O Código Penal prevê no art. 181, I, que os cônjuges, durante o casamento, caso pratiquem crimes patrimoniais, uns contra os outros, são isentos de pena.
Trata-se de imunidade penal absoluta, chamada também por outros nomes, como escusa absolutória. Escusa no sentido de desculpa, de justificativa.
Portanto, se um cônjuge furta o celular do outro, não pode ser punido.
Há crime, mas não é possível haver instauração do inquérito policial e muito menos do processo penal. O crime existe, mas não há qualquer possibilidade do agente que praticou o crime ser punido.
O legislador optou, por questões de política criminal, em uma ponderação de valores, por valorizar as relações familiares, sendo que essas questões podem ser resolvidas “em casa”, sem a presença do Estado, mormente para impor uma condenação penal que poderá vir a piorar as relações familiares. Nesses casos pode ser necessário tratamento e apoio psicológico, e não uma sentença penal condenatória.
Caso a Polícia Militar seja acionada e seja comprovado na hora que se trata de um crime contra o patrimônio praticado no âmbito de uma relação familiar, a regra é que o agente que praticou o crime não seja conduzido à Delegacia. A condução somente será necessária se os ânimos no local estiverem exaltados, visando a pacificação social, para que a situação não se agrave e caminhe para agressões físicas, podendo acarretar em lesão corporal ou até mesmo homicídio.
Em regra, a Polícia Militar deve-se limitar a lavrar o Boletim de Ocorrência, relatando todo o fato e juntar cópia de documento que comprove a relação de parentesco ou o casamento (identidade, certidão de nascimento, certidão de casamento), salvo se o próprio sistema da Polícia permitir a confirmação dos dados, o que é comum.
A condução do autor do crime no âmbito da violência doméstica merece especial atenção, conforme será exposto.
Em se tratando de crimes patrimoniais cometidos entre cônjuges separados judicialmente (ainda não divorciaram), o Estado depende de autorização da vítima para tomar providências em desfavor do agente que cometeu o crime (art. 182, I, do CP).
Os crimes patrimoniais, em regra, são de ação penal pública incondicionada. Isto é, mesmo que a vítima não queira que o agente que cometeu o crime seja punido, o Estado é obrigado a apurar os fatos, denunciar e submeter o acusado a um julgamento. Mas, quando o crime patrimonial praticado for contra o cônjuge separado – ainda não divorciado – a ação deixa de ser de natureza pública incondicionada e passa a ser condicionada à representação. Ou seja, somente se a vítima representar, disser que deseja ver o agente responder a um processo criminal, ainda que de forma indireta, como comparecer à Delegacia voluntariamente para relatar os fatos, é que o estado poderá investigar o ocorrido (Delegado), denunciar (Promotor de Justiça) e submetê-lo a um julgamento (Juiz).
Há uma imunidade relativa ou processual, pois depende do interesse, da vontade da vítima em ver o agente ser processado.
Ainda que estejam presentes as relações familiares acima mencionadas, se o crime patrimonial é de roubo, extorsão ou quando há emprego de grave ameaça ou violência à pessoa ou a vítima possui idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, o agente que praticou o crime será processado normalmente e poderá sofrer uma condenação penal, não havendo nenhuma imunidade. Não se aplica a imunidade, também, a outra pessoa que participe do crime e não possua o vínculo familiar exigido pela lei (art. 183 do CP).
Dentre os vários crimes que admitem a aplicação da imunidade penal absoluta, cito os principais: furto (art. 155); apropriação indébita (art. 168); estelionato (art. 171) e receptação (art. 180).
Naturalmente, um crime patrimonial praticado contra a esposa ou companheira ocorrerá no contexto de violência doméstica. Nesse caso, ainda assim aplicam-se as imunidades?
O tema é divergente!
A primeira corrente defende, em síntese, não se aplicar ao autor do crime as imunidades, razão pela qual deve ser preso e processado, pois o contexto histórico, filosófico, político, os altos índices de violência doméstica, a necessária proteção da mulher, afastam qualquer possibilidade de aplicação das imunidades quando a mulher for vítima de violência patrimonial. Nesse sentido, Maria Berenice Dias e Virgínia Feix.
A segunda corrente sustenta, em síntese, que se aplica a imunidade à violência patrimonial praticada contra a mulher no âmbito da violência doméstica, uma vez que quando o legislador quis afastar a aplicação o fez expressamente, como no caso do Estatuto do Idoso (art. 95) e a Lei Maria da Penha nada falou, além de ferir o princípio da isonomia, pois aplicaria a imunidade quando a mulher fosse vítima de violência patrimonial, mas não aplicaria para o homem. Além do mais, as exceções devem ser interpretadas restritivamente e as hipóteses de imunidade são taxativas, não cabendo ao intérprete ampliá-la. O STJ já decidiu que aplicam-se as imunidades no contexto de violência patrimonial contra a mulher, o que não impede a concessão de medidas protetivas para a defesa do patrimônio da mulher (RHC 42.918/RS). Nesse sentido, Rogério Sanches e Renato Brasileiro.
A tendência é que o segundo entendimento prevaleça e pacifique pela aplicação das imunidades.
Caso a mulher vítima tenha 60 anos ou mais, não se aplicam as imunidades, em razão da idade, e não por ser mulher.
Assim, se um marido ou companheiro furtar um objeto qualquer da mulher e esta acionar a polícia, a tendência é que o autor do crime não seja punido, o que não impede a sua condução à Delegacia para registro dos fatos, visando a proteção da mulher e até mesmo a concessão de medidas protetivas pelo juiz competente que, em caso de descumprimento, o autor praticará o crime previsto no art. 24-A da Lei Maria da Penha.
Em que pese, a meu ver, a regra ser a não condução do autor do crime à Delegacia nos casos de imunidade, em se tratando de violência doméstica, deve primar pela condução, pois a mulher poderá pedir medidas protetivas e haverá uma maior agilidade na comunicação dos fatos ao Judiciário e Ministério Público para que adotem as providências necessárias visando a proteção da mulher, ainda que o autor dos fatos não seja punido.