O policial pode dar buscas, sem mandado, na boleia do caminhão? Caso o policial adentre na cabine, sem mandado, haverá crime de violação de domicílio? E caso haja arma de fogo irregular dentro da boleia, haverá porte ou posse de arma de fogo?
A boleia do caminhão é a cabine do caminhão, em que o motorista dirige e também descansa. Na parte traseira do interior da boleia há um espaço para que os motoristas descansem, durmam e façam do caminhão seu local de repouso, em razão das longas viagens, ocasião em que levam consigo objetos de uso pessoal.
As respostas às perguntas perpassam pelo conceito de casa. A boleia do caminhão é considerada casa?
O conceito de casa não é fechado e para fins de proteção constitucional (art. 5º, XI) deve ser interpretado de forma ampla.[1]
Com efeito, o art. 5º, XI, da Constituição Federal assegura que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.
O art. 150, §§ 4º e 5º, do Código Penal (art. 226, §§ 4º e 5º, do CPM) define que a expressão “casa” compreende: a) qualquer compartimento habitado; b) aposento ocupado de habitação coletiva; c) compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade e que não se compreendem na expressão “casa”: a) hospedaria, estalagem ou qualquer outra habitação coletiva, enquanto aberta, salvo quando se tratar de aposento ocupado de habitação coletiva e b) taverna, casa de jogo e outras do mesmo gênero.
Para fins penais e processuais penais, o conceito de “casa” é mais amplo do que aquele definido no Código Civil, ao conceituar domicílio (art. 70).
O objetivo, neste momento, não é analisar o conceito de “casa” nas mais diversas situações, mas somente quando se tratar da boleia do caminhão.
A doutrina majoritária e a jurisprudência entendem que a boleia do caminhão deve ser considerada como “casa”, uma vez que o motorista do caminhão a utiliza como moradia, ainda que de forma transitória, razão pela qual merece a proteção constitucional de inviolabilidade domiciliar, com o fim de resguardar a privacidade e a intimidade.
Fato é que motoristas de caminhão passam semanas e até meses viajando e, praticamente, fazem da boleia do caminhão suas próprias casas, sendo necessário que haja uma maior segurança jurídica que proteja a tranquilidade e a privacidade dos caminhoneiros.
Corrente minoritária defende que a boleia do caminhão não deve ser considerada “casa”, por se tratar de um instrumento de trabalho do caminhoneiro, assim como táxi e veículos particulares utilizados para o trabalho (aplicativos de corrida).
Não se pode desconsiderar que o caminhão, além de ser um mecanismo de trabalho, também é utilizado para o descanso, sossego e moradia do caminhoneiro que passa tempo significativo longe de casa, razão pela qual deve haver um tratamento especial e, consequentemente, receber proteção jurídica que permita ao caminhoneiro descansar em paz e fazer da boleia do caminhão seu local de moradia temporária.
O Supremo Tribunal Federal[2], ao analisar a licitude da busca realizada em automóvel, sem mandado, acolheu manifestação da Procuradoria-Geral da República para reconhecer a legalidade da busca, sob o fundamento de que “o espaço compreendido dentro de veículo automotor, salvo a hipótese em que consistir a habitação de seu titular (v.g. Trailers), não está abarcada no conceito jurídico de domicílio, ao qual a lei dispensa proteção especial (art. 5º, XI, CF/1988) em homenagem ao direito fundamental à intimidade e à vida privada”, razão pela qual “não se pode conceber o veículo automotor como um espaço reservado onde o indivíduo desenvolve livremente a sua personalidade – salvo, como alhures asseverado, quando se tratar de veículo com fim de habitação, seja ela de caráter permanente ou provisória –, senão como extensão de seu próprio corpo, porque, meio de transporte que é, destinado ao mero deslocamento de seu condutor e muitas vezes empregado para ocultar vestígios de prática criminosa. Conceber-se o contrário, seria inviabilizar agentes policiais ou fiscais a realizar revista nos veículos por ocasião de ações de fiscalização (v.g., blitz).
A regra é que em veículos automotores seja possível realizar buscas livremente, quando houver fundada suspeita (art. 240, § 2º, do CPP), o que dispensa a exigência de mandado de busca e apreensão, salvo quando se tratar de veículo destinado à habitação do indivíduo, como trailers, cabines de caminhão, barcos, dentre outros.
No mesmo sentido já decidiu o Superior Tribunal de Justiça[3].
Não é necessário mandado judicial para que seja realizada a busca por objetos em interior de veículo de propriedade do investigado quando houver fundadas suspeitas de que a pessoa esteja na posse de material que possa constituir corpo de delito.
Será, no entanto, indispensável o mandado quando o veículo for utilizado para moradia do investigado, como é o caso de cabines de caminhão, barcos, trailers.
STJ. 6ª Turma. HC 216437-DF, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 20/9/2012.
Portanto, a cabine de caminhão deve ser tratada como “casa” para fins de inviolabilidade domiciliar.
Em razão disso (cabine de caminhão ser tratada como casa) surgem diversas consequências jurídicas, como a necessidade de mandado de busca e apreensão para realizar busca na boleia do caminhão; a prática do crime de violação de domicílio para quem ingressa na cabine sem autorização e a prática do crime de porte/posse ilegal de arma de fogo.
Notocante à necessidade de mandado de busca e apreensão, por ser a casa inviolável, salvo nas situações definidas constitucionalmente, como a autorização judicial, faz-se necessário que haja mandado de busca e apreensão, não sendo possível que a polícia realize buscas na cabine do caminhão sem prévia autorização judicial, salvo se houver situação caracterizadora de flagrante delito.
E nas hipóteses em que houver fundada suspeita que autoriza a realização de busca pessoal, como ocorre com uma pessoa que dirige um carro ou que está em via pública?
Em breves palavras, não será possível a realização de busca na cabine do caminhão, pois a fundada suspeita que autoriza a realização de busca pessoal em via pública ou em carros possui menor rigor que as exigências para que seja realizada busca domiciliar, já que a casa goza de proteção constitucional (art. 5º, XI), é considerada asilo inviolável, em razão do direito à paz, intimidade e vida privada, salvo as exceções definidas na própria Constituição, enquanto que a busca pessoal consiste em um contato do policial no corpo do abordado, para a busca de objetos ilícitos e não há uma invasão da vida privada de forma tão intensa como ocorre ao se realizar uma busca domiciliar, em que a casa é toda averiguada, pois o policial se limita a averiguar somente os bens que estão com o abordado. A busca pessoal também não viola o direito de ir, vir e permanecer, pois este não foi impedido, mas momentaneamente, restringido, de forma justificada, por um curto período, caso nada de ilegal seja encontrado com o abordado.
Nota-se que a busca domiciliar atinge direitos fundamentais em um grau muito mais elevado e intenso do que a busca pessoal, além da regra ser a necessidade de autorização judicial para que haja ingresso em domicílio, salvo se houver uma situação caracterizadora de flagrante delito, cujo conhecimento por parte dos policiais seja prévio e fundamentado, enquanto que a busca pessoal, como regra, dispensa autorização judicial[4], desde que haja elementos que demonstrem que o abordado esteja em atitude suspeita, o que pode estar caracterizado pelo simples fato do abordado permanecer em frente a uma casa a observando, por um período relevante ou por passar várias vezes, no mesmo dia, em frente a um comércio e ficar observando. A busca pessoal pode ocorrer ainda que não haja nenhuma situação de flagrante delito, mas mera suspeita de que o agente está propenso a praticar qualquer fato ilícito, enquanto que a busca domiciliar, sem autorização judicial, sempre exigirá elementos que caracterizem situação de flagrante delito.
Decisão recente do Superior Tribunal de Justiça afirmou que “A mera intuição acerca de eventual traficância praticada pelo recorrido, embora pudesse autorizar abordagem policial, em via pública, para averiguação, não configura, por si só, justa causa a autorizar o ingresso em seu domicílio, sem o consentimento do morador – que deve ser mínima e seguramente comprovado – e sem determinação judicial.”[5]
Toda busca realizada pelo policial, seja a domiciliar ou a pessoal, deve ser fundamentada em elementos concretos que justifiquem a realização da busca, sendo que a busca domiciliar, sem mandado, exige um maior esforço argumentativo.
Exigir o mesmo rigor entre busca pessoal e domiciliar, além de não ter fundamentos razoáveis, inviabilizaria bastante o trabalho da polícia que teria imensa dificuldade para atuar na prevenção do crime, que constitui a finalidade precípua dos órgãos de segurança pública (art. 144 da Constituição Federal), uma vez que grande parte das drogas e armas apreendidas decorrem de buscas pessoais realizadas pelos policiais em serviço e de ofício, além da abordagem policial prévia possuir um efeito inibidor para aquele agente que está em via pública propenso a praticar crimes.
Não se pode desconsiderar a experiência policial, que decorre dos treinos, vivência, experiência, lida diária com a criminalidade, o enfrentamento do crime, o conhecimento prático e teórico que os policiais possuem, o que forma o tirocínio policial, que muitas vezes é suficiente para caracterizar a fundada suspeita e legitimar a busca pessoal, na linha do que decidiu o Superior Tribunal de Justiça[6] ao afirmar que a mera intuição pode autorizar a busca pessoal, o que é inadmissível em se tratando de busca domiciliar, que exige fundadas razões (justa causa), ou seja, exige elementos concretos da possível prática de crime.[7]
Em relação ao crime de violação de domicílio para quem ingressa na cabine de caminhão sem autorização do caminhoneiro ou sem mandado, em situação que não haja elementos que caracterizam flagrante delito, estará caracterizado o crime em tela.
O art. 150 do Código Penal (art. 226 do CPM) define como crime de violação de domicílio a conduta de “Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências.”
Como exposto, o Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça e a doutrina majoritária consideram a cabine de caminhão como casa (casa ou residência sobre rodas), razão pela qual o ingresso ilegal na boleia do caminhão configura o crime de violação de domicílio.
Caso o ingresso irregular seja praticado por um policial em serviço, tal conduta, configurará o crime de abuso de autoridade previsto no art. 22 da Nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei n. 13.869/19)[8]?
A resposta é não, pois o crime de abuso de autoridade de invasão de domicílio ocorre somente em imóveis, pois o tipo penal do art. 22 da Lei n. 13.869/19 diz expressamente que a invasão deve ser em “imóvel alheio ou suas dependências”[9].
O crime de violação de domicílio não exige que a invasão ocorra em imóvel, sendo este uma espécie de casa (gênero), que abrange imóveis e móveis.
Crime de abuso de autoridade deinvasão de domicílio
Crime de violação de domicílio
Art. 22. Invadir ou adentrar, clandestina ou astuciosamente, ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel alheio ou suas dependências, ou nele permanecer nas mesmas condições, sem determinação judicial ou fora das condições estabelecidas em lei: Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
Art. 150 – Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências: Pena – detenção, de um a três meses, ou multa. § 4º – A expressão “casa” compreende: I – qualquer compartimento habitado; II – aposento ocupado de habitação coletiva; III – compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade.
A Nova Lei de Abuso de Autoridade revogou o § 2º do art. 150 do Código Penal que era uma causa de aumento da pena, caso a invasão de domicílio fosse praticada por funcionário público fora dos casos legais, ou com inobservância das formalidades estabelecidas em lei, ou com abuso do poder, em razão da previsão específica do crime de abuso de autoridade para invasão de imóvel, mas se esqueceu de que a violação de domicílio pode ocorrer em móveis ou imóveis, sendo que agora a pena será maior somente quando a invasão ocorrer em imóveis, uma vez que o crime de abuso de autoridade previsto no art. 22 da Lei n. 13.869/19 possui pena mais grave e abrange somente os imóveis.
Portanto, ainda que o ingresso irregular em cabine de caminhão decorra de uma ação policial, não haverá crime de abuso de autoridade, mas tão somente crime de violação de domicílio (art. 150 do Código Penal ou art. 226 do CPM), uma vez que a cabine de caminhão é considerada “casa” para fins de violação de domicílio, nos termos do art. 150, § 4º, I (qualquer compartimento habitado), do Código Penal. Trata-se de “casa sobre rodas”.
Norberto Avena[10], ao escrever sobre buscas em veículos, ensina que:
Não podem ser equiparados a domicílio, pois se trata de coisas que pertencem à pessoa. No mesmo caso encontram-se os ônibus de transporte de passageiros, que podem ser livremente examinados. Diferente é a situação da rotulada boleia do caminhão, que se equipara a domicílio na hipótese de encontrar-se o motorista em viagem prolongada, valendo-se da cabine do veículo como dormitório, lá possuindo seus objetos pessoais, roupas e material de higiene. Nesse caso, deve ser respeitada a previsão constitucional exigente de ordem judicial para revista específica, quer dizer, a abordagem diretamente relacionada àquele veículo. Evidentemente, essa regra não tem aplicabilidade na hipótese de blitz, que se caracteriza como operação de revista geral em todos os veículos que passam por determinado local, caso em que a revista aos veículos deve ser livremente facultada.
O entendimento de Avena merece reflexão, todavia entendo que o policial poderá ter acesso à cabine do caminhão para fiscalizar normas de trânsito, como checar a validade do extintor do incêndio, o funcionamento das setas e dos faróis, dentre outros itens, na medida em que esta fiscalização não tem por finalidade realizar buscas, razão pela qual não viola o direito à intimidade e privacidade e, consequentemente, não há violação à inviolabilidade domiciliar.
Noutro giro, caso a polícia adentre ao caminhão, sob a justificativa de proceder à fiscalização de trânsito, mas realize buscas na boleia, eventuais objetos ilícitos encontrados poderão ser considerados provas ilícitas, uma vez que a busca, sem mandado, nessas circunstâncias, será ilegal.
Caso o policial, durante a checagem dos itens obrigatórios de segurança na cabine do caminhão, visualize uma arma na parte traseira da boleia, poderá apreendê-la e efetuar a prisão do caminhoneiro, pois o policial terá atuado em situação de flagrante delito, que autoriza o ingresso em casa, cujo conhecimento da situação de flagrante foi obtido de forma lícita, era prévio e fundamentado.
O fato do caminhão transitar em viagens longas ou curtas ou dentro ou fora das cidades pouco importa para que haja a proteção da boleia do caminhão como casa, pois em qualquer situação estará caracterizada a moradia do motorista, ainda que esteja de passagem pela cidade ou em trânsito por curto espaço de tempo.
Lado outro, caso o motorista utilize o caminhão para as atividades do dia a dia, sem realizar viagens e sem haver necessidade de dormir, descansar e permanecer no caminhão, não haverá a proteção constitucional de inviolabilidade domiciliar, o que autoriza a busca policial sem mandado, ainda que não haja situação caracterizadora de flagrante delito.
Em relação à conduta por parte do caminhoneiro que mantém arma na boleia do caminhão, a jurisprudência é no sentido de que estará caracterizado o crime de porte ilegal de arma de fogo.
O porte ilegal de arma de fogo estará caracterizado quando a arma estiver, de forma irregular, sob a responsabilidade do agente fora de sua residência.
A posse de arma de fogo ocorre quando aquele que a possui encontra-se com a arma no interior de sua residência ou dependência desta, ou, ainda no seu local de trabalho, desde que seja o titular ou o responsável legal do estabelecimento ou empresa. Foras dessas situações, haverá porte de arma de fogo, como transportar a arma em locais públicos ou privados, em casa de terceiros ou no local de trabalho, quando não for o titular ou responsável legal pelo estabelecimento ou empresa.
Em que pese a boleia do caminhão ser considerada casa, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, fixou entendimento de que a arma irregular encontrada dentro da boleia configura o crime de porte ilegal de arma de fogo, sob os seguintes argumentos: a) O caminhão, ainda que seja instrumento de trabalho do motorista, não pode ser considerado extensão de sua residência, nem local de seu trabalho, mas apenas instrumento de trabalho; b) O caminhão é instrumento de trabalho do motorista, assim como, mutatis mutandis, a espátula serve ao artesão. Portanto, não pode ser considerado extensão de sua residência, nem local de seu trabalho, mas apenas um meio físico para se chegar ao fim laboral; c) A boleia de um caminhão não pode ser considerada casa, nem local de trabalho, para fins de configuração do delito de posse irregular de arma de fogo, por não caracterizar residência ou local de trabalho, mas sim o transporte de arma de fogo pelas vias públicas, sem autorização legal ou regulamentar.[11]
Portanto, o Superior Tribunal de Justiça não considera a boleia do caminhão como sendo “casa” para fins penais, o que resulta em contradição com a própria jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça ao considerar a indispensabilidade do mandado para realizar buscas em cabines de caminhão, exatamente por ser considerado casa[12].
Criou-se portanto um duplo conceito de casa, um que não considera a boleia do caminhão como “casa” para fins de tipificar o crime de porte ilegal de arma de fogo e outro que considera a boleia do caminhão como “casa” para fins de assegurar a proteção constitucional da inviolabilidade. Não considerar a boleia do caminhão como “casa” para fins penais, mas entender que é casa para fins de proteção constitucional esvazia a própria proteção constitucional, pois não haverá a tutela penal (crime de violação de domicílio) caso a “casa” seja invadida. Não haverá nenhuma consequência penal para aquele que a invadiu e violou um direito constitucional.
Referida interpretação não deve prosperar, pois o conceito de “casa”, termo contido no art. 5º, XI, da Constituição Federal, encontra definição no art. 150, §§ 4º e 5º, do Código Penal (art. 226, §§ 4º e 5º, do CPM) e deve ser interpretado de forma ampla, a abranger diversos tipos de “casa”, como quartos de hotel e motel, desde que ocupados, barcos, trailers, abrigos debaixo da ponte etc. Diante das decisões do Superior Tribunal de Justiça chega-se a resultados diversos partindo dos mesmos pressupostos. É como se a soma de dois números dessem resultados diversos. Vale aqui a máxima de que onde houver o mesmo fundamento deve haver o mesmo direito.
Diante desse cenário é até possível que a arma encontrada na boleia do caminhão configure o crime de porte ilegal de arma de fogo, mas por fundamentos diversos e não por não ser considerado casa para fins penais.
Deve-se distinguir quando o motorista do caminhão é o empregado de uma empresa[13], o proprietário do caminhão ou quando o utiliza mediante instrumento jurídico que o possibilite permanecer com o caminhão e considerá-lo como “sua casa” ou “local de trabalho em que seja o responsável”.
Quando se tratar de empregado de uma empresa haverá o crime de porte ilegal de arma de fogo, pois a “casa” em que permanece provisoriamente não é sua e o local em que trabalha (dentro do caminhão) também não é seu, sendo o caminhão utilizado como um instrumento de trabalho, o que afasta o crime de posse ilegal de arma de fogo.
Quando o motorista do caminhão for o próprio dono do caminhão ou o possuí-lo a qualquer título, de forma que permita definir o caminhão como sendo “sua casa” ou que o local de trabalho também seja seu (proprietário ou responsável legal), ainda que se trate de um instrumento de trabalho, haverá o crime de posse ilegal de arma de fogo.
Portanto, essa distinção que não é feita, é de suma importância para tipificar quando haverá crime de porte ou posse ilegal de arma de fogo em se tratando do transporte de armas nas cabines de caminhão.
Acredito que o entendimento pelo crime de porte ilegal de arma de fogo por parte do motorista que transporte arma dentro da cabine de caminhão, como os tribunais vêm decidindo, decorra de uma política criminal que tem, por fim, coibir e reprimir de forma mais severa a circulação de armas em vias públicas, pois o fato de levar arma no caminhão equivale, em termos práticos, a levar uma arma dentro de um carro, o que compromete a incolumidade pública.
Por fim, deve-se observar que a jurisprudência não distingue a parte da frente da parte detrás da boleia do caminhão para fins de configuração do crime de porte/posse ilegal de arma de fogo.
A parte traseira do interior da boleia do caminhão é que possui cama e estrutura para o repouso e descanso do motorista, sendo certo, no entanto, que acaba por utilizar a parte da frente também para guardar bens, trocar de roupa etc. Fato é que a parte traseira da cabine do caminhão é que deveria merecer proteção constitucional, por ser o local destinado à moradia[14], o que permitiria a realização de buscas pela polícia somente na parte da frente da cabine do caminhão, sem necessidade de mandado, assim como são realizadas buscas em carros.
NOTAS
[1] STF – MS 23.595/DF.
[2] RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS 117.767 DISTRITO FEDERAL.
[3] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Desnecessidade de mandado para busca pessoal. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/0f46c64b74a6c964c674853a89796c8e>. Acesso em: 16/10/2019
[4] CPP. Art. 244. A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar.
[5] STJ – REsp: 1574681 RS 2015/0307602-3, Relator: Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Data de Julgamento: 20/04/2017, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 30/05/2017.
[6] STJ – REsp: 1574681 RS 2015/0307602-3, Relator: Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Data de Julgamento: 20/04/2017, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 30/05/2017.
[7] O Supremo Tribunal Federal já decidiu, em 2002, que “a ‘fundada suspeita’ prevista no artigo 244 do CPP não pode fundar-se em parâmetros unicamente subjetivos, exigindo elementos concretos que indiquem a necessidade da revista, em face do constrangimento que causa”. (STF, HC 81.305, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 22/02/2002).
[8] A Nova Lei de Abuso de Autoridade entra em vigor no dia 03 de janeiro de 2020.
[10] AVENA, Norberto. Processo Penal. 10. ed. São Paulo: Editora Método, 2018.
[11] STJ – AREsp: 1264069 RS 2018/0061818-0, Relator: Ministro RIBEIRO DANTAS, Data de Publicação: DJ 27/04/2018; STJ – REsp: 1643361 RS 2016/0327179-8, Relator: Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Data de Publicação: DJ 21/02/2017)(RHC 31.492⁄SP, Rel. Ministro Campos Marques (Desembargador Convocado do TJ⁄PR), Quinta Turma, DJe 19⁄08⁄2013); AgRg no REsp 1362124/MG, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 19/03/2013, DJe 10/04/2013; (TJ-RJ – APL: 00025767220138190044 RIO DE JANEIRO PORCIUNCULA VARA UNICA, Relator: MÁRCIA PERRINI BODART, Data de Julgamento: 26/01/2016, SÉTIMA CÂMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 29/01/2016.
[12] STJ. 6ª Turma. HC 216437-DF, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 20/9/2012.
[13] O termo “empresa” está empregado sem o rigor técnico, pois empresa é atividade e não sociedade empresarial ou pessoa jurídica.
[14] O Professor Renato Brasileiro de Lima cita em seu livro como exemplo de casa a parte traseira do interior boleia do caminhão (LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 7. ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2019. p. 751).
Não é incomum que viaturas policiais parem ou estacionem sobre passeios e calçadas, sob a justificativa de dar ostensividade à presença da polícia com a finalidade de preservar a ordem pública.
Tal procedimento realizado pela polícia é legal?
Antes de demonstrar os entendimentos existentes, é importante conceituar parada, estacionamento, passeio e calçada.
O ANEXO I da Lei n. 9.503/97 – Código de Trânsito Brasileiro – define os conceitos dos termos mencionados, a saber.
PARADA – imobilização do veículo com a finalidade e pelo tempo estritamente necessário para efetuar embarque ou desembarque de passageiros. ESTACIONAMENTO – imobilização de veículos por tempo superior ao necessário para embarque ou desembarque de passageiros. PASSEIO – parte da calçada ou da pista de rolamento, neste último caso, separada por pintura ou elemento físico separador, livre de interferências, destinada à circulação exclusiva de pedestres e, excepcionalmente, de ciclistas. CALÇADA – parte da via, normalmente segregada e em nível diferente, não destinada à circulação de veículos, reservada ao trânsito de pedestres e, quando possível, à implantação de mobiliário urbano, sinalização, vegetação e outros fins.
Expostos os conceitos, passamos a analisar se tal procedimento realizado pela polícia é legal.
Há os dois entendimentos.
O primeiro preconiza ser ilegal, na medida em que o art. 29, VIII, do Código de Trânsito Brasileiro dispõe que os veículos que gozam de livre parada e estacionamento no local de prestação do serviço são os que prestam serviços de utilidade pública e que estejam em atendimento na via.[1]
O art. 3º, § 1º, da Resolução CONTRAN n. 268, de 15/02/2008, define os veículos que são considerados prestadores de serviço de utilidade pública e não menciona a viatura policial.
Art. 3º Os veículos prestadores de serviços de utilidade pública, referidos no inciso VIII do art. 29 do Código de Trânsito Brasileiro, identificam-se pela instalação de dispositivo, não removível, de iluminação intermitente ou rotativa, e somente com luz amarelo-âmbar. § 1º Para os efeitos deste artigo, são considerados veículos prestadores de serviço de utilidade pública: I – os destinados à manutenção e reparo de redes de energia elétrica, de água e esgotos, de gás combustível canalizado e de comunicações; II – os que se destinam à conservação, manutenção e sinalização viária, quando a serviço de órgão executivo de trânsito ou executivo rodoviário; III – os destinados ao socorro mecânico de emergência nas vias abertas à circulação pública; IV – os veículos especiais destinados ao transporte de valores; V – os veículos destinados ao serviço de escolta, quando registrados em órgão rodoviário para tal finalidade; VI – os veículos especiais destinados ao recolhimento de lixo a serviço da Administração Pública.
O inciso VII do art. 29 do Código de Trânsito Brasileiro autoriza que os veículos destinados a socorro de incêndio e salvamento, os de polícia, os de fiscalização e operação de trânsito e as ambulâncias, além de prioridade de trânsito, gozem de livre circulação, estacionamento e parada, quando em serviço de urgência e devidamente identificados por dispositivos regulamentares de alarme sonoro e iluminação vermelha intermitente.[2]
Trata-se de veículos que prestam serviços de interesse público.
Nota-se que a viatura policial somente poderá estacionar e parar sobre as calçadas e passeios quando em serviço de urgência e não sem uma situação de normalidade ou de atendimento de ocorrência, pois em se tratando de atendimento o inciso VIII do art. 29 não contemplou a viatura, que presta serviço de segurança pública, mas somente os veículos que prestam serviço de utilidade pública, elencados no art. 3º, § 1º, da Resolução CONTRAN n. 268/08.
Por serviço de urgência deve-se entender qualquer situação que demanda atendimento imediato, que não pode esperar, que necessite de uma pronta resposta, seja em razão da gravidade ou de qualquer circunstância do caso concreto que exija uma atuação imediata, como o atendimento de uma ocorrência policial em que agentes de roubo estejam em flagrante delito ou de uma ambulância que preste socorro a uma vítima de qualquer acidente que esteja em estado grave.
Nesse sentido, o Conselho Estadual de Trânsito do Estado de Goiás lançou o Parecer n. 010/09[3], que trata da legalidade do estacionamento de viaturas policiais sobre passeios e calçadas, ocasião em que afirmou ser ilegal a conduta de viaturas policiais estacionarem sobre as calçadas, salvo em serviço de urgência.
O parecer distingue os veículos destinados a socorro de incêndio e salvamento, os de polícia, os de fiscalização e operação de trânsito e as ambulâncias, como prestadores de serviço público (art. 29, VII, do CTB), dos veículos prestadores de serviços de utilidade pública (art. 29, VIII, do CTB ) que são os indicados no art. 3º, § 1º, da Resolução CONTRAN n. 268/08 e conclui que:
os veículos que prestam serviços de interesse público, além de prioridade de trânsito, gozam de livre circulação, estacionamento e parada, quando em serviço de urgência e devidamente identificados por dispositivos regulamentares de alarme sonoro e iluminação vermelha intermitente. Caso estes veículos não se encontrem conforme situação descrita, estando estacionados em áreas de passeio, de circulação de pedestres e de ciclos, em ilhas, refúgios, divisores de pistas e locais análogos, poderão ser autuados por infração ao Artigo 181, inciso VIII, do CTB.
Dessa forma, para a primeira corrente, a viatura policial, salvo situações de urgência, não podem parar ou estacionar sobre as calçadas e passeios, sob pena de estarem sujeitas à autuação por infração de trânsito (arts. 181, VIII, 182, VI, ambos do CTB)[4], cuja multa poderá ser aplicada por órgão de trânsito ou por outra viatura.
O primeiro entendimento não merece prosperar, razão pela qual passo a expor fundamentos para divergir e expor um segundo entendimento, que considera legal o estacionamento e parada de viaturas sobre passeio e calçadas, ainda que não haja uma situação de urgência.
Com efeito, o art. 29, VIII, do Código de Trânsito assevera que “os veículosprestadores de serviços de utilidade pública, quando em atendimento na via, gozam de livre parada e estacionamento no local da prestação de serviço, desde que devidamente sinalizados, devendo estar identificadosna forma estabelecida pelo CONTRAN”.
Para chegar à conclusão da legalidade do estacionamento e parada de viaturas policiais sobre passeios e calçadas será necessário analisar o conceito de “veículos prestadores de serviços de utilidade pública”; “atendimento na via”; “local da prestação de serviço”, “devidamente sinalizados” e de “identificados na forma estabelecida pelo CONTRAN”.
Os veículos prestadores de serviços de utilidade pública são todos aqueles que desempenham algum serviço de ordem pública, conforme lições de Arnaldo Rizzardo, que cita como exemplo “o caminhão da coleta de lixo, guinchos (somente em caso de socorro de emergência), carros-fortes, veículos de empresas de serviço telefônico ou de energia elétrica, viaturas que tratam de obra de saneamento urbano etc. Enfim, aos veículos utilizados em serviços de caráter público gozando de livre parada e estacionamento, permite-se parar e estacionar em locais que, em princípio, são proibidos e inadequados.”[5]
José dos Santos Carvalho Filho leciona que “Os serviços de utilidade pública se destinam diretamente aos indivíduos, ou seja, são proporcionados para sua fruição direta. Entre eles estão o de energia domiciliar, fornecimento de gás, atendimento em postos médicos, ensino etc.”[6]
O Decreto-Lei 3.365/41 trata das desapropriações por utilidade pública e traz um rol em que contém “segurança nacional”, “a defesa do Estado”, “salubridade pública”, o “funcionamento dos meios de transporte coletivo”, dentre outros, o que demonstra que o conceito de utilidade púbica é amplo e deve incluir a segurança pública.
Trata-se de rol não taxativo, conforme leciona Matheus Carvalho, ao dizer que as disposições legais não são exaustivas acerca das hipóteses de utilidade pública, uma vez que se trata de conceito jurídico indeterminado, no qual impera “uma margem de discricionariedade ao administrador público, que poderá exercê-la com base em critérios de oportunidade e conveniência.”[7]
Dessa forma, é perfeitamente possível incluir as viaturas policiais como prestadoras de serviço de utilidade pública, por serem os órgãos policiais os responsáveis pela segurança pública e a Polícia Militar, especificamente, pela polícia ostensiva e preservação da ordem pública.
Em que pese o rol do art. 3º, § 1º, da Resolução CONTRAN n. 268/08 não mencionar a viatura policial, tal rol não pode ser interpretado como taxativo, exatamente pelas mesmas razões que o rol do Decreto-Lei 3.365/41 não deve ser interpretado de forma taxativa. Além do mais, o Código de Trânsito Brasileiro, no artigo 28, III, ao autorizar que os veículos prestadores de serviços de utilidade pública gozem de livre parda e estacionamento foi expresso em dizer que o CONTRAN regulamentaria a forma de identificação desses veículos e não quais veículos se encaixariam no conceito de “utilidade pública”, o que corrobora os argumentos de que o rol mencionado pelo CONTRAN é exemplificativo, já que onde a lei não restringiu, não cabe ao intérprete (CONTRAN) restringir.
Art. 28 (…) VIII – os veículos prestadores de serviços de utilidade pública, quando em atendimento na via, gozam de livre parada e estacionamento no local da prestação de serviço, desde que devidamente sinalizados, devendo estar identificados na forma estabelecida pelo CONTRAN;
Por atendimento na via deve-se entender pela efetiva prestação de serviço que, em se tratando de viatura policial, consiste na prestação de serviço de segurança pública, que estará caracterizado pela simples presença ostensiva do órgão policial.
Assim, a mera presença de uma viatura da Polícia Militar é suficiente para caracterizar a prestação de serviço e, consequentemente, o atendimento na via, pois não há necessidade que haja o atendimento de uma ocorrência policial, que consiste somente em uma das formas da prestação de serviço da Polícia Militar, até porque a finalidade precípua do policiamento é a prevenção.
A prestação de serviço de segurança pública pode ocorrer de iniciativa ou em decorrência de solicitação.
Tome como exemplo a passagem de viaturas por determinadas ruas após o recebimento de uma ligação no 190 em que o denunciante disse haver indivíduos em atitude suspeita. Haverá o atendimento pela Polícia Militar quando a viatura passar pelo local mediante solicitação, bem com haverá o atendimento pela instituição quando a viatura passar pelo local de iniciativa.
Portanto, sempre que uma viatura realizar o policiamento estará caracterizada a efetiva prestação de serviço e consequentemente o atendimento de serviço de interesse público (preservação da ordem pública). Seria de todo incongruente permitir que uma viatura policial permanecesse sobre o passeio após a prática de um crime (repressão), para atender a uma ocorrência, mas não pudesse permanecer antes da ocorrência do crime (prevenção), sendo que a missão constitucional da Polícia Militar é a preservação da ordem pública, razão pela qual deve ser dada primazia, sempre, à prevenção e quando a ordem pública for violada, deve ocorrer a restauração da ordem pública.
A doutrina de José Almeida Sobrinho[8], ao comentar o art. 28, VIII, do CTB ensina que:
Esses veículos, destinados ao atendimento de serviços de uso comum da sociedade, têm prerrogativa de livre parada e estacionamento porque são equipados especificamente para atender interrupção ou defeito nessas atividades essenciais à vida da sociedade, tais como água, esgoto, energia elétrica, telefonia e outros. É importante frisar que não há necessidade de emergência para que a prerrogativa de livre parada e estacionamento tenha validade; basta que o veiculo esteja efetivamente sendo utilizado para o reparo do serviço na via pública, pois o inciso VIII diz apenas “quando em atendimento na via”, e não quando em atendimento de emergência. Dessa forma, mesmo em atividade de simples manutenção, os veículos dessa espécie gozam da prerrogativa. Verifique-se que seu deslocamento é regular, da mesma forma que os veículos comuns. Apenas e tão somente quando parados ou estacionados, enquanto se dá a prestação do serviço, é que podem usufruir desse privilégio legal. Ainda assim não é necessário que o próprio veículo esteja sendo utilizado para o serviço em si, basta que esteja transportando equipamentos e pessoal para a obra e que sua presença no local seja útil e conveniente.
Nota-se não haver necessidade de que haja uma situação emergencial para que a viatura fique sobre o passeio, sendo necessário que haja a efetiva prestação de serviço público, o que abrange a simples manutenção de serviços de utilidade pública, como é o caso da segurança pública.
O local de prestação de serviço é aquele em que a viatura estará parada ou estacionada, que no caso em discussão, será um passeio ou calçada.
As viaturas policiais utilizadas para o patrulhamento ostensivo são devidamente identificadas, o que, por si só, é suficiente para sinalizar que há a presença de uma viatura policial de forma que permita aos outros usuários da via enxergarem em tempo hábil que há um veículo prestador de serviço de utilidade pública, o que atende ao disposto no art. 4º, II, da Resolução CONTRAN n. 268/08.
Portanto, as viaturas policiais gozam de livre parada e estacionamento, independentemente de proibições ou restrições estabelecidas na legislação de trânsito[9], devendo resguardar a segurança dos pedestres e usuários da via, de forma que não impeça a passagem com segurança de todos que transitam na via.
Nesse sentido, a Polícia Militar de Minas Gerais na Instrução n. 3.03.22/2017-CG que trata dos Procedimentos Básicos de Estacionamento e Posicionamento de Viaturas e de Guarnição Policial Militar assegura no item 5.1.10 que “Em caso de ações e operações policiais militares previamente programadas, ou, visando a garantia (preservação, manutenção e restabelecimento) da ordem pública e o interesse da coletividade, a Guarnição poderá posicionar a viatura em locais como passeios, praças, rotatórias, canteiros centrais, etc. Nestes casos a Guarnição deverá atentar para aspectos de segurança dos integrantes da GuPM, dos pedestres e demais usuários da via; preferencialmente não deverá obstruir totalmente as referidas áreas de circulação, mas quando necessário ou conveniente fazê-lo, deverá cuidar da adequada sinalização que a situação exigir, obedecendo-se o contido no art. 29 do CTB e Resolução Nº 268/08 do DENATRAN.”
Por fim, eventual multa lavrada de viatura policial que se encontre sobre passeio ou calçada, em cumprimento à missão constitucional de preservação da ordem pública, é ilegal e caso não seja anulada pela própria administração, deve ser anulada pelo Poder Judiciário.
NOTAS
[1] Art. 29. O trânsito de veículos nas vias terrestres abertas à circulação obedecerá às seguintes normas: VIII – os veículos prestadores de serviços de utilidade pública, quando em atendimento na via, gozam de livre parada e estacionamento no local da prestação de serviço, desde que devidamente sinalizados, devendo estar identificados na forma estabelecida pelo CONTRAN;
[2] Art. 29. O trânsito de veículos nas vias terrestres abertas à circulação obedecerá às seguintes normas: VII – os veículos destinados a socorro de incêndio e salvamento, os de polícia, os de fiscalização e operação de trânsito e as ambulâncias, além de prioridade de trânsito, gozam de livre circulação, estacionamento e parada, quando em serviço de urgência e devidamente identificados por dispositivos regulamentares de alarme sonoro e iluminação vermelha intermitente, observadas as seguintes disposições: (…)
[4] Art. 181. Estacionar o veículo: VIII – no passeio ou sobre faixa destinada a pedestre, sobre ciclovia ou ciclofaixa, bem como nas ilhas, refúgios, ao lado ou sobre canteiros centrais, divisores de pista de rolamento, marcas de canalização, gramados ou jardim público: Infração – grave; Penalidade – multa; Medida administrativa – remoção do veículo;
Art. 182. Parar o veículo: VI – no passeio ou sobre faixa destinada a pedestres, nas ilhas, refúgios, canteiros centrais e divisores de pista de rolamento e marcas de canalização: Infração – leve; Penalidade – multa;
[5] Trecho extraído do Parecer n. 010/09 do CETRAN/GO, que citou o livro “Comentários ao Código de Trânsito Brasileiro”, de Arnaldo Rizzardo.
[6] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 32. ed. São Paulo: Atlas, 2018.
[7] CARVALHO, Matheus. Manual de Direito Administrativo. 4ª edição. Salvador: Juspodivm. 2017. p. 1006.
[8] ALMEIDA SOBRINHO, José. Comentários ao Código de Trânsito Brasileiro: Artigo por artigo. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2013. 162 p. Disponível em: <https://integrada.minhabiblioteca.com.br>. Acesso em: 10 out. 2019.
[9] Resolução CONTRAN n. 268/08 – Art. 4º Os veículos de que trata o artigo anterior gozarão de livre parada e estacionamento, independentemente de proibições ou restrições estabelecidas na legislação de trânsito ou através de sinalização regulamentar, quando se encontrarem: I – em efetiva operação no local de prestação dos serviços a que se destinarem; II – devidamente identificados pela energização ou acionamento do dispositivo luminoso e utilizando dispositivo de sinalização auxiliar que permita aos outros usuários da via enxergarem em tempo hábil o veículo prestador de serviço de utilidade pública. Parágrafo único. Fica proibido o acionamento ou energização do dispositivo luminoso durante o deslocamento do veículo, exceto nos casos previstos nos incisos III, V e VI do § 1º do artigo anterior.
Se a oferta das refeições a policiais não tiver interesses escusos, a vantagem será devida, o que afasta o crime de abuso de autoridade e de corrupção passiva. Entenda os casos possíveis.
As refeições e o consumo de alimentos gratuitos ou com descontos por policiais em serviço é denominado de PPO.
O PPO, jargão utilizado no meio policial, para se referir a uma espécie de “Ponto de Parada Obrigatória”, no sentido de que os policiais “devem” passar nesse local durante o serviço, significa um estabelecimento do ramo de alimentos, lanches e comidas (lanchonetes, restaurantes, padarias) que não cobra dos policiais (0800) ou que concede descontos, como autorizar que os policiais paguem metade do preço (o que é chamado de 0400).
Tal prática não é incomum e muitas vezes é adotada pelos estabelecimentos com o fim de atrair a presença constante da polícia no local, o que gera uma sensação de segurança e a prevenção do crime.
Com a aprovação da nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei n. 13.869, de 05 de setembro de 2019), tal prática poderá caracterizar o crime de abuso de autoridade previsto no art. 33, parágrafo único, que criminalizou a conduta de se utilizar do cargo ou função pública, ou invocar tal condição para obter vantagem ou privilégio indevido.
Prevê o art. 33, parágrafo único, da Lei 13.869/2019:
Art. 33. Exigir informação ou cumprimento de obrigação, inclusive o dever de fazer ou de não fazer, sem expresso amparo legal: Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem se utiliza de cargo ou função pública ou invoca a condição de agente público para se eximir de obrigação legal ou para obter vantagem ou privilégio indevido.
Para que esteja caracterizado este crime é necessário que haja o dolo específico, o que é exigido para todos os crimes de abuso de autoridade (art. 1, § 1º, da Lei 13.869/19).
Art. 1º Esta Lei define os crimes de abuso de autoridade, cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído. § 1º As condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.
Ou seja, é necessário que o agente atue com a finalidade específica de abusar da autoridade, que consiste em prejudicar terceiro ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro ou, ainda, atuar por mero capricho ou satisfação pessoal.
O prejuízo a outrem ou o benefício a si mesmo ou a terceiro pode ser moral, econômico ou de qualquer natureza, já que a lei não especifica ou restringe.
O policial que realiza PPO pratica crime de abuso de autoridade? Depende de cada caso.
Deve-se analisar se o policial que consome sem pagar ou paga um valor menor atua com o dolo específico de abusar da autoridade, ou seja, de valer-se de sua condição de policial para obter vantagens, ou se trata de um agrado concedido pelo comerciante, de uma forma de reconhecer e valorizar o trabalho do policial.
Para tanto, analisaremos as seguintes situações:
a) Policial pergunta várias vezes o valor ou se tem que pagar, com a intenção de se eximir do pagamento, quando sabe que o estabelecimento cobra normalmente de policiais: haverá abuso de autoridade, na forma tentada ou consumada, caso o policial, realmente, deixe de pagar, pois o fato de estar fardado identifica que o policial age em razão da função. Nota-se, claramente, que a prática de consumir alimentos e não pagar como qualquer outra pessoa ocorre em razão de ser policial (cargo ou função) e constitui um privilégio (um benefício, um tratamento diferenciado) indevido (já que não há previsão em lei e o estabelecimento não concede descontos ou isenta os policiais de comerem sem pagar).
b) Policial solicita ao comerciante que não pague ou que conceda um desconto, quando sabe que o comerciante cobra normalmente: aplica-se o mesmo raciocínio acima. Deve-se destacar que corrente majoritária sustenta que quando o militar fardado e armado solicita uma vantagem indevida, na verdade, exige, pois o simples fato de estar fardado e armado é suficiente para intimidar a vítima, já que mentalmente causa uma sensação de impotência pelo fato do pedido advir logo de quem representa a força para combater o crime. Exigir consiste em obrigar, sob pena de sofrer consequências. Ocorre que a exigência deva ser analisada caso a caso, a depender da forma que o policial solicita e não pelo simples fato do militar estar fardado e armado. Caso haja exigência de vantagem indevida, dado o princípio da especialidade, deve-se aplicar a Lei de Abuso de Autoridade.
c) Policial vai efetuar o pagamento, mas o comerciante se recusa a receber, razão pela qual não paga: não haverá o crime de abuso de autoridade, pois não houve conduta do policial, muito menos dolo específico de abusar da autoridade.
d) Policial conhecido do comerciante deixa de pagar ou paga um menor valor em razão da consideração que o comerciante tem pela polícia: não haverá crime de abuso de autoridade, pois não há dolo específico de abusar da autoridade, uma vez que já havia uma aceitação prévia do comerciante que assim procede em razão do apreço que possui pelos policiais.
e) Policial deixa de pagar ou paga um valor menor porque o comerciante não cobra de policial em razão da consideração que possui pela polícia: não haverá crime de abuso de autoridade, pois não há dolo específico de abusar da autoridade, uma vez que já havia uma aceitação prévia do comerciante que assim procede em razão do apreço que possui pelos policiais.
f) Policial deixa de pagar ou paga um valor menor porque o comerciante não cobra de policial com o fim de atrair a presença constante da polícia: não haverá crime de abuso de autoridade, pois não está presente o dolo específico de abusar da autoridade. A conduta de não pagar não parte do policial, mas do comerciante que visa a atrair a presença da polícia. Portanto, não é possível se falar em dolo específico. Não há intenção do policial em abusar da autoridade. Outrossim, não há, igualmente, o crime de corrupção passiva (art. 317 do CP e art. 308 do CPM). A doutrina é pacífica que pequenas doações e gratificações usuais de pequena monta não caracterizam o crime de corrupção passiva, seja em razão do princípio da adequação social, por ser uma conduta que parte dos comerciantes e é aceita socialmente – no meio social e perante a sociedade -, seja por ausência de dolo, pois em que pese ser suficiente para a caracterização da corrupção passiva o dolo genérico, o policial não tem o fim de se corromper, uma vez que aceita a gratuidade ou desconto nos alimentos como um ato de reconhecimento e valorização de sua atividade. Referida conduta deve ser, quando houver previsão em norma institucional, punida no âmbito administrativo.
Nesse sentido, diversas normas vedam o recebimento de qualquer coisa, em razão da função, como gratificação, prêmio, ajuda financeira, doação, vantagem de qualquer espécie, presentes, brindes ou quaisquer favores.[1]
Noutro giro, há quem defenda tratar-se de corrupção passiva, pois a conduta do comerciante não é despretensiosa, uma vez que visa a atrair a presença dos policiais, razão pela qual a aceitação por parte do policial pode caracterizar o crime de corrupção passiva por estar caracterizada a vantagem indevida. A vantagem deixa de ser devida e se torna indevida quando há interesses por trás dos lanches e alimentações gratuitas, até porque os estabelecimentos que concedem a gratuidade nas refeições terão um maior número de policiais frequentando os estabelecimentos em detrimento daqueles que cobram as refeições, consequentemente, haverá uma alteração de comportamento dos policiais, por privilegiarem a presença nos restaurantes que não cobram ou concedam descontos, o que implica em uma maior prestação de serviço de segurança pública mediante pagamento indireto (alimentos e lanches gratuitos). Além do mais, por se tratar de uma prática do dia a dia, não é possível aplicar a lógica da ausência de corrupção passiva nos casos de pequenas gratificações, já que estas são esporádicas.
Em qualquer hipótese, quando as refeições não tiverem interesses escusos, como a hipótese em que forem concedidas em razão do reconhecimento da atividade policial ou apreço que o comerciante possui pelos policiais, a vantagem será devida, o que afasta o crime de abuso de autoridade e de corrupção passiva.
Sustenta-se que como o estabelecimento é privado e o patrimônio é do comerciante, ele pode dispor de seus produtos e serviços bem como entender. O raciocínio está em parte correto, pois ao dispor de seu patrimônio não pode visar interesses diversos ou a obtenção de vantagens em detrimento de outros comerciantes.
O lançamento do policiamento em determinada área deve ter como premissa o patrulhamento nas áreas em que houver maior necessidade, o que é feito mediante estudos, sobretudo estatísticos. A partir do momento em que há um desvirtuamento da forma de patrulhar, priorizando-se determinados estabelecimentos que concedem alimentos gratuitos ou por preços menores, tornam-se ilícitas as concessões feitas pelo comerciante.
Cada pessoa é livre para dispor como bem entender de seu dinheiro privado, todavia não pode visar o funcionário público e ter por objetivo obter algo em contrapartida.
g) Policial diz ao comerciante que realiza o patrulhamento na área da padaria, passa o celular pessoal e diz que está à disposição com o fim de obter, em troca, alimentação gratuita ou descontos: haverá o crime de abuso de autoridade, pois o policial atua com o dolo específico de obter vantagens em razão da função.
h) Comerciante cobra um valor menor de uma determinada categoria de trabalhadores (policiais, bombeiros, funcionários de uma empresa próxima ao restaurante), por consideração aos trabalhadores e para aumentar a quantidade de venda: não haverá crime de abuso de autoridade, pois o comerciante visa uma ou diversas categorias profissionais distintas e seu interesse é comercial, o que afasta o dolo específico.
i) Policial, simplesmente, pergunta ao estabelecimento comercial se cobram de policiais ou se concedem descontos: não haverá crime de abuso de autoridade, já que se trata, simplesmente, de pergunta, sem nenhum propósito de obtenção de vantagens ou de abusar da autoridade.
j) Pagamento por associações de moradores das refeições e lanches realizados por policiais em determinadas padarias da área em que os policiais atuam:nessa hipótese não haverá crime de abuso de autoridade, pois não há dolo específico de abusar da autoridade, uma vez que o policial não se utilizou de sua condição de policial para deixar de pagar ou para obter vantagem ou privilégio indevido. Trata-se de um reconhecimento e agradecimento dos moradores e dos comerciantes de uma determinada região, prática aceitável socialmente, tanto no meio policial, quanto na sociedade, tanto é que efetua o pagamento de livre e espontânea vontade, circunstâncias essas que afastam a vantagem ou privilégio indevido. Além do mais, por ser o pagamento realizado por uma associação de moradores de uma região não é possível falar em interesses escusos, na medida em que se trata de um ente abstrato e o policiamento continuará sendo realizado na região, de forma impessoal e não direcionada a uma associação, mas sim a todos os moradores do bairro, em que os policiais, com ou sem o pagamento dos alimentos, já iriam policiar. Certamente, as associações de moradores se dispõem a custear as refeições quando os policias prestam um bom serviço.
k) Fornecimento por estabelecimentos comerciais que não são do ramo de alimentos de água, café, wi-fi, banheiros e pequenos lanches para os policiais: nessa hipótese não haverá crime de abuso de autoridade, pois não há dolo específico de abusar da autoridade. Trata-se de um reconhecimento e agradecimento dos estabelecimentos comerciais, prática aceitável socialmente, tanto no meio policial, quanto na sociedade, o que é suficiente para descaracterizar qualquer vantagem ou privilégio indevido.
Dessa forma, é possível concluir que as refeições e o consumo de alimentos gratuitos ou com descontos por policiais em serviço não configura, como regra, abuso de autoridade, nem crime de corrupção passiva, sendo possível que haja infração administrativa, a depender da instituição a que o policial pertença.
Nesses casos, toda cautela é necessária por parte dos policiais para evitar que haja excessos, como noticiado na reportagem “PMs lancham e almoçam de graça em troca de segurança a comerciantes” [2] e a conduta seja interpretada como abuso de autoridade, corrupção passiva ou até mesmo como improbidade administrativa, por violação aos deveres de honestidade, impessoalidade (caso haja direcionamento do policiamento), legalidade e moralidade.[3]
NOTAS
[1] Código de Ética Profissional do Servidor Pública Civil do Poder Executivo Federal (Decreto n. 1.171/94); Código de Conduta da Alta Administração; Código de Conduta Ética dos Agentes Públicos em exercício na Presidência e Vice-Presidência da República.