Policial que não esteja de serviço pode lavrar multa de trânsito?

O art. 280, § 4º, do Código de Trânsito Brasileiro considera como agente da autoridade de trânsito competente para lavrar o auto de infração o servidor civil, estatutário ou celetista e o policial militar devidamente credenciado pela autoridade de trânsito (convênio)[1].

A Resolução n. 371/10 do CONTRAN aprovou o Manual Brasileiro de Fiscalização de Trânsito (Volume I), e com a alteração dada pela Resolução n. 497/14, prevê que “O agente da autoridade de trânsito competente para lavrar o auto de infração de trânsito (AIT) poderá ser servidor civil, estatutário ou celetista ou, ainda, policial militar designado pela autoridade de trânsito com circunscrição sobre a via no âmbito de sua competência.”

Portanto, podem lavrar multa: a) servidor civil estatutário; b) servidor civil celetista; c) policial militar.

O policial militar credenciado pela autoridade de trânsito competente para o exercício das atividades de fiscalização, operação, policiamento ostensivo de trânsito ou patrulhamento é um agente da autoridade de trânsito.[2]

O policiamento ostensivo de trânsito é a “função exercida pelas Polícias Militares com o objetivo de prevenir e reprimir atos relacionados com a segurança pública e de garantir obediência às normas relativas à segurança de trânsito, assegurando a livre circulação e evitando acidentes.”

O art. 2º, item 27 do Decreto n. 88.777/83 conceitua o policiamento ostensivo e insere como uma das missões da Polícia Militar o policiamento de trânsito.

27) Policiamento Ostensivo – Ação policial, exclusiva das Policias Militares em cujo emprego o homem ou a fração de tropa engajados sejam identificados de relance, quer pela farda quer pelo equipamento, ou viatura, objetivando a manutenção da ordem pública.

São tipos desse policiamento, a cargo das Polícias Militares ressalvadas as missões peculiares das Forças Armadas, os seguintes: – de trânsito;

Em se tratando de multa lavrada por policial militar, para que possua validade é necessário que haja antes da lavratura da multa o credenciamento do policial militar pelo órgão de trânsito competente.

Além do credenciamento, a Resolução n. 371/10 do CONTRAN, com a alteração dada pela Resolução n. 497/14, especifica que para o policial militar exercer as atribuições como agente da autoridade de trânsito deverá: a) estar uniformizado, conforme padrão da instituição e b) no regular exercício de suas funções.

Item 4 (…)

Para que possa exercer suas atribuições como agente da autoridade de trânsito, o servidor ou policial militar deverá ser credenciado, estar devidamente uniformizado, conforme padrão da instituição, e no regular exercício de suas funções.

Nota-se, portanto, que são três os requisitos para que o policial militar possa lavrar um auto de infração de trânsito (multa): a) credenciamento do policial militar pelo órgão de trânsito competente; b) estar uniformizado, conforme padrão da instituição; e c) estar no regular exercício de suas funções.

A inobservância de qualquer desses requisitos acarreta na invalidade da multa que, consequentemente, deverá ser anulada pelos órgãos de trânsito ou pela via judicial.

Para que um ato administrativo possua validade é necessário que seus requisitos de validade estejam presentes, quais sejam: competência, finalidade, forma, motivo e objeto.  

A competência é o conjunto de atividades e de atribuições definidas em lei ou ato administrativo que legitime a atuação do agente público.

Matheus Carvalho[3] ensina que competência é o “conjunto de atividades inerentes ao ente estatal, distribuídas entre seus órgãos e agentes públicos, mediante a edição de lei, legitimando o agente para a prática de determinadas condutas. Nesse sentido, Marçal Justen Filho[4], ao tratar da matéria, define que ‘competência administrativa é a atribuição normativa da legitimação para a prática de um ato administrativo‘.”

Fernanda Marinela ensina que “É necessária, ainda, para a prática de um ato administrativo, a análise da capacidade jurídica desse agente e do ente a que ele pertence, a quantidade de atribuições do órgão que o produziu, a competência do agente emanante e a inexistência de óbices à sua atuação no caso concreto, tais como afastamentos legais, impedimentos e outros.”[5]

Portanto, para que o policial militar lavre multa é necessário que cumpra com exatidão todos os requisitos estipulados pelo CONTRAN – Conselho Nacional de Trânsito -, por ser órgão máximo normativo e consultivo de trânsito, e coordenador do Sistema Nacional de Trânsito, do qual a Polícia Rodoviária Federal e a Polícia Militar fazem parte (art. 7º, V e VI, da Lei n. 9.503/97).

No que tange à atuação dos órgãos policiais (Polícia Rodoviária Federal e Polícia Militar) na fiscalização e atuação no trânsito, devem obediência ao CONTRAN, pois é o coordenador do Sistema Nacional de Trânsito e órgão máximo normativo e consultivo e ao CONTRAN compete estabelecer as normas regulamentares referidas neste Código e as diretrizes da Política Nacional de Trânsito, bem como coordenar os órgãos do Sistema Nacional de Trânsito, objetivando a integração de suas atividades e estabelecer e normatizar os procedimentos para a aplicação das multas por infrações, a arrecadação e o repasse dos valores arrecadados (art. 12, I, II e VIII, da Lei n. 9.503/97).

A Polícia Rodoviária Federal possui como atribuição, dentre outras, cumprir e fazer cumprir a legislação e as normas de trânsito, no âmbito de suas atribuições (art. 20, I, da Lei n. 9.503/97) e à Polícia Militar cabe executar a fiscalização de trânsito, quando e conforme convênio firmado, como agente do órgão ou entidade executivos de trânsito ou executivos rodoviários, concomitantemente com os demais agentes credenciados (art. 23, III, da Lei n. 9.503/97).

Portanto, a Polícia Rodoviária Federal e a Polícia Militar[6] não podem baixar atos normativos que versem sobre a fiscalização de trânsito, mas somente regulamentar no âmbito da Corporação como serão cumpridas as normas de trânsito estipuladas pelos órgãos competentes.

A inobservância da Resolução n. 371/10 do CONTRAN, ao exigir o credenciamento do policial militar, o uso do uniforme e o regular exercício de suas funções, torna o policial militar incompetente para lavrar multa quando todos requisitos não estiverem cumulativamente presentes, pois não atende às exigências normativas e como visto a competência para a prática de um ato administrativo se faz presente quando as normas que regem determinada competência são cumpridas, inclusive, o agente público não deve estar no gozo de folga ou de qualquer afastamento legal, como férias e licenças.

Na hipótese em que um policial lavrar multa sem preencher os requisitos estipulados em norma incide em abuso de poder, na modalidade excesso de poder.

O abuso de poder é gênero que subdivide-se em excesso de poder e em desvio de poder.

No excesso de poder o agente extrapola os limites de sua competência administrativa e pratica atos que vão além de suas atribuições, seja por praticar atos que sejam atribuições de outra autoridade ou por exceder os limites da própria lei ou da norma, quando for atribuição do próprio agente que praticou o ato excessivo.

O desvio de poder[7] ocorre quando o agente atua dentro de suas atribuições, mas visa alcançar fins diversos do previsto em lei (interesse público) ou secundários, que fogem do que, normalmente, ocorre quando da prática de atos administrativos (exemplo da prisão durante o casamento).

O excesso de poder macula a competência do ato administrativo; enquanto que o desvio de poder vicia a finalidade. Em ambos os casos poderá ser declarada a nulidade do ato administrativo, na esfera administrativa ou judicial.

Portanto, o policial de folga, de férias ou licenciado – que não esteja de serviço – não pode lavrar multa, sob pena de exceder do poder e a multa ser nula, face à ausência de competência.

Como exposto, são três as exigências cumulativas contidas em norma (Resolução n. 371/10 do CONTRAN) para que o policial militar confeccione auto de infração de trânsito:

a) credenciamento do policial militar pelo órgão de trânsito competente;

b) estar o policial militar uniformizado, conforme padrão da instituição;

c) estar o policial militar no regular exercício de suas funções.

Questão controversa refere-se ao “regular exercício de suas funções”.

O policial militar que não esteja dentro de seu horário de serviço, mas que esteja fardado em via pública, de forma ostensiva, poderá lavrar multa de trânsito? O fato de estar fardado, ainda que de folga ou fora do horário de serviço, é suficiente para caracterizar o regular exercício de suas funções?

A Polícia Militar de Minas Gerais elaborou a Nota Técnica n. 279.2/13 – DMAT[8] para tratar do tema e concluiu que o fato do policial militar estar fardado em logradouros abertos ao público autoriza a lavratura do auto de infração de trânsito, ainda que não esteja designado pela Administração Militar previamente para o exercício de suas funções.

(…)

5. Quanto ao questionamento sobre o fato de estar ou não o militar de serviço, deve-se levar em consideração o prescrito no estatuto do pessoal da polícia militar – EPPM:

Art. 15. A qualquer hora do dia ou da noite, na sede da unidade ou onde o serviço o exigir, o policial-militar deve estar pronto para cumprir a missão que lhe for confiada pelos seus superiores hierárquicos ou impostos pelas leis e regulamentos. (Lei nº 5.301/1969 – EPPM)

6. A situação de estar fardado, em razão da maior exposição aos apelos da população por uma intervenção estatal, faz com que o termo “de folga”, na semântica, não ultrapasse a idéia de ausência de submissão temporária a uma escala pré-fixada.

7. O uso da farda constitui a demonstração da presença do Estado. Exterioriza aos administrados o seu poder coercitivo, ainda que apenas potencialmente, no ambiente em que o policial estiver. Mesmo independendo de procedimento volitivo, a sua presença provocará alterações no comportamento e na sensação de segurança, daqueles que o observam.

8. Estará, na circunstância descrita, o policial militar exercendo policiamento ostensivo, independendo de sua vontade ou da vinculação a uma escala de serviço, uma vez que, a farda é uma das características dessa atividade, conforme conceitua o artigo 2º do Decreto n. 88.777, de 30 de setembro de 1983:

Policiamento Ostensivo – Ação policial, exclusiva das Policias Militares em cujo emprego o homem ou a fração de tropa engajados sejam identificados de relance, quer pela farda quer pelo equipamento, ou viatura, objetivando a manutenção da ordem pública.

9. Com essas considerações, podemos inferir que o policial militar, estando fardado, nos logradouros abertos ao público, poderá atuar nas questões de trânsito, em razão de sua função, independente de estar ou não em seu horário de serviço previsto em escala.

10. Oportuno relembrarmos o contido no art. 280, § 4º do CTB: “O agente da autoridade de trânsito competente para lavrar o auto de infração poderá ser servidor civil, estatutário ou celetista ou, ainda, policial militar designado pela autoridade de trânsito com jurisdição sobre a via no âmbito de sua competência.” Desta forma, o policial militar somente será agente competente para lavrar o auto de infração, caso ele tenha sido previamente credenciado pela autoridade de trânsito com jurisdição sobre a via (Ex.: DETRAN, DER, DPRF).

11. Por derradeiro, assevera-se que a administração pública rege-se pelos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, conforme previsão do art. 37 de nossa Constituição Federal. Nesse diapasão, a atuação policial deve ser norteada pelo interesse público e nunca movida por sentimentos ou motivações de cunho particular ou pessoal.

(…)

Ousamos discordar do entendimento adotado pela Polícia Militar mineira.

Com efeito, a Resolução n. 371/10 do CONTRAN é expressa em dizer que não basta estar fardado, sendo necessário que esteja também no regular exercício de suas funções.

Nota-se que são requisitos cumulativos: estar uniformizado, que no caso da Polícia Militar, é a farda, bem como estar no regular exercício de suas funções.

Caso fosse a finalidade do CONTRAN autorizar que o policial militar lavrasse multa, mesmo que não estivesse no horário de serviço, não teria exigido que estivesse no regular exercício das funções, sendo suficiente constar somente a necessidade de estar fardado e ostensivo, já que a finalidade em exigir que o policial militar esteja fardado é permitir que este esteja visível.

A exigência de estar “no regular exercício de suas funções” se tornaria letra morta e essa expressão foi utilizada na Resolução n. 371/10, exatamente, para exigir que o agente de autoridade de trânsito estivesse previamente escalado para o serviço.

O art. 15 da Lei n. 5.301/69 – Estatuto dos Militares do Estado de Minas Gerais – prevê que:

Art. 15 – A qualquer hora do dia ou da noite, na sede da Unidade ou onde o serviço o exigir, o policial-militar deve estar pronto para cumprir a missão que lhe for confiada pelos seus superiores hierárquicos ou impostos pelas leis e regulamentos.

Referida previsão é comum nas instituições policiais militares, mas não significa que esteja de serviço 24 horas por dia, todos os dias, mas sim que deve estar pronto para entrar em serviço em qualquer momento que for determinado pelos superiores hierárquicos ou nas hipóteses previstas em leis e regulamentos.

Em se tratando de fiscalização e atuação no trânsito as normas a serem seguidas são as previstas no Código de Trânsito Brasileiro e editadas pelo Conselho Nacional de Trânsito e, conforme visto, o CONTRAN exige que o policial militar esteja no regular exercício de suas funções, o que implica em dizer que deverá estar previamente designado para o exercício da função, pois se o CONTRAN considerasse que o agente da autoridade de trânsito quando fosse policial militar estaria sempre no regular exercício das funções, tal previsão seria completamente desnecessária e foi inserida com o fim de restringir a atuação do policial militar para as hipóteses em que estivesse previamente designado para a função.

O fato do policial estar fardado em local público, de fato, o coloca no exercício do policiamento ostensivo, pois este é caracterizado pelo aspecto visual, não pelo efetivo exercício da função. Vale é a aparência visual, até porque quem anda pela rua e observa um policial militar fardado não sabe que este não está em seu horário de trabalho.

Além do mais, o Decreto 88.777/83, em seu art. 2º, item 27, ao conceitar policiamento ostensivo afirma que este é a ação policial, exclusiva das Polícias Militares em cujo emprego o homem seja identificado de relance pela farda.

Policiamento Ostensivo – Ação policial, exclusiva das Policias Militares em cujo emprego o homem ou a fração de tropa engajados sejam identificados de relance, quer pela farda quer pelo equipamento, ou viatura, objetivando a manutenção da ordem pública.

A expressão “cujo emprego” significa a exigência de designação prévia da autoridade competente. Portanto, um militar somente estará em serviço após ter sido escalado e durante o horário de trabalho para o qual foi escalado.

Nesse sentido é o Parecer n. 213/2013/CENTRAN/SC.

EMENTA: Para que o auto de infração seja considerado válido, no momento em que presenciou o fato que justificaria sua lavratura o agente de trânsito deve estar efetivamente em serviço. A prévia designação para a atividade fiscalizatória é condição para que possa o agente de trânsito lavrar autos de infração. Ao estabelecer o horário de labor do seu agente a autoridade de trânsito define a condição temporal de validade para o exercício da função, pois fixa o período de tempo em que o agente estará efetivamente atuando em seu nome.

Cabe ao órgão de trânsito competente definir o que caracteriza regular exercício das funções e não à Polícia Militar e a interpretação da Resolução n. 371/10 deve ocorrer nos termos do Parecer n. 213/2013/CENTRAN/SC.

O policial militar, ainda que esteja fardado, nos logradouros abertos ao público, não poderá confeccionar auto de infração de trânsito, sob pena de incorrer em excesso de poder e a multa ser anulada pela autoridade de trânsito competente.

A atuação, fora do horário de serviço, do policial militar, nas hipóteses de ocorrência de crime ou para prestar socorro, não se confunde com a atuação do policial militar, na mesma condição, para lavrar auto de infração de trânsito, pois no primeiro caso cabe à própria instituição definir se o policial poderá atuar, por estar afeta à atividade precípua da polícia militar, além de haver previsão no Código de Processo Penal (art. 301), enquanto que no segundo caso cabe à autoridade de trânsito competente definir as hipóteses de atuação para a lavratura do auto de infração de trânsito.[9]

Dessa forma, é possível concluir que para o policial militar lavrar um auto de infração de trânsito e este possuir validade:

a) o policial militar deverá estar efetivamente em serviço, ou seja, previamente escalado para o exercício das funções de policial, não sendo suficiente que o militar esteja fardado;

b) o deslocamento de casa para o trabalho e do trabalho para a casa, fardado, não autoriza a lavratura do auto de infração de trânsito, pois o policial, ainda, não entrou efetivamente em serviço e não está no regular exercício das funções, e as normas que consideram o policial em serviço durante o deslocamento tem por finalidade a concessão de determinados benefícios em caso de acidentes, o que não impede o policial de lavrar multas caso o turno de serviço tenha se estendido para além do horário previamente fixado para o término do turno, pois ainda estará no regular exercício das funções. Isto é, o horário de início do trabalho é previamente fixado, mas o de término é somente uma previsão;

c) o policial militar deverá estar fardado e ostensivo, não sendo suficiente que o policial esteja fardado, mas fique escondido ou em local de difícil visibilidade, pois a finalidade da norma ao exigir que os agentes de trânsito estejam uniformizados para atuarem na fiscalização, é demonstrar a presença com o intuito de prevenir infrações de trânsito, tanto é que exige-se, em se tratando do uso de veículos nas fiscalizações, que estes estejam caracterizados[10].

d) o policial militar de folga, férias ou de licença não poderá lavrar auto de infração de trânsito, ainda que esteja fardado e ostensivo;

e) o policial militar, ainda que esteja em serviço, não poderá lavrar multa se não estiver fardado e ostensivo.

O raciocínio ora exposto aplica-se a todos os agentes de trânsito legitimados a lavarem multas.

NOTAS

[1] Art. 280. Ocorrendo infração prevista na legislação de trânsito, lavrar-se-á auto de infração, do qual constará: § 4º O agente da autoridade de trânsito competente para lavrar o auto de infração poderá ser servidor civil, estatutário ou celetista ou, ainda, policial militar designado pela autoridade de trânsito com jurisdição sobre a via no âmbito de sua competência.

[2] Anexo I do Código de Trânsito Brasileiro.

[3] CARVALHO, Matheus. Manual de Direito Administrativo. 4ª edição. Salvador: Juspodivm. 2017. p. 256.

[4] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Fórum,14ª ed., 2009.

[5] MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo. 10ª edição. São Paulo: Saraiva. 2016.

[6] Art. 22, IV, da Lei n. 9.503/97. Art. 22. Compete aos órgãos ou entidades executivos de trânsito dos Estados e do Distrito Federal, no âmbito de sua circunscrição: IV – estabelecer, em conjunto com as Polícias Militares, as diretrizes para o policiamento ostensivo de trânsito;

[7] O art. 2º, parágrafo único, “e”, da Lei n. 4.717/65 trata do desvio de finalidade e o caracteriza “quando o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência.”

[8] Disponível em: <http://wellingtonflagg.blogspot.com/2013/03/atuacao-no-transito-de-policial-militar.html>. Acesso em: 26/04/2020.

[9] Recomendo a leitura do texto “O policial e o bombeiro militar devem atuar em ocorrências ainda que não estejam em serviço? A obrigatoriedade da atuação limita-se ao estado em que atua?”, de minha autoria, disponível no site Atividade Policial.

[10] Item 4, Agente da Autoridade de Trânsito, do MBFT – Volume I.

O policial e o bombeiro militar devem atuar em ocorrências ainda que não estejam em serviço? A obrigatoriedade da atuação limita-se ao estado em que atua?

É comum ouvir a seguinte frase nas corporações policiais: “Vocês são policiais 24 horas por dia”.

Essa frase deve ser analisada sob dois ângulos.

O primeiro refere-se à conduta ilibada e reputação moral que os policiais devem sempre possuir no decorrer da carreira e da vida, mesmo que nos horários de folga, férias, dispensa e licença. O segundo consiste na obrigação do policial em agir 24 horas por dia, em situações de flagrante e ocorrências policiais, mesmo que de folga.

O dever de agir decorre de previsão legal (art. 13, § 2º do CP e art. 29, § 2º do CPM), sendo comum que normas de instituições policiais e militares disponham que o policial deve atuar, mesmo que fora de serviço, em qualquer lugar, em situações de flagrante delito ou para prestar socorro.

Código Penal Código Penal Militar
Art. 13 (…) § 2º – A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984). a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984). Art. 29 (…) § 2º A omissão é relevante como causa quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; a quem, de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; e a quem, com seu comportamento anterior, criou o risco de sua superveniência.

Nota-se que as leis penais dizem que o dever de agir deve decorrer de lei. Ao dizer “lei” não se restringe à lei em sentido formal, mas a qualquer norma, em sentido amplo, pois o Código Penal, neste ponto, adotou a teoria das fontes, que considera lei em sentido amplo toda norma que possua validade.

Nesse sentido, são as lições de Luiz Luisi[1]:

Neste dispositivo o nosso legislador se referiu não apenas à lei, mas especificou os deveres de cuidado, proteção, e de vigilância, e adotando essa redação não se limitou à chamada teoria formal, mas acolheu a teoria das fontes. Trata-se de deveres que são impostos pela ordem jurídica lato sensu. Não são apenas obrigações decorrentes de lei em sentido estrito, mas de qualquer disposição que tenha eficácia de forma a poder constituir um vínculo jurídico. É o caso dos decretos, dos regulamentos, das portarias, e mesmo das sentenças judiciais e provimentos judiciários em geral, e até de ordem legítima de autoridade hierarquicamente superior. Podem tais deveres, outrossim, derivar de norma penal, como de norma extrapenal, tanto de direito público como de direito privado.

Dessa forma, é suficiente para caracterizar o dever de agir a presença de um vínculo jurídico prévio ou concomitante à obrigação de cuidado, proteção ou vigilância.

O Regulamento Geral da Polícia Militar de Minas Gerais prevê no art. 278, XIII, que:

Art. 278 – Ao Policial cumpre, particularmente:

XIII – atuar, do ponto de vista policial, em qualquer local em que estiver, mesmo de folga ou trajes civis, a fim de prevenir ou reprimir prática de delito, desde que não haja elemento ou força de serviço suficiente, situação essa em que se considera ato de serviço para os efeitos legais;

No mesmo sentido é o Regulamento Disciplinar da Polícia Militar do Estado de São Paulo (Lei Complementar n. 893, de 09 de março de 2002), que prevê no art. 8º, XXXV, a obrigatoriedade da atuação policial, mesmo que não esteja em serviço.

Artigo 8º – Os deveres éticos, emanados dos valores policiais-militares e que conduzem a atividade profissional sob o signo da retidão moral, são os seguintes:

XXXV – atuar onde estiver, mesmo não estando em serviço, para preservar a ordem pública ou prestar socorro, desde que não exista, naquele momento, força de serviço suficiente.

Os policiais possuem o dever de atuarem em toda ocorrência de flagrante delito ou para prestar socorro, pois o art. 301 do Código de Processo Penal impõe a obrigatoriedade de atuação nos casos de flagrante delito, sem especificar a necessidade de estar em serviço, e o art. 144 da Constituição Federal diz ser obrigação dos órgãos policiais, compostos, obviamente, por policiais, cuidar da incolumidade das pessoas e do patrimônio, tanto é que o art. 8º, XXXV do Regulamento Disciplinar da Polícia Militar do Estado de São Paulo, expressamente, tratou do dever de atuação policial para preservar a ordem pública ou prestar socorro, ainda que o policial não esteja em serviço.

Agir em razão da função significa que o policial deve agir em situações de flagrante delito ou em ocorrências policiais, ao se deparar ou tomar conhecimento, mesmo que de folga, férias, licença, em trajes civis, onde quer que esteja, mesmo que atue com arma particular ou desarmado. Essa obrigação decorre do previsto nos artigos 301, CPP e 243, CPPM, para os casos de flagrante, os quais trazem a figura do flagrante compulsório, obrigatório ou coercitivo às autoridades policiais, seus agentes e militares. E nas alíneas do § 2º do art. 13 do Código Penal e no § 2º do art. 29 do Código Penal Militar para os casos de flagrante delito ou não.

Em decorrência do dever jurídico de agir, os policiais e bombeiros militares, pela função que exercem, são agentes garantidores. Ou seja, ao visualizarem ou tomarem conhecimento de uma ocorrência deverão tomar providências para evitar o resultado, desde que seja possível, no caso concreto, atuarem.

O Supremo Tribunal Federal decidiu que se o Policial Militar interfere em ocorrência policial cumprindo normas e deveres profissionais, se envolver em circunstâncias delituosas, esta é considerada de natureza militar, ainda que o miliciano esteja de folga, em trajes civis e faça uso de arma própria”[2]

A Suprema Corte já decidiu, ainda, pela responsabilidade civil do Estado nos casos em que o policial tenha atuado, ainda que de folga, mas tenha usado arma da Corporação, o que demonstra que a atuação do policial, mesmo que não esteja em serviço, é uma atuação de um agente estatal, o que atrai a responsabilidade do Estado.[3]

O Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais já decidiu pela obrigatoriedade da atuação policial militar, ainda que de folga.[4] No mesmo sentido já decidiu o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo quanto aos policiais civis.[5]

A obrigatoriedade da atuação policial perdura por toda a carreira, desde o ingresso até a data em que se aposenta ou é transferido para a inatividade (para os militares), passando, a partir do encerramento da carreira, a atuar como qualquer um do povo, pois somente o policial na ativa exerce funções atinentes ao cargo policial.

Em se tratando de policiais militares e de bombeiros militares, o Código Penal Militar prevê no art. 9º, II, “c”, a prática de crime militar por militar em serviço ou atuando em razão da função. Ou seja, a própria lei menciona a possibilidade do militar, fora do serviço, atuar em razão da função, o que ocorre nas hipóteses determinadas por normas próprias das Corporações e como decorrência da aplicação direta da Constituição Federal (art. 144).

Para que o policial seja obrigado a agir, não basta o dever legal, é necessário que na situação concreta o policial possa agir. O “poder agir” refere-se às condições fáticas, físicas, psicológicas, emocionais em que o garantidor (policial) se encontra, ou seja, é a real possibilidade de atuação frente ao caso concreto.

Na hipótese em que um policial, de folga, sozinho, desarmado depara-se com três indivíduos armados que estão em direção a uma padaria para assaltar, embora possua a obrigação de agir (dever de agir), não possui condições reais de atuar (poder agir). Dessa forma, não poderá ser responsabilizado.

Imagine a hipótese em que três policiais armados, no horário de folga, visualizem um agente, sozinho, que está arrombando a porta de um veículo para furtá-lo. Os policiais deverão atuar e efetuar a prisão do agente, pois além da obrigação de agir, no caso está presente, também, a possibilidade de agir, dada a superioridade numérica e pelo fato dos policiais estarem armados.

A obrigação de agir estará sempre presente, 24 horas por dia, esteja o policial em serviço ou não. A possibilidade de agir dependerá do caso concreto. A diferença entre o fato do policial estar efetivamente em serviço e estar fora de serviço, é que na primeira situação o policial está se dedicando, exclusivamente, à sua atividade, enquanto que na segunda situação, o policial não está de prontidão e não tem obrigação nenhuma de estar atento à ocorrência de crimes ou de situações que ensejarão a atuação policial. Ou seja, na segunda situação, o policial pode se comportar como qualquer pessoa, em que pese na prática procurar estar sempre atento, mas caso vislumbre, por acaso, uma ocorrência policial, deverá atuar.  

A exigência da atuação do policial ou do bombeiro, durante 24 horas por dia, todos os dias, ainda que fora do serviço, possui relação com o compromisso que o profissional assume ao ingressar na Instituição e concluir o curso de formação, de servir e proteger a sociedade, tanto é que o porte de arma é concedido aos policiais ainda que não estejam em serviço, com a finalidade principal de permitir o exercício da defesa e, eventualmente, atuar, de iniciativa, se for necessário. Não é uma carreira para qualquer um. Deve ter vocação e estar disposto a se dedicar à sociedade a qualquer momento, mesmo com risco real de vida.

De qualquer forma, a impossibilidade de atuar em um caso concreto, não desobriga o policial a comunicar a polícia (190) ou o bombeiro (193).

Caso seja possível a atuação do policial, mesmo que de folga, mas este não atue, sequer ligue 190 e, posteriormente, fica comprovado que o policial poderia agir para evitar o resultado e nada fez, responderá pelo crime que foi praticado, pois a omissão foi penalmente relevante. Isto é, não responderá, simplesmente, por omissão de socorro ou somente será responsabilizado administrativamente, responderá pelo crime praticado pelo agente infrator, ou seja, se houver a prática de furto, responderá por furto; se houver a prática de homicídio, responderá por homicídio. Trata-se de crime omissivo impróprio, que é aquele praticado pelo agente quando pode e deve atuar, mas nada faz.

O policial, ainda que não esteja em serviço, quando atua em uma ocorrência policial, coloca-se em serviço, por um ato do próprio policial, na medida em que atua em razão da função, motivo pelo qual deve ser considerado em serviço para todos os fins legais.

Caso haja abuso de autoridade por parte de policiais militares, a competência para julgar será da Justiça Militar (art. 9º, II, “c”, do CPM) e caso ocorra uma fatalidade com o policial, os benefícios previstos em lei para os casos de lesões e morte para policiais em serviço deve-se aplicar ao policial que estava de folga ou de férias e se colocou na condição de serviço.

Trata-se de crime militar em razão do dever jurídico, expressão esta utilizada por Jorge César de Assis, que ocorre quando o policial militar à paisana, e de folga, e com armamento particular, comete o fato delituoso por ter se colocado em serviço, ao intervir em uma situação de flagrância[6].

É importante destacar que apesar de nosso entendimento ser pela obrigatoriedade do policial atuar[7], ainda que não esteja em serviço, parte da doutrina sustenta que o policial durante as férias, licenças e folgas não está obrigado atuar e que eventual atuação ocorrerá na condição de um cidadão qualquer, razão pela qual atuam por mera liberalidade.[8]

O art. 144 da Constituição Federal elenca 06 (seis) órgãos policiais e o Corpo de Bombeiro Militar, a saber: a) polícia federal; b) polícia rodoviária federal; c) polícia ferroviária federal; d) polícias civis; e) polícias militares e corpos de bombeiros militares; f) polícias penais federal, estaduais e distrital. Todos os policiais pertencentes a essas instituições estão obrigados a atuarem ainda que não esteja em serviço? E os bombeiros?

O art. 301[9] do Código de Processo Penal é amplo ao tratar da obrigatoriedade dos policiais (autoridades policiais e seus agentes) realizarem prisão em flagrante, sem distinguir se tal providência cabe somente à polícia judiciária (Polícia Civil e Polícia Federal)[10] ou administrativa (Polícia Militar, Polícia Rodoviária e Ferroviária Federal e Polícia Penal), razão pela qual todos os policiais são obrigados a atuarem nas hipóteses de flagrante delito.[11]

Da mesma forma, os policiais devem atuar para prestar socorro, em razão do disposto no art. 144 da Constituição Federal que diz ser obrigação dos policiais cuidarem da incolumidade das pessoas e do patrimônio.

Portanto, o raciocínio de todo o exposto neste texto aplica-se a todos os policiais das instituições previstas no art. 144 da Constituição Federal.

Em relação aos bombeiros militares, o art. 301 do Código de Processo Penal não os contempla, pois não são policiais, razão pela qual pode-se pensar, em um primeiro momento, que estão desobrigados de efetuarem prisão nas hipóteses de flagrante delito de crime comum.

Ocorre que ao Corpo de Bombeiro Militar incumbe, além das atribuições definidas em lei, a execução de atividades de defesa civil (art. 144, § 5º, da CF).

As atividades de defesa civil englobam o “Conjunto de ações preventivas, de socorro, assistenciais e reconstrutivas destinadas a evitar ou minimizar os desastres, preservar o moral da população e restabelecer a normalidade social.[12]

Dentre as atribuições previstas em lei para o Corpo e Bombeiro Militar, encontra-se a fiscalização das medidas de prevenção e combate a incêndio e a desastres em estabelecimentos, edificações e áreas de reunião de público (art. 3º da Lei n. 13.425/17).

Os bombeiros militares atuam em cenários de catástrofe, como os incêndios e inundações.

Dessa forma, é possível extrair do art. 301 do Código de Processo Penal uma interpretação ampliativa para incluir os bombeiros, especificamente, nas hipóteses de atuação voltada para a atividade-fim, a obrigatoriedade de prender em flagrante, na condição de agente, quando houver a prática de crime relacionado à atividade do Corpo de Bombeiro Militar, como a prática dos crimes de incêndio (art. 250 do CP) e inundação (art. 254 do CP), pois aos bombeiros militares incumbe restabelecer a normalidade social, o que, inclui, obviamente, a obrigatoriedade da prisão em flagrante nos casos mencionados, até porque uma das finalidades da prisão em flagrante é identificar o autor do crime, evitar a fuga e possibilitar que haja a responsabilização criminal, o que possibilitará, também, a ocorrência da responsabilidade administrativa e civil e, como consequência, a reparação dos danos e a adoção de medidas, por parte do autor do crime, que visem restabelecer a normalidade social, que é atribuição do Corpo de Bombeiro Militar.

Deve-se destacar que os corpos de bombeiros militares pertenciam às polícias militares. Com o tempo, os corpos de bombeiros foram se desvinculando das polícias militares e ganharam autonomia. No Brasil, atualmente, apenas nos Estados de São Paulo e do Paraná, é que o órgão de defesa civil pertence à Polícia Militar. Portanto, são policiais militares que exercem as atribuições dos bombeiros militares, o que obriga a atuação em flagrante delito não só nos crimes que tenham correlação com as atividades do Corpo de Bombeiro Militar.

Além dessas hipóteses de atuação em flagrante delito, os bombeiros militares devem prender, obrigatoriamente, em razão da condição de militares, todos que praticarem crimes militares, nos termos do art. 243[13] do Código de Processo Penal Militar.

Assim como os policiais, os bombeiros militares, com mais razão, possuem obrigação de prestar socorro, ainda que fora do horário de serviço, pois a prestação de socorro é inerente à finalidade precípua do Corpo de Bombeiro Militar.

Feita a análise da obrigatoriedade – ou não – da atuação do policial e do bombeiro, ainda que fora do horário de serviço, deve-se delimitar o espaço territorial da atuação.

As polícias federais (Polícia Federal propriamente dita, Rodoviária e Ferroviária Federal e a Polícia Penal Federal) possuem atribuições para atuarem em todo o território nacional, razão pela qual a obrigatoriedade de atuação dos policiais federais (em sentido amplo) ocorre em todo o país, pois estão vinculados à União.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal já decidiu pela responsabilidade civil da União em ação decorrente de atuação de um policial federal fora da área em que exerce suas atribuições, pois é suficiente que tenha agido na qualidade de agente do Estado, ainda que não esteja no exercício das funções e fora de sua área territorial de atuação.

Quanto à atuação do policial estadual (civil, militar ou penal) em estado diverso do qual atua, o tema também é controverso.

A obrigação de atuar limita-se ao estado da Corporação do policial, salvo se o policial estiver em outro estado a serviço, como a hipótese de um policial que serve a Força Nacional de Segurança Pública.

Isso porque o policial civil, militar e penal estadual, em que pese possuírem previsão constitucional, possuem vínculo jurídico somente com a instituição policial do estado em que pertencem, não sendo possível impor ao servidor público estadual a obrigatoriedade de atuar em outro ente federativo, à míngua de qualquer previsão legal nesse sentido.

O Código de Processo Penal especifica uma hipótese em que o policial estadual possui a obrigatoriedade de atuar em outro estado, o que ocorre nos casos de perseguição, nos termos do art. 250.

Art. 250. A autoridade ou seus agentes poderão penetrar no território de jurisdição alheia, ainda que de outro Estado, quando, para o fim de apreensão, forem no seguimento de pessoa ou coisa, devendo apresentar-se à competente autoridade local, antes da diligência ou após, conforme a urgência desta.

Nota-se que nesse caso há previsão legal que legitima a atuação policial em ente federativo diverso do qual pertence. De qualquer forma, o ingresso em estado alheio deve-se restringir à execução da diligência policial, devendo encaminhar o preso e objetos apreendidos à autoridade local.

Eventual ação do policial fora de seu estado constitui uma mera faculdade e atua na condição de qualquer um do povo (flagrante facultativo). Caso deixe de atuar para prestar socorro deverá responder por omissão de socorro e não mais pelo resultado.

Assim, no estado de origem o policial possui obrigação de atuar, enquanto que em outros estados possui a faculdade de atuar.

Normas estaduais das instituições policiais não podem criar obrigações para os policiais que extrapolem o âmbito do ente federativo em que serve, sob pena de quebrar o pacto federativo[15] ressalvadas situações específicas, como a participação em um evento, a realização de curso em outra unidade federativa, dentre outros.

Em que pese o porte de arma ser nacional e a carteira funcional ter validade em todo o território nacional, o porte de arma de fogo fora do horário de serviço tem como finalidade principal possibilitar a defesa do policial e a carteira tem a mesma funcionalidade da identidade civil e visa resguardar as prerrogativas, se necessário.

O fato do policial não perder as prerrogativas em outro estado, como o direito a ser preso em cela separada dos demais presos (art. 295 do CPP) e o porte de arma, decorre de previsão em lei federal.

Quando as normas estaduais utilizam o termo “em qualquer local em que estiver” ou congênere, ao tratar da obrigatoriedade de atuação do policial, ainda que não esteja em serviço, deve ser delimitado ao Estado em que o policial serve, salvo se estiver em missão oficial em outro Estado e no exterior.[16]

De qualquer forma, este entendimento não é pacífico e parte da doutrina entende que há obrigação do policial estadual atuar em outro ente federativo, conforme ensina Marcelo de Lima Lessa[17].

No âmbito da Polícia Civil paulista, a Portaria DGP-28, de 19 de outubro de 1994, diz que as autoridades policiais e seus agentes devem portar permanentemente sua cédula de identificação funcional e respectivo distintivo e, em razão de estar permanentemente em serviço, o policial civil deve sempre portar arma e algemas. E mais, acentua que o policial civil, mesmo fora do horário normal de trabalho, é obrigado a intervir em qualquer ocorrência de polícia judiciária de que tenha conhecimento, adotando as medidas que o caso exigir. Isso, por si só, já espanca grande parte das dúvidas.

Vê-se, pois, que, para o policial, a expressão “folga” é relativa. Melhor seria, na prática, dizermos “policial fora do serviço ordinário, mas ainda policial”. Isso significa que o policial, mesmo nos momentos de lazer, não perde a condição de agente da lei; não perde o porte funcional de arma, tampouco o dever de agir diante da ocorrência de um crime ou contravenção.

Aliás, no Estado de São Paulo, um policial civil, em razão de suas funções institucionais, é autorizado, por força da Portaria DGP-40, de 23 de outubro de 2014, a portar arma de fogo, em serviço ou fora deste, em local público ou privado, mesmo havendo aglomeração de pessoas, em evento de qualquer natureza, tais como no interior de igrejas, escolas públicas, estádios desportivos e clubes, EM TODO TERRITÓRIO NACIONAL, bastando que seja habilitado, traga consigo a carteira funcional e o respectivo registro. Isso decorre no Decreto Federal n° 5.123, de 1º de julho de 2004 (e, antes dele, do Estatuto do Desarmamento), que empresta aos órgãos diretivos das Polícias a função de disciplinar o porte de arma dos seus agentes, partindo-se do pressuposto de que o status é perene.

NOTAS

[1] LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. 2. ed. Porto Alegre: Fabris, 2003. p. 143.

[2] STF – HC 6.558-3-MG – RT 578/418.

[3] EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO ESTADO. ARTIGO 37, § 6º, DA CONSTITUIÇÃO. Crime praticado por policial militar durante o período de folga, usando arma da corporação. Responsabilidade civil objetiva do Estado. Precedentes. Agravo regimental a que se nega provimento. (RE 418023 AgR, Relator(a): Min. EROS GRAU, Segunda Turma, julgado em 09/09/2008, DJe-197 DIVULG 16-10-2008 PUBLIC 17-10-2008 EMENT VOL-02337-04 PP-00741 RTJ VOL-00207-03 PP-01206) CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL DO ESTADO. ATO OMISSIVO. RESPONSABILIDADE SUBJETIVA. AGENTE PÚBLICO FORA DE SERVIÇO. CRIME PRATICADO COM ARMA DA CORPORAÇÃO. ART. 37, § 6º, DA CF/88. 1. Ocorrência de relação causal entre a omissão, consubstanciada no dever de vigilância do patrimônio público ao se permitir a saída de policial em dia de folga, portando o revólver da corporação, e o ato ilícito praticado por este servidor. 2. Responsabilidade extracontratual do Estado caracterizada. 3. Inexistência de argumento capaz de infirmar o entendimento adotado pela decisão agravada. 4. Agravo regimental improvido. (RE 213525 AgR, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 09/12/2008, DJe-025 DIVULG 05-02-2009 PUBLIC 06-02-2009 EMENT VOL-02347-05 PP-00947 RTJ VOL-00209-02 PP-00855)

[4] CRIME MILITAR. O policial militar, mesmo de folga, é obrigado a atuar, do ponto de vista policial, em qualquer local que esteja, a fim de prevenir ou reprimir a prática de delito e, desde que não haja elemento ou força de serviço sufi ciente. A intervenção policial militar é dever e constitui ato de serviço, e a omissão, crime.É crime militar o praticado em tais circunstâncias.” (RSE 109 – Rel. Juiz Cel PM Laurentino de Andrade Filocre) CRIME MILITAR. POLICIAL DE FOLGA. DEVER DE AGIR. CONFIGURAÇÃO. O policial militar que interfere em ocorrência policial cumprindo normas estatutárias e seu dever profissional, se se envolver em circunstância delituosa, esta é considerada de natureza militar, ainda que esteja de folga, em trajes civis e use arma própria. (RSE 107 – Rel. Juiz Cel PM Afonso Barsante dos Santos).

[5] Ao policial, mesmo fora do horário de sua jornada de trabalho, imputa-se a obrigação de intervir em qualquer ocorrência policial (Código de Processo Penal, artigo 301), exercendo função ininterrupta e contínua. TJSP (Apelação 992080335828 julgada em 03/02/2010).

A situação de trabalho do policial civil o remete ao porte permanente de arma, já que considerado por lei constantemente atrelado aos seus deveres funcionais” (HC 342.778-3, Jaú, 6.ª C., rel. Barbosa Pereira, 19.04.2001, v.u., JUBI 60/01)

[6] ASSIS, Jorge Cesar. Comentários ao Código Penal Militar. 6. ed. Juruá, 2009, p. 45

[7] No mesmo sentido: NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal comentado. 5. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 432.

[8] Entendemos que esta obrigatoriedade perdura enquanto os integrantes estiverem em serviço. Durante as férias, licenças, folgas, os policiais atuam como qualquer cidadão, e a obrigatoriedade cede espaço à mera faculdade (TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 12ª Edição. Editora JusPODIVM. Salvador. 2017. p. 907).

[9] Art. 301. Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito.

[10] Em se tratando de crime militar, a Polícia Militar é Polícia Judiciária.

[11] No mesmo sentido: O art. 301 do CPP não faz qualquer distinção entre polícia ostensiva (Polícia Militar, Polícia Rodoviária e Ferroviária Federal) e polícia judiciária (Polícia Civil e Polícia Federal), razão pela qual se aplica a ambas o dever de efetuar a prisão em flagrante (Lima, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. Volume Único. 7. ed. Salvador: Juspodivm, 2019. p. 958).

[12] Glossário de Defesa Civil do Ministério da Integração Nacional. 5ª Edição.

[13] Art. 243. Qualquer pessoa poderá e os militares deverão prender quem fôr insubmisso ou desertor, ou seja encontrado em flagrante delito.

[14] EMENTA: RESPONSABILIDADE CIVIL DA UNIÃO. ART. 107 DA EC 01/69. DANO RESULTANTE DE ATUAÇÃO DE POLICIAL FEDERAL, NESSA QUALIDADE, EMBORA FORA DA ÁREA EM QUE EXERCIA SUAS ATRIBUIÇÕES. A norma constitucional sob enfoque (atual art. 37, § 6º. da CF/88) não exige que o servidor público, no momento do evento, estivesse no exercício de suas funções, bastando que tenha agido na qualidade de agente do Estado. Recurso não conhecido. (RE N. 192.688. RELATOR : MIN. ILMAR GALVÃO)

[15] É o acordo constitucional, administrativo e político firmado entre os Entes da Federação que determina o respeito à autonomia dos mesmos e delimita os campos de atuação, estabelecendo: prerrogativas, recursos e responsabilidades para o cumprimento das funções de Estado. (Confederação Nacional de Municípios  – 2009)

[16] Tome como exemplo um policial que viaja, oficialmente, para outro estado para fazer um curso. Neste caso, o policial continua obrigado a atuar nas ocorrências policiais, pois encontra-se em outro estado na condição de policial, ainda que de outro estado.

[17] LESSA, Marcelo de Lima. Policiais de folga devem reagir a assaltos?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5436, 20 maio 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66242. Acesso em: 24 abr. 2020.

O preso que foge necessita de mandado de prisão para ser recapturado?

Imagine a hipótese em que um preso fuja do presídio e tempos depois é localizado pela polícia na rua, mas os policiais verificam que após a fuga não foi expedido o mandado de recaptura (mandado de prisão). Poderá efetuar a prisão?

A doutrina praticamente não aborda essa hipótese e são poucos os julgados a respeito.

O art. 684 do Código de Processo Penal dispõe que: “A recaptura do réu evadido não depende de prévia ordem judicial e poderá ser efetuada por qualquer pessoa.”

Tal dispositivo é constitucional? Sim, pois o art. 5º, LXI, da Constituição Federal diz que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem judicial. Ainda que a prisão ocorra em flagrante, a manutenção da prisão exige ordem judicial (art. 310, II, do CPP).

O preso ao fugir, necessariamente, tinha contra sim uma ordem judicial, razão pela qual a recaptura consiste em um desdobramento do cumprimento da ordem judicial que foi descumprida pelo preso.

Logo, ao recapturar um preso a polícia não necessita de um novo mandado de prisão (mandado de recaptura), pois a ordem judicial já existe. Ao cumprir um mandado de prisão, este permanece válido até que o juiz determine a expedição do alvará de soltura.

A própria lei prevê que não é necessária prévia ordem judicial para que se efetue a recaptura do réu evadido, o que é constitucional.

De qualquer forma, basta realizar o seguinte raciocínio: a polícia ao visualizar que um réu acabou de fugir – o que não é crime – poderá correr atrás e recapturar o réu ou a partir do momento em que o réu colocou os pés nas ruas o policial deve deixá-lo fugir por não ter uma nova ordem de prisão (mandado de prisão)? Seria absurdo exigir um mandado de recaptura nesses casos, pois, obviamente, obrigaria o policial assistir ao réu fugir sem nadar poder fazer. A lei não distingue se a recaptura sem prévia ordem judicial pode ser efetuada somente quando esta acabe de acontecer ou se poderá ocorrer a qualquer momento, enquanto o mandado de prisão que originou a prisão não tiver vencido, razão pela qual não é possível se realizar essa distinção.

Dessa forma, a recaptura de réu foragido pode ser efetuada a qualquer momento, seja logo após ter evadido ou tempos depois, enquanto a ordem de prisão possuir validade.

Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça[1] já decidiu que é possível a recaptura de preso evadido, mesmo sem mandado de prisão, pois não se trata de prisão inicial.

Quanto aos trâmites operacionais após a recaptura do foragido deve-se observar as normas internas da Corporação, mas não há nenhuma ilegalidade caso o policial conduza o foragido diretamente ao presídio em que estava preso, sem passar pela Delegacia de Polícia, pois a mera fuga e recaptura dispensa providências de polícia judiciária, sendo suficiente que o juiz e o Ministério Público do caso ou da execução penal sejam comunicados.

Corrente contrária à possibilidade de recolher uma pessoa presa com base no art. 684 do Código de Processo Penal, sustenta que o art. 288 do CPP veda o recolhimento à prisão sem que seja exibido o mandado de prisão ao diretor ou policial penal.

Art. 288. Ninguém será recolhido à prisão, sem que seja exibido o mandado ao respectivo diretor ou carcereiro, a quem será entregue cópia assinada pelo executor ou apresentada a guia expedida pela autoridade competente, devendo ser passado recibo da entrega do preso, com declaração de dia e hora.

Não há incompatibilidade entre os artigos 288 e 684, ambos do Código de Processo Penal, pois o art. 685 autoriza a recaptura do foragido sem prévia ordem judicial de recaptura, uma vez que já existe ordem judicial para efetuar a prisão, a qual não se exaure ao ser cumprida pela primeira vez, podendo ser cumprida quantas vezes for necessário, enquanto a decisão judicial que determinou a prisão não tiver sido revogada ou não tiver se exaurido, como a hipótese de uma decisão que determine a prisão temporária.

Portanto, ao efetuar a captura do foragido não é necessário que haja mandado de recaptura (art. 684 do CPP), em que pese na prática ser comum, mas é necessário que se apresente o mandado de prisão ao diretor ou policial penal do estabelecimento penal em que o agente ficará preso (art. 288 do CPP), bem como é necessário apresentar ao preso uma cópia do mandado de prisão (art. 286 do CPP).

O mandado de prisão pode ser o mesmo que originou a prisão inicial, pois este não se exaure após ser cumprido, sendo o seu exaurimento determinado nos autos em que houve determinação judicial para que o agente fosse preso.

Deve-se consignar ainda que os livros de Processo Penal mencionam, genericamente, que a parte da Execução prevista no Livro IV foi revogada pela Lei de Execução Penal – Lei n. 7.210/84 – , por ter regulado integralmente a matéria e disposto no art. 204[2] que as disposições em contrário estavam revogadas.

Ocorre que o conteúdo do art. 684 do Código de Processo Penal não é tratado na Lei de Execução Penal, razão pela qual não foi revogado e permanece em pleno vigor. O mesmo raciocínio se aplica à reabilitação, prevista no Capítulo II do Livro IV, pois a LEP não trata da reabilitação.

NOTAS

[1] (…) não se trata de prisão inicial, mas sim de recaptura de preso evadido, pois o ora paciente era foragido de estabelecimento prisional do Estado do Pará, o que dispensa inclusive mandado de prisão conforme a regra do art. 684 do CPP. 11. Habeas corpus não conhecido. (STJ – HC: 144699 TO 2009/0157801-0, Relator: Ministro OG FERNANDES, Data de Julgamento: 04/10/2012, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 10/10/2012)

[2] Art. 204. Esta Lei entra em vigor concomitantemente com a lei de reforma da Parte Geral do Código Penal, revogadas as disposições em contrário, especialmente a Lei nº 3.274, de 2 de outubro de 1957.

Responsabilização do policial pelas acusações feitas no inquérito e em juízo

O policial, como testemunha, tem o dever de falar a verdade, seja para incriminar ou inocentar o acusado. A verdade é uma obrigação e o policial estará no estrito cumprimento do dever legal. Da verdade, não pode advir nenhuma consequência para o policial, salvo se violar o dever legal de sigilo.

Na hipótese em que o policial falsear a verdade ou omiti-la, responderá pelo crime de falso testemunho previsto no art. 342 do Código Penal, caso o inquérito ou processo ocorra na Justiça Comum; ou pelo art. 346 do Código Penal Militar, caso o inquérito ou processo tramite na Justiça Militar.

Caso a mentira do policial, em razão da função, dê causa à instauração de inquérito policial ou processo judicial, comum ou militar, responderá pelo crime de denunciação caluniosa (art. 339 do CP ou art. 343 do CPM). 

Nos casos de flagrante forjado, que consiste em criar uma situação de crime para que um inocente seja preso, como inserir drogas ou armas em veículo de terceiros e dar voz de prisão, haverá a prática do crime de denunciação caluniosa  (art. 339 do CP ou art. 343 do CPM).

Eventuais mentiras reiteradas em juízo devem ser tidas como desdobramento do crime anterior e considerado pós-fato impunível, servindo, no entanto, para aumentar a pena nas circunstâncias judiciais.

O policial em audiência é ouvido como testemunha e tem a obrigação de falar a verdade. Ocorre que nessas circunstâncias, possui o direito ao silêncio, por ter cometido fato criminoso. Assim, não pode ser compelido a falar a verdade, o que não o autoriza a mentir para incriminar o acusado, que são as denominadas mentiras agressivas, mas como já responderá criminalmente, em razão da mentira inicial, quando forjou o flagrante, a insistência na mentira deverá servir para tornar a pena mais gravosa.

O policial que trabalha no serviço de inteligência é obrigado a depor em juízo?

No âmbito da polícia, a atividade de inteligência consiste no serviço realizado com o fim de se obter dados e informações que possam influenciar decisões e ações de segurança pública voltadas para a proteção da sociedade, bem como na coleta de dados e informações que visem esclarecer a autoria, materialidade e a forma como se deu determinado crime.[1]

A Política Nacional de Inteligência[2] menciona que a inteligência é uma atividade especializada e que “exige o emprego de meios sigilosos, como forma de preservar sua ação, seus métodos e processos, seus profissionais e suas fontes. Desenvolve ações de caráter sigiloso destinadas à obtenção de dados indispensáveis ao processo decisório, indisponíveis para coleta ordinária em razão do acesso negado por seus detentores. Nesses casos, a atividade de Inteligência executa operações de Inteligência – realizadas sob estrito amparo legal -, que buscam, por meio do emprego de técnicas especializadas, a obtenção do dado negado.”.

A atividade de inteligência é sigilosa e aqueles policiais que lidam diretamente com ela devem ter seus dados e imagem preservados.

Do contrário, comprometeria a própria essência da atividade de inteligência no levantamento de dados e informações, pois os agentes teriam a identidade revelada e, consequentemente, não poderiam mais atuar secretamente. Isto exigiria da administração pública toda uma reformulação na designação de policiais para o serviço de inteligência, pois teriam que ser substituídos, já que o trabalho realizado por eles poderia estar comprometido por ser de conhecimento dos infratores que atuam no crime, sem omitir o risco real à integridade física e moral dos policiais.

Não se olvide que o serviço de inteligência exige curso e treinamento, e não seria simples a substituição constante dos agentes que atuam na atividade de inteligência. Isto vai de encontro ao princípio da eficiência, além de gerar dispêndios para os cofres públicos.

Uma das formas de atuação dos agentes de inteligência consiste na produção de elementos para a autoridade de polícia judiciária comum ou militar. Os elementos produzidos devem ser relatados e direcionados ao responsável pela apuração, que, em caso de necessidade, poderá ser ouvido em juízo.

O relatório de inteligência poderá conter entrevistas e conversas realizadas com testemunhas que foram gravadas em áudio; levantamento de informações do patrimônio dos investigados; filmagens dos investigados em via pública, dentre outros.

Diante dos elementos produzidos pelo serviço de inteligência, a autoridade que preside a investigação poderá, caso entenda ser o caso, ouvir as pessoas citadas no relatório, que não são os agentes – policiais – de inteligência , momento em que o depoimento dessas pessoas passará a compor o inquérito.

Igualmente, poderá adotar as providências que entender necessárias para a elucidação do crime, sendo o relatório de inteligência um ponto de partida ou até mesmo um ponto de chegada, que venha a corroborar – ou não – com as informações obtidas pela autoridade policial no decorrer das investigações.

Somente em casos extremos é que o agente de inteligência deve ser ouvido em juízo. 

Portanto, conforme o art. 5º, XXXIII, da CF, art. 11, III, da Lei 8.429/92, arts. 3º e 9º, § 2º, da Lei 9.883/99, art. 23, VIII, da Lei 12.527/11, art. 325 do CP e art. 326 do CPM, bem como em observância e respeito à doutrina de inteligência, em regra, o policial que é agente do serviço de inteligência deve ser preservado e não deve ser ouvido em audiência, devendo, para tanto, ser intimada a autoridade responsável pela investigação.

Em razão da obrigatoriedade na manutenção do sigilo por parte do agente de inteligência, a regra é que este não compareça em juízo e caso haja intimação judicial com ameaça de prisão para que assim proceda, a autoridade judicial poderá incidir na prática do crime de abuso de autoridade previsto no art. 15 da Lei 13.869/19.

NOTAS

[1] Art. 2º do Decreto 4.376/02.

[2] Política Nacional de Inteligência. Disponível em: http://www.abin.gov.br/acesso-a-informacao/legislacao-de-inteligencia/coletanea-de-legislacao/politica-nacional-de-inteligencia/. Acesso em: 23 Nov 18.