Crimes patrimoniais praticados contra as mulheres. O autor do crime deve ser preso e punido?

por | 21 abr 2020 | Atividade Policial

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O Código Penal prevê no art. 181, I, que os cônjuges, durante o casamento, caso pratiquem crimes patrimoniais, uns contra os outros, são isentos de pena.

Trata-se de imunidade penal absoluta, chamada também por outros nomes, como escusa absolutória. Escusa no sentido de desculpa, de justificativa.

Portanto, se um cônjuge furta o celular do outro, não pode ser punido.

Há crime, mas não é possível haver instauração do inquérito policial e muito menos do processo penal. O crime existe, mas não há qualquer possibilidade do agente que praticou o crime ser punido.

O legislador optou, por questões de política criminal, em uma ponderação de valores, por valorizar as relações familiares, sendo que essas questões podem ser resolvidas “em casa”, sem a presença do Estado, mormente para impor uma condenação penal que poderá vir a piorar as relações familiares. Nesses casos pode ser necessário tratamento e apoio psicológico, e não uma sentença penal condenatória.

Caso a Polícia Militar seja acionada e seja comprovado na hora que se trata de um crime contra o patrimônio praticado no âmbito de uma relação familiar, a regra é que o agente que praticou o crime não seja conduzido à Delegacia. A condução somente será necessária se os ânimos no local estiverem exaltados, visando a pacificação social, para que a situação não se agrave e caminhe para agressões físicas, podendo acarretar em lesão corporal ou até mesmo homicídio.

Em regra, a Polícia Militar deve-se limitar a lavrar o Boletim de Ocorrência, relatando todo o fato e juntar cópia de documento que comprove a relação de parentesco ou o casamento (identidade, certidão de nascimento, certidão de casamento), salvo se o próprio sistema da Polícia permitir a confirmação dos dados, o que é comum.

A condução do autor do crime no âmbito da violência doméstica merece especial atenção, conforme será exposto.

Em se tratando de crimes patrimoniais cometidos entre cônjuges separados judicialmente (ainda não divorciaram), o Estado depende de autorização da vítima para tomar providências em desfavor do agente que cometeu o crime (art. 182, I, do CP).

Os crimes patrimoniais, em regra, são de ação penal pública incondicionada. Isto é, mesmo que a vítima não queira que o agente que cometeu o crime seja punido, o Estado é obrigado a apurar os fatos, denunciar e submeter o acusado a um julgamento. Mas, quando o crime patrimonial praticado for contra o cônjuge separado – ainda não divorciado – a ação deixa de ser de natureza pública incondicionada e passa a ser condicionada à representação. Ou seja, somente se a vítima representar, disser que deseja ver o agente responder a um processo criminal, ainda que de forma indireta, como comparecer à Delegacia voluntariamente para relatar os fatos, é que o estado poderá investigar o ocorrido (Delegado), denunciar (Promotor de Justiça) e submetê-lo a um julgamento (Juiz).

Há uma imunidade relativa ou processual, pois depende do interesse, da vontade da vítima em ver o agente ser processado.

Ainda que estejam presentes as relações familiares acima mencionadas, se o crime patrimonial é de roubo, extorsão ou quando há emprego de grave ameaça ou violência à pessoa ou a vítima possui idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, o agente que praticou o crime será processado normalmente e poderá sofrer uma condenação penal, não havendo nenhuma imunidade. Não se aplica a imunidade, também, a outra pessoa que participe do crime e não possua o vínculo familiar exigido pela lei (art. 183 do CP).

Dentre os vários crimes que admitem a aplicação da imunidade penal absoluta, cito os principais: furto (art. 155); apropriação indébita (art. 168); estelionato (art. 171) e receptação (art. 180).

Naturalmente, um crime patrimonial praticado contra a esposa ou companheira ocorrerá no contexto de violência doméstica. Nesse caso, ainda assim aplicam-se as imunidades?

O tema é divergente!

A primeira corrente defende, em síntese, não se aplicar ao autor do crime as imunidades, razão pela qual deve ser preso e processado, pois o contexto histórico, filosófico, político, os altos índices de violência doméstica, a necessária proteção da mulher, afastam qualquer possibilidade de aplicação das imunidades quando a mulher for vítima de violência patrimonial. Nesse sentido, Maria Berenice Dias e Virgínia Feix.

A segunda corrente sustenta, em síntese, que se aplica a imunidade à violência patrimonial praticada contra a mulher no âmbito da violência doméstica, uma vez que quando o legislador quis afastar a aplicação o fez expressamente, como no caso do Estatuto do Idoso (art. 95) e a Lei Maria da Penha nada falou, além de ferir o princípio da isonomia, pois aplicaria a imunidade quando a mulher fosse vítima de violência patrimonial, mas não aplicaria para o homem. Além do mais, as exceções devem ser interpretadas restritivamente e as hipóteses de imunidade são taxativas, não cabendo ao intérprete ampliá-la. O STJ já decidiu que aplicam-se as imunidades no contexto de violência patrimonial contra a mulher, o que não impede a concessão de medidas protetivas para a defesa do patrimônio da mulher (RHC 42.918/RS). Nesse sentido, Rogério Sanches e Renato Brasileiro.

A tendência é que o segundo entendimento prevaleça e pacifique pela aplicação das imunidades.

Caso a mulher vítima tenha 60 anos ou mais, não se aplicam as imunidades, em razão da idade, e não por ser mulher.

Assim, se um marido ou companheiro furtar um objeto qualquer da mulher e esta acionar a polícia, a tendência é que o autor do crime não seja punido, o que não impede a sua condução à Delegacia para registro dos fatos, visando a proteção da mulher e até mesmo a concessão de medidas protetivas pelo juiz competente que, em caso de descumprimento, o autor praticará o crime previsto no art. 24-A da Lei Maria da Penha.

Em que pese, a meu ver, a regra ser a não condução do autor do crime à Delegacia nos casos de imunidade, em se tratando de violência doméstica, deve primar pela condução, pois a mulher poderá pedir medidas protetivas e haverá uma maior agilidade na comunicação dos fatos ao Judiciário e Ministério Público para que adotem as providências necessárias visando a proteção da mulher, ainda que o autor dos fatos não seja punido.

Sobre o autor

Rodrigo Foureaux é Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás. Foi Juiz de Direito do TJPA e do TJPB. Aprovado para Juiz de Direito do TJAL. Oficial da Reserva Não Remunerada da PMMG. Membro da academia de Letras João Guimarães Rosa. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva e em Ciências Militares com Ênfase em Defesa Social pela Academia de Polícia Militar de Minas Gerais. Mestre em Direito, Justiça e Desenvolvimento pelo Instituto de Direito Público. Especialista em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes. Autor de livros jurídicos. Foi Professor na Academia de Polícia Militar de Minas Gerais. Palestrante. Fundador do site “Atividade Policial”.

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