instigação ou auxílio a suicídio, infanticídio e de aborto são de competência do tribunal do júri, quando a vítima for civil.

Todos os outros crimes existentes no ordenamento jurídico brasileiro, quando cometidos em uma das hipóteses do inciso II do art. 9º do Código Penal Militar, são de competência da Justiça Militar.

Por se tratar de norma que alterou a competência, é de natureza processual e deve ser aplicada imediatamente, na forma do art. 5º do Código de Processo Penal Militar e art. 2º do Código de Processo Penal.

Em que pese a alteração ter ocorrido no Código Penal Militar (lei material), tem conteúdo essencialmente processual, o que é denominado de norma heterotópica.

Cuida-se de conteúdo processual por tratar da competência da justiça militar, não havendo maiores repercussões quanto à norma penal no tempo, análise de retroatividade para beneficiar o réu ou outras repercussões para o acusado, a não ser o deslocamento da competência para a Justiça Militar.

Em se tratando de competência, quando há alteração da competência absoluta, como é o caso, por se tratar da matéria (crime militar), os autos devem ser remetidos imediatamente ao juízo competente (art. 43 do CPC c/c art. 3º do CPP), salvo se já houver sentença.

Assim, todos os processos no país que estejam tramitando na Justiça Comum, quando tiverem sido cometidos por militares em uma das hipóteses do inciso II do art. 9º, do Código Penal Militar devem ser remetidos, imediatamente, à Justiça Militar.

A lei penal mais benéfica deve ser aplicada na Justiça Militar. 

Com efeito, a Constituição Federal assegura que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu” (art. 5, XL). O art. 125, § 4º, da Constituição Federal, por sua vez, diz que compete à Justiça Militar julgar os crimes militares.

Isto é, no tocante à aplicação da lei penal no tempo, não há limitação de competência. Em relação à natureza do crime militar, a Constituição Federal é taxativa e não abre exceção. Logo, é possível aplicar a lei penal mais benéfica na Justiça Militar, mas não é possível julgar crime militar pela Justiça Comum.

Ademais, na hipótese de se entender que cada caso deve ser analisado antes de se remeter à Justiça Militar, aplicando-se a lei penal mais benéfica na Justiça Comum, haverá enorme insegurança jurídica, na medida em que poderá haver inúmeras decisões judiciais antagônicas, sobre o mesmo tema, pois a análise da lei penal mais benéfica demanda a análise de uma série de institutos penais, podendo a lei ser mais benéfica em um ponto e prejudicial em outro. Ex.: a lei penal comum é mais benéfica por ser possível transação penal; a lei penal comum é mais benéfica por ser possível suspensão condicional do processo; a lei penal comum é mais benéfica por ser possível pena restritiva de direito; a lei penal militar é mais benéfica no tocante à prescrição para os crimes de abuso de autoridade, dentre outros.

Caso o processo já esteja sentenciado, o recurso a ser interposto deverá seguir a competência já disposta. Isto é, se houver sentença proferida pela Justiça Comum, o recurso deverá ser interposto para o Tribunal de Justiça comum[1]. Essa observação se faz necessária somente para os Estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul, pois possuem Tribunal de Justiça Militar. Nos demais estados o recurso a ser interposto já será para o Tribunal de Justiça comum.

Na hipótese em que houver previsão do mesmo fato como crime no Código Penal Militar e na legislação penal comum, deverá ser aplicado, a princípio, o Código Penal Militar, em razão do princípio da especialidade, como a hipótese do crime de lesão corporal e de estupro.

A Súmula 90 do STJ que prevê que “Compete à Justiça Estadual Militar processar e julgar o policial militar pela prática do crime militar, e à Comum pela prática do crime comum simultâneo àquele.”, perdeu a validade, uma vez que não haverá mais crime comum simultâneo ao crime militar, tendo em vista que quando o militar estadual cometer crime previsto na legislação penal comum, em uma das hipóteses do inciso II do art. 9º, do Código Penal Militar, o que ocorre geralmente, quando o militar está em serviço ou atuando em razão da função, o crime será militar.

Portanto, a Súmula 90 do STJ perdeu a razão de ser e a alteração legislativa põe fim à duplicidade de processos que os militares enfrentam na justiça militar e justiça comum, pelo mesmo fato. Os fatos devem ser julgados, exclusivamente, pela justiça militar.

A Súmula 172 do STJ que dispõe que “Compete à Justiça Comum processar e julgar militar por crime de abuso de autoridade, ainda que praticado em serviço.”, igualmente, perdeu a validade, uma vez que os crimes de abuso de autoridade passam a ser julgados pela Justiça Militar.

A Súmula 75 do STJ que diz que “Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar o policial militar por crime de promover ou facilitar a fuga de preso de estabelecimento penal.”, perdeu a validade, uma vez que o militar ao promover ou facilitar a fuga de preso de estabelecimento penal comum estará em serviço ou atuando em razão da função, o que, obrigatoriamente, remete a competência para a Justiça Militar.

A Súmula 06 do STJ que assevera que “Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar delito decorrente de acidente de trânsito envolvendo viatura de Polícia Militar, salvo se autor e vítima forem policiais militares em situação de atividade.”, deve ser lida com cautela, na medida em que mesmo que o crime cometido seja previsto no Código de Trânsito Brasileiro, se cometido por militar em serviço, deverá ser julgado pela Justiça Militar.

Por fim, a alteração legislativa não abrangeu as contravenções penais, uma vez que o art. 9º, II, do Código Penal Militar considera militar somente os crimes previstos no Código Penal Militar e os previstos na legislação penal, quando praticados em uma das hipóteses previstas no inciso II.

Nota-se que não houve menção às contravenções penais, mas somente aos “crimes”. Portanto, não é possível falar em contravenção penal militar.

2. Da aplicação dos institutos penais e processuais penais previstos na legislação penal comum

Diante das alterações promovidas, conforme exposto, tem-se que a Justiça Militar poderá processar e julgar os crimes previstos na legislação penal comum, bem como aplicar os institutos típicos do direito penal e processual penal comum com os requisitos que lhe são próprios.

Dessa forma, a Justiça Militar deverá aplicar as penas restritivas de direito previstas no art. 43 do Código Penal; a suspensão condicional da pena prevista no art. 77 do Código Penal; o livramento condicional previsto no art. 83 do Código Penal, dentre outros institutos.

A aplicação da lei penal comum deve ocorrer na íntegra quando o crime a ser julgado tiver previsão fora do Código Penal Militar. Do contrário haverá verdadeira lex tertia. Isto é, a mistura e combinação de leis pelo juiz, como se estivesse criando uma terceira lei, inexistente, o que já foi rechaçado pelo Supremo Tribunal Federal.[2]

É possível haver o cometimento de crime hediondo militar, consoante a Lei 8.072/90, como na hipótese do crime de favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável, cometido pelo militar em razão da função.

Importante destacar que para que o crime militar seja considerado hediondo, é necessário que esteja previsto no rol do art. 1º da Lei 8.072/90.

Para que o militar cometa um dos crimes previstos no art. 1º da Lei 8.072/90 deve incidir uma das hipóteses previstas no inciso II do art. 9º do Código Penal Militar, sendo mais comum a hipótese do crime ser cometido em serviço ou em razão da função.

Destaca-se que os únicos fatos típicos previstos na Lei de Crimes Hediondos e que não encontram igual previsão no Código Penal Militar é o favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável (art. 218-B, caput, e §§ 1º e 2º do Código Penal) e a posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito (art. 16 da Lei 10.826/03). O segundo com o advento da Lei 13.497, de 26 de outubro de 2017, que alterou o parágrafo único do art. 1º da Lei 8.072/90.

Logo, somente esses crimes podem ser considerados crimes militares hediondos, na medida em que os demais crimes, se cometidos de forma que venham a se configurar crime militar, serão tipificados no Código Penal Militar, face ao princípio da especialidade, o que afastará a natureza hedionda.

Para facilitar o entendimento, necessário se faz ilustrar com exemplos.

Ex. 1: militar em serviço comete o crime de latrocínio. Este crime possui previsão no Código Penal Militar (art. 242, § 3º, do CPM) e no Código Penal Comum (art. 157, § 3º, in fine). Logo, por possuir previsão em ambos os Códigos, face ao principio da especialidade, deverá responder pelo crime previsto no Código Penal Militar. Como os crimes previstos no CPM não se encontram no rol do art. 1º da Lei 8.072/90, não será considerado hediondo.

Ex. 2: militar em serviço tem conjunção carnal com menor de 14 (catorze) anos. Este crime possui previsão no Código Penal Militar (art. 232 c/c art. 236, I) e no Código Penal Comum (art. 217-A). Logo, por possuir previsão em ambos os Códigos, face ao principio da especialidade, deverá responder pelo crime previsto no Código Penal Militar. Como os crimes previstos no CPM não se encontram no rol do art. 1º da Lei 8.072/90, não será considerado hediondo.

Ex. 3: militar em serviço comete o crime de homicídio, por motivo fútil, contra civil. Trata-se de um caso peculiar, na medida em que os crimes dolosos contra a vida de civil são julgados pelo tribunal do júri (art. 125, § 4º, da Constituição Federal). Por ser julgado na justiça comum (tribuna do júri), o crime pelo qual o militar responderá será o previsto no art. 121, § 2º, II, do Código Penal, mesmo havendo igual previsão no Código Penal Militar (art. 205, § 2º, I). Portanto, trata-se de crime comum, de natureza hedionda, praticado por militar em serviço. Caso o militar cometesse o mesmo crime, em serviço, contra outro militar, o crime seria o previsto no art. 205, § 2º, I, do Código Penal Militar, que por não estar no rol do art. 1º da Lei 8.072/90, não seria hediondo.

Ex. 4: militar em serviço comete o crime de favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável (art. 218-B, caput, e §§ 1º e 2º do Código Penal). Este crime não possui previsão no Código Penal Militar. Logo, por não possuir previsão no CPM, o militar responderá pelo crime previsto no art. 218-B, caput, e §§ 1º e 2º do CP. Este crime, diante da Lei 13.491/17, passa a ser militar, por ter sido cometido em serviço (art. 218-B, caput, e §§ 1º e 2º do Código Penal c/c art. 9º, II, “c”, do Código Penal Militar).

Ex. 5: militar em serviço porta ilegalmente arma de fogo de uso restrito (art. 16 da Lei 10.826/03). Este crime não possui previsão no Código Penal Militar. Logo, por não possui previsão no CPM, o militar responderá pelo crime previsto no art. 16 da Lei 10.826/03. Este crime, diante da Lei 13.491/17, passa a ser militar, por ter sido cometido em serviço (art. 16 da Lei 10.826/03 c/c art. 9º, II, “c”, do Código Penal Militar).

Caso haja condenação por crime hediondo, as consequências da hediondez do crime deverão ser aplicadas, como a impossibilidade de anistia, graça e indulto; a inafiançabilidade e a progressão de regime após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente.

Com a nova lei, haverá uma melhor análise da aplicação da Lei de Execução Penal, uma vez que esta ocorrerá somente na Justiça Militar, sendo possível que o juiz de direito do juízo militar (juiz auditor) aplique os institutos “com base na unificação das penas impostas”, conforme leciona Fernando Galvão[3].

Cabe observar que a alteração legislativa não promove apenas uma ampliação da competência criminal da Justiça Militar estadual. Com a integração da legislação penal extravagante ao contexto militar, foi possível corrigir problemas graves decorrentes da desatualização do Código Penal Militar. Somente agora, por exemplo, será possível caracterizar um crime militar hediondo. Também importa notar que a modificação contribuiu para a harmonia do sistema normativo que trata da repressão aos crimes cometidos por militares. Nesse sentido, a análise do conjunto probatório nos processos criminais será feita de maneira mais adequada sem o fracionamento anteriormente imposto nos muitos casos em que se verificava concurso entre crimes comuns e militares. A execução da penas impostas por tais crimes também será melhor examinada no contexto do juízo único, que poderá conceder ao condenado os benefícios previstos na Lei de execuções com base na unificação das penas impostas. (destaquei)

3. Da (in)constitucionalidade da ampliação da competência da justiça militar

No site da Câmara dos Deputados, consta que o Projeto de Lei n. 5768, apresentado em 06/07//2016, pelo Deputado Federal Esperidião Amin, iniciou-se com a redação aprovada no inciso II do art. 9º do Código Penal Militar.

Na Câmara dos Deputados, o projeto apresentado sofreu alteração proposta pelo relator, Deputado Júlio Lopes, tendo acrescentado previsão de que a lei valeria até o dia 31 de dezembro de 2016, sendo que a legislação anterior modificada retomaria a vigência.[4]

A justificativa para a alteração consistiu na realização dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos no Rio de Janeiro no ano de 2016.

No Senado Federal, o Projeto de Lei n. 5768 recebeu o número 44, tendo sido apresentada a emenda n. 1[5], pela Senadora Vanessa Grazziotin, que visava ampliar o prazo da lei para o dia 31 de dezembro de 2017, tendo como um dos fundamentos a utilização pelo Presidente da República “das Forças Armadas para a Garantia da Lei e da Ordem, em apoio às ações do Plano Nacional de Segurança Pública, no Estado do Rio de Janeiro, no período de 28 de julho a 31 de dezembro de 2017.”

Em Parecer, o Senador Pedro Chaves manifestou-se pela rejeição, na medida em que “Se já entendemos ser constitucional a competência da Justiça Militar da União para julgar crimes dolosos contra a vida cometidos por militares contra civis, em hipóteses expressamente previstas em Lei, não há razão para limitar a extensão temporal dessa competência.” E continua “Lembrando que o próprio Superior Tribunal Militar (STM) já se manifestou pela preservação da competência da Justiça Militar da União para o julgamento de crime dolosos contra a vida, quando a vítima seja civil, haja a vista a necessidade de se garantir aos militares uma justiça especializada e com conhecimento específico. Aliás, receamos que a regra no sentido de limitar a competência da Justiça Militar unicamente para período específico possa ser interpretada como o estabelecimento de um tribunal de exceção, o que é vedado pelo art. 5º, inciso XXXVII da Constituição Federal.”

Verifica-se que o parecer pela rejeição não mencionou o fato da proposta enviada ao Senado pela Câmara dos Deputados já conter previsão que a tornava lei temporária, mas com efeitos até o dia 31 de dezembro de 2016.

Na justificativa[6] do mencionado projeto de lei, em nenhum momento, menciona a ampliação da competência, tendo como foco, exclusivamente, o julgamento dos militares das Forças Armadas nos crimes dolosos contra a vida de civil, em situações específicas, que serão detalhadas a seguir.

Nota-se, portanto, que em nenhum momento houve menção à ampliação da competência da justiça militar, nem houve debates no Congresso Nacional.  

Nas diversas notícias publicadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em seus sites, constam somente informações e discussões dos parlamentares acerca da transferência do julgamento de militares das Forças Armadas, em determinadas situações, para a Justiça Militar da União.

Logo, é possível concluir que houve falha na técnica legislativa.

Isso porque durante os debates discutiram somente a questão do julgamento dos militares das Forças Armadas nos crimes dolosos contra a vida de civis pela Justiça Militar da União, sendo que a alteração que ocorreu é profundamente significativa e, historicamente, a tendência sempre foi excepcionar e limitar a competência da Justiça Militar. O legislador e o Supremo Tribunal Federal sempre trataram a competência da Justiça Militar como restritiva.

O tema é de tamanha repercussão no país e deveria ter sido amplamente debatido, inclusive com a realização de audiências públicas.

A nova alteração legislativa visou na verdade, somente, transferir a competência para julgar os crimes dolosos contra a vida de civil cometidos por militares das Forças Armadas, nas hipóteses delineadas no § 2º do art. 9º do Código Penal Militar, como nas operações de garantia da lei e da ordem; cumprimento de atribuições que forem estabelecidas pelo Presidente da República ou pelo Ministro de Estado da Defesa, bem como nas missões militares.

A questão a ser discutida é se a forma como a lei foi aprovada a torna inconstitucional.

Essencial destacar que a ampliação da competência da Justiça Militar não é inconstitucional, pois a Constituição Federal não define quais são os crimes militares, mas outorga essa competência para o legislador ordinário, conforme artigos 124 e 125, § 4º[7], ambos da Constituição Federal. Isto é, cabe ao Congresso Nacional, mediante aprovação de leis ordinárias, dizer o que é crime militar.

Anoto que é possível que o Congresso Nacional, mesmo que o Supremo Tribunal Federal tenha entendimento pacificado por determinada matéria constitucional, aprove lei que contrarie o entendimento da Suprema Corte.

Trata-se de reação legislativa, de superação legislativa da jurisprudência, tema este muito bem abordado pelo Professor Márcio André Lopes Cavalcante[8]

Márcio Cavalcante leciona que:

O STF possui, segundo a CF/88, a missão de dar a última palavra em termos de interpretação da Constituição. Isso não significa, contudo, que o legislador não tenha também a capacidade de interpretação do Texto Constitucional. O Poder Legislativo também é considerado um intérprete autêntico da Constituição e, justamente por isso, pode editar uma lei ou EC tentando superar o entendimento anterior ou provocar um novo pronunciamento do STF a respeito de determinado tema, mesmo que a Corte já tenha decidido o assunto em sede de controle concentrado de constitucionalidade. A isso se dá o nome de “reação legislativa” ou “superação legislativa da jurisprudência”.
O Poder Legislativo, em sua função típica de legislar, não fica vinculado. Assim, o STF não proíbe que o Poder Legislativo edite leis ou emendas constitucionais em sentido contrário ao que a Corte já decidiu. Não existe uma vedação prévia a tais atos normativos. O legislador pode, por emenda constitucional ou lei ordinária, superar a jurisprudência. Trata-se de uma reação legislativa à decisão da Corte Constitucional com o objetivo de reversão jurisprudencial.

Ocorre que o Supremo Tribunal Federal interpreta o art. 9º do Código Penal Militar, restritivamente[9], em razão da redação anterior do art. 9º que limitava os crimes militares àqueles dispostos no Código Penal Militar. A interpretação restritiva não decorre, predominantemente, da Constituição, mas sim do artigo 9º do Código Penal Militar, razão pela qual a ampliação da competência não afronta o Supremo Tribunal Federal, não se tratando, pois, de reação legislativa.

Portanto, deve a discussão acerca da constitucionalidade da lei referir-se à ausência de conhecimento dos parlamentares que a aprovaram, no sentido de que estavam ampliando demasiadamente a competência da Justiça Militar.

Conforme demonstrado, em nenhum momento houve discussão acerca da ampliação da competência, tendo todos os debates girados em torno da competência da Justiça Militar da União para processar e julgar os militares das Forças Armadas nas situações previstas no § 2º do art. 9º, do Código Penal Militar.

O responsável pela redação atual do inciso II do art. 9º do Código Penal Militar realizou a alteração em absoluto silêncio, sem provocar o debate.

Em razão disso, haveria inconstitucionalidade?

A inconstitucionalidade pode ser formal ou material.

A inconstitucionalidade formal refere-se à inobservância da forma preconizada pela Constituição. A material trata do conteúdo da lei quando é incompatível com a Constituição.

A inconstitucionalidade formal subdivide-se em orgânica e propriamente dita. Esta trata da inobservância do processo legislativo. Aquela trata da não observância da competência para deflagrar a lei, como a hipótese do estado tratar de matéria de competência da união, a exemplo do direito processual.

A inconstitucionalidade formal pode se dar, ainda, por violação a pressuposto objetivo do ato, como o caso de edição de medida provisória sem a presença da relevância e urgência.

Igualmente, pode-se falar em inconstitucionalidade formal por violação a pressuposto objetivo do ato quando a lei aprovada não tiver sido discutida no Congresso Nacional, com a aprovação cega da lei, em razão de vício na vontade do parlamentar, por total desconhecimento da lei aprovada.

Com efeito, os artigos 64 e 65, ambos da Constituição Federal, são claros ao afirmar que os projetos de lei serão discutidos e votados.

Art. 64. A discussão e votação dos projetos de lei de iniciativa do Presidente da República, do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores terão início na Câmara dos Deputados. (destaquei)

Art. 65. O projeto de lei aprovado por uma Casa será revisto pela outra, em um só turno de discussão e votação, e enviado à sanção ou promulgação, se a Casa revisora o aprovar, ou arquivado, se o rejeitar. (destaquei)

No caso da alteração do inciso II, do art. 9º do Código Penal Militar, conforme exposto, restou claro que a alteração não foi, em nenhum momento, discutida, tendo sido aprovada sem os parlamentares terem conhecimento da alteração, incidindo em vício de vontade, pois a justificativa do projeto é silente e os parlamentares que apresentaram o projeto não provocaram a necessária discussão.

É possível falar que houve dolo negativo em não provocar o debate em tema de tamanha repercussão no país. Trata-se de aplicação de princípio geral de direito, consectário lógico da boa-fé objetiva que rege o dia a dia do operador do direito em todas as áreas.

Não se pode considerar o mau voto do parlamentar ou a desídia no exercício do voto como fundamento para perquirir a inconstitucionalidade de uma lei aprovada pelo Congresso Nacional, mas no caso salta aos olhos a violação ao art. 65 da Constituição Federal, em razão dos parlamentares que aprovaram a lei terem sido induzidos ao erro, em razão do dolo negativo.

O caso apresentado se assemelha à hipótese de contrabando legislativo ou caldas de lei.

O contrabando legislativo consiste na “inserção, por meio de emenda parlamentar, de assunto diferente do que é tratado na medida provisória que tramita no Congresso Nacional”[10], com o fim de que o assunto inserido através de um artigo seja aprovado sem o prévio conhecimento e debate por parte dos parlamentares. Essa prática é vedada pelo Supremo Tribunal Federal.

Joaquim Leitão Júnior leciona que:

“Caldas de lei ou contrabando legislativo são expressões equivalentes usadas pelo jurista Michel Temer, na hipótese em que num Projeto de Lei é acrescentado sorrateiramente um assunto que nada tem a ver com o projeto com o fim de não chamar a atenção.”[11] (destaquei)

Portanto, houve no caso uma espécie de contrabando legislativo.

Outro ponto importante a ser destacado[12], refere-se ao fato do Projeto de Lei encaminhado ao Presidente da República para ser sancionado, constar no art. 2º ser uma lei temporária, nos seguintes termos:

Art. 2. Esta Lei terá vigência até o dia 31 de dezembro de 2016 e, ao final da vigência desta Lei, retornará a ter eficácia a legislação anterior por ela modificada.

O Presidente da República, após ouvir o Ministério da Defesa manifestou-se pelo veto ao artigo 2º, uma vez que “As hipóteses que justificam a competência da Justiça Militar da União, incluídas as estabelecidas pelo projeto sob sanção, não devem ser de caráter transitório, sob pena de comprometer a segurança jurídica. Ademais, o emprego recorrente das Forças Armadas como último recurso estatal em ações de segurança pública justifica a existência de uma norma permanente a regular a questão. Por fim, não se configura adequado estabelecer-se competência de tribunal com limitação temporal, sob pena de se poder interpretar a medida como o estabelecimento de um tribunal de exceção, vedado pelo artigo 5º, inciso XXXVII da Constituição”.

O art. 66, § 2º, da Constituição Federal assevera que o “O veto parcial somente abrangerá texto integral de artigo, de parágrafo, de inciso ou de alínea.”

A finalidade do § 2º do art. 66 da Constituição Federal é evitar que o Presidente da República altere a essência do projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional, desconfigurando o que foi aprovado pelos representantes do povo e dos estados.

Assim, em uma interpretação teleológica, aquela que visa a finalidade da norma, tem-se que o veto do Presidente da República alterou o principal objetivo da norma, pois tornou permanente o que era para ser temporário.

Mutatis mutandis, é como se tivesse retirado o “não” de um artigo de lei, o que muda completamente o sentido do texto.

Dessa forma, há inconstitucionalidade formal na sanção da lei.

Lado outro, em uma interpretação literal, não há que se falar em vício de inconstitucionalidade formal, na medida em que o art. 66, § 2º, da Constituição Federal foi cumprido na íntegra, uma vez que houve veto de texto integral de artigo.

Michel Temer, em seu livro “Elementos de Direito Constitucional”[13][14], escreveu que “é impossível o veto aditivo ou restabelecedor, isto é, o veto que adicione algo ao projeto de lei ou restabeleça artigos, parágrafos, incisos ou alíneas suprimidas pelo Congresso Nacional”.

E ainda prossegue:

Assim, o fundamento doutrinário que alicerça a concepção de que o veto parcial deve ter maior extensão suporta-se na ideia de que, vetando palavras ou conjunto de palavras, o Chefe do Executivo pode desnaturar o projeto de lei, modificando o seu todo lógico, podendo, ainda, com esse instrumento, legislar. Basta – como se disse – vetar advérbio negativo.
Data venia, não é bom esse fundamento, uma vez que: a) o todo lógico da lei pode desfigurar-se também pelo veto, por inteiro, do artigo, do inciso, do item ou da alínea. E até com maiores possibilidades; b) se isto ocorrer – tanto em razão do veto da palavra ou de artigo – o que se verifica é usurpação de competência  pelo Executivo, circunstância vedada pelo art. 2º da CF; c) qual a solução para ambas as hipóteses? O constituinte as previu: aposto o veto, retoma o projeto ao Legislativo e este poderá rejeitá-lo, com o quê se manterá o todo lógico da lei. Objetiva-se, entretanto: a rejeição do veto exige maioria absoluta e, por isso, uma minoria (1/3) poderá editar a lei que, na verdade, não representa a vontade do legislador. Responde-se: se isto suceder, qualquer do povo, incluídos os membros do Legislativo, do Executivo ou do Judiciário, pode representar aos legitimados constitucionalmente (art. 103, I a IX, da CF) para a promoção da representação de inconstitucionalidade daquela lei em face  de usurpação de competência vedada pelo art. 2º da CF. (destaquei)

Nota-se, portanto, que o próprio Presidente da República entende ser inconstitucional vetar artigo de lei, por completo, de forma que o projeto de lei venha a se desconfigurar, conforme ocorreu com a Lei 13.491/2017.

4. Das medidas a serem adotadas pelas autoridades policiais militares

Compete à polícia judiciária militar apurar os crimes militares (art. 8º, “a”, do Código de Processo Penal Militar).

Conforme exposto, o rol de crime militares se estendeu para todos os crimes previstos na legislação penal comum, desde que esteja prevista uma das hipóteses do inciso II do art. 9º do Código Penal Militar.

Assim, ocorrendo o cometimento de crime por policial militar durante o serviço ou atuando em razão da função, que é a hipótese mais comum, deverá a autoridade de polícia judiciária militar tomar as medidas necessárias, como a lavratura de auto de prisão em flagrante e realização do inquérito policial militar.

A Federação Nacional de Entidades de Oficiais Militares Estaduais – FENEME – emitiu a nota técnica sobre a Lei 13.491, de 13 de outubro de 2017,  propondo a adoção das seguintes medidas:

1. militar em serviço ou em razão da função que praticar qualquer crime previsto na lei penal militar e na legislação penal comum, em área fora da jurisdição militar, não deve ser apresentado a nenhuma outra instituição policial, uma vez que a atribuição para a apurar é exclusiva a autoridade de polícia judiciária militar, e a polícia civil é incompetente, por força do art. 144,§ 4º da Constituição, podendo o delegado de polícia ser responsabilizado por usurpação de função pública ou abuso de autoridade;

2. militar que praticar qualquer crime previsto na lei penal militar e na legislação penal comum, em área sob jurisdição militar, não deve ser apresentado a nenhuma outra instituição policial, uma vez que a atribuição para a apurar é exclusiva a autoridade de polícia judiciária militar, e a polícia civil é incompetente, por força do art. 144, § 4º da Constituição, podendo o delegado de polícia ser responsabilizado por usurpação de função pública ou abuso de autoridade;

3. requerer ao juiz da jurisdição militar que requisite os inquéritos policiais civis que estejam em andamento e que envolvam militar em área de jurisdição militar ou fora da jurisdição militar que atuou em serviço ou em razão da função militar;

4. requerer ao juiz da jurisdição militar que solicite o desaforamento da justiça comum dos processos que envolvam militar em área de jurisdição militar ou fora da jurisdição militar que atuou em serviço ou em razão da função militar; uma vez que a nova lei fez alteração de competência, portanto lei processual, e tem aplicação imediata, mesmo os processos já instaurado, como ocorreu nos crimes dolosos contra a vida praticado por militares, que nos termos da lei 9299 de 1996 foram desaforados da justiça militar para o tribunal do júri.

No tocante à recomendação número “3”, não compete ao juiz da jurisdição militar requisitar inquérito policial civil. Este deve ser encaminhado à Justiça Militar pelo juiz competente da Justiça Comum.

Os juízes da Justiça Comum deverão remeter os processos para a Justiça Militar, em razão da alteração da competência absoluta, conforme exposto neste artigo.

5. Da competência da justiça militar da união para julgar os militares das forças armadas nos crimes dolosos contra a vida de civil

Com o advento da Lei 13.491/17, firmou-se a competência da Justiça Militar da União para julgar os crimes dolosos contra a vida de civil nas hipóteses delineadas no § 2º do art. 9º do Código Penal Militar.

A regra continua sendo a competência do tribunal do júri (art. 9º, § 1º, do CPM), mas excepcionalmente, poderá ser atribuída à Justiça Militar da União.

A primeira hipótese prevista no inciso I, do § 2º do art. 9º do CPM consiste na atuação dos militares das Forças Armadas no cumprimento de atribuições que lhes forem estabelecidas pelo Presidente da República ou pelo Ministro de Estado da Defesa.

Trata-se de previsão ampla, sendo suficiente para a sua caracterização que haja cumprimento de ordens e atuações estipuladas pelo Presidente da República ou Ministro de Estado da Defesa, como a hipótese de atuação específica de militares do Exército na faixa de fronteira terrestre e de militares da Marinha no mar (art. 16-A da Lei Complementar n. 97/99).

Reafirmo que nas hipóteses acima aventadas, caso ocorra crime doloso contra a vida de civil, somente será de competência da Justiça Militar da União se a atuação decorrer de ordem do Presidente da República ou do Ministro de Estado da Defesa, não abrangendo os casos de atuações meramente de rotina.

A segunda hipótese prevista no inciso II, do § 2º do art. 9º do CPM consiste na ação, dos militares das Forças Armadas, que envolva a segurança de instituição militar ou de missão militar, mesmo que não beligerante.

Trata-se de hipótese que poderá ocorrer na rotina do serviço das instituições militares, como a sentinela do quartel do Exército que comete o crime de homicídio conta vítima civil.

A terceira e última hipótese prevista no inciso III, do § 2º do art. 9º do CPM consiste na atuação dos militares das Forças Armadas em atividade de natureza militar, de operação de paz, de garantia da lei e da ordem ou de atribuição subsidiária, realizadas em conformidade com o disposto no art. 142 da Constituição Federal, conforme preconizado no Código Brasileiro de Aeronáutica; ou na Lei Complementar n. 97/99; no Código de Processo Penal Militar ou no Código Eleitoral.

Interesse hipótese tratada nessa previsão é a garantia da Lei e da Ordem, que tem sido utilizada pela Presidência da República, consoante o Decreto do Presidente da República de 17 de janeiro de 2017 que dispôs no artigo 2º que “As Forças Armadas executarão essa atividade nas dependências de todos os estabelecimentos prisionais brasileiros para a detecção de armas, aparelhos de telefonia móvel, drogas e outros materiais ilícitos ou proibidos.”, pelo prazo de doze meses (art. 3º).

O Decreto de 28 de julho de 2017 dispôs no art. 1º que “Fica autorizado o emprego das Forças Armadas para a Garantia da Lei e da Ordem, em apoio às ações do Plano Nacional de Segurança Pública, no Estado do Rio de Janeiro, no período de 28 de julho a 31 de dezembro de 2017.”, sendo o Exército utilizado na Rocinha, conforme amplamente noticiado pela imprensa.

O Decreto de 08 de agosto de 2016 ampliou e sistematizou as determinações presidenciais de emprego das Forças Armadas para Garantia da Lei e da Ordem nos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos Rio 2016. 

Portanto, têm-se diversos exemplos de atuações do Exército para a garantia da Lei e da Ordem, o que deve ocorrer conforme previsão do art. 15 da Lei Complementar n. 97/99, com as alterações dadas pelas Leis Complementares n. 117/04 e n. 136/10.

O Código Brasileiro de Aeronáutica autoriza o tiro de abate (art. 303, § 2º) após esgotados os meios coercitivos legalmente previstos, sendo a aeronave classificada como hostil, nas hipóteses em que voar no espaço aéreo brasileiro com infração das convenções ou atos internacionais, ou das autorizações para tal fim; entrar no espaço aéreo brasileiro e desrespeitar a obrigatoriedade de pouso em aeroporto internacional; para exame dos certificados e outros documentos indispensáveis; para verificação de sua carga no caso de restrição legal (artigo 21) ou de porte proibido de equipamento (parágrafo único do artigo 21) e para averiguação de ilícito. Cumprido o disposto no Decreto n. 5.144/04[15], configurada uma das hipóteses acima e autorizado pelo Presidente da república ou Comandante da Aeronáutica (Decreto n. 8.265, de 11 de junho de 2014), poderá ocorrer o tiro de abate.

Portanto, nas atuações descritas acima, ocorrendo o homicídio que tenha como vítima civil, a competência será da Justiça Militar da União.

A Lei Complementar n. 97, de 09 de junho de 1999, trata da organização, do preparo e do emprego das Forças Armadas, abrangendo as hipóteses de operação de paz, de garantia da lei e da ordem.

O art. 23, caput, inciso XIV, do Código Eleitoral, assevera que compete ao Tribunal Superior Eleitoral requisitar a força federal necessária ao cumprimento da lei, de suas próprias decisões ou das decisões dos Tribunais Regionais que o solicitarem, e para garantir a votação e a apuração.

Como exemplo, tem-se o Decreto de 24 de julho de 2017 que autorizou o emprego das Forças Armadas para a garantia da votação e da apuração das eleições suplementares no Estado do Amazonas.” (art. 1º).

A Força Armada conservar-se-á a cem metros da seção eleitoral e não poderá aproximar-se do lugar da votação, ou dele penetrar, sem ordem do presidente da mesa (art. 141 do Código Eleitoral).

Assim, caso ocorra crime de homicídio contra civil, em decorrência de atuação das Forças Armadas nas eleições, a competência será da Justiça Militar da União.

Com a nova lei, poderá ocorrer uma situação em que dois militares (um do Exército e um da Polícia Militar pertencente à Força Nacional) estejam atuando conjuntamente em operação determinada pelo Presidente da República e cometam o crime de homicídio doloso contra civil.

Nessa situação o militar das Forças Armadas será julgado pela Justiça Militar da União e o militar estadual será julgado pelo Tribunal do Júri.

Qual a razão dessa distinção, sendo que ambos militares estavam em situação de igualdade?

Trata-se de distinção aparentemente inconstitucional, sobretudo por ferir a isonomia. Ademais, onde há a mesma razão, deve ser aplicado o mesmo direito.

Portanto, os militares estaduais, nessas situações, também deveriam ser julgados pela Justiça Militar – estadual -, porém, essa interpretação encontra óbice no § 4º, do art. 125 da Constituição Federal que determina ser competência do Tribunal do Júri julgar os militares estaduais nos crimes dolosos contra a vida de civil.

6. Consideração finais

A finalidade do artigo não é exaurir o tema, que é novo e será amplamente debatido pela doutrina e enfrentado pela jurisprudência.

A vida profissional militar tem toda uma peculiaridade que a distingue da vida civil, o que deve ser levado em consideração na fixação da competência para julgar os militares criminalmente.

Algumas entidades de direitos humanos apelidaram a nova lei como uma “licença para matar”, com fortes críticas à alteração, por acreditarem que houve um grande retrocesso.

Em petição virtual visando que o Presidente da República vetasse o projeto de lei aprovado, a Anistia Internacional afirmou que o Brasil “violará tratados internacionais dos quais é signatário, obrigações que incluem a garantia do direito ao julgamento justo, imparcial e independente”.

Não há razões para afirmar que não haverá julgamento justo, imparcial e independente.

O julgamento pela Justiça Militar, necessariamente, é técnico, ao contrário do julgamento pelo Tribunal do Júri, onde os jurados podem absolver livremente.

Na Justiça Militar da União, todos os crimes de sua competência são julgados pelo Conselho de Justiça, que é composto pelo Juiz-Auditor, que é concursado, mais quatro juízes militares, que são sorteados dentre os oficiais da carreira da Força Armada.

Portanto, na Justiça Militar da União, os crimes de homicídio contra civis, praticados nas hipóteses delineadas no § 2º, do art. 9º, do Código Penal Militar, serão julgados por cinco juízes, em primeira instância, sendo que quatro deles possuem toda uma história de vida, experiência e conhecimentos próprios da vida militar.

Uma das finalidades do Júri é que o réu seja julgado pelos seus pares, pessoas da sociedade que conhecem a sua realidade, que são verdadeiros juízes leigos, de fato, que julgarão pelos conhecimentos e experiência que possuem da “vida”, como forma de realização de justiça.

Renato Brasileiro de Lima[16] leciona que:

Na verdade, a justificativa para a colocação do Júri no art. 5º da Constituição Federal guarda relação com a ideia de funcionar o Tribunal Leigo como uma garantia de defesa do cidadão contra as arbitrariedades dos representantes do poder, ao permitir a ele ser julgado por seus pares. Além disso, não se pode perder de vista o cunho democrático inerente ao Júri, que funciona como importante instrumento de participação direta do povo na administração da Justiça. Afinal, se o cidadão participa do Poder Legislativo e do Poder Executivo, escolhendo seus representantes, a Constituição também haveria de assegurar mecanismo de participação popular junto ao Poder Judiciário. (destaquei)

Dessa forma, se o civil possui o direito de ser julgado por seus pares, pelos motivos expostos, nada mais justo que o militar, em determinadas ocasiões, seja julgado, igualmente, pelos seus pares. Trata-se de aplicação da isonomia e da máxima de que onde há a mesma razão, deve ser aplicado o mesmo direito.

As situações delineadas no § 2º, do art. 9º, do Código Penal Militar envolvem toda uma circunstância que justifica o julgamento pela Justiça Militar da União.

Por fim, a Justiça Militar terá condições de dar uma resposta mais célere para a sociedade, em vista do quantitativo de processos que tramitam na Justiça Militar, se comparados aos que tramitam na Justiça Comum.

NOTAS

[1] Os pacientes são militares e cometeram crime doloso contra a vida de civil. Inicialmente, a ação penal foi conduzida pela auditoria militar e houve a absolvição de ambos. Sucede que, em sede de apelação, o Tribunal de Justiça Militar, já sob o manto da Lei n. 9.299/1996, declinou da competência em favor do Tribunal de Justiça. Por sua vez, julgando o recurso, aquele Tribunal anulou a sentença condenatória e encaminhou a causa ao juízo singular, tido como competente para a pronúncia, para que se adequasse o rito procedimental. Isso posto, em sede de habeas corpus, a Turma reconheceu que a jurisprudência vem entendendo que a transferência ao Júri dos julgamentos dos crimes especificados pela citada lei opera-se automaticamente, mesmo se o ato criminoso tiver ocorrido antes de sua entrada em vigor. Contudo entendeu que, se existir decisão definitiva, como no caso, consolida-se a atuação do juízo natural, de modo que a atividade jurisdicional recursal posterior segue a competência já disposta. Assim, o feito deve continuar seu curso normal quanto ao julgamento do apelo pelo Tribunal de Justiça Militar. Outrossim, anotou que se tratando de competência absoluta não há óbice para sua reapreciação nessa fase em razão de inocorrer preclusão. Precedentes citados do STF: HC 78.320-SP, DJ  28/5/1999; do STJ: HC 8.984-SP, DJ 16/8/1999. HC 21.579-SP, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, julgado em 18/3/2003.

[2] HC 95435/RS.

[3] GALVÃO, Fernando. JUSTIÇA MILITAR – NOVOS DESAFIOS NA COMPETÊNCIA CRIMINAL. Disponível em: <https://www.amagis.com.br/plus/modulos/noticias/imprimir.php?cdnoticia=24272>. Acesso em: 17/10/2017.

[4] Art. 2º Esta Lei terá vigência até o dia 31 de dezembro de 2016 e, ao final da vigência desta Lei, retornará a ter eficácia a legislação anterior por ela modificada.

[5] Art. 2º Esta Lei terá vigência até o dia 31 de dezembro de 2017 e, ao final da vigência desta Lei, retornará a ter eficácia a legislação anterior por ela modificada.

[6] A presente modificação, de imediato, suprime a especificação referente a militares dos estados, Distrito Federal e territórios, contidas no § 1º, pois a permanecer tal redação haverá uma lacuna legislativa, diante da ausência de definição da jurisdição competente para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida cometidos por militares das Forças Armadas, no exercício de suas atividades rotineiras, haja vista que o § 2º cuida somente dos crimes cometidos por militares das Forças Armadas no exercício das atividades nele especificadas. Ainda no § 1º verifica-se que na redação original não há menção à expressão contra civil. No entanto, caso não seja procedida a inclusão da expressão contra civil, até mesmo nos casos de crimes dolosos contra a vida de militares, o julgamento passará a ser da justiça comum.

Com a modificação efetuada no inciso I do § 2º, que compreende o acréscimo da figura do Presidente da República, busca-se ampliar a guarida a ser conferida aos militares que estejam sendo empregados em atividades excepcionais, pois, não raro, o Presidente da República, na condição de Chefe Supremo das Forças Armadas, valendo-se da competência que lhe é atribuída, determina o emprego das Forças Armadas em missões atípicas que não se encontram compreendidas dentre as já especificadas.

Quanto à alteração a ser procedida no inciso III do § 2º almeja-se consignar, de forma expressa, a competência da Justiça Militar da União no processamento e julgamento de militares que, no contexto de atuação em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), venham a praticar crimes dolosos contra a vida de civil.

Embora a atual redação faça menção à Lei Complementar nº 97, de 1999, e tal lei venha a tratar justamente da atuação do militar na faixa de fronteira e em operações de garantia, da lei e da ordem, não há alusão expressa à atuação do militar em ações de GLO, somente sendo mencionada a atuação do militar em ação militar, operações de paz e ação subsidiária, que podem não compreender a atuação do militar em GLO, pois não há consenso, no âmbito jurídico, acerca da natureza dessas ações. Assim, não havendo expressa alusão a atuação dos militares no contexto de operações de GLO, e não havendo um consenso acerca da natureza dessas ações, corre-se o risco de não ser-lhes assegurada a proteção e a segurança jurídica que o diploma legal busca conferir .

Cumpre ressaltar que as Forças Armadas encontram-se, cada vez mais, presentes no cenário nacional atuando junto à sociedade, sobretudo em operações de garantia da lei e da ordem. Acerca de tal papel, vale citar algumas atuações mais recentes, tais como, a ocorrida na ocasião da greve da Polícia Militar da Bahia, na qual os militares das Forças Armadas fizeram o papel da polícia militar daquele Estado; a ocupação do Morro do Alemão, no Estado do Rio de Janeiro, em que as Forças Armadas se fizeram presentes por longos meses; e, por fim, a atuação no Complexo da Maré, que teve início em abril de 2014.

Dessa forma, estando cada vez mais recorrente a atuação do militar em tais operações, nas quais, inclusive, ele se encontra mais exposto à prática da conduta delituosa em questão, nada mais correto do que buscar-se deixar de forma clarividente o seu amparo no projeto de lei.

Por fim, sugere-se substituir a expressão ação militar por atividade de natureza militar, por ser mais usual.

[7] Art. 124. à Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei.(destaquei)

Art. 125. (…) § 4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) (destaquei)

[8] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Superação legislativa da jurisprudência (reação legislativa). Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/7f39f8317fbdb1988ef4c628eba02591>. Acesso em: 17/10/2017.

[9] HC 130210.

[10] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Emenda parlamentar em medida provisória e contrabando legislativoo. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/c32d9bf27a3da7ec8163957080c8628e>. Acesso em: 17/10/2017

[11] JÚNIOR, Joaquim Leitão. O que se entende por caldas de lei ou contrabando legislativo? Disponível em: <https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/1987852/o-que-se-entende-por-caldas-de-lei-ou-contrabando-legislativo-joaquim-leitao-junior>. Acesso em: 17/10/2017.

[12] As conclusões expostas sobre essa possível inconstitucionalidade decorreram de debates com o Promotor de Justiça Militar Cícero Coimbra que, instigado a pensar sobre o tema pelo Defensor Público da União Alexandre Gallina Krob, que, por sua vez, esclarece que o tema surgiu em grupo de debates de Defensores Públicos. Os dois citados atuam junto à Auditoria da Justiça Militar de Santa Maria/RS.

[13] TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 22º edição. 2ª tiragem. Malheiros Editores. 2008. páginas 143/144.

[14] Anoto que o Defensor Público da União Alexandre Gallina Krob que alertou o Promotor da Justiça Militar Cícero Coimbra acerca dos ensinamentos de Michel Temer, que, por sua vez, nos informou.

[15] Art. 1º Este Decreto estabelece os procedimentos a serem seguidos com relação a aeronaves hostis ou suspeitas de tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins, levando em conta que estas podem apresentar ameaça à segurança pública.

[16] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume – 4. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2016. p. 1337.