O policial pode ler o depoimento prestado na Delegacia, durante a audiência em juízo, antes de se iniciar a tomada de depoimento?

por | 24 abr 2020 | Atividade Policial

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Não raras vezes, as testemunhas arroladas pelo Ministério Público para serem ouvidas em juízo já foram ouvidas durante o inquérito policial ou no auto de prisão em flagrante.

Inclusive, é do inquérito policial ou do auto de prisão em flagrante que o Ministério Público, comumente, arrola as testemunhas que prestarão depoimento em juízo.

Em se tratando de policiais, por participarem, no dia a dia, de inúmeras ocorrências, inclusive, semelhantes, é natural que não venham a se recordar dos fatos quando são ouvidos em juízo, salvo se em determinada ocorrência tiver acontecido um fato marcante ou alguma circunstância que faça que o policial não a esqueça.

Outrossim, pode ocorrer do policial não se lembrar em razão do tempo decorrido entre a ocorrência policial e a audiência de instrução.

Com isso, nas audiências, após o juiz ou Ministério Público explicar do que se trata a denúncia e o policial dizer que não se recorda, o próprio policial realiza a leitura do depoimento prestado anteriormente na Delegacia. Ou, então, o juiz ou o Ministério Público realizam a leitura e perguntam se recorda, sendo que muitas vezes o policial confirma o depoimento, em razão da assinatura aposta quando foi ouvido no inquérito ou no auto de prisão em flagrante. Outras vezes o policial, realmente, lembra da ocorrência e confirma o depoimento prestado ou, então, narra novamente o que já havia sido narrado na Delegacia.

O Superior Tribunal de Justiça[1] já decidiu que essa forma de se ouvir, em audiência, as testemunhas, é ilícita. Isto é, não possui validade o depoimento do policial em audiência que se limita a confirmar depoimentos anteriormente prestados.[2]

Isso porque o depoimento deve ser prestado de forma oral, consoante art. 204 do CPP, o que permite que o juiz realize um filtro de credibilidade do depoimento prestado anteriormente. “A produção da prova testemunhal é complexa, pois deve ser oral e deve permitir que seja realizado um filtro de credibilidade (fidedignidade) das informações apresentadas. Assim, durante a oitiva da testemunha, não se mostra lícita a mera leitura pelo magistrado das declarações prestadas na fase inquisitória, para que a testemunha, em seguida, ratifique-a.”[3]

O depoimento prestado no inquérito ou no auto de prisão em flagrante pode estar, por algum motivo, viciado. Isto somente será possível constatar em juízo, com a narrativa livre pelo policial, não sendo lícita a mera confirmação das informações já prestadas.

O art. 204 do Código de Processo Penal assevera que o “depoimento será prestado oralmente, não sendo permitido à testemunha trazê-lo por escrito” e o parágrafo único autoriza a consulta a apontamentos. Logo, a mera confirmação do depoimento viola o art. 204 do CPP, pois seria uma espécie de depoimento prestado por escrito.

Lado outro, a mera narrativa de trechos do depoimento já prestado, pelo juiz, promotor de justiça ou pelo próprio policial, com o intuito de se recordar dos fatos, sem a confirmação posterior, mas visando que o policial narre todo o ocorrido, ocasião em que serão feitas perguntas e reperguntas pelas partes e, se necessário, pelo juiz, é perfeitamente possível.[4]

Tal forma de se tomar o depoimento do policial encontra amparo no art. 204, parágrafo único, do CPP, que permite a consulta a breves apontamentos durante o depoimento.

Nada impede que o policial precavido, antes de ir para a audiência, pesquise as ocorrências policiais de que já participou e realize leitura do Boletim de Ocorrência para se lembrar dos fatos, sendo possível, inclusive, que leve o Boletim de Ocorrência para a audiência e realize breves consultas a apontamentos.

Com o advento da Lei n. 13.964/19[5] conhecida como Pacote Anticrime, discute-se na doutrina se os autos do inquérito policial acompanham os autos do futuro processo judicial, em razão do disposto no art. 3º-C, § 3º, do Código de Processo Penal.

Art. 3º-C. A competência do juiz das garantias abrange todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo, e cessa com o recebimento da denúncia ou queixa na forma do art. 399 deste Código. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019).
§ 3º Os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na secretaria desse juízo, à disposição do Ministério Público e da defesa, e não serão apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos para apensamento em apartado. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019).

Nota-se a clareza do dispositivo em preconizar que os autos das matérias de competência do juiz das garantias, onde se incluir o inquérito policial (art. 3º-B do CPP), não serão apensados aos autos do processo enviado ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos em autos separados do processo.

Como o § 3º do art. 3º-C do Código de Processo Penal foi expresso em destacar o que deve acompanhar o processo principal, deve-se excluir tudo aquilo que não foi previsto, ou seja, os depoimento das testemunhas em sede de inquérito policial, por não se enquadrarem, como regra, nas hipóteses mencionadas, não devem acompanhar o processo penal.

A finalidade dessa previsão é evitar a contaminação subjetiva do julgador (consciente ou inconsciente), para que possa julgar o réu despido de qualquer pré-conceito ou formação de juízo com base em elementos produzidos sem a observância do contraditório. Há um fortalecimento da imparcialidade e de um processo penal justo e democrático.[6]

Interpretação diversa foge da finalidade da norma e das alterações feitas pela Lei n. 13.964/19, na medida em que o processo penal, explicitamente, se tornou um processo penal acusatório puro, sendo vedada ao juiz qualquer iniciativa probatória[7], o que visa fortalecer a imparcialidade e um julgamento justo.

Portanto, o art. 12 do Código de Processo Penal, que prevê que “o inquérito policial acompanhará a denúncia ou queixa, sempre que servir de base a uma ou outra” foi revogado tacitamente.

Nesse sentido, pode-se imaginar, em um primeiro momento, que o policial, na audiência de instrução e julgamento, não terá como acessar o que foi falado por ele no inquérito policial. Tal acesso será possível somente se o Ministério Público ou a defesa apresentarem à testemunha o seu depoimento na fase do inquérito, pois os autos da investigação que contém os depoimentos prestados durante o inquérito não estarão apensados ao processo penal, o que impossibilita, inclusive, o juiz de tentar lembrar a testemunha com a utilização de apontamentos de seu depoimento na fase inquisitorial.

NOTAS

[1] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Modo de inquirição das testemunhas. Buscador Dizer o Direito, Manaus, 201-. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/6150ccc6069bea6b5716254057a194ef>. Acesso em: 22/11/2018.

[2] O STJ já decidiu, anteriormente, em sentido diverso: é pacífico o entendimento desta Corte de que o fato das testemunhas terem ratificado o depoimento prestado anteriormente não nulifica o julgamento, tampouco viola o contido no art. 203 do Código de Processo Penal. (RHC 15.365/SP, Min. Haroldo Rodrigues (Des. Conv. do TJ/CE), 6ª Turma, julgado em 08/09/2009, DJe 21/09/2009).

[3] STJ. 6ª Turma. HC 183696-ES, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 14/2/2012.

[4] AgRg no AREsp 397.633/MG, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA TURMA, julgado em 04/02/2014, DJe 10/02/2014.

[5] O Ministro Luiz Fux, na Medida Cautelar da Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.299/DF, suspendeu a eficácia da implantação do juiz das garantias e seus consectários (Artigos 3º-A, 3º-B, 3º-C, 3º-D, 3ª-E, 3º-F, do Código de Processo Penal).

[6] No mesmo sentido: Lima, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. Volume Único. 8. ed. Salvador: Juspodivm, 2020. P. 164.

[7] Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

Sobre o autor

Rodrigo Foureaux é Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás. Foi Juiz de Direito do TJPA e do TJPB. Aprovado para Juiz de Direito do TJAL. Oficial da Reserva Não Remunerada da PMMG. Membro da academia de Letras João Guimarães Rosa. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva e em Ciências Militares com Ênfase em Defesa Social pela Academia de Polícia Militar de Minas Gerais. Mestre em Direito, Justiça e Desenvolvimento pelo Instituto de Direito Público. Especialista em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes. Autor de livros jurídicos. Foi Professor na Academia de Polícia Militar de Minas Gerais. Palestrante. Fundador do site “Atividade Policial”.

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