É perfeitamente possível que o particular, na condição de agente público de fato, pratique crime de abuso de autoridade, ainda que não atue em conjunto com um agente público de direito. Entenda como seria.
O particular é a pessoa que não exerce cargo ou função pública. A Lei de Abuso de Autoridade é destinada aos agentes públicos.
O art. 2º da Nova Lei de Abuso de Autoridade – Lei n. 13.869/19 – define os sujeitos ativos do crime de abuso de autoridade.
Art. 2º É sujeito ativo do crime de abuso de autoridade qualquer agente público, servidor ou não, da administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de Território, compreendendo, mas não se limitando a:
I – servidores públicos e militares ou pessoas a eles equiparadas;
II – membros do Poder Legislativo;
III – membros do Poder Executivo;
IV – membros do Poder Judiciário;
V – membros do Ministério Público;
VI – membros dos tribunais ou conselhos de contas.
Parágrafo único. Reputa-se agente público, para os efeitos desta Lei, todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função em órgão ou entidade abrangidos pelo caput deste artigo.
Nota-se a ausência de previsão do “particular” como autor do crime de abuso de autoridade, na medida em que não possui atribuições públicas.
O rol do art. 2º é meramente exemplificativo, como se nota quando o caput diz “compreendendo, mas não se limitando a”, além do parágrafo único conceituar agente público de forma a abranger todos que possuam qualquer vínculo com a função pública.
Em que pese o particular não constar na relação do art. 2º da Nova Lei de Abuso de Autoridade, pode praticar o crime de abuso de autoridade quando atua em conjunto com um agente público e, excepcionalmente, ainda que atue sozinho.
Caso atue com um agente público, o particular responderá por crime de abuso de autoridade em razão da comunicabilidade das elementares do crime, ainda que de caráter pessoal (art. 30 do Código Penal).
O art. 30 do Código Penal, que se encontra disposto na parte que trata do concurso de pessoas, diz que “não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime.”
Isto é, as elementares do crime, sejam subjetivas ou objetivas, comunicam-se aos partícipes, desde que tenham conhecimento.
As elementares são os dados, elementos, componentes essenciais de uma figura típica, as quais em caso de ausência implicarão na atipicidade absoluta ou atipicidade relativa. Isto é, a conduta deixa de ser crime ou passa a ser outro crime.
A elementar será objetiva quando se referir a fatos (emprego de violência no roubo) e subjetiva quando se referir a pessoa (condição de funcionário público para a incidência do crime de peculato).
Como exemplo de elementares tem-se o art. 121 do Código Penal que prevê o crime de “matar alguém”. Nota-se que há duas elementares: matar e alguém. Retirando qualquer uma das elementares o fato se torna atípico (deixa de ser crime). O verbo “matar” sozinho não possui nenhuma relevância e sentido, e o substantivo “alguém” sozinho também não possui nenhuma relevância. Percebam que o verbo e o substantivo sozinhos são um “nada jurídico”. Portanto, são elementares, uma vez que retirados do tipo penal ocorre a atipicidade absoluta.
Outro exemplo consiste no crime de desacato previsto no art. 331 do Código Penal, cuja redação é a seguinte: “Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela”. Retirando-se o termo “funcionário público”, tem-se a seguinte redação “Desacatar no exercício da função ou em razão dela”, o que consiste em desrespeitar uma pessoa, razão pela qual o crime passa a ser o de injúria (art. 140). Portanto, o termo “funcionário público” é uma elementar do tipo, já que a sua retirada leva à atipicidade relativa (deixa de ser desacato para ser injúria).
Cita-se, ainda, o exemplo da elementar “funcionário público” (elementar de caráter subjetivo) prevista no art. 312 do Código Penal.
Art. 312 – Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio:
Caso o funcionário público convide um particular para subtrair um carro da administração pública, valendo-se de sua facilidade em entrar na garagem do prédio público, e o particular tenha ciência de que quem o convidou é um funcionário público, o particular responderá pelo crime de peculato e não por furto, pois a condição de “funcionário público” é elementar do tipo e ainda que seja subjetiva, comunica-se ao coautor (art. 30 do Código Penal). O conhecimento do particular de que o coautor é funcionário público é necessário para que não haja responsabilidade penal objetiva.
Caso o particular não tivesse conhecimento da condição de “funcionário público”, responderia pelo crime de furto.
Em se tratando do crime de abuso de autoridade, o raciocínio é o mesmo.
Em que pese os crimes de abuso de autoridade não conterem expressamente a condição de autoridade para a sua prática, o art. 2º da Lei n. 13.869/19 é uma norma de extensão pessoal, necessária para que os agentes pratiquem os atos definidos como crime de abuso de autoridade, razão pela qual aplica-se o disposto no art. 30 do Código Penal.
A norma de extensão, também denominada adequação típica de subordinação mediata, ampliada ou por extensão, é necessária quando o fato praticado não se enquadra de imediato no tipo penal, sendo necessário que haja uma ponte, uma interligação entre a conduta humana e o tipo penal, como ocorre na tentativa (norma de extensão temporal) na participação (norma de extensão pessoal) e nos crimes omissivos impróprios (norma de extensão da tipicidade).
Nota-se que a norma de extensão é necessária para a caracterização do tipo penal, para que seja possível enquadrar a conduta ao tipo penal, razão pela qual se torna essencial para que haja a tipificação correta.
A título exemplificativo, somente é possível falar em concurso de pessoas em razão da norma de extensão prevista no art. 29 do Código Penal (Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade).
Com o disposto no art. 29 do Código Penal é possível enquadrar o partícipe do crime e não somente quem executou o ato criminoso, mas todos que de alguma forma concorreram para a prática do crime, como no caso do homicídio. Será responsabilizado criminalmente não só quem puxou o gatilho, mas também quem emprestou a arma para que o homicídio ocorresse. Sem o disposto no art. 29 do Código Penal, o agente que emprestou a arma ficaria impune.
O executor do crime não necessita da norma de extensão pessoal, pois enquadra-se diretamente no art. 121 do Código Penal. Noutro giro, os partícipes necessitam da norma de extensão pessoal (art. 29 do Código Penal).
Trata-se de uma norma de extensão pessoal, pois se refere aos sujeitos do crime.
A nova Lei de Abuso de Autoridade contém norma de extensão pessoal, disposta no art. 2º, ao tratar dos sujeitos do crime.
Assim, sempre que houver a prática do crime de abuso de autoridade, para que haja tipificação correta, além de apontar o crime praticado deve combinar com o art. 2º da Nova Lei de Abuso de Autoridade.
Nesse sentido, tem-se que o art. 2º é essencial ao tipo penal, razão pela qual aplica-se o raciocínio do art. 30 do Código Penal (comunicabilidade das elementares do crime) e, consequentemente, o particular que concorrer para a prática de abuso de autoridade, também praticará o crime de abuso de autoridade.
Tome como exemplo um particular, conhecido dos policiais, que adentre a uma residência, juntamente, com os policiais, sem que estivesse presente qualquer circunstância que autorizasse o ingresso na residência. Neste caso, o policial e o particular responderão por crime de abuso de autoridade previsto no art. 22 da Lei n. 13.869/19. O policial com fundamento no art. 22 c/c art. 2º e o particular com fundamento no art. 22 c/c art. 2º, ambos da Lei n. 13.869/19 c/c arts. 29 e 30 do Código Penal.
O particular também poderá praticar o crime de abuso de autoridade, ainda que atue isoladamente, isto é, sem a participação de uma autoridade, pois o próprio particular pode se tornar, em um dado momento, em agente público de fato.
A categoria de agentes públicos subdivide-se em dois grupos: a) agentes públicos de direito e b) agentes públicos de fatos.
Os agentes públicos de direito são aqueles que possuem vínculos formais e foram investidos, regularmente, nos cargos empregos e funções públicas, como os agentes políticos, servidores públicos e particulares em colaboração.[1]
Os agentes públicos de fato, conforme lições de Rafael Carvalho Rezende Oliveira, “são os particulares que não possuem vínculos jurídicos válidos com o Estado, mas desempenham funções públicas com a intenção de satisfazer o interesse público. São os particulares que exercem a função pública sem a investidura prévia e válida.”[2]
Rafael Carvalho Rezende Oliveira ensina ainda que os agentes públicos de fato dividem-se em duas categorias:
a) agentes de fato putativos: exercem a função pública em situação de normalidade e possuem a aparência de servidor público (ex.: agentes públicos que desempenham a função pública sem a aprovação em concurso público válido); e
b) agentes de fato necessários: exercem a função pública em situações de calamidade ou de emergência (ex.: particulares que, espontaneamente, auxiliam vítimas em desastres naturais).
José dos Santos Carvalho Filho leciona que os agentes necessários “são aqueles que praticam atos e executam atividades em situações excepcionais, como, por exemplo, as de emergência, em colaboração com o Poder Público e como se fossem agentes de direito.”[3]
Nota-se, portanto, que o particular pode, por vontade própria, em uma situação concreta, colocar-se em uma condição que exercerá função pública, como a hipótese em que atua em um desastre ou que efetua a prisão em flagrante de uma pessoa, valendo-se da autorização contida no art. 301 do Código de Processo Penal (flagrante facultativo)[4].
Nesses casos, o particular será agente de fato necessário, razão pela qual passará a ser considerado sujeito ativo do crime de abuso de autoridade, caso pratique um dos crimes previstos na Lei de Abuso de Autoridade – Lei n. 13.869/19.
Isso porque o art. 2º, parágrafo único, da Lei 13.869/19 considera como sujeito ativo do crime de abuso de autoridade qualquer agente público, ainda que não seja servidor da administração pública, sendo suficiente que exerça, mesmo que transitoriamente e sem remuneração, qualquer função pública, onde se encaixa, perfeitamente, os agentes públicos de fato necessários (agentes necessários). O conceito é amplo e engloba qualquer hipótese de exercício de função pública, por qualquer pessoa.
Assim, na hipótese em que um particular em via pública visualize um agente que acabou de praticar um furto e decida prendê-lo (flagrante facultativo), momento em que passa a atuar como agente público de fato, ocasião em que não se identifica e constrange o preso, mediante violência ou grave ameaça, a exibir-se ao público presente, como forçá-lo que mostre o rosto às pessoas que estão assistindo a prisão, com o fim de humilhá-lo, praticará os crimes de abuso de autoridade previstos nos arts. 16 e 13, I, ambos da Nova Lei de Abuso de Autoridade.
Da mesma forma, um particular que atua em um desastre, como o rompimento de barragem em Brumadinho, durante a atuação será considerado agente público de fato e poderá praticar crime de abuso de autoridade, como a hipótese em que adentra a uma residência durante a atuação no local dos fatos, sem que houvesse qualquer justificativa ou autorização (art. 22), ou então exige informação ou cumprimento de obrigação, inclusive o dever de fazer ou de não fazer, sem expresso amparo legal (art. 33), como obrigar que moradores na região doem alimentos e forneçam moradia para as vítimas do desastre que tenham ficado sem casa.
Não é possível que o particular, na condição de particular, pratique sozinho crime de abuso de autoridade. Assim, se o particular adentrar a uma residência, sozinho, sem qualquer justificativa ou autorização, praticará o crime de violação de domicílio (art. 150 do Código Penal).
No entanto, é perfeitamente possível que o particular, na condição de agente público de fato (agente necessário), pratique crime de abuso de autoridade, ainda que não atue em conjunto com um agente público de direito (servidor público, por exemplo), pois já reunirá, sozinho, a condição necessária para praticar abuso de autoridade, por enquadrar-se como sujeito ativo do crime de abuso de autoridade definido no art. 2º da Lei n. 13.869/19.
REFERÊNCIAS
[1] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. 5. ed. São Paulo: Forense, 2017.
[2] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. 5. ed. São Paulo: Forense, 2017.
[3] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 32. ed. São Paulo: Atlas, 2018.
[4] Art. 301. Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito.