Controle social das abordagens policiais (a filmagem das ações policiais)

por | 23 abr 2020 | Atividade Policial

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É comum que populares gravem as ações policiais ou então o patrulhamento de rotina de uma guarnição policial.

Essas gravações são lícitas e a polícia não pode impedir a sua realização.

Isso porque os órgãos policiais pertencem à administração pública, que é regida pela transparência e publicidade (art. 37 da CF). Ademais, as abordagens policiais configuram atos administrativos, que são regidos pela publicidade.

A filmagem de ações policiais configura legítimo exercício do direito de fiscalização e controle social, não há nenhuma lei que proíba e ainda que houvesse seria inconstitucional (art. 37 da CF).

Em se tratando de atos de particulares, tudo que a lei não proibir, é permitido (art. 5º, II, da CF).

Todos aqueles que exercem cargo público podem ser fiscalizados pela sociedade e devem ser fiscalizados pelos órgãos próprios de fiscalização, como as corregedorias.

Os vídeos e imagens podem ser divulgados, na medida em que não há, como regra, nenhum fundamento que impeça a divulgação, não sendo possível se falar em violação do direito de imagem do policial, na medida em que não foi filmado nenhum momento de intimidade, mas sim de um agente público no exercício da função, sendo que em uma ponderação de valores, o direito de imagem do servidor público cede para a transparência e publicidade, face ao interesse público.

Não será possível que terceiros filmem e/ou divulguem ações policiais que exijam sigilo, como a realização de campana por policiais para realizar a prisão de traficantes, que é descoberta por um popular ou então nas ocorrências em que a filmagem e/ou divulgação causará graves danos às vítimas, como os casos de estupro, sendo importante a filmagem, exclusivamente, para constituir prova do delito, devendo ser vedada a filmagem do atendimento policial à vítima.

Às vezes o policial decide conduzir a pessoa que filmou como testemunha para a Delegacia, para prestar depoimento e fornecer o aparelho celular para a extração das imagens. Deve-se evitar a condução de populares que filmam para a Delegacia, para que não transpareça que se trata de uma intimidação e referida conduta venha a coibir a realização de novas filmagens.

De qualquer forma, é lícito que policiais conduzam testemunhas para a Delegacia, bem como colham todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias, o que inclui a apreensão de celulares (arts. 6º, III, 202 e 206, todos do CPP).

O que não deve ocorrer são conduções de testemunhas que filmam com o intuito intimidatório, o que deverá ser analisado caso a caso.

Quanto à apreensão do celular da testemunha que filmou, tal medida é extrema e deve ser evitada, pois com a tecnologia atual é possível que as imagens sejam fornecidas no local, seja por e-mail, whatsapp, bluetooth e, em último caso, será possível que a testemunha desloque-se à Delegacia para a extração das imagens, quando, realmente, for necessário e não houver intuito intimidatório e antidemocrático.

Caso não seja possível captar os dados (filmagens e fotos) do celular da testemunha no local dos fatos, sendo necessário conduzi-la à Delegacia para tal, o policial poderá convidar a testemunha para que compareça à Delegacia, convite este que na verdade trata-se de uma ordem legal, mas para que fique caracterizado eventual crime de desobediência deve haver ordem direta e individual. Isto é, o policial deve ser claro ao falar para a testemunha que esta é obrigada a comparecer à Delegacia de Polícia, sendo que eventual convite anterior não passa de uma tentativa de conduzir a testemunha de forma voluntária.

O mero convite para que a testemunha compareça à Delegacia não é suficiente para caracterizar o crime de desobediência, por transparecer para a testemunha que se trata de um ato desprovido de obrigatoriedade, sendo que na verdade, é só uma forma cortês do policial levar a testemunha para a Delegacia.

A ordem é legal com fulcro nos artigos 6, III, 202 e 206, todos do Código de Processo Penal e a desobediência caracteriza crime (art. 330 do CP), uma vez que a lei não prevê outras consequências para aquele que desobedecer a ordem de autoridade para que seja testemunha.

Ser testemunha não é uma opção, é uma obrigação.

Ser testemunha não é uma opção, é uma obrigação. A partir do momento que uma pessoa presencia fato relevante e que possa ser útil para uma investigação ou processo torna-se uma testemunha, cabendo às autoridades competentes decidirem se determinada testemunha será ouvida.

Obviamente, cada caso é um caso e os direitos das testemunhas deverão ser preservados, como o direito à imagem, nome e preservação de dados pessoais nas situações que envolvam criminosos perigosos e haja receio de que seja causado danos à integridade física e vida, na linha do que dispõe a Lei n. 9.807/99.

Caso a testemunha não se desloque à Delegacia voluntariamente, em uma situação de flagrante delito, o policial poderá conduzi-la coercitivamente, na condição de testemunha que passará a ser autor do crime de desobediência.

Ocorre que testemunha conduzida coercitivamente pode acarretar em prejuízo na obtenção da própria prova que se pretende produzir. A testemunha já é conhecida, doutrinariamente, como a “prostituta das provas” e ao ser conduzida coercitivamente para depor, o depoimento a ser prestado poderá estar comprometido e a testemunha omitir informações ou prestar depoimento que não condiz com a verdade, podendo ser responsabilizada pelo crime de falso testemunho, o que é de difícil comprovação.

Portanto, sempre que possível, o policial deve primar por levar a testemunha à delegacia por meio de um convite, do convencimento, sem imposições duras que possam desestimular a testemunha a falar o que realmente sabe.

A testemunha não é obrigada a fornecer a senha do celular para que os policiais visualizem as imagens, por constituir violação ao direito à intimidade de privacidade [1]O Superior Tribunal de Justiça já decidiu ser ilícita a prova produzida pela polícia que decorra do acesso ao celular do preso, contra a sua vontade e sem autorização judicial (RHC 89.981.

Por uma questão de cautela e segurança na preservação das informações e imagens, caso a testemunha seja conduzida à Delegacia o celular poderá permanecer com o policial, o qual deverá ser restituído à testemunha, imediatamente, após a obtenção dos dados. Toda extração de informações do celular da testemunha feita por policiais deve ocorrer, sempre que possível, na sua presença, para que haja transparência e legitimidade na obtenção das informações, uma vez que um aparelho celular contém uma gama de informações da vida privada. Trata-se de uma forma de conceder segurança e tranquilidade à testemunha, bem como resguardar a atuação policial para que, posteriormente, não se alegue que os policiais divulgaram eventuais fotos ou informações íntimas da testemunha.

Caso a testemunha se recuse a fornecer, voluntariamente, as imagens registradas à polícia, praticará o crime de desobediência, pois a ordem é legal e por se tratar de testemunha que filmou a ação policial, não haverá produção de provas contra a testemunha, razão pela qual não pode se opor ao fornecimento das informações, o que descaracteriza o crime de abuso de autoridade por parte dos policiais de proceder à obtenção de provas por meio manifestamente ilícito [2]Art. 25. Proceder à obtenção de prova, em procedimento de investigação ou fiscalização, por meio manifestamente ilícito: Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.  … Continue reading.

Em que pese a obrigatoriedade no fornecimento das informações, a polícia não pode coagir a testemunha a fornecer a senha do celular, dada a proteção constitucional de sua privacidade, pois o celular contém uma gama de informações muito maior do que, simplesmente, as imagens realizadas, razão pela qual o acesso deverá ser realizado mediante autorização judicial e limitar-se a obter as imagens registradas.

Não se deve olvidar a situação de policiais que omitem essa condição no local em que residem, dado o risco da profissão que é acentuado em razão da realidade do caso concreto, razão pela qual optam por não se deslocarem fardados da casa para o serviço e vice-versa, além de não postarem fotos em redes sociais utilizando-se da farda ou que possa, de alguma forma, identificá-lo como policial.

Nesses casos, o controle social realizado por intermédio de filmagens pode comprometer a vida do próprio policial.

A regra é a publicidade e possibilidade de se filmar e na prática pode ser impossível ter controle de quem filmou as ações policiais.

No caso de um policial que more em um local em que a comunidade não sabe que se trata de um policial, por questões de segurança, caso seja possível identificar quem filmou, poderá, fundamentadamente, proibir a filmagem, a divulgação e até excluí-la, salvo se contiver filmagem de fatos criminosos, deixando tudo registrado por escrito, com o fim de fundamentar a ação policial.

Geralmente, as imagens são divulgadas ou ganham repercussão quando o policial abusa da autoridade ou em razão da gravidade do crime praticado pelo agente.

De qualquer forma, caso o policial tenha esse receio de que no dia a dia a sua imagem possa ser divulgada, em razão das constantes atuações em ocorrências policiais, poderá pleitear junto à administração que trabalhe administrativamente ou em um local em que a chance da imagem do policial ser divulgada seja remota. Isso porque na prática é quase impossível evitar divulgação de policiais fardados durante o trabalho. É da natureza da profissão.

Deve-se consignar que a condução de uma pessoa à Delegacia pelo simples fato de ter filmado os policiais durante o trabalho no dia a dia, sem que haja um motivo justificável, como testemunhar a prática de um crime ou a atuação policial em uma situação de flagrante delito, nos casos em que, realmente, for necessário, pode configurar crime de abuso de autoridade ou de constrangimento ilegal.

Haverá abuso de autoridade quando não houver violência ou grave ameaça, na forma do art. 33 da Lei n. 13.869/19, que consiste em exigir o cumprimento de obrigação sem expresso amparo legal (a obrigação no caso trata de testemunhar um fato sem que haja necessidade), o que ocorre no caso em que a pessoa que filmou a ocorrência fornece o vídeo da filmagem no local dos fatos e ainda assim tem o seu celular apreendido e é conduzida à Delegacia por ter filmado, com nítido propósito intimidatório, o que configura o dolo específico de abusar da autoridade (art. 1º, § 1º, da Lei n. 13.869/19). Aplica-se o mesmo raciocínio na hipótese em que o celular da testemunha for recolhido/apreendido sem necessidade, pois exige-se o dever de fazer ou o cumprimento de obrigação (entrega do celular) sem expresso amparo legal.

A condução forçada da testemunha não implica na prática do crime previsto no art. 9º da Lei n. 13.869/19, consistente em “decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais”, pois o policial ao conduzir uma pessoa para a Delegacia não decreta medida privativa de liberdade, somente realiza a captura e condução à Delegacia, na medida em que a decretação dessa medida cabe ao Delegado de Polícia, Juízes e Comandantes, enquanto autoridades de polícia judiciária militar.

Na hipótese em que houver violência ou grave ameaça na condução desnecessária da testemunha à delegacia, o crime praticado será o de constrangimento ilegal (art. 146 do CP e art. 222 do CPM), na medida em que o simples ato de filmar, por si só, não legitima a condução da testemunha à Delegacia. Não há nenhuma prática ilegal no ato de filmar o trabalho policial na rua no dia a dia.

Notas

Notas
1 O Superior Tribunal de Justiça já decidiu ser ilícita a prova produzida pela polícia que decorra do acesso ao celular do preso, contra a sua vontade e sem autorização judicial (RHC 89.981
2 Art. 25. Proceder à obtenção de prova, em procedimento de investigação ou fiscalização, por meio manifestamente ilícito: Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem faz uso de prova, em desfavor do investigado ou fiscalizado, com prévio conhecimento de sua ilicitude.

Sobre o autor

Rodrigo Foureaux é Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás. Foi Juiz de Direito do TJPA e do TJPB. Aprovado para Juiz de Direito do TJAL. Oficial da Reserva Não Remunerada da PMMG. Membro da academia de Letras João Guimarães Rosa. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva e em Ciências Militares com Ênfase em Defesa Social pela Academia de Polícia Militar de Minas Gerais. Mestre em Direito, Justiça e Desenvolvimento pelo Instituto de Direito Público. Especialista em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes. Autor de livros jurídicos. Foi Professor na Academia de Polícia Militar de Minas Gerais. Palestrante. Fundador do site “Atividade Policial”.

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