Não é incomum que policiais se deparem com armas de fogo com o registro vencido, ocasião em que surgem dúvidas a respeito de quais providências devem ser adotadas.1
O Superior Tribunal de Justiça é pacífico que a posse de arma de fogo de uso permitido com o registro vencido não caracteriza crime.
Nesse sentido, a Corte Especial do STJ decidiu que “Se o agente já procedeu ao registro da arma, a expiração do prazo é mera irregularidade administrativa que autoriza a apreensão do artefato e aplicação de multa. A conduta, no entanto, não caracteriza ilícito penal.”2
A decisão fundamenta-se na ausência de dolo do agente que deixa de realizar a renovação do registro da arma, uma vez que adquiriu a arma pelas vias legais e deixou, somente, o prazo do registro da arma vencer; no fato do Direito Penal ser a ultima ratio e caráter subsidiário, o que torna a infração, apenas, de natureza administrativa, sobretudo pelo fato do Poder Público ter conhecimento de que a pessoa possui uma arma de fogo com o registro vencido, o que permite identificar as pessoas que estão com registro vencido e adotar as providências necessárias para apreender a arma e adotar as sanções administrativas; na ausência de lesividade da conduta, por questões de política criminal e pelo fato da não renovação do registro da arma não apresentar violação aos bens jurídicos tutelados pela Lei n. 10.826/03.3
Nesse sentido, após a decisão do Superior Tribunal de Justiça pela Corte Especial há inúmeros julgados do STJ que afirmam constituir o vencimento do registro da arma de fogo mera irregularidade administrativa, uma vez que a decisão da Corte Especial do STJ em matéria infraconstitucional deve ser observada pelo próprio STJ, tribunais e todos juízes de primeira instância.4
Igualmente, a Administração Pública deve priorizar seguir os entendimentos fixados pela jurisprudência e caso não siga deve fundamentar o porquê da inobservância da jurisprudência.5
A arma de fogo registrada, cujo certificado de registro de arma esteja vencido, autoriza a apreensão da arma e munição, além de imposição de sanções de natureza pecuniária típicas do Direito Administrativo.6
As armas de fogo no Brasil podem ser registradas no SINARM – Sistema Nacional de Armas –, que é gerenciado pela Polícia Federal, ou no SIGMA – Sistema de Gerenciamento Militar de Armas -, que é gerenciado pelo Exército.
As armas de fogo de uso permitido devem ser registradas perante a Polícia Federal (art. 10 da Lei 10.826/03), enquanto que as de uso restrito devem ser registradas perante o Exército (art. 3º, parágrafo único, da Lei n. 10.826/03).
Para fins de classificação do crime de porte/posse ilegal de arma de fogo, esta subdivide-se em arma de fogo de uso permitido, de uso restrito e proibido.
Os Decretos n. 9.845 e 9.847, ambos de 25 de junho de 2019, conceituam arma de fogo e suas espécies (art. 2º, I, II e III).
Arma de fogo de uso permitido
Arma de fogo de uso restrito
Arma de fogo de uso proibido
a) de porte, cujo calibre nominal, com a utilização de munição comum, não atinja, na saída do cano de prova, energia cinética superior a mil e duzentas libras-pé ou mil seiscentos e vinte joules;
a) de porte, cujo calibre nominal, com a utilização de munição comum, atinja, na saída do cano de prova, energia cinética superior a mil e duzentas libras-pé ou mil seiscentos e vinte joules;
a) as armas de fogo classificadas de uso proibido em acordos e tratados internacionais dos quais a República Federativa do Brasil seja signatária;
b) portáteis de alma lisa;
b) não portáteis;
b) as armas de fogo dissimuladas, com aparência de objetos inofensivos.
c) portáteis de alma raiada, cujo calibre nominal, com a utilização de munição comum, não atinja, na saída do cano de prova, energia cinética superior a mil e duzentas libras-pé ou mil seiscentos e vinte joules.
c) portáteis de alma raiada, cujo calibre nominal, com a utilização de munição comum, atinja, na saída do cano de prova, energia cinética superior a mil e duzentas libras-pé ou mil seiscentos e vinte joules.
Joule é uma unidade que mede a energia e quanto maior o joule maior poderá ser a aceleração da munição.
A Portaria n. 1.222, de 12 de agosto de 2019, do Comando do Exército, dispõe sobre parâmetros de aferição e listagem de calibres nominais de armas de fogo e das munições de uso permitido e restrito.
O porte de arma caracteriza-se quando a pessoa que a tem sob sua responsabilidade estiver fora de sua própria residência.
A posse de arma ocorre quando aquele que a possui encontra-se com a arma no interior de sua residência ou dependência desta, ou, ainda no seu local de trabalho, desde que seja o titular ou o responsável legal do estabelecimento ou empresa. Foras dessas situações, haverá porte de arma de fogo, como transportar a arma em locais públicos ou privados, em casa de terceiros ou no local de trabalho, quando não for o titular ou responsável legal pelo estabelecimento ou empresa.
O art. 12 da Lei 10.826/03 trata do crime de posse irregular de arma de fogo de uso permitido; o art. 14 do crime de porte ilegal de arma de fogo de uso permitido e o art. 16 do crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito.
Posse irregular de arma de fogo de uso permitido
Porte ilegal de arma de fogo de uso permitido
Posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito
Art. 12. Possuir ou manter sob sua guarda arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, em desacordo com determinação legal ou regulamentar, no interior de sua residência ou dependência desta, ou, ainda no seu local de trabalho, desde que seja o titular ou o responsável legal do estabelecimento ou empresa:
Art. 14. Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Art. 16. Possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição de uso restrito, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar: (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)
Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.
Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.
O bem jurídico tutelado pelo Estatuto do Desarmamento, genericamente, é a segurança pública e a incolumidade pública, mas cada tipo penal possui bem jurídico tutelado específico.
O artigo 12 da Lei 10.826/06 visa tutelar, além da segurança pública e a incolumidade pública, o controle de quem pode ser proprietário e, consequentemente, possuir arma de fogo em casa ou no local de trabalho, desde que seja o titular ou o responsável legal do estabelecimento ou empresa.
O art. 14 da Lei 10.826/06 tutela a segurança pública e a incolumidade pública em maior intensidade, em razão dos riscos que uma pessoa armada fora de sua casa ou do trabalho, oferece à sociedade. O tipo penal visa controlar ainda as pessoas que, além de possuírem a propriedade de uma arma de fogo, pode sair com ela de casa.
O art. 16 da Lei 10.826/06, tutela a segurança pública e a incolumidade pública em maior intensidade ainda, pois as armas de uso restrito possuem maior potencial lesivo que as armas de uso permitido e as figuras equiparadas constantes no parágrafo único (incisos I, II e IV)7, além de visar proteger a paz e a segurança pública também protege a seriedade dos cadastros do Sistema Nacional de Arma.
Nota-se que o crime de posse ilegal de arma de fogo exige para a sua caracterização que a posse da arma esteja em desacordo com determinação legal OU regulamentar, o que permite afirmar que a desobediência às normas insculpidas nos Decretos n. 9.845/19 e 9.847/19 (determinação regulamentar) é suficiente para configurar o crime previsto no art. 12 da Lei 10.826/03.
Os crimes de porte ilegal de arma de fogo de uso permitido e posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito utilizam a expressão “sem autorização E em desacordo com determinação legal ou regulamentar”. Isto é, nestes crimes, além de estar em desacordo com determinação legal ou regulamentar, é necessário que não haja autorização. Ocorre que o fato de estar em desacordo com as normas legais ou regulamentares, a depender da irregularidade, pode ensejar na ausência de autorização.
A pessoa que possui o porte de arma, mas não se encontra, em via pública, com a identidade funcional que autoriza o porte, como a carteira de polícia (art. 16 do Decreto n. 9.847/19) ou com o Certificado de Registro de Arma de Fogo (art. 4º, § 8º do Decreto n. 9.845/19) está irregular, mas não deixa de possuir autorização para portar a arma e a irregularidade é uma mera infração administrativa, pois os documentos mencionados visam somente comprovar a autorização do porte e a regularidade da arma. Neste caso a pessoa porta arma em desacordo com determinação regulamentar, contudo não está “sem autorização”, razão pela qual não pratica o crime de porte ilegal de arma de fogo. Lado outro, caso o agente porte arma de fogo em via pública com o registro da arma vencido, além de estar irregular, estará também “sem autorização”, pois a perda de validade do registro da arma de fogo implica, consequentemente, na impossibilidade de portá-la em via pública (art. 18 do Decreto n. 9.847/19), razão pela qual a “autorização” existente, perde a validade. No primeiro exemplo, como explicado, não há crime; no segundo há o crime de porte ilegal de arma de fogo, pois além de portar arma em desacordo com determinação regulamentar, não possui autorização para portá-la (está “sem autorização”).
Ao se deparar com uma ocorrência que envolva arma de fogo com o registro vencido, o policial deve adotar as providências legais. E quais são essas providências legais?
Inicialmente, deve-se verificar se a arma de fogo que possui registro vencido é de uso restrito ou permitido.
A emissão do Certificado de Registro de Arma de Fogo – CRAF – tem como órgão emissor a Polícia Federal quando se tratar de arma de uso permitido e o Exército, quando se tratar de arma de uso restrito. O próprio documento contém o prazo de validade do registro, conforme ilustra a imagem abaixo.
Caso seja de uso restrito deverão ser adotadas as providências contidas no Decreto n. 10.030, de 30 de setembro de 2019; do contrário, as providências previstas no Decreto n. 9.845/2019 e descritas no processo n. 08211.001531/2020-06 da Polícia Federal, que respondeu à consulta formulada por este autor, com o fim de sanar dúvidas a respeito das providências policiais quando houver localização de arma de fogo com o registro vencido.
Nesse contexto, serão analisadas as situações, que são aplicáveis somente para os casos de registro vencido de arma de fogo de quem possui autorização para portar ou possuí-la, uma vez que se inexistir autorização, obviamente, sequer há que se falar em vencimento do registro da arma de fogo, pois já haverá a prática do crime de porte/posse ilegal de arma de fogo.
a) Porte de arma de fogo de uso permitido ou restrito com o registro vencido
O Superior Tribunal de Justiça pacificou na Ação Penal n. 686, julgada pela Corte Especial, que o vencimento do registro de arma não configura crime quando se tratar de posse ilegal de arma de fogo de uso permitido.
Na hipótese em que o agente for flagrado no porte de arma de uso permitido e/ou restrito com o registro vencido, deverá ser preso em flagrante delito em razão da prática dos crimes previstos no art. 14 e/ou art. 16, ambos da Lei 10.826/03, respectivamente, pois o entendimento do Superior Tribunal de Justiça aplica-se somente à posse ilegal de arma de fogo de uso permitido.
Com efeito, o porte de arma de fogo possui maior reprovabilidade social, uma vez que uma pessoa armada na rua irregularmente oferece maiores riscos à sociedade. Além do mais, o crime de porte ilegal de arma de fogo visa controlar as pessoas que, além de possuírem a propriedade de uma arma de fogo, pode sair com ela de casa.
Nesse sentido decidiu o Superior Tribunal de Justiça.
PENAL. PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DE USO PERMITIDO. ART. 14 DA LEI N. 10.826/2003. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL NÃO DEMONSTRADO. REGISTRO DE ARMA DE FOGO EXPEDIDO POR ÓRGÃO ESTADUAL DURANTE A VIGÊNCIA DA LEI N. 9.437/1997. REGISTRO VENCIDO. ATIPICIDADE. TESE NÃO APLICÁVEL AO CRIME DE PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.
1. No tocante à alegação de dissenso jurisprudencial, a pretensão recursal não reúne condições mínimas para a progressão da análise de mérito. Isso porque é inviável conhecer de recurso especial fundado na alínea c do permissivo constitucional quando a parte recorrente não realiza o necessário cotejo analítico entre arestos em confronto, a fim de ficarem demonstradas a similitude fática e a adoção de teses divergentes, sendo insuficiente a mera transcrição de ementas.
2. O entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento da APn n. 686/AP (Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, Corte Especial, DJe 29/10/2015) é restrito ao delito de posse ilegal de arma de fogo de uso permitido (art. 12 da Lei 10.826/2003), não se aplicando ao crime de porte ilegal de arma de fogo (art. 14 da Lei 10.826/2003), cuja elementar é diversa e a reprovabilidade mais intensa.
3. O fato do envolvido ser policial e ter habilidade para manusear a arma não retira o caráter criminal da conduta, uma vez que o delito previsto no art. 14 da Lei n. 10.826/2003 é de perigo abstrato, sendo desnecessário perquirir sobre a lesividade concreta da conduta, porquanto o objeto jurídico tutelado não é a incolumidade física e sim a segurança pública e a paz social.
4. Agravo regimental não provido.
(STJ – AgRg no AREsp: 1413440 SP 2018/0327150-7, Relator: Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, Data de Julgamento: 07/05/2019, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 20/05/2019)
O encerramento da ocorrência deve ser feito na Delegacia de Polícia Civil, por não se tratar, inicialmente, de crime de responsabilidade da Polícia Federal apurar, uma vez que não se encontra em nenhuma das hipóteses previstas no art. 144, § 1º, da Constituição Federal.
Destaca-se que a responsabilização criminal daquele que porta uma arma de fogo, de uso permitido ou restrito, com o registro vencido, não o isenta das consequências administrativas previstas nos Decretos n. 9.845/19 e 9.847/19.
b) Posse de arma de fogo de uso permitido ou restrito com o registro vencido
Visando um maior esclarecimento acerca das providências policiais a serem adotadas, caso se depare com arma de fogo com o registro vencido dentro de uma residência, foi formulada consulta junto à Polícia Federal, a qual recebeu o número 08211.001531/2020-06 e foi respondida em 29 de maio de 2020.
É importante frisar que a consulta respondida pela Polícia Federal abrange somente as armas de uso permitido, pois as armas de uso restrito são fiscalizadas e controladas pelo Exército e o Decreto n. 10.030/19 do Comando do Exército já detalha as providências que devem ser adotadas.
b.1) Posse de arma de fogo de uso permitido com registro vencido
O vencimento do registro de arma de fogo ocorre, naturalmente, com o decurso do tempo, contudo a razão pela qual o proprietário da arma de fogo deixou o seu registro vencer pode variar.
Com efeito, o Superior Tribunal de Justiça decidiu e pacificou que é atípica a conduta de possuir arma de fogo de uso permitido com registro vencido, todavia deve-se observar os fundamentos pelos quais o STJ pacificou nesse sentido.
Na Ação Penal n. 686, julgada pela Corte Especial do STJ, fundamentou a inexistência de crime de posse ilegal de arma de fogo de uso permitido na ausência de dolo, no caráter subsidiário e ultima ratio do direito penal e na possibilidade de controle da circulação da arma registrada, em que pese vencida.
No HC n. 294.078/SP, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que a posse ilegal de arma de fogo em razão do vencimento do registro “não pode extrapolar a esfera administrativa, uma vez que ausente a imprescindíveltipicidade material, pois, constatado que o paciente detinha o devido registro da arma de fogo de uso permitido encontrada em sua residência – de forma que o Poder Público tinha completo conhecimento da posse do artefato em questão, podendo rastreá-lo se necessário –, inexiste ofensividade na conduta. A mera inobservância da exigência de recadastramento periódico não pode conduzir à estigmatizadora e automática incriminação penal. Cabe ao Estado apreender a arma e aplicar a punição administrativa pertinente, não estando em consonância com o Direito Penal moderno deflagrar uma ação penal para a imposição de pena tão somente porque o indivíduo – devidamente autorizado a possuir a arma pelo Poder Público, diga-se de passagem – deixou de ir de tempos em tempos efetuar o recadastramento do artefato. Portanto, até mesmo por questões de política criminal, não há como submeter o paciente às agruras de uma condenação penal por uma conduta que não apresentou nenhuma lesividade relevante aos bens jurídicos tutelados pela Lei n. 10.826/2003, não incrementou o risco e pode ser resolvida na via administrativa.
Nota-se que o principal fundamento do Superior Tribunal de Justiça repousa no “dolo” do agente que deixou vencer o registro da arma de fogo de uso permitido. Dessa forma, caso se apure que o agente deixou o registro da arma de fogo vencer dolosamente, o argumento do STJ consistente na ausência de elemento subjetivo (dolo) é afastado e os demais argumentos também poderão ser afastados, uma vez que o fato passa ser conduta penalmente relevante e, no caso concreto, eventual atipicidade material pode deixar de existir, em razão dos motivos que levaram o agente a não renovar o registro de arma de fogo, e o fato pode ganhar relevo penal.
Nesse sentido, a Polícia Federal, em resposta à consulta formulada expôs que:
Efetivamente, para alcançar a conclusão de que a conduta de manter sob guarda, no interior de sua residência, arma de fogo de uso permitido com registro vencido não configura o crime do artigo 12 da Lei 10.826/2003, o argumento central eleito pelo e. Superior Tribunal de Justiça foi o de que não há dolo do agente que procede ao registro e, depois de expirado prazo, é apanhado/pego de surpresa com a arma nessa circunstância, o que configurará mera irregularidade administrativa. Prestigiou-se, com isso, na perspectiva daquela Corte Superior, o postulado da intervenção mínima e da fragmentariedade, destacando-se o caráter subsidiário e de ultima ratiodo direito penal;
Entretanto, convém alertar para o detalhe que motivou a decisão do e. STJ: o possível esquecimento despretensioso e involuntário do proprietário da arma de fogo. Houve uma presunção de boa-fé nesse sentido em relação ao cidadão, a qual, todavia, desconsiderou outras hipóteses para a não renovação do registro perante a Polícia Federal (no caso de armas do SINARM, claro). E é justamente em razão dessa possibilidade, ou seja, de que o cidadão tenha deixado propositadamente de renovar o registro — seja por responder a um inquérito policial, seja por ter reprovado no exame de aptidão psicológica, entre outras situações —, que esta divisão defende que a arma de fogo com registro vencido e, portanto, em situação irregular, deve ser apreendida por ocasião de sua localização fortuita/eventual;
Portanto, é possível sim que a posse de arma de fogo com registro vencido caracterize crime (art. 12 da Lei n. 10.826/03), a depender das circunstâncias e motivos da não renovação da validade do Certificado de Registro de Arma de Fogo – CRAF.
Na prática o entendimento pacificado pelo Superior Tribunal de Justiça, de que o mero vencimento do registro da arma de fogo não configura crime de posse ilegal de arma de fogo, é aplicado indistintamente para todos os casos, em razão da ausência de análise dos fundamentos da decisão do STJ, o que enseja a ausência de prisão do autor e/ou a inexistência de investigação e nas hipóteses em que os casos são levados à Justiça, na ausência de observação pelo Ministério Público e pela Justiça das razões do vencimento do registro da arma de fogo.
Criou-se uma máxima de que “posse ilegal de arma de fogo com registro vencido não é crime”, o que tem sido aplicado para todos os casos, contudo é perfeitamente possível a prática do crime de posse ilegal de arma de fogo em razão do vencimento do registro.
O proprietário da arma de fogo pode ter deixado de renovar o registro da arma em razão de alguma circunstância que impediria a renovação do registro da arma.
O prazo de validade dos registros de arma de fogo de uso permitido é de 10 (dez) anos (art. 3º, § 10 e art. 4º, § 2º, ambos do Decreto n. 9.845/19 e art. 12, § 11, do Decreto n. 9.847/19).
Na renovação é necessário que se comprove a idoneidade moral e a inexistência de inquérito policial ou processo criminal, por meio de certidões de antecedentes criminais das Justiças Federal, Estadual, Militar e Eleitoral; ocupação lícita e residência fixa e a capacidade técnica para o manuseio da arma de fogo e aptidão psicológica (art. 3º, § 10 e art. 4º, § 2º, ambos do Decreto n. 9.845/19 e art. 12, § 11, do Decreto n. 9.847/19).
A autorização para a posse de arma de fogo deve ser cassada quando o proprietário for indiciado em inquérito policial ou o juiz receber denúncia em processo criminal (art. 7º, § 2º, do Decreto n. 9.845/19).
Pode ocorrer também do detentor da posse de arma de fogo não ter mais direito a possuí-la – o porte autoriza a posse, mas o contrário não é verdadeiro -, por esta ter sido concedida em razão do cargo público que ocupava (juiz, promotor, policial civil, guarda municipal) ou da função que exercia (gerente de banco, por exemplo, que comprove a efetiva necessidade), razão pela qual um dos requisitos não se encontra mais satisfeito no momento da renovação.
Deve-se levar em consideração também o tempo que o proprietário da arma de fogo a possui com o registro vencido, o que pode ser determinante para a caracterização do dolo, pois é do conhecimento de qualquer possuidor de arma de fogo que nenhum registro para pessoa física possui validade indeterminada.
Portanto, o possuidor de arma de fogo que não a renova, propositalmente, por ter ciência de que a renovação do registro será negada por responder a inquérito policial ou processo criminal8; por ter sido reprovado na avaliação de capacidade técnica para o manuseio da arma de fogo ou contraindicado na avaliação psicológica; por não possuir ocupação lícita, uma vez que optou por se tornar agente infrator; por ter pedido o cargo público ou a função que exercia que justificam a concessão da posse de arma de fogo; por ter ignorado notificação da Polícia Federal para que entregasse a arma de fogo com registro vencido ou o renovasse; por possuir a arma de fogo com registro vencido por longo tempo, estará caracterizado o dolo e tais condutas possuem um maior juízo de reprovação social.
Tais condutas podem, além de servirem para caracterizar o dolo, afastar a atipicidade material, a subsidiariedade e ultima ratio do direito penal e a ausência de lesividade para os bens jurídicos tutelados pela Lei n. 10.826/03, pois não se trata da ausência de uma mera renovação de registro de arma de fogo, mas sim em uma tentativa de burlar a lei, de fraudar a fiscalização para que o proprietário da arma com ela permaneça, independentemente, do cumprimento de normas.
Não se trata de deflagar uma ação penal somente porque o indivíduo – devidamente autorizado a possuir a arma pelo Poder Público – deixou de ir de tempos em tempos efetuar o recadastramento do artefato, mas sim pelo fato do indivíduo ter atuado de má-fé, com nítido intuito de permanecer com a posse de arma à revelia da lei, o que dificulta o controle de armas, pois com a negativa da renovação do registro, o proprietário não poderia mais com ela permanecer.
Não se trata de mera inobservância da exigência de recadastramento periódico da arma de fogo, mas de fraude às exigências contidas nas normas que exigem o recadastramento.
Nessas circunstâncias, o fato ganha relevância penal, possui tipicidade material e causa lesividade aos bens jurídicos tutelados pelo crime de posse ilegal de arma de fogo, razão pela qual não se deve aplicar o entendimento pacificado pelo Superior Tribunal de Justiça na Ação Penal n. 686.
O policial que atua na rua deve, na maioria absoluta dos casos, limitar-se a realizar uma análise de tipicidade formal, face ao princípio da legalidade (art. 37 da CF), por razões de segurança jurídica e pelo fato do policial que trabalha na rua realizar a captura e condução de um autor de infração penal, pois a prisão propriamente dita, de um autor em flagrante delito, cabe ao Delegado de Polícia, isso porque a prisão em sentido amplo subdivide-se em várias fases, que, a despeito das controvérsias doutrinárias, pode ser subdividida em captura, condução do preso ao Delegado de Polícia, lavratura do auto de prisão em flagrante e encarceramento.
A análise fática e jurídica dos motivos que levaram o proprietário da arma de fogo a não renovar o registro cabe ao Delegado de Polícia (art. 2º, § 6º, da Lei n. 12.830/13), que é a autoridade competente para realizar a Verificação de Procedência das Informações – VPI – de possível prática de infração penal (art. 5º, § 3º, do CPP) e proceder à investigação criminal (art. 144, § 4º, da CF).
Além do mais, o policial, na rua, ao localizar uma arma de fogo com o registro vencido, não possui todas informações necessárias para concluir que tal conduta não constitui crime em razão do entendimento do Superior Tribunal de Justiça, pois será necessária uma investigação prévia ou aprofundada e a realização de diversas pesquisas pelo Delegado de Polícia.
Um exemplo para ilustrar a impossibilidade do policial, como regra, realizar outras análises, que não seja a de tipicidade formal, consiste no atendimento de uma ocorrência por uma guarnição policial em que o condutor de um veículo atropela um transeunte na via pública que vem a óbito no local. O policial ao chegar no local terá a imagem daquele acidente (um carro amassado e parado e uma pessoa no chão e sem vida). O papel do policial é descrever detalhadamente todas informações que obtiver, inclusive, de testemunhas, se no local tem câmeras e assistir as imagens, se possível, como o local foi visualizado pelo policial e relatar, também, a versão do motorista e testemunhas. Seja qual for a conclusão que o policial chegar, deverá apresentar o motorista à Delegacia de Polícia, por mais que o policial visualize nas imagens que a pessoa se jogou na frente do carro, pois a análise é exclusivamente de tipicidade formal. Certo é que neste caso não há conduta penalmente relevante por parte do motorista, razão pela qual o fato é atípico, contudo essa análise cabe ao Delegado de Polícia, que precisar aprofundar a investigação, ao Promotor de Justiça e ao juiz.
O policial que trabalha na rua comunica ao Delegado de Polícia a possível prática de infração penal (tipicidade formal) e deve, sempre que possível e houver situação de flagrante delito, como regra, conduzir os envolvidos (autor, vítima e testemunhas) até a Delegacia de Polícia.
Do contrário, além de ferir o princípio da legalidade que rege o serviço público e dispõe que ao servidor público somente é possível fazer o que encontra previsão em lei, e não há previsão em lei que o policial que trabalha na rua pode realizar análise ampla do tipo penal e deixar de conduzir os envolvidos, pelo contrário, deve apresentá-los ao Delegado de Polícia, na forma do art. 304 do Código de Processo Penal que trata da apresentação do preso à autoridade competente, que ouvirá, inclusive as testemunhas, causaria uma grave insegurança jurídica, pois a análise ampla do tipo penal permite inúmeras soluções e cada policial poderia resolver ocorrências das mais variadas formas, o que prejudicaria, inclusive, eventual necessidade de produção de prova, que é uma das finalidades do flagrante delito.
Portanto, o policial que localizar arma de fogo com registro vencido na residência do proprietário da arma, deve apresentar ao Delegado de Polícia Civil a arma e o seu proprietário.
A consulta respondida pela Polícia Federal esclarece que:
a) sem ingressar na esfera de análise in abstrato sobre a legalidade de incursões da Política Militar em residências e/ou de buscas feitas pela Polícia Militar ou pela Polícia Civil em residências e veículos, esta divisão recomenda a apreensão da arma de fogo com registro vencido justamente para viabilizar a apuração das razões da não renovação de seu registro, sobretudo com o escopo de regularizá-la em vista do objetivo de aprimorar o controle de armas de fogo no país, ao encargo da Polícia Federal por determinação do Estatuto do Desarmamento;
O Delegado de Polícia, ao analisar a arma de fogo apreendida com registro vencido poderá não lavrar o auto de prisão em flagrante, por entender que se enquadra, até então, na hipótese de infração administrativa, face à ausência de elementos que demonstrem a existência de dolo e de reprovabilidade social, sendo necessária a realização de diligências, ou poderá lavrar o auto de prisão em flagrante e fixar fiança (art. 322 do CPP).
A apreensão da arma de fogo deve ocorrer, independentemente, de prévia instauração de processo administrativo pela Polícia Federal, uma porque a atuação decorre da prática de um crime (tipicidade formal do art. 12 da Lei n. 10.826/03) e o objeto do crime deve ser apreendido (art. 6º, II e art. 240, § 1º, “d”, ambos do CPP), duas porque a apreensão de arma de fogo em razão do vencimento de seu registro independe da instauração de processo administrativo (art. 8º, parágrafo único, do Decreto n. 9.847/19)9.
Nesse sentido, a Polícia Federal, em resposta à consulta formulada expôs que:
d) para a apreensão da arma de fogo com registro vencido, não é necessária prévia instauração de processo administrativo por parte da Polícia Federal, especialmente em vista do princípio da oportunidade, de forma que o expediente processual pode ser instaurado após a apreensão cautelar da arma de fogo, ato que consubstanciará a justa causa para instauração da apuração administrativa no âmbito da unidade da PF responsável por fazer o controle de armas de fogo, com implicações no SINARM; embora o §6º do artigo 7º do Decreto nº. 9.845/2019 afirme que “a apreensão da arma de fogo é de responsabilidade da polícia judiciária competente para a investigação do crime que motivou a cassação”, a norma se restringiu ao viés criminal, ou seja, de polícia judiciária, deixando de abordar sobre o viés de polícia administrativa ao encargo da Polícia Federal no que diz respeito ao controle de armas de fogo;
Após o Delegado de Polícia realizar as diligências necessárias, independentemente, da conclusão a que se chegue, se o fato de estar com a posse de uma arma de fogo com o registro vencido configurou crime ou não, a arma não deverá ser restituída ao proprietário, uma vez que o registro da arma encontra-se vencido, contudo a arma deverá ser encaminhada à Polícia Federal, caso o Delegado tenha concluído pela prática de crime, mas a arma não interesse mais para as investigações (arts. 118 e 120, ambos do CPP) ou caso tenha concluído pela inexistência de crime, uma vez que cabe à Polícia Federal adotar as providências administrativas afetas à apreensão, renovação do prazo de validade e indenização das armas de fogo de uso permitido (art. 8º, parágrafo único, do Decreto n. 9.847/19)10.
Nesse sentido, a Polícia Federal, em resposta à consulta formulada, após ser feito o seguinte questionamento: A apreensão de arma de fogo com registro vencido, seja por qual órgão público for, deve ser levada para a onde? A arma de fogo apreendida ficará em qual órgão público?” respondeu que: “a arma de fogo deve ser encaminhada para a Polícia Federal, desde que se trate de arma cadastrada no SINARM”.
Caso o proprietário da arma de fogo não a regularize, deverá ser indenizado ou transferir a arma no prazo de sessenta dia (art. 8º do Decreto n. 9.847/19).
Em resposta à consulta formulada acerca do prazo que o proprietário possui para sanar a irregularidade (arma com registro vencido), com o fim de evitar a indenização prevista no art. 8º do Decreto n. 9.845/2019, foi respondido que “por analogia, diante da ausência de prazo legal específico, é possível adotar, com esteio no paralelismo, o prazo de 60 (sessenta) dias legalmente concedido para a renovação do registro da arma de fogo (artigo 8º do Decreto nº. 9.845/2019).
A localização, em residência, de arma de fogo com registro vencido, ocorre, geralmente, de forma eventual, em razão do cumprimento de um mandado de busca e apreensão que vise a apreensão de objetos ilícitos pelo fato do proprietário da arma ser investigado por algum crime ou o ingresso em domicílio amparado em fundadas razões da prática de crime permanente diverso da posse ilegal de arma de fogo. Nesses dois casos, que são mais comuns, o proprietário da arma pode ter deixado de renovar o registro por estar envolvido com a prática de crime e ter ciência de que não seria renovado.
Não é necessário que os órgãos policiais estejam cadastrados juntos à Polícia Federal para realizarem a apreensão de arma de fogo com registro vencido, ainda que se trate somente de infração administrativa, pois, consoante resposta da Polícia Federal à consulta formulada, “é dispensável o credenciamento dessas instituições para fazerem seus misteres de tomar providências policiais diante de situações que possam ensejar futura repercussão penal — afinal, se, após notificado pela PF, o proprietário deixa de renovar o registro e, conscientemente, passa a possuir em sua residência ou veículo arma de fogo com registro vencido, passa a ser factível defender, agora sim, a tipicidade penal descrita no artigo 12 da Lei nº. 10.826/2003”.
b) tendo em vista que tanto a Polícia Militar quanto a Polícia Civil são órgãos de segurança pública descritos no artigo 144 da CF/1988 e que, por isso, compõem um sistema vocacionado para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, com separações de atribuições por questão de funcionalidade estrutural do Estado, é dispensável o credenciamento dessas instituições para fazerem seus misteres de tomar providências policiais diante de situações que possam ensejar futura repercussão penal — afinal, se, após notificado pela PF, o proprietário deixa de renovar o registro e, conscientemente, passa a possuir em sua residência ou veículo arma de fogo com registro vencido, passa a ser factível defender, agora sim, a tipicidade penal descrita no artigo 12 da Lei nº. 10.826/2003;
Além do mais, o parágrafo único do art. 8º do Decreto n. 9.845/19 prevê que a arma de fogo com registro vencido deve ser apreendida pela Polícia Federal ou por órgão público por esta credenciado. Atualmente, não existem órgãos credenciados pela Polícia Federal para apreender arma de fogo (conforme contido na resposta à consulta formulada à Polícia Federal), o que, no entanto, não impede a Polícia Militar ou Polícia Civil de encaminharem diretamente à Polícia Federal a arma com o registro vencido localizada, quando se tratar exclusivamente, de infração administrativa, como decorrência do poder de polícia e possibilidade de atuação dos órgãos policiais nas situações de ilegalidade que caracterizam infração penal ou administrativa (como as previstas no Código de Trânsito Brasileiro e Estatuto da Criança e Adolescente), sobretudo em razão do princípio da cooperação entre os órgãos de segurança pública.
A título exemplificativo, um Delegado de Polícia realiza pesquisa acerca de todos os moradores de uma mesma casa em que cumprirá mandado de busca e apreensão e verifica que um dos moradores possui posse de arma de fogo, cujo registro venceu recentemente e o Delegado atento, realiza levantamentos preliminares, e conclui que não houve dolo. Posteriormente, o Delegado cumpre mandado de busca e apreensão em desfavor do filho do proprietário da arma, ocasião em que localiza a arma com registro vencido. Deverá apreender a arma e entregá-la na Polícia Federal, pois se trata somente de infração administrativa.
A Delegacia da Polícia Federal encontra-se presente com estrutura física em 125 cidades, sendo que no Brasil existem 5.570 municípios, os quais – espera-se que pelo menos -, possuem a proximidade da Polícia Militar ou Polícia Civil em condições de pronta resposta. Dessa forma, ressoa importante o credenciamento pela Polícia Federal dos órgãos de segurança pública legitimados a apreenderem arma de fogo.
E o ingresso em domicílio em razão da posse de arma de fogo com registro vencido? É possível? Tome como exemplo o policial que acessa o INFOSEG – Informações de Segurança Pública – e verifica que determinada pessoa possui a posse de uma arma de fogo de uso permitido, contudo o registro está vencido. Poderá, com base nessa informação, ingressar na casa da pessoa sem mandado de busca e apreensão, sob o fundamento de que se encontra em flagrante delito de crime permanente (verbo “possui” do art. 12 da Lei n. 10.826/03).
Entendo que não, uma vez que a inviolabilidade domiciliar é um direito fundamental, merece especial proteção, e o ingresso em razão do flagrante delito deve se amparar em fundadas razões11, em elementos justificáveis e concretos, que permitam afirmar a ocorrência de crime permanente na residência e neste caso é perfeitamente possível que a autoridade policial realize os levantamentos necessários, antes de adentrar à residência, para concluir se há fundadas razões, conforme demonstrado, que indiquem a prática de crime de posse ilegal de arma de fogo de uso permitido ou somente de infração administrativa.
Caso conclua que é o caso somente de infração administrativa, o Delegado de Polícia Civil poderá comunicar a Polícia Federal para que notifique o proprietário da arma com o fim de regularizá-la. Após expirado o prazo concedido pela Polícia Federal, caso a arma não tenha sido regularizada, haverá a prática do crime de posse ilegal de arma de fogo de uso permitido, o que autorizará o ingresso da polícia em domicílio sem necessidade de autorização judicial, por ser crime permanente e a situação de flagrante delito restar demonstrada.
b.2) Posse de arma de fogo de uso restrito com registro vencido
O Superior Tribunal de Justiça pacificou na Ação Penal n. 686, julgada pela Corte Especial, que o vencimento do registro de arma não configura crime quando se tratar de posse ilegal de arma de fogo.
Na hipótese em que o agente for flagrado na posse de arma de uso restrito com o registro vencido, deverá ser preso em flagrante delito em razão da prática do crime previsto no art. 16 da Lei 10.826/03, pois o entendimento do Superior Tribunal de Justiça aplica-se somente à posse ilegal de arma de fogo de uso permitido.
Com efeito, o art. 16 da Lei 10.826/06, tutela a segurança pública e a incolumidade pública em maior intensidade que os artigos 12 e 14 da Lei 10.826/06, pois as armas de uso restrito possuem maior potencial lesivo que as armas de uso permitido e as figuras equiparadas constantes no parágrafo único (incisos I, II e IV)12, além de visar proteger a paz e a segurança pública também protege a seriedade dos cadastros do Sistema Nacional de Arma.
PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. CRIME DE PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO. POLICIAL MILITAR. REGISTRO VENCIDO.
ATIPICIDADE DA CONDUTA. TESE INAPLICÁVEL. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO.
1. “O entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento da APn n. 686/AP (Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, Corte Especial, DJe 29/10/2015) é restrito ao delito de posse ilegal de arma de fogo de uso permitido (art. 12 da Lei 10.826/2003), não se aplicando ao crime de porte ilegal de arma de fogo (art. 14 da Lei 10.826/2003), muito menos ao delito de porte ilegal de arma de fogo de uso restrito (art. 16 da Lei 10.826/2003), cujas elementares são diversas e a reprovabilidade mais intensa” (RHC n. 63.686/DF, relator Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, DJe 22/2/2017).
2. Agravo regimental a que se nega provimento.
(AgRg no AREsp 885.281/ES, Rel. Ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 28/04/2020, DJe 08/05/2020)
O encerramento da ocorrência deve ser feito na Delegacia de Polícia Civil, por não se tratar, inicialmente, de crime de responsabilidade da Polícia Federal apurar, uma vez que não se encontra em nenhuma das hipóteses previstas no art. 144, § 1º, da Constituição Federal.
Destaca-se que a responsabilização criminal daquele que possui uma arma de fogo de uso restrito com o registro vencido não o isenta das consequências administrativas previstas nos Decreto n. 10.030, de 30 de setembro de 2019 do Comando do Exército, que aprova o Regulamento de Produtos Controlados.
A arma de fogo de uso restrito é um produto controlado pelo Comando do Exército (art. 2º, § 2º, c/c Anexo II do Decreto n. 10.030/19).
A arma de fogo de uso restrito poderá ser apreendida quando houver expirado o prazo de validade do registro e as autoridades competentes para a apreensão são as autoridades militares, policiais, fazendárias, ambientais e judiciárias (arts. 126 e 127).
A autoridade que efetuar a apreensão da arma de fogo de uso restrito deve comunicar o fato, imediatamente, ao Comando do Exército (art. 129).
Diante de todo o exposto, é possível sintetizar da seguinte forma:
a) Porte de arma de fogo de uso permitido ou restrito com o registro vencido: prisão em flagrante em razão da prática do crime previsto no art. 14 da Lei 10.826/03, se for arma de uso permitido e art. 16 da Lei 10.826/03, se for arma de uso restrito. A ocorrência deve ser direcionada à Delegacia de Polícia Civil.
b) Posse de arma de fogo de uso permitido com registro vencido: em razão da possibilidade de ratificação da prisão em flagrante pela prática do crime de posse ilegal de arma de fogo (art. 12 da Lei n. 10.826/03), pois os motivos da não renovação da validade do registro da arma devem ser apurados, e considerando que o policial na rua realiza uma análise de tipicidade formal, deve haver captura e condução do proprietário da arma à Delegacia para que o Delegado de Polícia proceda à análise fática e jurídica e decida ou não pela lavratura do Auto de Prisão em Flagrante.
É importante ressaltar que caso o Delegado conclua pela prática do crime de posse ilegal de arma de fogo de uso permitido, deve proceder ao distinguishing, de forma destacada em suas conclusões,entre o caso analisado e a jurisprudência pacificada pelo Superior Tribunal de Justiça, uma vez que criou-se a máxima de que “posse ilegal de arma de fogo com registro vencido não é crime”, sem, no entanto, analisar os motivos do vencimento do registro, o que tem gerado na prática inúmeras impunidades, seja em razão da ausência de investigação por acreditar que posse ilegal de arma de fogo de uso permitido com registro vencido sempre não será crime ou da ausência de observação pelo Ministério Público e pela Justiça das razões do vencimento do registro da arma de fogo.
A ocorrência deve ser direcionada à Delegacia de Polícia Civil.
Na hipótese em que o policial já tiver ciência que a arma encontra-se somente com irregularidades administrativas, a ocorrência deve ser direcionada à Polícia Federal.
A título exemplificativo, um Delegado de Polícia realiza pesquisa acerca de todos os moradores de uma mesma casa em que cumprirá mandado de busca e apreensão e verifica que um dos moradores possui posse de arma de fogo, cujo registro venceu recentemente e o Delegado atento, realiza levantamentos preliminares, e conclui que não houve dolo. Posteriormente, o Delegado cumpre mandado de busca e apreensão em desfavor do filho do proprietário da arma, ocasião em que localiza a arma com registro vencido. Deverá apreender a arma e entregá-la na Polícia Federal, pois se trata somente de infração administrativa.
c) Posse de arma de fogo de uso restrito com registro vencido: prisão em flagrante em razão da prática do crime previsto no art. 16 da Lei 10.826/03. A ocorrência deve ser direcionada à Delegacia de Polícia Civil.
Por fim, caso queira ter acesso à consulta formulada, clique aqui e para acessar a resposta da Polícia Federal à consulta formulada, clique aqui.
NOTAS
1 Atualmente, o prazo de validade do Certificado de Registro de Arma de Fogo é de 10 anos (art. 3º, § 10º e art. 4º, § 2º, ambos do Decreto n. 9.845/19).
2 Manter sob guarda, no interior de sua residência, arma de fogo de uso permitido com registro vencido não configura o crime do art. 12 da Lei 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento). O art. 12 do Estatuto do Desarmamento afirma que é objetivamente típico possuir ou manter sob guarda arma de fogo de uso permitido, em desacordo com determinação legal ou regulamentar, no interior de residência. Entretanto, relativamente ao elemento subjetivo, não há dolo do agente que procede ao registro e, depois de expirado prazo, é apanhado com a arma nessa circunstância. Trata-se de uma irregularidade administrativa; do contrário, todos aqueles que porventura tiverem deixado expirar prazo semelhante terão necessariamente de responder pelo crime, o que é absolutamente desproporcional. Avulta aqui o caráter subsidiário e de ultima ratio do direito penal. Na hipótese, além de se afastar da teleologia do objeto jurídico protegido, a saber, a administração e, reflexamente, a segurança e a paz pública (crime de perigo abstrato), banaliza-se a criminalização de uma conduta em que o agente já fez o mais importante, que é apor seu nome em um registro de armamento, possibilitando o controle de sua circulação. Precedente citado: HC 294.078-SP, Quinta Turma, DJe 4/9/2014. APn 686-AP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 21/10/2015, DJe 29/10/2015.
4 Fórum Permanente de Processualistas Civis – Enunciado n. 314 (arts. 926 e 927, I e V). As decisões judiciais devem respeitar os precedentes do Supremo Tribunal Federal, em matéria constitucional, e do Superior Tribunal de Justiça, em matéria infraconstitucional federal. (Grupo: Precedentes)
5 Art. 50, VII, da Lei n. 9.784/99 c/c art. art. 24, parágrafo único, do Decreto-Lei n. 4.657/42.
6 AgRg no HC 551.897/DF, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 04/02/2020, DJe 12/02/2020.
7 Art. 16 (…) I – suprimir ou alterar marca, numeração ou qualquer sinal de identificação de arma de fogo ou artefato; II – modificar as características de arma de fogo, de forma a torná-la equivalente a arma de fogo de uso proibido ou restrito ou para fins de dificultar ou de qualquer modo induzir a erro autoridade policial, perito ou juiz; IV – portar, possuir, adquirir, transportar ou fornecer arma de fogo com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado;
8 Pode ser, inclusive, que haja mandado de prisão para ser cumprido em desfavor do proprietário da arma de fogo e ele, ciente disso, não comparece para renovar o registro da arma de fogo.
9 Art. 8º Na hipótese de não cumprimento dos requisitos de que trata o art. 3º para a renovação do Certificado de Registro de Arma de Fogo, o proprietário entregará a arma de fogo à Polícia Federal, mediante indenização, na forma prevista no art. 48 do Decreto nº 9.847, de 2019, ou providenciará a sua transferência, no prazo de sessenta dias, para terceiro interessado na aquisição, observado o disposto no art. 5º. (Redação dada pelo Decreto nº 9.847, de 2019)
Parágrafo único. A inobservância ao disposto no caput implicará a apreensão da arma de fogo pela Polícia Federal ou por órgão público por esta credenciado.
10 Art. 8º Na hipótese de não cumprimento dos requisitos de que trata o art. 3º para a renovação do Certificado de Registro de Arma de Fogo, o proprietário entregará a arma de fogo à Polícia Federal, mediante indenização, na forma prevista no art. 48 do Decreto nº 9.847, de 2019, ou providenciará a sua transferência, no prazo de sessenta dias, para terceiro interessado na aquisição, observado o disposto no art. 5º. (Redação dada pelo Decreto nº 9.847, de 2019)
Parágrafo único. A inobservância ao disposto no caput implicará a apreensão da arma de fogo pela Polícia Federal ou por órgão público por esta credenciado.
11 Nesse sentido decidiu o Supremo Tribunal Federal. A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas “a posteriori”, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos praticados. RE 603616/RO, rel. Min. Gilmar Mendes, 4 e 5.11.2015. (RE-603616)
12 Art. 16 (…) I – suprimir ou alterar marca, numeração ou qualquer sinal de identificação de arma de fogo ou artefato; II – modificar as características de arma de fogo, de forma a torná-la equivalente a arma de fogo de uso proibido ou restrito ou para fins de dificultar ou de qualquer modo induzir a erro autoridade policial, perito ou juiz; IV – portar, possuir, adquirir, transportar ou fornecer arma de fogo com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado;
Sumário: 1. O direito fundamental à inviolabilidade domiciliar. 2. O conceito de casa. 2.1. O direito à inviolabilidade domiciliar da pessoa em situação de rua. 3. Hipóteses em que são autorizados o ingresso em domicílio alheio. 3.1 Livre consentimento; 3.1.1 Quando houver mais de um morador na casa, é suficiente que somente um autorize o ingresso da polícia? Na hipótese em que um dos moradores não autorizar o ingresso na casa, a polícia poderá entrar?. 3.2 Flagrante delito; 3.3 Desastre; 3.4 Para prestar socorro; 3.5 Por determinação judicial, durante o dia. Conceito de dia. É possível o cumprimento de mandado durante a noite? 3.6 Desapropriação; 3.7 Para a contenção de doenças (saúde pública); 3.8 Tolerância de ingresso do vizinho; 3.9 Ingresso do proprietário do imóvel locado; 4. O ingresso irregular em casa configura crime de abuso de autoridade?
1.O direito fundamental à inviolabilidade domiciliar
O direito fundamental à inviolabilidade domiciliar possui raízes inglesas, conforme se extrai de um discurso proferido por Lord Chatam no Parlamento Britânico: “O homem mais pobre desafia em sua casa todas as forças da Coroa, sua cabana pode ser muito frágil, seu teto pode tremer, o vento pode soprar entre as portas mal ajustadas, a tormenta pode nela penetrar, mas o Rei da Inglaterra não pode nela entrar”.
No Brasil, a inviolabilidade domiciliar possui previsão desde a Lei de 14 de outubro de 1822, que tratou do devido respeito à casa do cidadão e assegurou no art. 1º que “Depois do Sol posto, e antes de nascer, nenhuma Autoridade, ou Empregado Publico, poderá entrar em alguma casa sem consentimento de quem nella morar.”
Desde a Constituição do Império (1824) a inviolabilidade domiciliar é assegurada constitucionalmente.1
A inviolabilidade domiciliar visa assegurar um feixe de direitos, dentre os quais encontra-se a intimidade, a privacidade, a paz, o sossego, a liberdade de estar só ou com a sua família sem a interferência de qualquer outra pessoa e a liberdade de fazer o que bem entender, desde que não seja ilícito, pois a inviolabilidade domiciliar não pode ser utilizada como um escudo protetor para a prática de ilicitudes.
Deve-se destacar que todas as pessoas possuem o mesmo grau de proteção constitucional da inviolabilidade domiciliar, independentemente, da condição econômica. Trata-se de um direito assegurado aos ricos e aos pobres, ainda que estes morem em um barraco debaixo da ponte. Por serem os pobres mais vulneráveis, é necessário que haja uma maior proteção estatal, com o fim de assegurar a inviolabilidade domiciliar, na medida em que a igualdade de direitos fundamentais, em sua essência, só é assegurada quando os seus destinatários podem exercê-los em condições de igualdade e esta só é alcançada quando na vida real há igual proteção.
Portanto, para saber se o direito à inviolabilidade domiciliar é devidamente cumprido pelo Estado e por particulares, deve-se analisar no plano hipotético se as pessoas que adentraram à residência de uma pessoa simples, em uma favela (sem nenhuma conotação pejorativa), adentrariam também, diante das mesmas circunstâncias fáticas, na residência de uma pessoa abastada, em bairro nobre.
Caso a resposta seja negativa, é um indicativo de que pode ter ocorrido excessos ao ingressar no domicílio alheio.
O art. 5º, XI, da Constituição garante a inviolabilidade domiciliar e que ninguém nela pode penetrar, salvo nas hipóteses autorizadas constitucionalmente.
Em 1988, quando da promulgação da Constituição, o constituinte ao utilizar o verbo “penetrar” pretendeu vedar a entrada física arbitrária do Estado ou do particular em residências.
Ocorre que a Constituição Federal já possui mais de 30 anos e deve ser feita uma interpretação evolutiva, adaptada à nova realidade, sobretudo em observância às tecnologias atuais, inexistentes à época ou até mesmo inimagináveis, com o fim de se garantir a máxima efetividade dos direitos fundamentais e a proibição de proteção deficiente.
Nesse sentido, o verbo “penetrar”, atualmente, deve ser entendido como qualquer adentramento físico ou virtual ou por instrumento tecnológico que permita a captação de imagens e áudios na residência de terceiros. Portanto, a instalação de uma câmara que filme o interior de uma residência ou a extração de fotos e imagens do lado de fora para dentro da casa, sem autorização judicial ou do morador, é ilícita, pois penetra, adentra à residência, indevidamente, o que viola o art. 5º, XI, da Constituição Federal, além de violar, igualmente, o inciso X da Constituição Federal que assegura a inviolabilidade da intimidade e da vida privada.
A Constituição Federal especifica no art. 5º, XI, as hipóteses que autorizam o ingresso de terceiros em residência alheia, sem que se configure situação de ilegalidade.
Art. 5º (…) XI – a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial; (Vide Lei nº 13.105, de 2015)(Vigência)
Obviamente, o livre consentimento do morador também torna lícito o ingresso de terceiros em sua casa.
Além das hipóteses autorizadas pela Constituição, consistentes em flagrante delito, desastre, para prestar socorro ou por determinação judicial, se durante o dia, a lei especifica outras situações que autorizam o ingresso em domicílio.
O art. 7º do Decreto-Lei n. 3.365/41 prevê que “Declarada a utilidade pública, ficam as autoridades administrativas autorizadas a penetrar nos prédios compreendidos na declaração, podendo recorrer, em caso de oposição, ao auxílio de força policial.”
A Lei n. 13.301/16 dispõe sobre a adoção de medidas de vigilância em saúde quando verificada situação de iminente perigo à saúde pública pela presença do mosquito transmissor do vírus da dengue, do vírus chikungunya e do vírus da zika, sendo autorizado pelo art. 1º, § 1º, IV, § 1o, o “ingresso forçado em imóveis públicos e particulares, no caso de situação de abandono, ausência ou recusa de pessoa que possa permitir o acesso de agente público, regularmente designado e identificado, quando se mostre essencial para a contenção das doenças.”
O Código Civil, no art. 1.313, I e II, obrigada o proprietário ou ocupante de imóvel a tolerar que o vizinho entre no prédio, mediante prévio aviso, para “dele temporariamente usar, quando indispensável à reparação, construção, reconstrução ou limpeza de sua casa ou do muro divisório” ou para “apoderar-se de coisas suas, inclusive animais que aí se encontrem casualmente.”
A Lei 8.245/91 (Lei de Locações) prevê que o locatário (aquele que aluga o imóvel de terceiros) é obrigado a permitir a vistoria do imóvel pelo locador ou por seu mandatário, mediante combinação prévia de dia e hora, bem como admitir que seja o mesmo visitado e examinado por terceiros, no caso de venda (art. 23, IX).
2. O conceito de casa
O conceito de casa não é fechado e para fins de proteção constitucional (art. 5º, XI) deve ser interpretado de forma ampla.2
Com efeito, o art. 5º, XI, da Constituição Federal assegura que a casa, como regra, é asilo inviolável do indivíduo.
O art. 150, §§ 4º e 5º, do Código Penal (art. 226, §§ 4º e 5º, do CPM) é uma norma de conteúdo explicativo e define que a expressão “casa” compreende: a) qualquer compartimento habitado; b) aposento ocupado de habitação coletiva; c) compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade e que não se compreendem na expressão “casa”: a) hospedaria, estalagem ou qualquer outra habitação coletiva, enquanto aberta, salvo quando se tratar de aposento ocupado de habitação coletiva e b) taverna, casa de jogo e outras do mesmo gênero.
Para fins constitucionais, penais e processuais penais, o conceito de “casa” é mais amplo do que o de residência e aquele definido no Código Civil, ao conceituar domicílio (art. 70).
Art. 70. O domicílio da pessoa natural é o lugar onde ela estabelece a sua residência com ânimo definitivo.
O conceito de domicílio previsto no Código Civil é restrito ao local onde a pessoa fixa sua residência com a vontade de morar.
Alexandre de Moraes ensina que no “sentido constitucional, o termo domicílio tem amplitude maior do que no direito privado ou no senso comum, não sendo somente a residência, ou, ainda, a habitação com intenção definitiva de estabelecimento, mas inclusive, quarto de hotel habitado. Considera-se, pois, domicílio todo local, delimitado e separado, que alguém ocupa com exclusividade, a qualquer título, inclusive profissionalmente, pois nessa relação entre pessoa e espaço preserva-se, mediatamente, a vida privada do sujeito.”3
Nesse sentido, casa para fins constitucionais é todo local restrito, não aberto ao público, que uma pessoa utiliza com exclusividade, para morar ou trabalhar.
O Código Penal Comum e Militar apresentam, exemplificadamente, hipóteses do que é casa e do que não é.
Para a lei penal comum e militar, a expressão “casa” compreende: a) qualquer compartimento habitado; b) aposento ocupado de habitação coletiva; c) compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade.
a) qualquer compartimento habitado: abrange todo e qualquer local destinado à ocupação humana e que esteja em uso, ainda que aquele que utilize não esteja presente fisicamente, desde que temporariamente. Em caso de abandono o compartimento deixa de ser habitado e deixa de possuir a proteção constitucional de casa, como uma residência abandonada. Em que pese o termo “compartimento” transmitir a ideia de divisão, de uma parte do todo, deve ser interpretado em sentido amplo, de forma que abranja não só as partes de um todo, mas o todo também. Se as partes de um todo são invioláveis, logicamente, o todo também é inviolável. Se os cômodos de uma casa são invioláveis, a casa também é. O local deve ser utilizado para moradia, independentemente, dessa moradia ser temporária ou permanente. O compartimento habitado não precisa ser imóvel. A lei é clara ao dizer “qualquer compartimento habitado”, o que abrange móveis e imóveis. São exemplos de “qualquer compartimento habitado”: a casa; o pequeno barraco debaixo da ponte – que é uma casa -; barcos e vagões de trem utilizados como dormitórios; a boleia do caminhão; contêineres utilizados para a moradia; trailer; motorhome;locais que as pessoas dormem na rua, no chão ou sobre um colchão, e colocam seus pertences ao lado – este espaço goza de proteção constitucional e é considerado “qualquer compartimento habitado”, pois é o local em que essas pessoas moram.
Destaca-se que casa de praia4, imóvel de veraneio, sítios e fazendas que são ocupados eventualmente, seja em alguns dias no ano ou em alguns finais de semana, são considerados “casa”, uma vez que não estão abandonados, mas sim desocupados temporariamente. É suficiente para a caracterização de “casa”, o fato de ser eventualmente ocupado, ainda que em alguns dias do ano. Em que pese o art. 150, § 4º, I, do Código Penal mencionar “qualquer compartimento habitado”, a interpretação de “casa” é ampla, pois visa tutelar direito fundamental, razão pela qual o termo “habitado” não impede que se considere “casa” os imóveis temporariamente desocupados, mas que são habitados pelos donos ou não no decorrer do tempo.
De mais a mais, é possível realizar uma interpretação extensiva, que conceda maior proteção a um direito fundamental, e ainda que possua repercussões no crime de violação de domicílio, a par das divergências, não há impedimento para que a interpretação extensiva seja em prejuízo ao réu, uma vez que não inova, mas somente interpreta e busca a finalidade do conceito legal empregado (casa).
b) aposento ocupado de habitação coletiva: habitação coletiva refere-se a um local para a moradia, hospedagem ou permanência de várias pessoas, como os quartos de um hotel ou uma pensão; apart-hotel repúblicas; flats. O local deve estar ocupado para ser considerado “casa”, ainda que por uma pessoa que não esteja dentro do quarto, portanto, um quarto de hotel vazio não goza de proteção constitucional. Destaca-se que somente os locais destinados a ocupação exclusiva de pessoas pode ser considerado “casa”, razão pela qual os locais de uso comum, como os corredores dos hotéis, a sala de espera e a recepção, não são considerados “casa”.
c) compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade: trata-se de hipótese que contempla o espaço de trabalho, com vista a assegurar a necessária tranquilidade para o desempenho das funções. Nos locais de trabalho, seja público ou privado, pois a lei não distingue, o espaço fechado ao público é considerado “casa” e possui proteção constitucional. Dessa forma, considera-se “casa” a parte interna de um barzinho ou restaurante (dentro do balcão); o consultório médico na área que o médico atende (a sala de espera é aberto ao público); o escritório de advocacia; o gabinete de um juiz, promotor, delegado ou comandante; a parte interna dos cartórios judiciais e extrajudiciais; cozinhas de bares, restaurantes e hotéis, quando não houver o direito de visitar, o que decorre de previsão em lei; as lavanderias e quaisquer espaços fechados ao público em que as pessoas exerçam profissão ou atividade; o local onde as garotas de programa atendem seus clientes em uma casa da prostituição.
Não se deve discutir se a profissão ou atividade é moral ou imoral. Para a lei, isso pouco importa, pois o que se tutela é a profissão ou atividade. Além do mais, não cabe ao Estado realizar juízos morais da vida privada de qualquer pessoa e querer impor um determinado padrão de conduta. Não sendo prática ilícita, deve merecer tutela do Estado e não repressão.
O Código Brasileiro de Ocupações, regulamentado pela Portaria do Ministério do Trabalho n. 397, de 2002, reconhece a atividade dos profissionais do sexo como uma categoria profissional (código 5198).
O STJ já reconheceu a licitude da prostituição, quando a pessoa for maior de idade e não vulnerável (HC 211888-TO).
Dessa forma, o local onde as garotas de programa atendem seus clientes em um prostíbulo é considerado “casa”, esteja ou não efetivamente em atendimento a seus clientes, e a polícia não pode adentrar nos quartos de uma “zona” (termo este utilizado para que fique muito claro) sem mandado de busca e apreensão, salvo nas hipóteses autorizadas constitucionalmente, como a presença de flagrante delito.
No entanto, a polícia poderá adentrar à área aberta do prostíbulo, realizar buscas e operações policiais, pois se trata de compartimento aberto ao público e não goza da proteção de casa, conforme art. 150, § 4º, III, do CP.
É importante mencionar que o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que o gabinete do Delegado de Polícia, em que pese pertencer a uma repartição pública, possui proteção penal na forma do art. 150, § 4º, III, do Código Penal.
Configura o crime de violação de domicílio (art. 150 do CP) o ingresso e a permanência, sem autorização, em gabinete de Delegado de Polícia, embora faça parte de um prédio ou de uma repartição públicos.
No caso concreto, dezenas de manifestantes foram até a Delegacia de Polícia Federal cobrar agilidade na conclusão de um inquérito policial. Como não foram recebidos, decidiram invadir o gabinete do Delegado.
STJ. 5ª Turma. HC 298763-SC, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 7/10/2014 (Info 549)5.
Questão controversa refere-se ao tratamento dado aos imóveis rurais.
O Estatuto da Terra define imóvel rural, para os fins previstos no estatuto, como o prédio rústico, de área contínua qualquer que seja a sua localização que se destina à exploração extrativa agrícola, pecuária ou agro-industrial, quer através de planos públicos de valorização, quer através de iniciativa privada (art. 4º, I, da Lei n.4.504/64).
A primeira corrente sustenta que o imóvel rural não goza da proteção constitucional da inviolabilidade domiciliar, por mais amplo que seja o conceito de casa, uma vez que a finalidade do crime de violação de domicílio e da tutela do direito fundamental à inviolabilidade domiciliar é assegurar a paz, o sossego, a privacidade, a intimidade e até mesmo a tranquilidade para trabalhar. O imóvel rural possui dimensão incompatível com os fins da proteção à inviolabilidade domiciliar, pois o bem jurídico tutelado não é violado em caso de invasão. Isto é, não há violação à paz, ao sossego, à privacidade, à intimidade e ao direito de trabalhar em paz.
Nesse sentido são as lições de Júlio Fabrini Mirabete.
(…) no caso em que há invasão de imóvel rural, não configura o delito para os efeitos do art. 150 do CP, a propriedade rural não pode ser considerada como dependência domiciliar, posto que o bem jurídico tutelado pelo crime de invasão de domicílio é a liberdade individual, a privacidade do lar, atributos inexistentes na amplitude da zona rural (…) (Citado por GRANJA, Cícero Alexandre. Domicílio e suas interpretações doutrinárias e seus mecanismos de proteção. Disponível em: <Domicílio e suas interpretações doutrinárias e seus mecanismos de proteção>.)
Para esta corrente, que parece prevalecer, a proteção do imóvel rural limita-se à casa propriamente dita.
A segunda corrente, a qual defendemos, sustenta que configura crime de violação de domicílio adentrar em imóvel rural fora das hipóteses autorizadas constitucionalmente, pois, independentemente, de não violar a privacidade ou intimidade, não deixa de violar o direito à paz, ao sossego e à tranquilidade que são perturbados quando o morador tem ciência de que terceiros estão a invadir seu imóvel rural e que poderão estar, a qualquer momento, dentro ou próximo da casa propriamente dita. Além do mais, caso o imóvel rural seja utilizado para plantação ou pasto para gado, tem-se a presença de um local não aberto ao público em que são realizadas atividades, o que também possui proteção penal.
O art. 5º, § 5º, do Estatuto do Desarmamento – Lei n. 10.826/03 – assegura aos residentes em área rural, o direito a andar com a arma em toda a extensão do imóvel rural, por ser considerada residência ou domicílio (posse de arma de fogo), o que reforça que a proteção constitucional da inviolabilidade domiciliar abrange todo o imóvel rural.
Art. 5o O certificado de Registro de Arma de Fogo, com validade em todo o território nacional, autoriza o seu proprietário a manter a arma de fogo exclusivamente no interior de sua residência ou domicílio, ou dependência desses, ou, ainda, no seu local de trabalho, desde que seja ele o titular ou o responsável legal pelo estabelecimento ou empresa.(Redação dada pela Lei nº 10.884, de 2004)
§ 5º Aos residentes em área rural, para os fins do disposto no caput deste artigo, considera-se residência ou domicílio toda a extensão do respectivo imóvel rural.(Incluído pela Lei nº 13.870, de 2019)
Dessa forma, toda a extensão do imóvel rural deve ser considerada casa para fins de proteção da inviolabilidade domiciliar, desde que o imóvel rural esteja cercado e não aberto ao público.
O Supremo Tribunal Federal já se manifestou que o imóvel rural possui a proteção constitucional da inviolabilidade domiciliar, ao decidir que não era necessária autorização judicial para ingressar em imóvel rural quando houvesse situação caracterizadora de flagrante de crime permanente, no caso, redução à condição análoga à de escravo, ocasião em que se referiu ao imóvel rural como “domicílio alheio” (HC n. 106.178).
Não são consideradas casas para a lei penal.
a) hospedaria, estalagem ou qualquer outra habitação coletiva, enquanto aberta, salvo quando se tratar de aposento ocupado de habitação coletiva: esses locais quando estiverem abertos ao público permitem o ingresso e saída de pessoas, sem que haja maiores preocupações com a privacidade, intimidade, tranquilidade e sossego protegidos pela inviolabilidade domiciliar. Caso estejam fechados ou ocupados devem ser considerados “casa” e gozam de proteção constitucional.
Hospedaria é o local destinado a receber pessoas para ficarem por um tempo, geralmente, mediante contraprestação econômica, como um hotel, motel, flat, hostel.
Estalagem também é um local destinado a receber pessoas para ficarem por um tempo, geralmente, mediante contraprestação financeira, todavia possui instalações mais simples e menores que a de hospedarias, como as pensões, abrigos e pousadas.
Por “qualquer outra habitação coletiva” deve-se entender qualquer outro local destinado a receber pessoas, como as áreas de campings.
b) taverna, casa de jogo e outras do mesmo gênero: naturalmente, esses locais são abertos ao público, razão pela qual não gozam de proteção penal quanto à inviolabilidade domiciliar.
Taverna é o local de livre acesso ao público em que são vendidas bebidas e alimentos. São os bares e restaurantes.
Casa de jogo é o local de livre acesso ao público que possui fliperama, lotérica, jogos de tabuleiros ou qualquer outro legalmente permitido. No Brasil são proibidos jogos de azar, como o cassino e o bingo.
Por “outras do mesmo gênero” deve-se compreender todo local de acesso ao público utilizado para diversão, como as boates, teatros, cinemas, estádio de futebol, dentre outros.
Em se tratando do escritório de advocacia, o art. 7º, II, da Lei n. 8.906/1994 assegura a inviolabilidade do escritório ou do local de trabalho.
Art. 7º São direitos do advogado:
II – a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia; (Redação dada pela Lei nº 11.767, de 2008)
Ocorre que os § 6º do art. 7º permite a busca no escritório de advocacia ou local de trabalho quando presentes indícios de autoria e materialidade da prática de crime por parte de advogado
§ 6o Presentes indícios de autoria e materialidade da prática de crime por parte de advogado, a autoridade judiciária competente poderá decretar a quebra da inviolabilidade de que trata o inciso II do caputdeste artigo, em decisão motivada, expedindo mandado de busca e apreensão, específico e pormenorizado, a ser cumprido na presença de representante da OAB, sendo, em qualquer hipótese, vedada a utilização dos documentos, das mídias e dos objetos pertencentes a clientes do advogado averiguado, bem como dos demais instrumentos de trabalho que contenham informações sobre clientes. (Incluído pela Lei nº 11.767, de 2008)
Em caso concreto, o Supremo Tribunal Federal validou o ingresso a autoridade policial em escritório de advocacia para a instalação de equipamento de captação de sinais óticos e acústicos, na medida em que o sigilo do advogado não existe para protegê-lo na prática de crimes, não sendo admissível que a inviolabilidade transforme o escritório em um local seguro para praticar crimes.6
É importante esclarecer que em nenhuma hipótese é possível a quebra da inviolabilidade do escritório de advocacia para investigar a prática de crime de seu cliente, desde que o advogado atue somente na condição de advogado e não esteja envolvido na prática do crime. O advogado não se confunde com o seu cliente, independentemente, do crime que este tenha praticado, da mesma forma que o médico não se confunde com o paciente que tenha praticado um crime gravíssimo.
Nesse sentido dispõe o art. 7º, § 7º, da Lei n. 8.906/1994
§ 7oA ressalva constante do § 6o deste artigo não se estende a clientes do advogado averiguado que estejam sendo formalmente investigados como seus partícipes ou co-autores pela prática do mesmo crime que deu causa à quebra da inviolabilidade. (Incluído pela Lei nº 11.767, de 2008)
Na hipótese em que a inviolabilidade do escritório de advocacia for quebrado, ocorre a prática do crime previsto no art. 7º-B da Lei n. 8.906/1994, em razão da redação dada pela Lei n. 13.869/2019, e não do art. 150 do Código Penal ou art. 22 da Lei de Abuso de Autoridade, em razão do princípio da especialidade.
Art. 7º-B Constitui crime violar direito ou prerrogativa de advogado previstos nos incisos II, III, IV e V do caput do art. 7º desta Lei: (Incluído pela Lei nº 13.869. de 2019)
Apontada as exceções à inviolabilidade domiciliar e o que configura casa ou não para fins de proteção constitucional e penal, deve ser feita uma análise de cada umas das exceções previstas na Constituição e nas leis.
2.1 O direito à inviolabilidade domiciliar da pessoa em situação de rua
O Decreto n. 7.053, de 23 de dezembro de 2009, instituiu a Política Nacional para a População em Situação de Rua e define no art. 1º, parágrafo único, que considera população em situação de rua, para fins do Decreto, “o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória.”
Em que pese o referido decreto mencionar “para fins do Decreto” e passar a impressão de que este conceito deve ser aplicado somente para as hipóteses tratadas no Decreto que versem sobre a Política Nacional para a População em Situação de Rua, serve também para ser utilizado como parâmetro para o conceito de “casa” para as pessoas que vivem na rua, uma vez que o conceito de população em situação de rua é o mesmo sob todas as óticas e o próprio Decreto n. 7.053/09 visa promover os direitos humanos e a dignidade das pessoas que moram nas ruas, inclusive em relação à moradia (art. 7º, I).
Nota-se que, independentemente, de ocuparem um espaço público, o local que utilizam para moradia, temporária ou permanente, deve ser considerado “espaço de moradia”.
O art. 73 do Código Civil dispõe que “Ter-se-á por domicílio da pessoa natural, que não tenha residência habitual, o lugar onde for encontrada” e o o art. 7º, § 8º, da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro prescreve que “Quando a pessoa não tiver domicílio, considerar-se-á domiciliada no lugar de sua residência ou naquele em que se encontre.”
Trata-se do domicílio ocasional ou aparente.
O termo “domicílio” apresenta distinções conceituais de residência e moradia, também denominado habitação.
Domicílio é a sede jurídica da pessoa, onde ela se presume presente para feitos de direito e onde pratica habitualmente seus atos e negócios jurídicos.
A residência é, portanto, apenas um elemento componente do conceito de domicílio, que é mais amplo e com ela não se confunde. Residência, como foi dito, é simples estado de fato, sendo o domicílio uma situação jurídica. Residência, que indica a radicação do indivíduo em determinado lugar, também não se confunde com morada ou habitação, local que a pessoa ocupa esporadicamente, como a casa de praia ou de campo, ou o hotel em que passa uma temporada, ou mesmo o local para onde se mudou provisoriamente até concluir a reforma de sua casa. É a mera relação de fato, de menor expressão que residência.
Uma pessoa pode ter um só domicílio e mais de uma residência. (…)
Admite-se, também, que uma pessoa possa ter domicílio sem possuir residência determinada, ou em que esta seja de difícil identificação. Preleciona Orlando Gomes que, nesses casos, para resguardar o interesse de terceiros, vem-se adotando a teoria do domicílio aparente, segundo a qual, no dizer de Henri de Page, ‘aquele que cria as aparências de um domicílio em um lugar pode ser considerado pelo terceiro como tendo aí seu verdadeiro domicílio.’” (destaquei)
As leis utilizam a expressão domicílio sem rigor técnico, tanto é que emprega este termo na Constituição para se referir ao domicílio eleitoral (art. 14, § 3º, IV); no processo penal para fixar competência jurisdicional (art. 69, II, do CPP) e para tratar da busca domiciliar (art. 240 do CPP); no processo civil para tratar da fixação de competência (arts. 22, 46, 47, 48 e outros do CPC); no direito tributário para tratar do domicílio tributário (art. 127 do CTN), dentre outros.
Independentemente, do conceito ou termo que se utilize, a denominação “casa” contida no art. 5º, XI, da Constituição Federal é a expressão que contém a maior amplitude conceitual e independe da casa ser móvel ou imóvel, desde que seja um espaço utilizado para o momento de descanso, paz, sossego, privacidade, intimidade ou até mesmo para o trabalho, desde que não seja aberto ao público.
A expressão “casa” contida na Constituição abrange o conceito de domicílio, residência e de moradia (habitação), é um conceito abrangente.8
Diante desse cenário, pode-se dizer que as pessoas que moram nas ruas possuem direito à inviolabilidade domiciliar?
As pessoas que moram na rua e escolhem um canto para dormirem, ocasião em que deitam e dormem no chão ou sobre um simples colchão e colocam seus pertences ao lado, também gozam de proteção constitucional da inviolabilidade domiciliar, pois se encaixa no conceito de “qualquer compartimento habitado” (art. 150, § 4º, I, do CP). Portanto, este pequeno e simples espaço ocupado por um morador de rua, ainda que seja desprovido de divisão visual e de estrutura material, é considerado “casa” para fins da proteção constitucional da inviolabilidade domiciliar (art. 5º, XI), ainda que cada dia durma em um local diferente. Dessa forma, a polícia não pode abordar essas pessoas quando estiverem em suas casas sem que haja um mandado de busca e apreensão, salvo se visualizar a prática de crime, ocasião em que o agente estará em flagrante delito (art. 302 do CPP) ou em outra hipótese autorizada constitucionalmente. Caso haja suspeita de que essa pessoa guarde drogas ou armas consigo, mas não seja possível uma atuação em flagrante delito, em razão da ausência de elementos concretos para a atuação policial, poderá ser solicitado mandado de busca e apreensão ao juiz que poderá expedi-lo e constar como destinatário do mandado o morador que troca de casa diariamente, de forma que seja abordado onde for encontrado pela polícia.
Independentemente, de ocuparem um espaço público, o local que utilizam para moradia, temporária ou permanente, deve ser considerado casa para fins constitucionais.
Deryck Miranda Belizário no texto “Os Direitos Fundamentais das Pessoas em Situação de Rua: O Ministério Público como Instituição Garantidora Desses Direitos”9 escreve que “Apesar de ser um grupo heterogêneo (pessoas em situação de rua), possui em comum, caracterizando a situação precária de rua: a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional – seu teto são o sol e a lua, suas paredes são os papelões ou os viadutos e as pontes.”
Para o morador de rua não existe a moradia convencional e como muito bem afirmado pelo autor, “seu teto são o sol e a lua, suas paredes são os papelões ou os viadutos e as pontes.”
Para saber se o morador de rua se utiliza de um espaço público como “casa” deve-se observar o seu comportamento, o tempo que permanece no local, se utiliza para dormir, para o descanso, para se alimentar, para guardar seus objetos pessoais.
O direito à moradia é um direito social assegurado no art. 6º da Constituição Federal. Obviamente, o constituinte visou garantir uma moradia digna, e na ausência de uma moradia convencional, deve-se assegurar, ainda que minimamente, que o espaço que os moradores de rua fazem de “moradia” possua proteção constitucional.
Sequer o mínimo existencial e a dignidade da pessoa humana são assegurados aos moradores de rua – lamentavelmente, estão abaixo de qualquer noção de dignidade – que são vistos como coisas, quando não são tidos como seres invisíveis aos olhos da sociedade. Trata-se de um processo de coisificação ou invisibilidade do ser humano.
A polícia enquanto órgão protetor da sociedade e das pessoas e o policial enquanto promotor de direitos humanos, deve zelar, sobretudo, pelos direitos fundamentais das classes menos favorecidas, que são as que mais necessitam de proteção estatal.
Certo é que a Constituição ao garantir a inviolabilidade domiciliar visou tutelar a privacidade e da intimidade, mas não foi só, pois visou proteger também a paz e o sossego.
Os moradores de rua não terão privacidade e intimidade ao estarem expostos publicamente em um colchão em local público, mas possuem o direito de gozarem de paz e de sossego, que são direitos assegurados na Constituição ao garantir a inviolabilidade domiciliar. Assegura-se ainda que precariamente, uma parte das finalidades do direito fundamental à inviolabilidade domiciliar.
Entender que os moradores de rua não possuem direito ao sossego e paz quando estiverem em seus “cantos”, que servem como “casa”, por morarem na rua, seria uma verdadeira negação de um direito fundamental para pessoas que já possuem uma vida extremamente sofrida e que necessitam de uma maior proteção estatal.
Em qualquer caso, não se deve permitir que os moradores de rua impeçam ou dificultem a livre circulação de pessoas ou veículos, em razão do interesse público e da necessidade de se assegurar o direito à locomoção sem que haja importunações.
Deve haver razoabilidade na ocupação de locais públicos por moradores de rua, de forma que não impeça o livre exercício de direito por terceiros, inclusive, o direito ao lazer, o que ocorreria na hipótese em que um morador de rua utilizasse um espaço de brinquedo infantil de uma praça para dormir.
A proteção da “casa” utilizada pelos moradores de rua deve ocorrer enquanto estiverem em seus “cantos”, geralmente, composto por um simples colchão ou colchonete, objetos de uso pessoal e algumas peças de roupa.
A partir do momento em que o morador de rua sai de seu “canto” e anda pelas ruas, perde o direito à proteção domiciliar, pois deixa de estar em “casa”, razão pela qual poderá ser abordado livremente pela polícia, caso apresente situação de fundada suspeita.
Argumentos no sentido de que os moradores de rua ocupam espaço público ou que praticam violência contra transeuntes e entre si, o que impossibilita a garantia da inviolabilidade domiciliar não se sustentam, pois, mutatio mutatis seria o mesmo que argumentar que as casas em favelas (termo utilizado sem nenhuma conotação pejorativa) com alto índice de criminalidade não merecem proteção, pois foram criadas em espaços públicos e são locais violentos.
O fato de ocupar espaços nas ruas, debaixo de viaduto e de pontes10, quando não trouxer prejuízo para nenhuma outra pessoa ou para o exercício de direito, deve ser tolerado pelo Poder Público, por uma questão social e humana, no sentido de se considerar “casa” para fins do art. 5º, XI, da Constituição Federal (função social da casa). Além do mais, o Decreto n. 7.053, de 23 de dezembro de 2009, reconhece a utilização desses espaços públicos como moradia da população em situação de rua.
A violência protagonizada por moradores de rua entre si e contra os transeuntes deve sim ser motivo de ação da polícia, contudo dentro dos limites da lei, de forma que somente aqueles moradores de rua que apresentarem suspeita da prática de crime, como portar droga, arma ou objeto produto de crime, sofram abordagens.
Eventuais abordagens realizadas aos moradores de rua como rotina policial, sem que haja qualquer fundamento, como uma estratégia de prevenção à prática de crimes, é inconstitucional e seria uma forma de presumir que a extrema pobreza implica estar mais propenso para a prática de crime.
Infelizmente, muitos moradores de rua são usuários de drogas ou alcoólatras, o que propicia a prática de crimes, razão pela qual a atuação da polícia preventivamente é essencial, sem, contudo, adentrar às humildes casas – se é que assim podem ser chamadas – dos moradores de rua, podendo realizar abordagens enquanto transitam pelas ruas ou dentro de suas casas quando for visualizado qualquer prática de crime.
O Brasil registra um alto índice de violência contra moradores de rua, que superou 17 mil casos de violência em três anos (2015-2017)11, o que reforça a necessidade do Estado garantir uma maior proteção da segurança dos moradores de rua.
O espaço que o morador de rua utiliza para dormir e guardar seus pertences, em que pese ser considerado “casa” para fins de proteção constitucional, não deve ser utilizado como um espaço seguro para guardar objetos produtos do crime. Direitos fundamentais não servem para a salvaguarda de práticas ilícitas12, mas sim para assegurar a proteção de direitos essenciais ao homem, que permitam usufruir de uma vida digna.
Deve-se salientar que a amplitude do conceito de “casa” visa resguardar a proteção constitucional da inviolabilidade (art. 5º, IX, da CF), o que não permite que o morador de rua se utilize de sua “casa” para com ela permanecer em local público, sendo vedado, inclusive, o uso de ações possessórias contra o poder público13, a eventual retenção ou indenização por acessões e benfeitorias14 e a usucapião de bem público (art. 183, § 3º, da CF). É possível que o Poder Público, inclusive, se utilize da autotutela e autoexecutoriedade e aplicação do art. 1.210, § 1º, do Código Civil (legítima defesa da posse ou desforço imediato)15 para retirar pessoas que queiram tornar o espaço público em local de uso privado16, caso se observe que um morador de rua, por exemplo, está a construir em um espaço público.
Destaco que o tema é altamente polêmico, controverso e o posicionamento sustentado neste texto encontrará resistências, sob a alegação principal de que o espaço utilizado é público.17
Na hipótese em que policiais adentrarem à “casa” de um morador de rua para realizar buscas, não haverá a prática do crime de abuso de autoridade previsto no art. 22 da Nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei n. 13.869/19),pois este crime ocorre somente em imóveis, uma vez que o tipo penal do art. 22 da Lei n. 13.869/19 diz expressamente que a invasão deve ser em “imóvel alheio ou suas dependências”.
Lado outro, o crime de violação de domicílio não exige que a invasão ocorra em imóvel, sendo este uma espécie de casa (gênero), que abrange imóveis e móveis.
Crime de abuso de autoridade deinvasão de domicílio
Crime de violação de domicílio
Art. 22. Invadir ou adentrar, clandestina ou astuciosamente, ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel alheio ou suas dependências, ou nele permanecer nas mesmas condições, sem determinação judicial ou fora das condições estabelecidas em lei: Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
Art. 150 – Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências: Pena – detenção, de um a três meses, ou multa. § 4º – A expressão “casa” compreende: I – qualquer compartimento habitado; II – aposento ocupado de habitação coletiva; III – compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade.
A Nova Lei de Abuso de Autoridade revogou o § 2º do art. 150 do Código Penal que era uma causa de aumento da pena, caso a invasão de domicílio fosse praticada por funcionário público fora dos casos legais, ou com inobservância das formalidades estabelecidas em lei, ou com abuso do poder, em razão da previsão específica do crime de abuso de autoridade para invasão de imóvel, mas se esqueceu de que a violação de domicílio pode ocorrer em móveis ou imóveis, sendo que agora a pena será maior somente quando a invasão ocorrer em imóveis, uma vez que o crime de abuso de autoridade previsto no art. 22 da Lei n. 13.869/19 possui pena mais grave e abrange somente os imóveis.
Dessa forma, o ingresso irregular nas “casas” de moradores de rua poderia configurar o crime de violação de domicílio, porém, dada a controvérsia do tema, deve-se aplicar a regra das descriminantes putativas.
Descriminantes são as causas de exclusão da ilicitude (estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal e exercício regular de um direito).
Putativa refere-se ao que parece, mas não é. É aquilo que é imaginário, que o agente acredita, seriamente, que ocorre uma situação, mas na verdade não ocorre.
As descriminantes putativas caracterizam as situações em que o agente atua acreditando estar acobertado por uma causa excludente de ilicitude, mas na verdade não está.
O equívoco da presença de uma causa excludente de ilicitude pode recair sobre a sua existência, os seus limites ou os seus pressupostos fáticos.
Na hipótese a descriminante putativa recai sobre a existência de uma causa excludente de ilicitude, pois o policial supõe equivocadamente, que existe uma causa que exclui a ilicitude (estrito cumprimento do dever legal putativo ao realizar uma abordagem dentro da “casa” do morador de rua, o que é permitido por se tratar de “casa”, mas o policial desconhece que é “casa” ou acolhe entendimento de que não é “casa”), o que exclui o dolo, seja o equívoco evitável ou não, e por inexistir crime de violação de domicílio culposo, o policial não será punido.18
Destaco que nas hipóteses de divergência jurisprudencial ou doutrinária que adotem entendimentos razoáveis e defensáveis, o acolhimento de um dos entendimentos pelo policial não deve levar à responsabilização criminal, seja pelo fato de possuir autonomia para aplicar o direito dentro das possibilidades jurídicas e legais existentes, seja por incidir em uma descriminante putativa, caso outra autoridade entenda, posteriormente, que o entendimento que deveria ser aplicado é diverso, como a hipótese em que o juiz julgar de forma diferente ao entendimento aplicado pelo policial, pois trata-se somente de uma divergência de entendimento, quando defensável, e não prática de arbitrariedades. De mais a mais, a Lei de Abuso de Autoridade prescreve que “a divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade” (art. 1º, § 1º), previsão esta que deve ser aplicada como cláusula geral para todas as situações de atuação policial, desde que não seja feita uma interpretação absurda, como admitir a possibilidade de prender em flagrante uma pessoa encontrada dias após a prática do crime.
3. Hipóteses em que são autorizados o ingresso em domicílio alheio
3.1Livre consentimento
O livre consentimento para o ingresso em “casa” ocorre quando o morador, ciente de que pode vedar o ingresso da polícia, o autoriza livre de qualquer intimidação, pressão, coação ou medo, de forma que a vontade do morador não esteja viciada, em razão de qualquer fator.
Não existe um conceito fechado do que seja intimidação, pressão, coação ou medo, o que deve ser analisado caso a caso.
O Código Civil, ao tratar dos defeitos do negócio jurídico, inclui a coação como um vício de vontade dispõe, o que anula o negócio jurídico.
Art. 151. A coação, para viciar a declaração da vontade, há de ser tal que incuta ao paciente fundado temor de dano iminente e considerável à sua pessoa, à sua família, ou aos seus bens.
Certo é que este conceito aplica-se aos negócios jurídicos, o que não impede de servir como parâmetro ao se analisar eventual coação quando o morador autoriza o ingresso da polícia.
A coação consiste em qualquer forma de pressão exercida sobre o morador. A pressão pode ser ostensiva ou velada.
Para os negócios jurídicos, o simples temor reverencial não é considerado coação (art. 153 do CC). Temor reverencial é o receio que uma pessoa possui em desagradar outra que possui respeito, consideração, admiração ou obediência, como a relação do filho com o pai, entre grandes amigos, do Coronel com o Soldado, do Delegado com o Agente. Contudo, tal raciocínio não deve ser aplicado na manifestação de autorização para ingresso em domicílio, pois o temor reverencial que, eventualmente, um morador tenha em relação ao policial pode decorrer de eventual “obediência” que acredita ter, no sentido de ter que autorizar a entrada quando solicitado pelo policial.
A Polícia Militar, enquanto órgão do Estado, possui o dever de assegurar a proteção de direitos fundamentais, e antes de ingressar na casa deve informar ao morador o seu direito de não autorizar o acesso19. Caso o morador autorize após essa advertência ou fique demonstrado que poderia não ter autorizado o acesso da polícia, não haverá ilegalidade no ingresso da polícia na casa sem mandado, independentemente, da hora do dia ou da noite.
Em qualquer caso, quando houver livre autorização do morador, sem qualquer intimidação, pressão, coação ou medo, não será necessária autorização judicial e o ingresso poderá ocorrer durante o dia ou à noite.
O consentimento do morador que autoriza o ingresso da polícia deve, comprovadamente, ser livre. A assinatura de um termo de autorização de ingresso ou a gravação da autorização concedida pelo morador, poderá não ser suficiente para validar o ingresso, restando configurada a nulidade de eventuais provas localizadas na residência pela polícia, quando ficar comprovado que houve qualquer intimidação, pressão, coação ou medo.
A verificação da espontaneidade da autorização do morador em ingressar em sua casa perpassa pelo tom de voz que o policial pede para entrar, bem como os armamentos que o policial possui e a forma que os carrega no momento da realização deste pedido, a cortesia e educação com que trata o morador, se o policial e o morador já são conhecidos e se no passado já houve algum fato que incutiu no morador medo do policial ou da própria instituição policial, dentre outros.
Dentro das circunstâncias apresentadas, deve-se levar em consideração também o nível de instrução e, muitas vezes, a simplicidade das pessoas que autorizam a entrada da polícia.
O mais seguro para o policial é que o registro da autorização seja feito por intermédio de gravação de áudio e vídeo, por haver uma maior possibilidade de averiguar a forma exata como ocorreu a autorização, já que não é incomum que quando a polícia localiza droga, arma ou qualquer outro objeto ilícito, durante o processo, o réu alega que autorizou o ingresso da polícia em sua residência por medo ou que foi obrigado a assinar a autorização, e o que comprova isso é o fato de terem sido localizados objetos ilícitos na sua casa, e por tal razão, não autorizaria o ingresso da polícia, o que poderá ser verificado em eventual gravação.
Exemplo 1: policiais fortemente armados, encaram o morador e solicitam autorização para o ingresso na residência, o qual é prontamente permitido e os policiais gravaram essa autorização. Neste caso, o morador, certamente, autorizou por se sentir intimidado em razão de vários policiais armados o encararem e pedirem autorização para entrarem na casa.
Exemplo 2: um policial solicita autorização a um morador para entrar na casa, sem apresentar armas ostensivamente, somente com a arma na cintura, e após explicar que é direito do morador não autorizar o ingresso, este autoriza e tudo é registrado mediante áudio e vídeo. Neste caso, o morador, certamente, autorizou sem se sentir intimidado, razão pela qual eventuais objetos ilícitos apreendidos na casa serão considerados provas lícitas.
3.1.1 Quando houver mais de um morador na casa, é suficiente que somente um autorize o ingresso da polícia? Na hipótese em que um dos moradores não autorizar o ingresso na casa, a polícia poderá entrar?
O crime de abuso de autoridade de invasão de domicílio diz que este crime ocorre quando for praticado à revelia da vontade do ocupante, enquanto que o crime de violação de domicílio dispõe que este resta configurado quando for praticado contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito.
Crime de abuso de autoridade deinvasão de domicílio
Crime de violação de domicílio
Art. 22. Invadir ou adentrar, clandestina ou astuciosamente, ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel alheio ou suas dependências, ou nele permanecer nas mesmas condições, sem determinação judicial ou fora das condições estabelecidas em lei: Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
Art. 150 – Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências: Pena – detenção, de um a três meses, ou multa. § 4º – A expressão “casa” compreende: I – qualquer compartimento habitado; II – aposento ocupado de habitação coletiva; III – compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade.
Os tipos penais visam conceder proteção penal ao direito fundamental previsto no art. 5º, XI, da Constituição Federal. Trata-se de um mandamento de criminalização implícito, pois a Constituição, ao considerar a inviolabilidade domiciliar um direito fundamental e expressar as exceções, quis proteger com mais intensidade este direito fundamental, razão pela qual é digno de proteção penal, que é o ramo do direito que atinge de forma mais gravosa o ser humano, por possuir pena privativa de liberdade.
O titular do direito fundamental à inviolabilidade domiciliar é tratado nos tipos penais como “ocupante” do imóvel ou “quem de direito”.
O “ocupante do imóvel” ou “quem de direito” refere-se à pessoa que possui poder de autorizar ou retirar alguém de casa, seja o dono ou não. Nesse contexto, surgem dois regimes que devem ser analisados, o regime de subordinação e o de igualdade.
No regime de subordinação não são todos que moram na casa que podem autorizar a entrada e permanência de terceiros, mas somente aqueles que são responsáveis pela casa, como o pai e a mãe (arts. 5º, I e 226, § 5º, da CF) em relação aos filhos e o responsável pelo pensionato, escola, dentre outros. Caso haja conflito de vontades a respeito da autorização para que uma pessoa entre na casa, o que só pode ocorrer entre os responsáveis pela casa, prevalece a impossibilidade de ingresso, pois um dos moradores teria o seu direito fundamental violado. Portanto, no choque de interesses, preserva-se a vontade daquele que não autoriza a entrada ou caso já tenha entrado, a vontade daquele que não quer a permanência de terceiro na casa. Na hipótese em que a divergência de autorização para entrar na casa envolver quem na relação hierárquica esteja em grau inferior, como a relação pai-filho, prevalece a vontade do pai, desde que esteja em sua própria casa e não na casa de seu filho. Isso não quer dizer que os filhos não possam convidar pessoas para a sua casa, mas caso os pais vedem ou mandem sair, a vontade do pai deverá ser atendida, sob pena de violação de domicílio.
No regime de igualdade todos os moradores da casa possuem igual poder para aceitar ou expulsar alguém da casa, o que ocorre numa relação familiar composta por marido e esposa (arts. 5º, I e 226, § 5º, da CF); em uma república de estudantes; em condomínios. Caso haja discordância quanto à possibilidade de ingresso na casa, aplica-se o raciocínio acima exposto. No entanto, se for possível delimitar o espaço de cada morador de uma casa, sem que invada espaço do morador que não autorizou, o ingresso é permitido, como a entrada em uma residência para acessar um quarto, cuja passagem é pelos fundos e não tem acesso ao quarto e cômodos do morador que não autorizou.
A vontade do morador da casa pode ser manifestada de forma expressa ou tácita. Será expressa quando disser expressamente ou manifestar-se por escrito, gestos ou qualquer outra forma que seja possível dizer claramente que o morador autoriza ou não o ingresso na casa. Será tácita quando puder constatar a manifestação de vontade do morador em razão das circunstâncias do caso concreto, como manter a porta fechada.
É suficiente que qualquer um dos moradores responsáveis pela casa, seja no regime de subordinação, seja no de igualdade, autorize o ingresso da polícia na residência para que este seja lícito, não sendo necessário que o policial aguarde a manifestação de vontade do outro morador que não estiver presente, pois a ausência de qualquer um dos moradores responsáveis pela casa implica em autorizar que somente o morador presente autorize o ingresso de terceiros. Deve-se presumir, inclusive, que o morador presente está a atuar de acordo com a vontade do outro morador, pois do contrário o morador presente relataria a impossibilidade de ingresso em razão da discordância do outro morador. Caso haja mais de um morador responsável pela casa e um deles esteja ausente no portão no momento da autorização, pois estava dentro de casa, a autorização, igualmente, é válida, em razão do mesmo raciocínio ora exposto.
A autorização do ingresso da polícia em prédio ou condomínio para acessar as áreas comuns cabe ao síndico, que é o representante do condomínio (art. 1.348, II, do CC), salvo se houver regras diversas no condomínio.
Questão interessante quanto à manifestação de vontade surge na hipótese em que o (a) amante de um dos cônjuges se vale da ausência do outro cônjuge para ingressar na casa, o que faz presumir o dissenso tácito do cônjuge ausente, pois jamais autorizaria que o (a) amante entrasse em sua casa para manter relações sexuais com seu/sua marido/esposa.
Nesta hipótese, estaria configurada a prática do crime de violação de domicílio, já que no regime de igualdade prevalece a vontade de quem não autoriza a entrada, ainda que tacitamente? A par das divergências doutrinárias, entendo que na ausência do marido ou da mulher, considerando que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher (art. 226, § 5º, da CF), aquele que estiver presente na casa pode autorizar, independentemente, da vontade do ausente, a entrada de qualquer pessoa, ainda que vise a prática de ilícitos, o que não caracterizará crime de violação de domicílio, somente ilícito civil (art. 1.566, I, do CC).
Nesse sentido, ensina Flávio Augusto Monteiro de Barros20, ao discorrer que:
(…) Sustenta Magalhães Noronha a existência do delito, porque do comportamento pregresso do marido, de homem honrado e digno, infere-se o dissenso tácito a essa situação.
Outros juristas pátrios, como Bento de Faria, entendem que na ausência temporária do marido compete exclusivamente À esposa a permissão da entrada de alguém em sua casa. Nessa hipótese, a violação não será do domicílio, mas da fidelidade conjugal, configurando-se o ilícito civil.
Alinhamo-nos entre os que esposam o último ponto de vista. Com a Constituição Federal de 1988, marido e esposa encontram-se em regime de igualdade (arts. 5º, I e 226, § 5º). Aliás, já se decidiu que na ausência do marido a esposa assume a exclusividade de poder admitir quem bem entenda. Pouco importa o fim, seja este lícito ou não. O certo é que, autorizando o ingresso, faz desparecer a condição sine qua non do delito previsto no art. 150, ou seja, a entrada clandestina ou astuciosa ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito.
3.2 Flagrante delito
O flagrante delito ocorre nas situações especificadas no art. 302 do Código de Processo Penal.
Portanto, considera-se em flagrante delito quem: a) está cometendo a infração penal (flagrante próprio); b) acaba de cometê-la (flagrante próprio); c) é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração (flagrante impróprio ou quase flagrante); d) é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração (flagrante presumido ou ficto).
Nos crimes permanentes, entende-se o agente em flagrante delito enquanto não cessar a permanência.
Todas as hipóteses de flagrante delito autorizam o ingresso em domicílio, na medida em que a Constituição Federal autoriza o ingresso nos casos de flagrante delito, sem especificar a modalidade de flagrância.
Caso a infração penal esteja ocorrendo dentro de uma casa ou tenha acabado de ocorrer, configura-se a hipótese de flagrante próprio, sendo possível que a polícia chegue ao local e adentre à residência, caso as portas não estejam abertas ou outras pessoas presentes no local não abram ou não consigam abrir, será possível o arrombamento.
Nos casos urgentes, como a situação de um crime em andamento, em que uma pessoa está a lesionar outra, a polícia ao chegar no local da ocorrência poderá arrombar a porta, imediatamente, sem necessidade de aguardar que terceiros abram a porta.
Nesses casos a urgência do ingresso da polícia na residência prevalece em relação ao direito patrimonial do morador, pois é a vida e integridade física de terceiros em risco.
Em se tratando de crime permanente, muitas vezes não será conveniente que aguarde o morador abrir as portas. Basta imaginar que a polícia tenha informações e provas de que há drogas em uma residência e que ao “bater campainhas”, os infratores poderão se desfazer das drogas, jogando-as no vaso e dando descarga ou arremessando-as para casa de vizinhos. Nesse caso, igualmente, será possível que a polícia arrombe a porta, sem necessidade de avisar aos moradores que vai entrar. O fator surpresa será essencial para o êxito da diligência.
O arrombamento das portas deverá ocorrer de forma que cause o menor dano possível.
A análise deve ser feita caso a caso.
Quando o agente pratica um crime e ao fugir entra em uma residência, própria ou de terceiros, poderá estar caracterizada a hipótese de flagrante impróprio ou de flagrante presumido, havendo divergências doutrinárias, se é possível ingressar na residência nesses casos.
A primeira corrente defende que a possibilidade de ingresso restringe-se somente ao flagrante próprio, na medida em que a proteção do domicílio, sendo garantia constitucional, não merece ser alargada indevidamente. Nesse sentido: Guilherme Nucci21.
A segunda corrente advoga que é possível ingressar em domicílio nas situações caracterizadoras de flagrante delito (art. 302, I, II, III e IV, do CPP), na medida em que a fuga para residência não pode inviabilizar a realização da prisão, sob pena de se criar uma espécie de proteção e imunidade para o criminoso. Nesse sentido: Renato Brasileiro22, Tourinho Filho e Henrique Hoffmann23.
A terceira corrente preconiza que deve-se aplicar o disposto nos artigos 293 e 294, ambos do Código de Processo Penal.
O Código de Processo Penal prescreve no art. 293 que no cumprimento de mandado de prisão, o executor poderá cumpri-lo durante o dia, inclusive com o arrombamento das portas, mas se for noite, o executor deverá guardar todas as saídas, tornando a casa incomunicável, e, logo que amanheça, arrombará as portas e efetuará a prisão.
O art. 294 do CPP assegura que o art. 293 será aplicável aos casos de flagrante delito, no que for aplicável.
Logo, para essa corrente, nos casos de flagrante, a polícia deve cercar o local, se durante à noite, e entrar na residência ao amanhecer, sendo possível o ingresso imediato somente se o infrator entrar na casa durante o dia.
Filiamos à segunda corrente, por diversas razões.
Com efeito, a Constituição Federal permite o ingresso em domicílio nas situações de flagrante delito (que estão definidas no Código de Processo Penal), independentemente, do horário, isso porque em uma ponderação de valores, a Constituição decidiu que no caso de ocorrência de infração penal deve preponderar o interesse público na realização da prisão do agente, ainda que haja uma momentânea e mínima relativização da inviolabilidade domiciliar.
Em se tratando do horário em que é possível ingressar na residência de terceiros, a própria Constituição Federal foi expressa ao restringir o ingresso durante o dia somente para os casos de cumprimento de ordem judicial, não havendo igual previsão para as situações de flagrante delito.
Ademais, o direito fundamental à inviolabilidade domiciliar tem como objetivo permitir que os moradores possuam privacidade, paz, sossego, não sendo razoável invocar essa proteção para dar guarida a um agente que acabou de praticar uma infração penal e está sendo perseguido pela polícia.
Deve-se levar em consideração ainda que é inviável operacionalmente que uma guarnição policial (ou várias) fique (m) toda a noite cercando uma residência, o que implicaria na retirada de viatura(s) de circulação, causando prejuízos para o policiamento ostensivo e a segurança pública. Há, portanto, um interesse público na imediata prisão do agente.
De mais a mais, caso o agente ingresse em casa de terceiros durante a fuga, deve-se presumir que há o consentimento para o ingresso da Polícia, pois presume-me que nenhuma pessoa quer que um criminoso que acabou de cometer um crime e está sendo perseguido pela polícia permaneça em sua residência, sendo que eventual negativa do morador em franquear a entrada pode ocorrer em razão de intimidação ou ameaças do preso que está dentro da residência.
Na hipótese em que a casa em que o agente em fuga tenha ingressado seja de ascendente, descendente, cônjuge ou irmão do criminoso, estes não serão obrigados a autorizarem a entrada, invertendo-se a lógica de que estão intimidados, sendo possível constatar que prestam auxílio ao agente por ser um familiar.
Deve-se destacar ainda os riscos da não realização imediata da prisão, pois a depender da periculosidade do infrator, este poderá se comunicar com membros de sua organização criminosa que poderão se organizar para atacarem os policiais, não sendo incomum a imprensa noticiar ataques a policiais militares do Rio de Janeiro, quando estão em operações em regiões perigosas.
Portanto, em que pese as controvérsias, a polícia militar pode e deve entrar nas residências em qualquer situação de flagrante delito.
Em se tratando de crime permanente, como o tráfico de drogas (ter em depósito), somente será lícito o ingresso na residência caso os policiais tenham prévia ciência da ocorrência do crime, o que deverá estar amparado em fundadas razões e ser devidamente justificado posteriormente.
Caso o ingresso na residência ocorra sem prévia ciência de que ali ocorre situação de flagrante delito, vindo a ser constatada a ocorrência de crime permanente por “sorte”, o ingresso será ilícito e as provas eventualmente produzidas em desfavor do morador deverão ser declaradas nulas.
Foi nesse sentido que decidiu o Supremo Tribunal Federal.
A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas “a posteriori”, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos praticados. Essa a orientação do Plenário, que reconheceu a repercussão geral do tema e, por maioria, negou provimento a recurso extraordinário em que se discutia, à luz do art. 5º, XI, LV e LVI, da Constituição, a legalidade das provas obtidas mediante invasão de domicílio por autoridades policiais sem o devido mandado de busca e apreensão. O acórdão impugnado assentara o caráter permanente do delito de tráfico de drogas e mantivera condenação criminal fundada em busca domiciliar sem a apresentação de mandado de busca e apreensão. A Corte asseverou que o texto constitucional trata da inviolabilidade domiciliar e de suas exceções no art. 5º, XI (“a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”). Seriam estabelecidas, portanto, quatro exceções à inviolabilidade: a) flagrante delito; b) desastre; c) prestação de socorro; e d) determinação judicial. A interpretação adotada pelo STF seria no sentido de que, se dentro da casa estivesse ocorrendo um crime permanente, seria viável o ingresso forçado pelas forças policiais, independentemente de determinação judicial. Isso se daria porque, por definição, nos crimes permanentes, haveria um interregno entre a consumação e o exaurimento. Nesse interregno, o crime estaria em curso. Assim, se dentro do local protegido o crime permanente estivesse ocorrendo, o perpetrador estaria cometendo o delito. Caracterizada a situação de flagrante, seria viável o ingresso forçado no domicílio. Desse modo, por exemplo, no crime de tráfico de drogas (Lei 11.343/2006, art. 33), estando a droga depositada em uma determinada casa, o morador estaria em situação de flagrante delito, sendo passível de prisão em flagrante. Um policial, em razão disso, poderia ingressar na residência, sem autorização judicial, e realizar a prisão. Entretanto, seria necessário estabelecer uma interpretação que afirmasse a garantia da inviolabilidade da casa e, por outro lado, protegesse os agentes da segurança pública, oferecendo orientação mais segura sobre suas formas de atuação. Nessa medida, a entrada forçada em domicílio, sem uma justificativa conforme o direito, seria arbitrária. Por outro lado, não seria a constatação de situação de flagrância, posterior ao ingresso, que justificaria a medida. Ante o que consignado, seria necessário fortalecer o controle “a posteriori”, exigindo dos policiais a demonstração de que a medida fora adotada mediante justa causa, ou seja, que haveria elementos para caracterizar a suspeita de que uma situação a autorizar o ingresso forçado em domicílio estaria presente. O modelo probatório, portanto, deveria ser o mesmo da busca e apreensão domiciliar — apresentação de “fundadas razões”, na forma do art. 240, §1º, do CPP —, tratando-se de exigência modesta, compatível com a fase de obtenção de provas. Vencido o Ministro Marco Aurélio, que provia o recurso por entender que não estaria configurado, na espécie, o crime permanente. RE 603616/RO, rel. Min. Gilmar Mendes, 4 e 5.11.2015. (RE-603616)
Quanto ao grau de certeza da ocorrência do crime permanente, Henrique Hoffmann24 explica que existem, basicamente, três correntes:
a) é preciso que o policial tenha certeza visual do flagrante ocorrendo no interior da casa, sob a perspectiva da via pública; trata-se de juízo de certeza;
b) não se exige que o policial possa enxergar o crime acontecendo dentro da residência, mas fundadas razões de que há uma situação flagrancial, com lastro em circunstâncias objetivas, ou seja, demonstração por outros meios além do olhar da via pública (ex: palavra de testemunhas, relatório policial decorrente de campana, conversas captadas em interceptação telefônica); cuida-se de juízo de probabilidade, demonstrado por elemento externo objetivo;
c) é dispensável do policial a certeza visual do flagrante e mesmo as fundadas razões, podendo ingressar em domicílio baseado em vagas suspeitas de que crime está ocorrendo no interior da casa, com base na mera intuição pessoal; trata-se de juízo de possibilidade, aferível por elemento interno subjetivo.
O Supremo Tribunal Federal se filiou à posição intermediária:
Dessa forma, não se exige que o policial veja o crime ocorrendo, sendo suficiente que possua elementos que justifiquem o ingresso.
A denúncia anônima, por si só, não é suficiente para que o policial ingresse em domicílio, pois não constitui fundadas razões, na medida em que não há um mínimo de lastro probatório que justifique a tomada de uma providência tão invasiva.
Sempre que houver denúncia anônima o policial deve proceder ao levantamento de informações que visem comprovar ou não o teor da denúncia e havendo segurança de que há crime permanente em determinada residência os policiais poderão entrar.
O ingresso em domicílio nas hipóteses de flagrante delito caracteriza estrito cumprimento do dever legal.
Caso ingressem fundamentadamente e não seja constatada a prática de crime permanente, haverá uma situação de putatividade (imaginária). Isto é, há uma situação que aparentava ser real, mas na verdade não é.
Nesses casos deve-se aplicar a regra das descriminantes putativas quanto aos pressupostos fáticos do estrito cumprimento do dever legal.
Descriminantes são as causas de exclusão da ilicitude (estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal e exercício regular de um direito).
Putativa refere-se ao que parece, mas não é. É aquilo que é imaginário, que o agente acredita, seriamente, que ocorre uma situação, mas na verdade não ocorre.
Logo, as descriminantes putativas caracterizam as situações em que o agente atua acreditando estar acobertado por uma causa excludente de ilicitude, mas na verdade não está.
Os pressupostos fáticos referem-se à situação concreta ocorrida, aos fatos ocorridos que levaram o agente a se enganar. O agente não sabe exatamente o que faz.
O estrito cumprimento do dever legal ocorre porque é obrigação do policial realizar a prisão de quem esteja em situação de flagrante delito (art. 301 do CPP).
Em se tratando de descriminante putativa em razão de erro do agente quanto aos pressupostos fáticos, prevalece que o Código Penal adotou a teoria limitada da culpabilidade, devendo incidir o erro de tipo permissivo, que tem como consequência excluir o dolo e a culpa, se o erro for justificável ou se injustificável, excluir o dolo, subsistindo a responsabilidade por crime culposo, se previsto em lei (art. 20, § 1º, do CP e art. 36, § 1º, do CPM)25.
Logo, o policial que entrar em uma residência por acreditar, de forma fundamentada, que nela ocorre crime permanente, mas nada é encontrado, estará no estrito cumprimento do dever legal putativo e não deve ser responsabilizado criminalmente, seja o erro justificável ou não, na medida em que não existe crime culposo de abuso de autoridade e de violação de domicílio.
Lado outro, caso o policial, por receio de ser responsabilizado criminalmente, “plante” drogas ou objetos ilícitos na residência, com o fim de respaldar o ingresso, deverá responder por denunciação caluniosa (art. 339 do CP e art. 343 do CPM).
Deve-se destacar que a prática de contravenção penal autoriza o ingresso em domicílio, na medida em que a constituição utiliza o termo “flagrante delito”, que é conceituado pelo Código de Processo Penal (art. 302, I, do CPP) como infração penal, que, por sua vez, abrange crimes e contravenções penais, na forma do art. 1º da Lei de Introdução ao Código Penal (Decreto-Lei n. 3.914/41).
Dessa forma, é perfeitamente possível o ingresso em domicílio nas situações flagranciais decorrentes da prática de contravenção penal.
Caso o agente pratique um crime de desacato e corra para dentro da casa ou então ao avistar os policiais da janela da casa profira palavras desrespeitosas, está autorizado o ingresso na residência, caso o agente se recuse a sair, uma vez que estará em flagrante delito.
Em que pese não se impor a prisão em flagrante nos crimes de menor potencial ofensivo, o que, em um primeiro momento, poderia fundamentar a impossibilidade de ingresso dos policiais na residência, o autor do fato deve assumir o compromisso de comparecimento em juízo e a recusa em assinar o termo poderá resultar na prisão.
Portanto, justifica-se o ingresso policial, por estar em flagrante delito e pela necessidade do autor dos fatos assumir compromisso de comparecer em juízo e em caso de recusa deve ser efetuada a prisão do agente (art. 69, parágrafo único, da Lei 9.099/95).
De qualquer forma, face ao princípio da razoabilidade e proporcionalidade, o policial pode deixar de entrar na residência, visando evitar maiores danos e exposição a risco de vida ou da integridade física dos próprios policiais ou de outras pessoas, como a hipótese em que um agente desacata os policiais, corre para dentro de uma casa, que encontra-se repleta de pessoas, em uma região perigosa. Será suficiente a lavratura de um Boletim de Ocorrência com todos os detalhes e o autor dos fatos será, posteriormente, intimado para comparecer à justiça.
Ao policial no local dos fatos compete realizar uma leitura de cenário e concluir se a ação policial, ainda que haja situação caracterizadora de flagrante delito, deve ocorrer, pois a atuação policial exige não só a obrigação decorrente de lei, mas o aspecto prático, operacional, as condições de atuação. Tanto é que o art. 13, § 2º, “a”, do Código Penal (art. 29, § 2º, do CPM) ao responsabilizar o agente garantidor pela omissão – e o policial é um exemplo – é claro ao mencionar que somente haverá responsabilização se além do dever de atuar, for possível a atuação. A possibilidade de atuação envolve a razoabilidade, a proporcionalidade e os efeitos que a atuação vai causar. Não quer dizer que a atuação é discricionária, mas sempre que os efeitos da ação puderem ser mais gravosos do que o fato praticado, e as condições de captura do autor não forem viáveis, é lícito o registro da ocorrência sem a prisão em flagrante.
Tome como exemplo uma ocorrência de perturbação de sossego decorrente de uma festa com som alto e com muitas pessoas que consomem bebidas alcoólicas. O policial, ao chegar no local, pede para baixar o som de forma que fique restrito ao ambiente local, mas o organizador da festa ignora a ordem do policial. Neste caso terá praticado desobediência, além da contravenção penal de perturbação de sossego, contudo o agente está dentro da casa e não desliga o som. O ingresso da polícia na residência, nestas circunstâncias, não é ilegal, pois o agente está em flagrante delito. Contudo, em razão da aglomeração de pessoas, bebidas alcoólicas e clima no local, é possível notar que se a polícia entrar na casa uma simples ocorrência de perturbação de sossego poderá se transformar em briga generalizada e em homicídio e/ou lesão corporal. Nessa hipótese é perfeitamente possível que a polícia limite-se a lavrar um Boletim de Ocorrência e relatar todo o ocorrido. Não há nenhuma ilegalidade e a ação policial será digna de reconhecimento.26
3.3 Desastre
O Glossário de Proteção e Defesa Civil da Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil – SEDEC, conceitua desastre como o “Resultado de eventos adversos, naturais ou provocados pelo homem, sobre um ecossistema (vulnerável), causando danos humanos, materiais e/ou ambientais e consequentes prejuízos econômicos e sociais.”27
O dicionário on-line Michaelis28 conceitua desastre da seguinte forma:
1 Acontecimento funesto, geralmente inesperado, que provoca danos graves de qualquer ordem; soçobro.
O desastre é todo acontecimento, independentemente, da causa, que venha a provocar graves danos, de ordem humana, material, biológica, química, econômica, social ou de qualquer natureza.
A Codificação Brasileira de Desastres (COBRADE) elenca uma série de situações que são consideradas desastres e as dividem na categoria desastres naturais e desastres tecnológicos. Os desastres naturais subdividem-se em cinco grupos: a) geológico; b) hidrológico; c) meteorológico; d) climatológico; e) biológico. Os desastres tecnológicos, por sua vez, subdivide-se também em cinco grupos: a) desastres relacionados a substâncias radioativas; b) desastres relacionados a produtos perigosos; c) desastres relacionados a incêndios urbanos ; d) desastres relacionados a obras civis; e) desastres relacionados a transporte de passageiros e cargas não perigosas.
Nos casos de desastre, o ingresso em domicílio é autorizado constitucionalmente com o fim de que terceiros prestem socorro ou auxiliem os moradores, o que já está contemplado no art. 5º, XI, da Constituição Federal, ao autorizar o ingresso em casa alheia para prestar socorro.
Portanto, se uma casa desmorona ou vem a acontecer qualquer grave dano, como um avião, helicóptero ou carro cair em cima de uma casa, está autorizado o ingresso por terceiros para prestar socorro.
Independentemente, do horário que o desastre ocorrer, está autorizado o ingresso, afinal de contas, a prestação de socorro pode ser urgente e não pode aguardar.
Destaca-se que as epidemias decorrentes de doenças infecciosas virais são consideradas uma espécie de desastre de ordem biológica.
No Piauí, o Decreto n. 18.942, de 16 de abril de 2020, declarou situação de calamidade pública, provocada pelo Desastre Natural Classificado e codificado como doenças infecciosas virais em toda a extensão territorial do Estado do Piauí.
O art. 2º, § 1º, do referido decreto autoriza que as autoridades administrativas e os agentes de defesa civil, diretamente responsáveis pelas ações de resposta ao desastre, em caso de risco iminente, penetrem nas casas para prestar socorro ou para determinar a pronta evacuação.
Art. 2º Ficam autorizadas:
§ 1º As autoridades administrativas e os agentes de defesa civil, diretamente responsáveis pelas ações de resposta ao desastre, em caso de risco iminente, são autorizados a:
I – penetrar nas casas para prestar socorro ou para determinar a pronta evacuação;
A epidemia decorrente do coronavírus é considerada um desastre de ordem biológica em razão da Classificação e Codificação Brasileira de Desastres COBRADE N. 1.5.1.1.0 – Doenças infecciosas virais.
Portanto, estariam as autoridades autorizadas a entrarem nas casas, sem autorização do morador ou judicial, em razão de risco iminente de contaminação por coronavírus?
A resposta é sim, pois a situação de coronavírus no Brasil é considerada um desastre de ordem biológica e o ingresso de um agente de defesa civil visará impedir que as pessoas que estejam dentro da casa sejam contaminadas. Entra-se em razão de um desastre com o objetivo de prestar socorro, ainda que os moradores não tenham ciência, no momento da entrada, de que estão prestes a serem vítimas da contaminação pelo coronavírus.
Tome como exemplo um agente que trabalha em um hospital que recebe pacientes contaminados com coronavírus e decide utilizar equipamentos contaminados para levar para o prédio em que mora com o fim de contaminar todos os vizinhos e utiliza esses equipamentos para contaminar as escadas, os elevadores, as portas das casas de todos os moradores do prédio e ainda arremessa objetos contaminados pelas janelas dos prédios, o que vem a ser de conhecimento da Defesa Civil, pois o agente filmou tudo e enviou para amigos por meio de aplicativo de mensagens. Independentemente, de autorização dos moradores, os agentes da defesa civil poderão adentrar ao prédio e com as cautelas necessárias retirar todos os moradores (pronta evacuação) e realizar a sanitização do prédio, pois trata-se de uma situação de desastre de ordem biológica.
Além do mais, a pessoa que entra em uma residência com a intenção de transmitir coronavírus está a praticar crime (lesão corporal; perigo para a vida ou saúde de outrem; infração de medida sanitária preventiva, a depender do caso), o que, também, legitima o ingresso no domicílio pelos agentes da defesa civil e pela polícia com o fim de efetuar a prisão.
Por fim, o ingresso de autoridades em casa de terceiros em razão do coronavírus deve ser permitido nas situações excepcionais ora demonstradas, sob pena de se esvaziar uma garantia fundamental (inviolabilidade domiciliar) em tempos de crise, momento em que a eficácia e proteção dos direitos fundamentais são colocados à prova.
3.4 Para prestar socorro
O Glossário de Proteção e Defesa Civil da Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil – SEDEC, conceitua socorro como o “Ato ou efeito de socorrer. Atendimento a pessoa acidentada ou atingida por mal súbito. Ajuda ou assistência vinda do exterior para comunidades que se encontram sob o efeito de um grande desastre. Equipe de bombeiros ou de pessoas capacitadas, designadas para atender a uma ocorrência (sinistro). Pedido de auxílio.”29
O dicionário on-line Michaelis30 conceitua socorro da seguinte forma:
2 Ajuda ou assistência a alguém que se encontra em situação dramática (desamparo, doença, perigo etc.); socorrimento.
“Prestar” socorro consiste em atuar, ajudar, assistir em uma situação que exige socorro, como levar para o hospital uma pessoa que acabou de se acidentar em um acidente de carro ou por ter sido vítima de disparo de arma de fogo.
A prestação de socorro é um termo mais amplo que o desastre, pois possibilita o ingresso de terceiros em casa alheia em situações de desastre ou não.
Assim é possível que ocorra o ingresso quando uma pessoa estiver passando mal, e necessitar de atendimento urgente, com o fim de socorrê-la e levá-la para o hospital.
Da mesma forma que o desastre, o ingresso em residência alheia para prestar socorro independe de horário, já que a situação que enseja a prestação de socorro não pode aguardar.
3.5 Por determinação judicial, durante o dia. Conceito de dia. É possível o cumprimento de mandado durante a noite?
Quando a Constituição Federal exige autorização judicial para ingressar em casa reserva ao Poder Judiciário, exclusivamente, a possibilidade de autorizar. Trata-se de uma verdadeira cláusula de reserva jurisdicional (art. 5º, XI, da CF), o que impede que o fisco adentre a estabelecimentos comerciais ou qualquer escritório para realizar fiscalizações31, bem como impede comissões parlamentares de inquérito de expedirem mandado de busca e apreensão em domicílio32.
O art. 241 do Código de Processo Penal prevê que “Quando a própria autoridade policial ou judiciária não a realizar pessoalmente, a busca domiciliar deverá ser precedida da expedição de mandado.”
Tal dispositivo não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, uma vez que o mandado de busca domiciliar deve ser, necessariamente, expedido pela autoridade judiciária (art. 5º, XI), independentemente, da autoridade policial realizar ou não a busca domiciliar e ao juiz não cabe proceder à busca domiciliar, por ferir a imparcialidade, o sistema acusatório (art. 129, I) e invadir espaço reservado aos órgãos policiais (art. 144).
A determinação judicial a que se refere a Constituição Federal abrange todas as hipóteses previstas em lei que permitem ao juiz autorizar o ingresso em domicílio, seja para fins criminais, o que é comum nos mandados de busca e apreensão (art. 240 do CPP) ou mandado de prisão ou cíveis, como um mandado de penhora (art. 846 do CPC).
Permite-se a expedição de mandado judicial para ingressar em domicílio para localizar crianças em processos de guarda, bem como nas hipóteses previstas no art. 1.313, I e II, do Código Civil, em que o proprietário ou ocupante de imóvel é obrigado a tolerar que o vizinho entre no prédio, mediante prévio aviso, para “dele temporariamente usar, quando indispensável à reparação, construção, reconstrução ou limpeza de sua casa ou do muro divisório” ou para “apoderar-se de coisas suas, inclusive animais que aí se encontrem casualmente.”, ou seja o proprietário é obrigado a permitir que o vizinho entre em sua casa para apoderar-se de coisas suas, inclusive animais que aí se encontrem casualmente, como um cachorrinho que passa pelas grades de uma casa, mas o dono da casa nega-se a devolver o animal ou então em um caso em que crianças brinquem de jogar bola na rua e esta venha a cair no terreiro de um vizinho que não devolve a bola.
O ingresso em domicílio alheio em razão do cumprimento de mandado judicial deve ocorrer durante o dia, uma vez que o constituinte visou preservar o período noturno para que fosse respeitado o direito ao repouso e descanso que são comuns durante a noite.
Qual é o conceito de dia?
O tema é divergente e existem, pelo menos, três correntes.
A primeira adota o critério físico-astronômico e considera dia o intervalo entre a aurora (nascer do sol) e o crepúsculo (pôr do sol), pois é o período em que há luz natural do sol.
A segunda adota o critério cronológico por uma questão de segurança, por não depender de interpretação de quem analisa, o que concede maior garantia ao conceito de “dia”. Subdivide-se em outras três correntes, a saber: a) dia é o intervalo entre 06:00 e 18:00h, de forma que o período do dia e da noite possuam igualdade de tempo (12 horas para cada); b) dia é o intervalo entre 06:00 e 20:00h, uma vez que o Código de Processo Civil (art. 212) prevê que os atos processuais serão realizados nesse intervalo de tempo, o que concede uma maior segurança jurídica para o cumprimento de diligências durante o dia; e c) dia é o intervalo de tempo entre 05:00 e 21:00h, em razão do disposto no art. 22, III, da Lei n. 13.869/19, que tipifica como crime de abuso de autoridade o cumprimento de mandado de busca e apreensão domiciliar fora desse horário, ou seja, entre 21:00 e 05:00h. Como a Constituição Federal diz que somente pode entrar em domicílio, por determinação judicial, durante o dia, para esta corrente, entende-se que houve uma delimitação do período “dia” (entre 05:00 e 21:00h).
A terceira corrente adota o critério misto, de forma a priorizar o critério para o início e fim de dia que seja mais benéfico para a proteção da inviolabilidade domiciliar. Portanto, adotando-se o primeiro e segundo subcritérios cronológicos, se às 06:00 da manhã ainda estiver escuro, o dia ainda não terá se iniciado, pois ainda não tem luz solar. Caso seja 05:30 e já haja sol, o dia também não terá se iniciado, pois ainda não são 06:00h.
Excepcionalmente, é possível que haja autorização judicial para o ingresso em domicílio no período noturno.
Em caso concreto, o Supremo Tribunal Federal validou o ingresso a autoridade policial em escritório de advocacia, no período noturno, para a instalação de equipamento de captação de sinais óticos e acústicos, na medida em que o sigilo do advogado não existe para protegê-lo na prática de crimes, não sendo admissível que a inviolabilidade transforme o escritório em um local seguro para praticar crimes. Destacou-se que a inviolabilidade domiciliar não possui valor absoluto e considerou-se ser, no mínimo, duvidosa, a equiparação entre escritório vazio com domicílio stricto sensu, que pressupõe a presença de pessoas que o habitem.33
Dessa forma, é possível que o juiz autorize, no caso concreto, que o mandado judicial que autoriza o ingresso domiciliar seja cumprido no período noturno.
Tome como exemplo um caso em que traficantes guardem as drogas, no período noturno, em determinadas casas, tendo a polícia recebido diversas denúncias anônimas e ao proceder à verificação dos fatos, com a audição de testemunhas e interceptação telefônica, comprova que as drogas, realmente, são guardadas no período noturno, em certas casas.
Assim, a autoridade policial, com receio de entrar nas residências, na medida em que nem sempre os traficantes guardam as drogas nas casas, requer mandado de busca e apreensão. Nesse caso, é possível que o juiz autorize o cumprimento do mandado durante o período noturno.
3.6 Desapropriação
O art. 7º do Decreto-Lei n. 3.365/41 prevê que “Declarada a utilidade pública, ficam as autoridades administrativas autorizadas a penetrar nos prédios compreendidos na declaração, podendo recorrer, em caso de oposição, ao auxílio de força policial.”
Nota-se que a lei permite, neste caso, o ingresso em domicílio sem necessidade de autorização judicial, para fins de se realizar levantamentos e inspeções, como decorrência do efeito da declaração de utilidade pública, que submete a propriedade à força expropriatória do estado.
Neste caso deve prevalecer o interesse público, sendo o ingresso na residência limitado, estritamente, para fins de levantamentos e inspeções necessárias à desapropriação. Ademais, o imóvel está em vias de ser retirado do particular para compor o patrimônio do estado e deve-se aplicar a lógica de que se o próprio patrimônio (o mais) vai ser retirado do particular, quanto mais uma mera entrada para verificação (o menos).
3.7 Para a contenção de doenças (saúde pública)
A Lei n. 13.301/16 dispõe sobre a adoção de medidas de vigilância em saúde quando verificada situação de iminente perigo à saúde pública pela presença do mosquito transmissor do vírus da dengue, do vírus chikungunya e do vírus da zika, sendo autorizado pelo art. 1º, § 1º, IV, § 1o, o “ingresso forçado em imóveis públicos e particulares, no caso de situação de abandono, ausência ou recusa de pessoa que possa permitir o acesso de agente público, regularmente designado e identificado, quando se mostre essencial para a contenção das doenças.”
Sempre que se mostrar necessário, o agente público competente poderá requerer auxílio à autoridade policial ou à Guarda Municipal (art. 3º, § 1º).
A lei não exigiu autorização judicial para o ingresso nas situações nela especificadas, sendo defendido pela doutrina que não há inconstitucionalidade, conforme precisas lições de Márcio André Lopes Cavalcante34
De fato, a entrada do agente público para fiscalizar possíveis locais dentro da residência da pessoa onde o mosquito Aedes aegyptie possa vir a colocar ovos não se enquadra em nenhuma das hipóteses previstas no inciso XI, não podendo ser classificada como situação de “desastre” ou para “prestar socorro”, expressões muito intensas e que não se confundem com mero exercício de poder de polícia preventivo.
Desse modo, é certo que o inciso IV do § 1º do art. 1º da Lei nº 13.301/2016 não encontra autorização no art. 5º, XI, da CF/88.
Apesar disso, entendo que a previsão do ingresso forçado, na forma como delineada pela Lei nº 13.301/2016, não se revela inconstitucional, devendo ser realizado no caso uma ponderação dos interesses envolvidos.
A inviolabilidade do domicílio consiste em direito fundamental inerente à pessoa humana. Ocorre que não se trata de um direito absoluto. Assim, pode ser restringido, desde que observado o princípio da proporcionalidade.
No caso, tem-se o conflito aparente entre dois valores protegidos pelo Direito: de um lado, a liberdade individual dos moradores; e de outro, a vida e a saúde desses mesmos indivíduos e de toda a coletividade, que devem ser protegidas pelo Estado.
Diante disso, deve haver uma ponderação dos interesses envolvidos: ou restringe-se a liberdade individual, ou então haverá um grave e real risco à saúde de toda a sociedade (incluindo os proprietários e/ou moradores do imóvel). Não há dúvidas de que, no presente contexto, deverá preponderar a proteção à vida e à saúde, havendo uma restrição à liberdade individual.
Ressalte-se que a restrição imposta pela Lei nº 13.301/2016 à inviolabilidade de domicílio é pontual, específica, temporária e mínima.
A entrada forçada só é permitida em três situações excepcionais (imóvel abandonado, morador não encontrado ou recusa do morador). Além disso, o ingresso compulsório tem apenas uma finalidade: encontrar possíveis focos de criadouro do mosquito, eliminando-os. Ressalte-se, ainda, que não haverá qualquer prejuízo ao morador, já que os agentes públicos não irão adentrar na casa para produzir provas contra ele (não se trata de investigação criminal) nem para retirar de lá seus bens (não é uma medida de busca e apreensão ou de penhora). Logo, não há violação ao devido processo legal (art. 5º, LIV, da CF/88).
Ressalte-se que se fosse necessário buscar autorização judicial todas as vezes em que o imóvel estiver fechado o trabalho de fiscalização restaria inviabilizado, além de sobrecarregar o Poder Judiciário. Segundo dados oficiais, desde que a campanha de combate ao mosquito se iniciou, com os primeiros casos de Zika Vírus, as equipes de saúde já encontraram cerca 2,7 milhões de domicílios fechados no momento das visitas. Seria inimaginável ter que exigir uma ação judicial para cada uma dessas casas.Dessa forma, a medida prevista na Lei nº 13.301/2016 é adequada, necessária e proporcional, sendo a solução que melhor atende a proteção da saúde pública, que é um dever constitucional do Estado (art. 196), havendo uma mínima intervenção na inviolabilidade do domicílio. (destaque nosso)
Em que pese um dos argumentos para não se exigir autorização judicial para o caso de contenção de doenças é a inviabilidade de se ingressar com milhares ou milhões de ações judiciais, é possível que haja uma única ação para cada Comarca, que autorizará o ingresso em todas as residências vazias ou que os moradores demonstrarem resistência.
Na prática municípios têm ingressado com pedido na justiça para que seja autorizada a fiscalização nas residências, uma vez que o art. 5, XI, da Constituição Federal não contempla o ingresso domiciliar em razão de previsão em lei.35
O art. 4º da Lei n. 13.301/16 diz que é possível o ingresso forçado em residência, contra a vontade do morador, quando for para verificar a proliferação de doenças que representem grave risco ou ameaça à saúde pública, desde que haja determinação da autoridade máxima do SUS de qualquer nível federativo (União, Estado ou Município), bem como o reconhecimento da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional – ESPIN, que é o caso do covid-19 (Portaria n. 188/2020 do Ministério da Saúde).
A Lei n. 13.979/20 autoriza que haja a determinação de isolamento para as pessoas que estejam contaminadas com o coronavírus (art. 3º, I).
Portanto, caso haja a determinação para que uma pessoa fique em casa, por ter coronavírus, a autoridade sanitária poderá fiscalizar se essa pessoa, realmente, encontra-se em casa e se um morador da residência não autorizar o ingresso da autoridade sanitária, esta poderá entrar à força para proceder à fiscalização.
No caso do coronavírus, se houver determinação para que a pessoa fique em isolamento em casa e esta saia, praticará o crime previsto no art. 268 do Código Penal (infração de medida sanitária preventiva), logo, essa pessoa não é obrigada a autorizar a produção de prova contra si mesmo (art. 5º, LVII, da CF), o que ocorrerá ao autorizar o ingresso do agente de saúde em sua casa, razão pela qual necessita de autorização judicial36, em caso de negativa do morador que esteja contaminado com coronavírus.
Salienta-se, ainda, que obstar ou dificultar a ação fiscalizadora das autoridades sanitárias competentes no exercício de suas funções caracteriza infração administrativa prevista na Lei n. 6.437/77 (art. 10, X), podendo ser aplicada, dentre outras, a pena de multa.
3.8 Tolerância de ingresso do vizinho
O Código Civil, no art. 1.313, I e II, obrigada o proprietário ou ocupante de imóvel a tolerar que o vizinho entre no prédio, mediante prévio aviso, para “dele temporariamente usar, quando indispensável à reparação, construção, reconstrução ou limpeza de sua casa ou do muro divisório” ou para “apoderar-se de coisas suas, inclusive animais que aí se encontrem casualmente.”
Nessa hipótese há conflito de interesses entre particulares. Por um lado tem-se o vizinho que tem o direito a reparar, construir, reconstruir, limpar sua casa ou o muro divisório, ou então, pegar suas coisas que caíram na casa do vizinho, inclusive animais que aí se encontrem. Por outro lado, tem-se o vizinho que possui o direito à inviolabilidade domiciliar. Nesse caso o legislador já decidiu que prevalecerá, desde que haja prévio aviso e seja pelo tempo estritamente necessário, o direito do vizinho em entrar no imóvel para exercer seus direitos em detrimento da inviolabilidade domiciliar.
Nesses casos, em razão do conflito de interesses ser entre particulares, caso o proprietário da casa não tolere o ingresso do vizinho, ou não devolva o bem móvel, será necessária autorização judicial, nos termos do art. 5º, XI, da Constituição Federal.
3.9 Ingresso do proprietário do imóvel locado
A Lei 8.245/91 (Lei de Locações) prevê que o locatário (aquele que aluga o imóvel de terceiros) é obrigado a permitir a vistoria do imóvel pelo locador ou por seu mandatário, mediante combinação prévia de dia e hora, bem como admitir que seja o mesmo visitado e examinado por terceiros, no caso de venda (art. 23, IX).
Caso o morador não autorize o ingresso do proprietário na residência ou de terceiro por ele indicado, poderá haver rescisão contratual37, não sendo possível que ingresse contra a vontade do morador, sem que haja autorização judicial, na medida em que não há previsão legal que autorize o ingresso sem ordem judicial, além de se tratar de um conflito entre particulares, devendo prevalecer o direito fundamental à inviolabilidade domiciliar.
Expostas todas as possibilidades de ingresso domiciliar, são as seguintes hipóteses a seguir esquematizadas, que permitem o ingresso em domicílio de terceiros:
Hipótese
Ordem Judicial
Durante o dia
Durante a noite
Fundamento
Autorização do morador
Não
Sim
Sim
Art. 5º, XI, da CF.
Flagrante delito
Não
Sim
Sim
Art. 5º, XI, da CF.
Desastre
Não
Sim
Sim
Art. 5º, XI, da CF.
Prestar socorro
Não
Sim
Sim
Art. 5º, XI, da CF.
Desapropriação
Não
Sim
Não
Art. 7º do Decreto-Lei n. 3.365/41.
Fiscalização de doenças transmitidas por mosquitos
4. O ingresso irregular em casa configura crime de abuso de autoridade?
O crime de abuso de autoridade de invasão de domicílio ocorre somente em imóveis, pois o tipo penal do art. 22 da Lei n. 13.869/19 diz expressamente que a invasão deve ser em “imóvel alheio ou suas dependências”.
O crime de violação de domicílio não exige que a invasão ocorra em imóvel, sendo este uma espécie de casa (gênero), que abrange imóveis e móveis.
Crime de abuso de autoridade deinvasão de domicílio
Crime de violação de domicílio
Art. 22. Invadir ou adentrar, clandestina ou astuciosamente, ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel alheio ou suas dependências, ou nele permanecer nas mesmas condições, sem determinação judicial ou fora das condições estabelecidas em lei: Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
Art. 150 – Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências: Pena – detenção, de um a três meses, ou multa. § 4º – A expressão “casa” compreende: I – qualquer compartimento habitado; II – aposento ocupado de habitação coletiva; III – compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade.
A Nova Lei de Abuso de Autoridade revogou o § 2º do art. 150 do Código Penal que era uma causa de aumento da pena, caso a invasão de domicílio fosse praticada por funcionário público fora dos casos legais, ou com inobservância das formalidades estabelecidas em lei, ou com abuso do poder, em razão da previsão específica do crime de abuso de autoridade para invasão de imóvel, mas se esqueceu de que a violação de domicílio pode ocorrer em móveis ou imóveis, sendo que agora a pena será maior somente quando a invasão ocorrer em imóveis, uma vez que o crime de abuso de autoridade previsto no art. 22 da Lei n. 13.869/19 possui pena mais grave e abrange somente os imóveis.
Portanto, o ingresso irregular em casa “móvel”, como um trailer ou motorhome, não caracteriza crime de abuso de autoridade, contudo configura crime de violação de domicílio (art. 150 do Código Penal ou art. 226 do CPM), uma vez que são considerados “casa” para fins de violação de domicílio, nos termos do art. 150, § 4º, I (qualquer compartimento habitado), do Código Penal. Trata-se de “casa sobre rodas”.
Noutro giro, caso a invasão de domicílio decorra de atuação policial em imóvel, caracterizará o crime de abuso de autoridade.
Não é objeto deste texto estudar detalhadamente o crime de abuso de autoridade de invasão de domicílio de o de violação de domicílio, o que ocorrerá oportunamente.
NOTAS
1Constituição de 1824 (art. 179, 7); Constituição de 1891 (art. 72, § 11); Constituição de 1934 (art. 113, 16); Constituição de 1937 (art. 122, 6); Constituição de 1946 (art. 141, § 15); Constituição de 1967 (art. 150, § 10); Emenda Constitucional n. 1/69 (art. 153, § 10); Constituição de 1988 (art. 5º, XI).
3MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional.33. ed. São Paulo: Atlas, 2016.
4APELAÇÃO CRIMINAL. VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO DURANTE A NOITE (CP, ART. 150, § 1º). SENTENÇA CONDENATÓRIA. RECURSO DO ACUSADO. 1. ATIPICIDADE. CASA DESABITADA. IMÓVEL DE VERANEIO. MOBÍLIA. DESOCUPAÇÃO TEMPORÁRIA. 2. DEFENSOR DATIVO. HONORÁRIOS RECURSAIS (CPC, ART. 85, §§ 1º E 11). ARBITRAMENTO POR EQUIDADE (CPC, ART. 85, §§ 2º e 8º). 1. A casa de praia que somente é ocupada por alguns meses e permanece temporariamente desabitada presta-se a ser objeto material do crime de violação de domicílio, especialmente se equipada com mobília e eletrodomésticos que identificam para qualquer pessoa que não se trata de local abandonado. 2. Faz jus à remuneração fixada de modo equitativo, em razão do trabalho adicional realizado em grau recursal, a defensora nomeada para atuar durante a instrução da ação que apresenta apelo. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. (TJ-SC – APR: 00026568020128240125 Itapema 0002656-80.2012.8.24.0125, Relator: Sérgio Rizelo, Data de Julgamento: 10/04/2018, Segunda Câmara Criminal)
6 STF, Inq. 2424/RJ, Tribunal Pleno, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ 26.03.2010.
7GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: direito das coisas. Volume 1. São Paulo: Saraiva, 9ª Edição, 2014.
8 No sentido de ser um conceito abrangente: STF – RHC: 90376 RJ, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 03/04/2007, Segunda Turma, Data de Publicação: DJe-018 DIVULG 17-05-2007 PUBLIC 18-05-2007 DJ 18-05-2007 PP-00113 EMENT VOL-02276-02 PP-00321 RTJ VOL-00202-02 PP-00764 RT v. 96, n. 864, 2007, p. 510-525 RCJ v. 21, n. 136, 2007, p. 145-147.
10Nesse sentido é a lição de Cezar Roberto Bitencourt ao citar como exemplo de “casa” no sentido de qualquer compartimento habitado, o abrigo embaixo de ponte ou viaduto etc. (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Especial 2. Dos crimes contra a pessoa. 14ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva. 2014.
12 STF – HC 82.424, rel. p/ o ac. min. Maurício Corrêa, j. 17-9-2003, P, DJ de 19-3-2004.
13STJ. 2ª Turma. AgRg no REsp 1200736/DF, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, julgado em 24/05/2011.
14 Súmula 619-STJ: A ocupação indevida de bem público configura mera detenção, de natureza precária, insuscetível de retenção ou indenização por acessões e benfeitorias. STJ. Corte Especial. Aprovada em 24/10/2018, DJe 30/10/2018.
15 Art. 1.210. O possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação, restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado. § 1 o O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse.
16 Parecer n. 193/2016 – Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo
18 Aplicação da teoria limitada da culpabilidade adotada pelo Código Penal (art. 20, §1º, do CP).
19 O STF já decidiu que o Poder Público deve advertir os presos e os acusados em geral do direito ao silêncio, o que se aplica à polícia. HC 99558/ES, rel. Min. Gilmar Mendes, 14.12.10. (HC-99558)
20 BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Manual de Direito Penal. Partes Geral e Especial. Volume Único. 1ª Ed. Salvador: Editora JusPODIVM. 2019. p. 887.
21NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 13. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2014. 1590 p.
22LIMA, Renato Brasileiro de. Código de Processo Penal Comentado. 2. ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2017. 1926 p.
23CASTRO, Henrique Hoffmann. Prisão em flagrante no domicílio possui limites. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5697, 5 fev. 2019. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/71781>. Acesso em: 4 abr. 2019.
24CASTRO, Henrique Hoffmann. Prisão em flagrante no domicílio possui limites. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5697, 5 fev. 2019. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/71781>. Acesso em: 4 abr. 2019.
25Não trataremos, neste momento, as distinções entre o Código Penal Comum e Militar, sendo suficiente saber que as consequências são as mesmas, ou seja, ausência de responsabilidade criminal.
26Para ler mais a respeito, consulte o texto “A perturbação do trabalho ou do sossego alheios” disponível no site “Atividade Policial”.
31 STF – HC: 103325 RJ, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 03/04/2012, Segunda Turma, Data de Publicação: ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-213 DIVULG 29-10-2014 PUBLIC 30-10-2014.
32 STF – MS: 23452 RJ, Relator: CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 16/09/1999, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ 12-05-2000 PP-00020 EMENT VOL-01990-01 PP-00086.
33 STF, Inq. 2424/RJ, Tribunal Pleno, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ 26.03.2010.
36 Caso se entenda que nas fiscalizações para a contenção de doenças não se exige autorização judicial, pois entendimento diverso levaria ao raciocínio de se exigir autorização judicial para qualquer caso.
Todas as pessoas possuem o mesmo grau de proteção constitucional da inviolabilidade domiciliar (art. 5º, XI, da CF), independentemente, da condição econômica. Trata-se de um direito assegurado aos ricos e aos pobres, ainda que estes morem em um barraco debaixo da ponte. Por serem os pobres mais vulneráveis, é necessário que haja uma maior proteção estatal, com o fim de assegurar a inviolabilidade domiciliar, na medida em que a igualdade de direitos fundamentais, em sua essência, só é assegurada quando os seus destinatários podem exercê-los em condições de igualdade e esta só é alcançada quando na vida real há igual proteção.
Para saber se o direito à inviolabilidade domiciliar é devidamente cumprido pelo Estado e por particulares, deve-se analisar no plano hipotético se as pessoas que adentraram à residência de uma pessoa simples, em uma favela (sem nenhuma conotação pejorativa), adentrariam também, diante das mesmas circunstâncias fáticas, na residência de uma pessoa abastada, em bairro nobre.
Caso a resposta seja negativa, é um indicativo de que pode ter ocorrido excessos ao ingressar no domicílio alheio.
A Constituição Federal especifica no art. 5º, XI, as hipóteses que autorizam o ingresso de terceiros em residência alheia, sem que se configure situação de ilegalidade.
Art. 5º (…) XI – a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial; (Vide Lei nº 13.105, de 2015)(Vigência)
Isto é, o ingresso é lícito nos casos de flagrante delito, desastre, pra prestar socorro ou durante o dia, por determinação judicial. Obviamente, o livre consentimento do morador também torna lícito o ingresso de terceiros em sua casa.
O Decreto n. 7.053, de 23 de dezembro de 2009, instituiu a Política Nacional para a População em Situação de Rua e define no art. 1º, parágrafo único, que considera população em situação de rua, para fins do Decreto, “o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória.”
Em que pese o referido decreto mencionar “para fins do Decreto” e passar a impressão de que este conceito deve ser aplicado somente para as hipóteses tratadas no Decreto que versem sobre a Política Nacional para a População em Situação de Rua, serve também para ser utilizado como parâmetro para o conceito de “casa” para as pessoas que vivem na rua, uma vez que o conceito de população em situação de rua é o mesmo sob todas as óticas e o próprio Decreto n. 7.053/09 visa promover os direitos humanos e a dignidade das pessoas que moram nas ruas, inclusive em relação à moradia (art. 7º, I).
Nota-se que, independentemente, de ocuparem um espaço público, o local que utilizam para moradia, temporária ou permanente, deve ser considerado “espaço de moradia”.
O art. 73 do Código Civil dispõe que “Ter-se-á por domicílio da pessoa natural, que não tenha residência habitual, o lugar onde for encontrada” e o o art. 7º, § 8º, da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro prescreve que “Quando a pessoa não tiver domicílio, considerar-se-á domiciliada no lugar de sua residência ou naquele em que se encontre.”
Trata-se do domicílio ocasional ou aparente.
O termo “domicílio” apresenta distinções conceituais de residência e moradia, também denominado habitação.
Domicílio é a sede jurídica da pessoa, onde ela se presume presente para feitos de direito e onde pratica habitualmente seus atos e negócios jurídicos.
A residência é, portanto, apenas um elemento componente do conceito de domicílio, que é mais amplo e com ela não se confunde. Residência, como foi dito, é simples estado de fato, sendo o domicílio uma situação jurídica. Residência, que indica a radicação do indivíduo em determinado lugar, também não se confunde com morada ou habitação, local que a pessoa ocupa esporadicamente, como a casa de praia ou de campo, ou o hotel em que passa uma temporada, ou mesmo o local para onde se mudou provisoriamente até concluir a reforma de sua casa. É a mera relação de fato, de menor expressão que residência.
Uma pessoa pode ter um só domicílio e mais de uma residência. (…)
Admite-se, também, que uma pessoa possa ter domicílio sem possuir residência determinada, ou em que esta seja de difícil identificação. Preleciona Orlando Gomes que, nesses casos, para resguardar o interesse de terceiros, vem-se adotando a teoria do domicílio aparente, segundo a qual, no dizer de Henri de Page, ‘aquele que cria as aparências de um domicílio em um lugar pode ser considerado pelo terceiro como tendo aí seu verdadeiro domicílio.’” (destaquei)
As leis utilizam a expressão domicílio sem rigor técnico, tanto é que emprega este termo na Constituição para se referir ao domicílio eleitoral (art. 14, § 3º, IV); no processo penal para fixar competência jurisdicional (art. 69, II, do CPP) e para tratar da busca domiciliar (art. 240 do CPP); no processo civil para tratar da fixação de competência (arts. 22, 46, 47, 48 e outros do CPC); no direito tributário para tratar do domicílio tributário (art. 127 do CTN), dentre outros.
Independentemente, do conceito ou termo que se utilize, a denominação “casa” contida no art. 5º, XI, da Constituição Federal é a expressão que contém a maior amplitude conceitual e independe da casa ser móvel ou imóvel, desde que seja um espaço utilizado para o momento de descanso, paz, sossego, privacidade, intimidade ou até mesmo para o trabalho, desde que não seja aberto ao público.
A expressão “casa” contida na Constituição abrange o conceito de domicílio, residência e de moradia (habitação), é um conceito abrangente.2
Diante desse cenário, pode-se dizer que as pessoas que moram nas ruas possuem direito à inviolabilidade domiciliar?
As pessoas que moram na rua e escolhem um canto para dormirem, ocasião em que deitam e dormem no chão ou sobre um simples colchão e colocam seus pertences ao lado, também gozam de proteção constitucional da inviolabilidade domiciliar, pois se encaixa no conceito de “qualquer compartimento habitado” (art. 150, § 4º, I, do CP). Portanto, este pequeno e simples espaço ocupado por um morador de rua, ainda que seja desprovido de divisão visual e de estrutura material, é considerado “casa” para fins da proteção constitucional da inviolabilidade domiciliar (art. 5º, XI), ainda que cada dia durma em um local diferente. Dessa forma, a polícia não pode abordar essas pessoas quando estiverem em suas casas sem que haja um mandado de busca e apreensão, salvo se visualizar a prática de crime, ocasião em que o agente estará em flagrante delito (art. 302 do CPP) ou em outra hipótese autorizada constitucionalmente. Caso haja suspeita de que essa pessoa guarde drogas ou armas consigo, mas não seja possível uma atuação em flagrante delito, em razão da ausência de elementos concretos para a atuação policial, poderá ser solicitado mandado de busca e apreensão ao juiz que poderá expedi-lo e constar como destinatário do mandado o morador que troca de casa diariamente, de forma que seja abordado onde for encontrado pela polícia.
Nesse sentido é a lição de Cezar Roberto Bitencourt ao citar como exemplo de “casa” no sentido de “qualquer compartimento habitado”, o abrigo embaixo de ponte ou viaduto etc.
Independentemente, de ocuparem um espaço público, o local que utilizam para moradia, temporária ou permanente, deve ser considerado casa para fins constitucionais.
Deryck Miranda Belizário no texto “Os Direitos Fundamentais das Pessoas em Situação de Rua: O Ministério Público como Instituição Garantidora Desses Direitos”3 escreve que “Apesar de ser um grupo heterogêneo (pessoas em situação de rua), possui em comum, caracterizando a situação precária de rua: a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional – seu teto são o sol e a lua, suas paredes são os papelões ou os viadutos e as pontes.”
Para o morador de rua não existe a moradia convencional e como muito bem afirmado pelo autor, “seu teto são o sol e a lua, suas paredes são os papelões ou os viadutos e as pontes.”
Para saber se o morador de rua se utiliza de um espaço público como “casa” deve-se observar o seu comportamento, o tempo que permanece no local, se utiliza para dormir, para o descanso, para se alimentar, para guardar seus objetos pessoais.
O direito à moradia é um direito social assegurado no art. 6º da Constituição Federal. Obviamente, o constituinte visou garantir uma moradia digna, e na ausência de uma moradia convencional, deve-se assegurar, ainda que minimamente, que o espaço que os moradores de rua fazem de “moradia” possua proteção constitucional.
Sequer o mínimo existencial e a dignidade da pessoa humana são assegurados aos moradores de rua – lamentavelmente, estão abaixo de qualquer noção de dignidade – que são vistos como coisas, quando não são tidos como seres invisíveis aos olhos da sociedade. Trata-se de um processo de coisificação ou invisibilidade do ser humano.
A polícia enquanto órgão protetor da sociedade e das pessoas e o policial enquanto promotor de direitos humanos, deve zelar, sobretudo, pelos direitos fundamentais das classes menos favorecidas, que são as que mais necessitam de proteção estatal.
Certo é que a Constituição ao garantir a inviolabilidade domiciliar visou tutelar a privacidade e da intimidade, mas não foi só, pois visou proteger também a paz e o sossego.
Os moradores de rua não terão privacidade e intimidade ao estarem expostos publicamente em um colchão em local público, mas possuem o direito de gozarem de paz e de sossego, que são direitos assegurados na Constituição ao garantir a inviolabilidade domiciliar. Assegura-se ainda que precariamente, uma parte das finalidades do direito fundamental à inviolabilidade domiciliar.
Entender que os moradores de rua não possuem direito ao sossego e paz quando estiverem em seus “cantos”, que servem como “casa”, por morarem na rua, seria uma verdadeira negação de um direito fundamental para pessoas que já possuem uma vida extremamente sofrida e que necessitam de uma maior proteção estatal.
Em qualquer caso, não se deve permitir que os moradores de rua impeçam ou dificultem a livre circulação de pessoas ou veículos, em razão do interesse público e da necessidade de se assegurar o direito à locomoção sem que haja importunações.
Deve haver razoabilidade na ocupação de locais públicos por moradores de rua, de forma que não impeça o livre exercício de direito por terceiros, inclusive, o direito ao lazer, o que ocorreria na hipótese em que um morador de rua utilizasse um espaço de brinquedo infantil de uma praça para dormir.
A proteção da “casa” utilizada pelos moradores de rua deve ocorrer enquanto estiverem em seus “cantos”, geralmente, composto por um simples colchão ou colchonete, objetos de uso pessoal e algumas peças de roupa.
A partir do momento em que o morador de rua sai de seu “canto” e anda pelas ruas, perde o direito à proteção domiciliar, pois deixa de estar em “casa”, razão pela qual poderá ser abordado livremente pela polícia, caso apresente situação de fundada suspeita.
Argumentos no sentido de que os moradores de rua ocupam espaço público ou que praticam violência contra transeuntes e entre si, o que impossibilita a garantia da inviolabilidade domiciliar não se sustentam, pois, mutatio mutatis seria o mesmo que argumentar que as casas em favelas (termo utilizado sem nenhuma conotação pejorativa) com alto índice de criminalidade não merecem proteção, pois foram criadas em espaços públicos e são locais violentos.
O fato de ocupar espaços nas ruas, debaixo de viaduto e de pontes, quando não trouxer prejuízo para nenhuma outra pessoa ou para o exercício de direito, deve ser tolerado pelo Poder Público, por uma questão social e humana, no sentido de se considerar “casa” para fins do art. 5º, XI, da Constituição Federal (função social da casa). Além do mais, o Decreto n. 7.053, de 23 de dezembro de 2009, reconhece a utilização desses espaços públicos como moradia da população em situação de rua.
A violência protagonizada por moradores de rua entre si e contra os transeuntes deve sim ser motivo de ação da polícia, contudo dentro dos limites da lei, de forma que somente aqueles moradores de rua que apresentarem suspeita da prática de crime, como portar droga, arma ou objeto produto de crime, sofram abordagens.
Eventuais abordagens realizadas aos moradores de rua como rotina policial, sem que haja qualquer fundamento, como uma estratégia de prevenção à prática de crimes, é inconstitucional e seria uma forma de presumir que a extrema pobreza implica estar mais propenso para a prática de crime.
Infelizmente, muitos moradores de rua são usuários de drogas ou alcoólatras, o que propicia a prática de crimes, razão pela qual a atuação da polícia preventivamente é essencial, sem, contudo, adentrar às humildes casas – se é que assim podem ser chamadas – dos moradores de rua, podendo realizar abordagens enquanto transitam pelas ruas ou dentro de suas casas quando for visualizado qualquer prática de crime.
O Brasil registra um alto índice de violência contra moradores de rua, que superou 17 mil casos de violência em três anos (2015-2017)4, o que reforça a necessidade do Estado garantir uma maior proteção da segurança dos moradores de rua.
O espaço que o morador de rua utiliza para dormir e guardar seus pertences, em que pese ser considerado “casa” para fins de proteção constitucional, não deve ser utilizado como um espaço seguro para guardar objetos produtos do crime. Direitos fundamentais não servem para a salvaguarda de práticas ilícitas5, mas sim para assegurar a proteção de direitos essenciais ao homem, que permitam usufruir de uma vida digna.
Deve-se salientar que a amplitude do conceito de “casa” visa resguardar a proteção constitucional da inviolabilidade (art. 5º, IX, da CF), o que não permite que o morador de rua se utilize de sua “casa” para com ela permanecer em local público, sendo vedado, inclusive, o uso de ações possessórias contra o poder público6, a eventual retenção ou indenização por acessões e benfeitorias7 e a usucapião de bem público (art. 183, § 3º, da CF). É possível que o Poder Público, inclusive, se utilize da autotutela e autoexecutoriedade e aplicação do art. 1.210, § 1º, do Código Civil (legítima defesa da posse ou desforço imediato)8 para retirar pessoas que queiram tornar o espaço público em local de uso privado9, caso se observe que um morador de rua, por exemplo, está a construir em um espaço público.
Destaco que o tema é altamente polêmico, controverso e o posicionamento sustentado neste texto encontrará resistências, sob a alegação principal de que o espaço utilizado é público.10
Na hipótese em que policiais adentrarem à “casa” de um morador de rua para realizar buscas, não haverá a prática do crime de abuso de autoridade previsto no art. 22 da Nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei n. 13.869/19), pois este crime ocorre somente em imóveis, uma vez que o tipo penal do art. 22 da Lei n. 13.869/19 diz expressamente que a invasão deve ser em “imóvel alheio ou suas dependências”11.
Lado outro, o crime de violação de domicílio não exige que a invasão ocorra em imóvel, sendo este uma espécie de casa (gênero), que abrange imóveis e móveis.
Crime de abuso de autoridade deinvasão de domicílio
Crime de violação de domicílio
Art. 22. Invadir ou adentrar, clandestina ou astuciosamente, ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel alheio ou suas dependências, ou nele permanecer nas mesmas condições, sem determinação judicial ou fora das condições estabelecidas em lei: Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
Art. 150 – Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências: Pena – detenção, de um a três meses, ou multa. § 4º – A expressão “casa” compreende: I – qualquer compartimento habitado; II – aposento ocupado de habitação coletiva; III – compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade.
A Nova Lei de Abuso de Autoridade revogou o § 2º do art. 150 do Código Penal que era uma causa de aumento da pena, caso a invasão de domicílio fosse praticada por funcionário público fora dos casos legais, ou com inobservância das formalidades estabelecidas em lei, ou com abuso do poder, em razão da previsão específica do crime de abuso de autoridade para invasão de imóvel, mas se esqueceu de que a violação de domicílio pode ocorrer em móveis ou imóveis, sendo que agora a pena será maior somente quando a invasão ocorrer em imóveis, uma vez que o crime de abuso de autoridade previsto no art. 22 da Lei n. 13.869/19 possui pena mais grave e abrange somente os imóveis.
Dessa forma, o ingresso irregular nas “casas” de moradores de rua poderia configurar o crime de violação de domicílio, porém, dada a controvérsia do tema, deve-se aplicar a regra das descriminantes putativas.
Descriminantes são as causas de exclusão da ilicitude (estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal e exercício regular de um direito).
Putativa refere-se ao que parece, mas não é. É aquilo que é imaginário, que o agente acredita, seriamente, que ocorre uma situação, mas na verdade não ocorre.
As descriminantes putativas caracterizam as situações em que o agente atua acreditando estar acobertado por uma causa excludente de ilicitude, mas na verdade não está.
O equívoco da presença de uma causa excludente de ilicitude pode recair sobre a sua existência, os seus limites ou os seus pressupostos fáticos.
Na hipótese a descriminante putativa recai sobre a existência de uma causa excludente de ilicitude, pois o policial supõe equivocadamente, que existe uma causa que exclui a ilicitude (estrito cumprimento do dever legal putativo ao realizar uma abordagem dentro da “casa” do morador de rua, o que é permitido por se tratar de “casa”, mas o policial desconhece que é “casa” ou acolhe entendimento de que não é “casa”), o que exclui o dolo, seja o equívoco evitável ou não, e por inexistir crime de violação de domicílio culposo, o policial não será punido.12
Destaco que nas hipóteses de divergência jurisprudencial ou doutrinária que adotem entendimentos razoáveis e defensáveis, o acolhimento de um dos entendimentos pelo policial não deve levar à responsabilização criminal, seja pelo fato de possuir autonomia para aplicar o direito dentro das possibilidades jurídicas e legais existentes, seja por incidir em uma descriminante putativa, caso outra autoridade entenda, posteriormente, que o entendimento que deveria ser aplicado é diverso, como a hipótese em que o juiz julgar de forma diferente ao entendimento aplicado pelo policial, pois trata-se somente de uma divergência de entendimento, quando defensável, e não prática de arbitrariedades. De mais a mais, a Lei de Abuso de Autoridade prescreve que “a divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade” (art. 1º, § 1º), previsão esta que deve ser aplicada como cláusula geral para todas as situações de atuação policial, desde que não seja feita uma interpretação absurda, como admitir a possibilidade de prender em flagrante uma pessoa encontrada dias após a prática do crime.
NOTAS
1 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: direito das coisas. Volume 1. São Paulo: Saraiva, 9ª Edição, 2014.
2 No sentido de ser um conceito abrangente: STF – RHC: 90376 RJ, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 03/04/2007, Segunda Turma, Data de Publicação: DJe-018 DIVULG 17-05-2007 PUBLIC 18-05-2007 DJ 18-05-2007 PP-00113 EMENT VOL-02276-02 PP-00321 RTJ VOL-00202-02 PP-00764 RT v. 96, n. 864, 2007, p. 510-525 RCJ v. 21, n. 136, 2007, p. 145-147.
5 STF – HC 82.424, rel. p/ o ac. min. Maurício Corrêa, j. 17-9-2003, P, DJ de 19-3-2004.
6 STJ. 2ª Turma. AgRg no REsp 1200736/DF, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, julgado em 24/05/2011.
7 Súmula 619-STJ: A ocupação indevida de bem público configura mera detenção, de natureza precária, insuscetível de retenção ou indenização por acessões e benfeitorias. STJ. Corte Especial. Aprovada em 24/10/2018, DJe 30/10/2018.
8 Art. 1.210. O possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação, restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado. § 1 o O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse.
9 Parecer n. 193/2016 – Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo
11 Art. 22. Invadir ou adentrar, clandestina ou astuciosamente, ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel alheio ou suas dependências, ou nele permanecer nas mesmas condições, sem determinação judicial ou fora das condições estabelecidas em lei: Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
12 Aplicação da teoria limitada da culpabilidade adotada pelo Código Penal (art. 20, §1º, do CP).
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Especial 2. Dos crimes contra a pessoa. 14ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva. 2014.
Art. 155 – Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa. § 4º – A pena é de reclusão de dois a oito anos, e multa, se o crime é cometido: II – com abuso de confiança, ou mediante fraude, escalada ou destreza;
Art. 171 – Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento: Pena – reclusão, de um a cinco anos, e multa, de quinhentos mil réis a dez contos de réis.(Vide Lei nº 7.209, de 1984)
A fraude consiste no emprego de um meio suficiente e apto a enganar a vítima e pode consistir no emprego de artifício ou ardil.
Artifício é a fraude material, isto é, é o emprego de um instrumento, de roupas ou de algum disfarce, de uma aparência externa, para enganar a vítima, como a hipótese em que um agente se veste como funcionário da concessionária de energia para entrar na casa de uma pessoa e subtrair bens. Nota-se que o meio emprego foi material (roupas), portanto, houve um artifício.
Ardil é a fraude moral ou intelectual, é a conversa enganosa, é a aparência interna, é o que a pessoa aparenta ser ou dizer, é a conversa que induz a pessoa ao erro, a ter uma fala percepção da realidade, como o caso de uma pessoa que se diz ser representante comercial de uma empresa de cosméticos para entrar na casa e subtrair bens.
O emprego de fraude no furto é uma qualificadora (furto qualificado, art. 155, § 4º, II, do CP), enquanto que no estelionato é elementar do crime (estelionato simples, art. 171, caput, do CP).
Em que pese haver o emprego de fraude no furto e no estelionato, os dois crimes não se confundem.
No furto a fraude é empregada com o fim de reduzir, dificultar ou impedir a vigilância da vítima que passa a ficar desatenta, ocasião em que o agente subtrai o bem, sem que a vítima perceba. No estelionato a fraude é usada com o fim da vítima ser induzida ao erro e passar a ter uma falsa noção da realidade, de forma que o seu consentimento estará viciado, ocasião em que entregará o bem, espontaneamente, ao agente.
Caso o emprego da fraude não seja suficiente para a subtração ocorrer sem que a vítima perceba, o crime será de furto simples (art. 155, caput, do CP).
A respeito da distinção entre os dois crimes, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que a “distinção se faz primordialmente com a análise do elemento comum da fraude que, no furto, é utilizada pelo agente com o fim de burlar a vigilância da vítima que, desatenta, tem seu bem subtraído, sem que se aperceba; no estelionato, a fraude é usada como meio de obter o consentimento da vítima que, iludida, entrega voluntariamente o bem ao agente.”
As diferenças entre o furto mediante fraude e o estelionato podem assim serem esquematizadas.
Diferenças
Furto mediante fraude
Estelionato
Vontade da vítima
A retirada da coisa é contra a vontade da vítima (discordância da vítima).
A vontade da vítima é viciada e a entrega da coisa é voluntária (consentimento da vítima).
Vigilância da vítima
A vítima tem a vigilância dificultada, impedida ou reduzida.
A vítima é induzida ao erro, independentemente, de estar vigilante ou não.
Conduta
Há a subtração do bem que é retirado da vítima pelo agente.
Há a subtração do bem que é entregue ao agente pela vítima.
Apresentada a distinção conceitual entre furto mediante fraude e estelionato, passa-se a analisar diversos casos hipotéticos.
Caso hipotético 01: Motorista para com o carro no posto de gasolina e após o abastecimento, sai com o carro sem pagar.
Crime: Estelionato (art. 171 do CP).
Fundamento: O motorista ao parar o carro para abastecer o faz como qualquer outro motorista – esta é a fraude empregada, pois finge ser um cliente como qualquer outro -, ou seja, o agente induz o frentista ao erro, que atua espontaneamente ao abastecer o carro e acredita que o pagamento será efetuado normalmente, contudo o motorista decide acelerar o carro e sair do posto sem pagar. O mesmo raciocínio aplica-se quando o abastecimento é feito pelo próprio cliente, pois a bomba é liberada por um funcionário do posto, o que consiste na atuação espontânea ao possibilitar o abastecimento.1
Salienta-se haver entendimento em sentido diverso, sob o fundamento de que a fraude foi utilizada para distrair o frentita, razão pela qual o crime é o de furto qualificado pela fraude.2 Há ainda entendimento de que se trata de furto simples, pois não há o emprego de fraude no fato de abastecer o veículo e evadir-se em seguida. Prevalece que se trata de crime de estelionato.
Caso hipotético 02: Uma pessoa chega a um restaurante de carro e entrega as chaves para uma pessoa que se passou pelo manobrista do restaurante. Ao sair do restaurante, essa pessoa não é encontrada, nem o carro, momento em que percebe ter sido vítima de um golpe.
Crime: Estelionato (art. 171 do CP).
Fundamento: O motorista ao entregar as chaves do carro para a pessoa que se identificou como motorista acreditava, realmente, que era o manobrista – esta é fraude empregada, pois o agente simula ser o manobrista do restaurante. A vítima foi induzida ao erro e tinha uma fala noção da realidade (acreditava ser o manobrista do restaurante), tanto é que entregou a chave do carro espontaneamente.
Caso hipotético 03: Uma pessoa procura uma concessionária de veículos e solicita ao vendedor autorização para fazer um test drive, o que é autorizado e durante a realização do test drive, o agente foge com o veículo.
Crime: Estelionato (art. 171 do CP), se o agente já tiver o dolo de subtração do veículo no momento da realização do test drive. Do contrário, caso o dolo seja subsequente, haverá o crime de apropriação indébita (art. 168 do CP).
Art. 168 – Apropriar-se de coisa alheia móvel, de que tem a posse ou a detenção:
Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa.
Fundamento: No estelionato, o agente atua com o dolo desde o início, e ao dizer que fará um test drive, consequentemente, implica dizer que o veículo será devolvido – esta é a fraude, consistente em conversa enganosa (ardil) -, contudo, o agente subtrai o veículo. Além do mais, o carro é entregue espontaneamente pela concessionária, o que é uma característica do estelionato.
Caso o dolo seja posterior, ou seja, o agente realmente tivesse a intenção de devolver o carro, mas durante o test drive tem um insight criminoso e assim decide agir, subtraindo o veículo, responderá pelo crime de apropriação indébita, pois o agente recebeu o veículo de boa-fé, sem a intenção de se apropriar, a entrega foi voluntária, utilizou o veículo sem vigilância da concessionária e houve inversão do ânimo em relação ao carro, passando o agente a se comportar como se dono fosse, sendo o dolo subsequente ao recebimento do veículo. Caso o agente, desde o momento em que pediu o carro para realizar um test drive, pretende-se se apropriar do veículo, o crime seria o de estelionato. Na hipótese em que o agente não tiver a posse desvigiada do veículo e se aproveitar de uma distração do proprietário, o crime será o de furto.
Em que pese tecnicamente o caso do test drive ser o crime de estelionato, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, por uma questão de política criminal, entende ser o crime de furto mediante fraude, em razão da precariedade da posse, a vítima espera ter o bem de volta. A finalidade desse entendimento é assegurar o pagamento do seguro do veículo que, comumente, não abrange o estelionato (política criminal).3
Caso hipotético 04: O agente comparece à casa de uma pessoa e diz ser um funcionário da concessionária de energia e encontra-se devidamente trajado com as vestimentas compatíveis. O agente alega que precisa realizar a leitura do registro e pede para entrar na casa, o que é autorizado. Ao ingressar solicita um copo com água e quando o morador vai buscar, o agente subtrai bens que estão próximos de si e coloca na mochila.
Crime: Furto mediante fraude (art. 155, § 4º, II, do CP)
Fundamento: O agente utilizou-se de roupas da concessionária (artifício) e de conversa enganosa (ardil) com o fim de distrair a vítima ao pedir para buscar água e, consequentemente, subtrair os bens sem que a vítima perceba.
Caso hipotético 05: O agente realiza uma ligação clandestina de energia (“gato de energia elétrica). Neste caso há um desvio de energia elétrica que não passa pelo medidor, que é o que ocorre quando o agente liga um fio de energia elétrica diretamente do poste em sua casa, sem passar pelo medidor. Assim, o agente sequer pagará pelo uso da energia.
Crime: Furto mediante fraude (art. 155, § 4º, II, do CP)
Fundamento: O emprego da fraude ocorre a partir do momento em que a energia é desviada, pois a concessionária não sabe que ocorre um desvio de energia mediante a utilização de um aparato material (fios que desviam a energia), o que dificulta a vigilância da vítima. A energia está sendo subtraída sem que a vítima perceba. A vítima, neste caso, não é induzida ao erro, que é o que acontece no estelionato, pois o próprio agente subtrai energia, sem que esta seja fornecida, entregue, pela vítima.
Caso hipotético 06: O agente adultera o medidor de energia com o fim de pagar menos do que deveria. Ou seja, diferentemente do caso hipotético 05, neste o agente efetua o pagamento da energia, mas em um valor menor do que o valor real, que efetivamente foi gasto.
Crime: Estelionato (art. 171 do CP).
Fundamento: O emprego da fraude ocorre no ato de reduzir o total de consumo no medidor de energia, pois engana a vítima a entregar a prestação de um bem (energia), sem a devida contraprestação. A vítima é levada a erro em fornecer uma quantidade de energia superior àquela que foi paga ou aparentemente demonstra ter sido utilizada pelo agente.
Nesse sentido decidiu o Superior Tribunal de Justiça.
No caso dos autos, verifica-se que as fases “A” e “B” do medidor estavam isoladas por um material transparente, que permitia a alteração do relógio e, consequentemente, a obtenção de vantagem ilícita aos acusados pelo menor consumo/pagamento de energia elétrica – por induzimento em erro da companhia de eletricidade. Assim, não se trata da figura do “gato” de energia elétrica, em que há subtração e inversão da posse do bem. Trata-se de serviço lícito, prestado de forma regular e com contraprestação pecuniária, em que a medição da energia elétrica é alterada, como forma de burla ao sistema de controle de consumo – fraude – por induzimento em erro, da companhia de eletricidade, que mais se adequa à figura descrita no tipo elencado no art. 171, do Código Penal (estelionato). STJ.AREsp 1.418.119-DF, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, por unanimidade, julgado em 07/05/2019, DJe 13/05/2019
Caso hipotético 07: Realização de saques indevidos, mediante a obtenção fraudulenta de senha pela internet ou instalação de “chupa-cabra” em caixa eletrônico ou mediante a clonagem de cartão bancário.
Crime: Furto mediante fraude (art. 155, § 4º, II, do CP).
Fundamento: Nos três exemplos a fraude utilizada visou dificultar ou impossibilitar a vigilância da vítima que, sem saber, teve seu bem (dinheiro) subtraído.
O agente ao conseguir, de forma fraudulenta, pela internet, os dados de acesso à conta bancária da vítima e efetuar a transferência de recursos, emprega fraude que impede ou dificulta a vigilância da vítima em relação aos seus recursos, até por desconhecimento. Tal fraude é comumente empregada com o envio de mensagens eletrônicas ou abertura de telas falsas, ocasião em que a vítima preenche seus dados e estes são captados pelo agente (phishing). Observe, ainda, que o dinheiro foi subtraído pelo agente e não entregue pela vítima.4
A instalação de chupa-cabra visa captar dados da vítima, o que dificulta a vigilância desta em relação aos seus recursos financeiros que estão no banco, até mesmo em razão do desconhecimento. O dinheiro é subtraído pelo agente e não entregue pela vítima.5
A clonagem do cartão bancário também é furto mediante fraude pelo fato do agente se utilizar de um objeto fraudado (artifício) para sacar dinheiro na conta da vítima, ou seja, o dinheiro é subtraído pelo agente e não entregue pela vítima, mediante o uso de fraude.6
Caso hipotético 08: O agente realiza compras on-line com cartão e dados de terceiro.
Crime: Estelionato (art. 171 do CP).
Fundamento: O agente utiliza-se de um meio fraudulento consistente no uso de dados de terceiro, o que se assemelha à conversa enganosa (ardil), para realizar compra na internet e obter consentimento de terceiro que lhe envia o produto adquirido mediante o uso de fraude.7
Caso hipotético 09: O agente desloca-se a uma loja, escolhe o produto e antes de passar no caixa troca a embalagem deste produto por uma embalagem cujo preço é menor e efetua o pagamento do menor preço.
Crime: Furto mediante fraude (art. 155, § 4º, II, do CP).
Fundamento: O agente utiliza-se de um meio fraudulento para enganar o estabelecimento comercial com o fim de dificultar a vigilância da vítima, já que o produto mais caro está dentro da embalagem de um produto mais barato e este não é, comumente, conferido no ato do pagamento. Nota-se a presença da clandestinidade em razão da vigilância ter sido burlada (o produto estava dentro da embalagem). O agente subtrai o bem sem que a vítima perceba, pois o que foi entregue voluntariamente para o agente foi a embalagem, sem saber o conteúdo real que esta possuía. Nota-se que o agente subtrai o bem, pois este não foi entregue pela vítima, que desconhecia a troca do produto que estava no interior da embalagem.8
Caso hipotético 10: O agente desloca-se a uma loja, escolhe o produto e antes de passar no caixa troca a etiqueta deste produto pela etiqueta de um produto mais barato e efetua o pagamento.
Crime: Estelionato (art. 171 do CP).
Fundamento: O agente induziu a vítima ao erro, mediante o uso de fraude (troca das etiquetas) e obteve o consentimento da vítima que estava ciente que entregava de forma voluntária para o agente uma camisa, sem saber que o valor estava trocado. A vítima tinha uma falsa noção da realidade. A camisa foi entregue voluntariamente pela vítima.9
A distinção entre os casos hipotéticos 9 e 10 é mínima e reside no conhecimento que a vítima tinha do produto que foi subtraído. Na troca da embalagem a vítima acredita que o conteúdo desta é o real, mas não é, razão pela qual o agente subtrai o conteúdo, pois não lhe foi entregue com o conhecimento da vítima (furto mediante fraude). A vigilância da vítima está burlada. Na troca de etiquetas a vítima sabe o conteúdo do que está sendo entregue, mas foi enganada em razão de um artifício (estelionato). A vítima foi iludida e entregou o bem voluntariamente ao agente.
NOTAS
1Nesse sentido: TJ-DF – APR: 20040110390020 DF, Relator: ROBERVAL CASEMIRO BELINATI, Data de Julgamento: 10/08/2006, 1ª Turma Criminal, Data de Publicação: DJU 21/03/2007 Pág. : 179.
2 BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Manual de Direito Penal. Partes Geral e Especial. Volume Único. 1ª Ed. Salvador: Editora JusPODIVM. 2019. p. 943.
3DIREITOS CIVIL E PENAL – SEGURO DE AUTOMÓVEL – FURTO QUALIFICADO – SEGURADO VÍTIMA DE TERCEIRO QUE, A PRETEXTO DE TESTAR VEÍCULO POSTO A VENDA, SUBTRAI A COISA – INDENIZAÇÃO PREVISTA NA APÓLICE – PERDA TOTAL DO BEM. INDENIZAÇÃO – PAGAMENTO DO VALOR AJUSTADO NO CONTRATO (APÓLICE) – RECURSO PROVIDO.
I – Segundo entendimento desta Corte, para fins de pagamento de seguro, ocorre furto mediante fraude, e não estelionato, o agente que, a pretexto de testar veículo posto à venda, o subtrai (v.g. REsp 226.222/RJ, DJ 17/12/99, HC 8.179-GO, DJ de 17.5.99).
III – Sendo o segurado vítima de furto, é devido o pagamento da indenização pela perda do veículo, nos termos previstos na apólice de seguro.
III – Recurso conhecido e provido para julgar procedente o pedido, condenando a recorrida ao pagamento do valor segurado, devidamente corrigido desde a data da citação, invertendo-se os ônus sucumbenciais.
(REsp 672.987/MT, Rel. Ministro JORGE SCARTEZZINI, QUARTA TURMA, julgado em 26/09/2006, DJ 30/10/2006, p. 310)
4CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. PENAL E PROCESSUAL PENAL. FURTO MEDIANTE FRAUDE. TRANSFERÊNCIA BANCÁRIA VIA INTERNET SEM O CONSENTIMENTO DA VÍTIMA. CONSUMAÇÃO NO LOCAL DA AGÊNCIA ONDE O CORRENTISTA POSSUI A CONTA FRAUDADA. COMPETÊNCIA DO JUÍZO SUSCITADO. 1. A Terceira Seção desta Corte Superior firmou o entendimento no sentido de que a subtração de valores de conta corrente, mediante transferência fraudulenta, utilizada para ludibriar o sistema informatizado de proteção de valores, mantidos sob guarda bancária, sem consentimento da vítima, configura crime de furto mediante fraude, previsto no art. 155, § 4º, inciso II, do Código Penal – CP. 2. O delito em questão consuma-se no local da agência bancária onde o correntista fraudado possui a conta, nos termos do art. 70 do Código de Processo Penal – CPP; no caso, na Comarca de Barueri/SP. Conflito de competência conhecido para declarar competente o Juízo de Direito da 1ª Vara Criminal de Barueri/SP, o suscitado. (STJ – CC: 145576 MA 2016/0055604-1, Relator: Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, Data de Julgamento: 13/04/2016, S3 – TERCEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 20/04/2016)
5PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. FURTOS QUALIFICADOS MEDIANTE FRAUDE, EM CONTINUIDADE DELITIVA, E FORMAÇÃO DE QUADRILHA. CLONAGEM DE CARTÕES MAGNÉTICOS PARA SAQUES E COMPRAS. “CHUPA-CABRA” INSTALADO EM TERMINAIS ELETRÔNICOS. BANCO 24 HORAS. PREJUÍZO PARA VÁRIAS INSTITUIÇÕES BANCÁRIAS. CAIXA ECONÔMICA FEDERAL. LESÃO A BENS, SERVIÇOS OU INTERESSES DA UNIÃO E DE SUAS EMPRESAS PÚBLICAS. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. ART. 109, IV, DA CF. APARENTE CONEXÃO ENTRE OS DELITOS A RECLAMAR PELA APLICAÇÃO DA SÚMULA 122/STJ. RECURSO PROVIDO. I – A competência da Justiça Federal na tutela dos bens, serviços e interesses de Empresa Pública Federal abarca a Caixa Econômica – CEF, por sua própria natureza. II – In casu, a prática de furtos qualificados mediante fraude relacionados às contas de diversos banco, dentre eles da Caixa Econômica Federal implica lesão à bens, serviços ou interesses da União, de modo que compete à Justiça Federal o processamento e julgamento do feito, nos termos do art. 109, IV, da CF. III – Havendo aparente conexão entre os delitos de competência federal e estadual, devem os autos serem remetidos para a Justiça Federal. Súmula 122/STJ. IV – O parecer do d. Ministério Público Federal é no sentido do provimento do presente recurso. Recurso ordinário provido para reconhecer a competência da Justiça Federal. (STJ – RHC: 36653 RJ 2013/0093301-1, Relator: Ministro FELIX FISCHER, Data de Julgamento: 18/06/2015, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 25/06/2015)
6RECURSO ESPECIAL. PENAL. CLONAGEM DE CARTÃO. UTILIZAÇÃO DE CHUPA-CABRA. SAQUES EM TERMINAL ELETRÔNICO. FURTO QUALIFICADO PELA FRAUDE. DESCLASSIFICAÇÃO. ESTELIONATO. IMPOSSIBILIDADE. OFENSA AO ART. 66 DO CÓDIGO PENAL. AUSÊNCIA DE INTERESSE RECURSAL. PLEITO ABSOLUTÓRIO. INVIABILIDADE. INCIDÊNCIA DO ENUNCIADO SUMULAR N.º 07 DESTA CORTE. RECURSO PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA EXTENSÃO, DESPROVIDO. 1. O furto mediante fraude não se confunde com o estelionato. A distinção se faz primordialmente com a análise do elemento comum da fraude que, no furto, é utilizada pelo agente com o fim de burlar a vigilância da vítima que, desatenta, tem seu bem subtraído, sem que se aperceba; no estelionato, a fraude é usada como meio de obter o consentimento da vítima que, iludida, entrega voluntariamente o bem ao agente. 2. Hipótese em que o Acusado se utilizou de equipamento coletor de dados, popularmente conhecido como “chupa-cabra”, para copiar os dados bancários relativos aos cartões que fossem inseridos no caixa eletrônico bancário. De posse dos dados obtidos, foi emitido cartão falsificado, posteriormente utilizado para a realização de saques fraudulentos. 3. No caso, o agente se valeu de fraude – clonagem do cartão – para retirar indevidamente valores pertencentes ao titular da conta bancária, o que ocorreu, por certo, sem o consentimento da vítima, o Banco. A fraude, de fato, foi usada para burlar o sistema de proteção e de vigilância do Banco sobre os valores mantidos sob sua guarda, configurando o delito de furto qualificado. 4. O Recorrente não possui interesse jurídico no recurso quanto à aplicação da atenuante da confissão espontânea, pois não ocorreu a alegada exclusão da minorante. 5. A pretensão de modificar o entendimento firmado pelas instâncias ordinárias acerca da autoria e da materialidade do delito demandaria amplo reexame de provas, o que se sabe vedado na via estreita do recurso especial, a teor do disposto no enunciado sumular n.º 07 desta Corte. 6. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, desprovido. (STJ – REsp: 1412971 PE 2013/0046975-4, Relator: Ministra LAURITA VAZ, Data de Julgamento: 07/11/2013, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 25/11/2013)
7CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. PENAL. INQUÉRITO. OPERAÇÕES DE CRÉDITO REALIZADAS EM LOJAS VIRTUAIS MEDIANTE A UTILIZAÇÃO DE CARTÕES MAGNÉTICOS E CPF DE TERCEIROS. ESTELIONATO. CONSUMAÇÃO. COMARCAS DIVERSAS. COMPETÊNCIA FIRMADA PELA PREVENÇÃO. 1. Indiciado que realizava compras em estabelecimentos virtuais utilizando-se de dados de cartão de crédito e CPF de terceiros. Valendo-se deste ardil, induzia as empresas lesadas a entregar gize-se voluntariamente e com o seu consentimento, as mercadorias objeto do crime. 2. Não sendo possível definir, até o presente momento, o local exato da infração, mormente a indicação de que várias foram as vítimas e empresas lesadas, mostra-se aplicável, portanto, o disposto no art. 70, § 3º, c.c. o art. 83, do CPP, segundo os quais: “incerto o limite territorial entre duas ou mais jurisdições, ou quando incerta a jurisdição por ter sido a infração consumada ou tentada nas divisas de duas ou mais jurisdições, a competência firmar-se-á pela prevenção”. 3. Conflito conhecido para determinar competente o suscitado, Juízo de Direito da 1ª Vara Criminal de João Pessoa PB (STJ – CC: 95343 SP 2008/0087697-3, Relator: Ministro OG FERNANDES, Data de Julgamento: 25/03/2009, S3 – TERCEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: 20090424 –> DJe 24/04/2009)
8 BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Manual de Direito Penal. Partes Geral e Especial. Volume Único. 1ª Ed. Salvador: Editora JusPODIVM. 2019. p. 943.
9 BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Manual de Direito Penal. Partes Geral e Especial. Volume Único. 1ª Ed. Salvador: Editora JusPODIVM. 2019. p. 943.
A perturbação do trabalho ou do sossego alheios é uma contravenção penal prevista no art. 42 do Decreto-Lei n. 3.688/41.
Art. 42. Perturbar alguem o trabalho ou o sossego alheios:
I – com gritaria ou algazarra;
II – exercendo profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais;
III – abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos;
IV – provocando ou não procurando impedir barulho produzido por animal de que tem a guarda:
Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.
a) Bem jurídico tutelado
A finalidade deste tipo contravencional é tutelar a paz pública, a tranquilidade e o direito ao sossego.
O direito ao sossego entre vizinhos encontra previsão no art. 1.277 do Código Civil.
Art. 1.277. O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha.
O direito à paz e a viver livre de perturbações encontra, inclusive, previsão constitucional, em razão do disposto no art. 144 da Constituição Federal, que assegura o direito à preservação da ordem pública.
A ordem pública subdivide-se em salubridade, tranquilidade e segurança pública. A tranquilidade pública, por sua vez, abrange o direito ao sossego e à possibilidade de viver em paz em seu sentido mais amplo, sem que haja perturbações de ordem criminal ou cível.
Nesse sentido, o art. 42 da Lei de Contravenções Penais tutela um direito assegurado constitucionalmente, que é a tranquilidade, a paz pública, o sossego.
b) Sujeitos da contravenção penal
O sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, enquanto que o sujeito passivo é primariamente, a sociedade, a coletividade e, secundariamente, os indivíduos que forem diretamente afetados.
A vítima pode ser somente a sociedade composta por pessoas físicas, por seres humanos. Não abrange animais, que são protegidos pelo art. 54 da Lei n. 9.605/98. Não abrange, também, pessoa jurídica, pelo simples fato desta não sofrer perturbação, dada a inexistência de vida própria.
Não é possível que qualquer contravenção penal seja praticada por pessoa jurídica, uma vez que no Brasil a pessoa jurídica, atualmente, só pode ser responsabilizada por crimes ambientais (art. 225, § 3º, da CF c/c art. 3º da Lei n. 9.605/98).
A Constituição Federal autoriza no art. 173, § 5º, a responsabilização penal da pessoa jurídica nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular, todavia, inexiste lei que trate que trata dessa responsabilidade criminal.
c) Elemento subjetivo
Exige-se que o agente atue de forma dolosa. Basta o dolo genérico. Admite-se o dolo direto ou eventual. Não admite-se a forma culposa, por ausência de previsão legal.
d) Análise das condutas do tipo penal
Para que esteja caracterizada a contravenção penal não é suficiente que esteja presente a perturbação do trabalho ou do sossego alheios, sendo necessário que esta perturbação seja realizada mediante uma das formas definidas nos incisos do art.42 da Lei de Contravenções Penais.
Art. 42. Perturbar alguem o trabalho ou o sossego alheios:
I – com gritaria ou algazarra;
II – exercendo profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais;
III – abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos;
IV – provocando ou não procurando impedir barulho produzido por animal de que tem a guarda:
Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.
Perturbar significa atrapalhar, incomodar, aprontar, embaraçar, causar desordem.
Alguém refere-se ao autor da contravenção penal, termo que foi empregado de forma completamente desnecessária, além de gerar confusões interpretativas, por possibilitar interpretação de que o “alguém” refere-se a determinada pessoa como vítima, o que não é verdade, pois trata-se de uma contravenção penal inserida no capítulo IV, que trata das contravenções penais referentes à paz pública. Além do mais, uma leitura atenta, possibilita concluir que o “perturbar alguém” refere-se ao autor do tipo contravencional.
Trabalho refere-se à atividade profissional, ao emprego, ao serviço.
Sossego trata da tranquilidade, do estado de paz, da possibilidade de uma pessoa ficar em um ambiente sereno, calmo.
O termo “alheios” refere-se a terceiras pessoas. Repare que o termo é emprego no plural, o que permite afirmar que é necessário mais de uma pessoa. Por se tratar de contravenção penal que visa tutelar a paz pública, são necessárias várias pessoas para a sua caracterização.
d.1) Perturbação mediante gritaria ou algazarra;
Gritar é falar em voz alta. Gritaria é o tom de voz alto do ser humano, que extrapola a naturalidade das conversas no dia a dia. Algazarra é o som alto, o barulho, produzido por ser humano, desde que não seja a voz.
Um grupo de pessoas que anda pela rua chutando garrafas e arrastando objetos que provocam um barulho alto, está a praticar algazarra.
Não caracteriza a contravenção penal cantar parabéns em tom alto ou um dar um grito de alegria de forma isolada ao assistir a um jogo de futebol e o seu time do coração fazer o gol da vitória aos 45 do segundo tempo, pois a lei visa coibir a perturbação de sossego intencional e não gritarias isoladas de alegria.
Nesse sentido, “o simples cantar, manifestação de saúde e felicidade do cidadão, ainda que por vezes um tanto alto, não configura a infração do art. 42 da LCP” (TACrim – RT 224/370).
A lei proíbe a perturbação com gritaria ou algazarra e não a simples manifestação de alegria ou falar um pouco alto (TJSC – RT, 491/352).
O Supremo Tribunal Federal já decidiu que a pessoa que no afã de agredir determinada servidora de um posto de saúde, adentra ao recinto e, com gritaria e algazarra, perturba a todos que ali se encontravam, pratica a contravenção penal de perturbação do sossego.1
A perturbação do trabalho de uma funcionária e de um médico no hospital, mediante gritaria e algazarras, configura a contravenção penal de perturbação do sossego.2
A realização de festa com gritaria e algazarras, bem como a execução de som em volume alto, viola a tranquilidade dos vizinhos e caracteriza a contravenção penal de perturbação do sossego.3
Algumas lojas mantêm seus funcionários na calçada com microfone anunciando os produtos com o fim de atrair clientes, o que é mais comum nos centros das cidades. Caso o som seja compatível com o barulho local, não haverá contravenção penal de perturbação de sossego, em que pese esta ocorrer, mas não a ponto de merecer a tutela penal., em razão do barulho razoável e normal no dia a dia ser comum à vida.
d.2) Perturbação mediante o exercício de profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais;
Trata-se de norma penal em branco, isto é, exige-se para a sua configuração a presença de outra lei (norma penal em branco homogênea) ou norma administrativa (norma penal em branco heterogênea) que limite ou defina as condições para o funcionamento da atividade profissional que ao ser infringida e perturbar o trabalho ou sossego alheios, caracterizará a contravenção penal em análise.
Profissão incômoda é aquela cujo o seu exercício importuna ou causa algum tipo de desconforto, como a construção civil.
Profissão ruidosa é aquela que causa ruídos, sons ou barulhos que incomodam, como uma indústria em funcionamento que faz alto barulho.
Quando o tipo contravencional diz “prescrições legais” utiliza o termo “legais” de forma genérica, o que permite abranger abrange toda a legislação (leis e normas)
(…) para a caracterização dessa contravenção, é necessário que haja um diploma disciplinado das atividades laboriosas, emanado do poder público competente, estabelecendo o horário de funcionamento de indústrias, fábricas, igrejas, bares, restaurantes, e quaisquer outros estabelecimentos comerciais. Jurisprudência (TACrimSP – RT, 671/349): “Em tema de conduta contravencional consistente em perturbação do trabalho ou do sossego alheios pelo exercício de profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo coma as prescrições legais, não se tendo produzido nenhum elemento de convicção acerca da existência ou vigência de lei, postura, ou ato administrativo ou regulamentação municipal disciplinadores das atividades públicas suscetíveis de gerar atribulações sonoras ou ruidosas, descabe cogitar de capitular o evento no inciso II do art. 42 do Dec-Lei nº 3.688/41, norma penal em branco”.
Em Belo Horizonte, a Lei n. 9.505/08 dispõe que são tolerados os ruídos e sons provenientes dos serviços de construção civil no período compreendido entre 10:00 h e 17:00 h (art. 10, I). Portanto, caso haja perturbação decorrente da construção civil fora desse intervalo de tempo, haverá a prática de contravenção penal de perturbação de sossego decorrente do exercício de profissão incômoda.
Caso uma fábrica barulhenta tenha autorização para funcionar até as 18:00 horas, mas exceda esse horário e provoque pertubação do trabalho ou do sossego alheios, haverá a prática da contravenção penal prevista no art. 42, II, do Decreto-Lei n. 3.688/1941.
Em Belo Horizonte, a Lei n. 9.505/08 dispõe que são tolerados os ruídos e sons provenientes dos serviços de construção civil no período compreendido entre 10:00 h e 17:00 h (art. 10, I). Portanto, caso haja perturbação decorrente da construção civil fora desse intervalo de tempo, haverá a prática de contravenção penal de perturbação de sossego decorrente do exercício de profissão incômoda.
Na hipótese em que inexistir qualquer lei ou norma que limite ou imponha condições para o exercício da profissão que está a gerar incômodo ou ruídos, não há que se falar em contravenção penal de perturbação de sossego.
d.3) Perturbação mediante abuso de instrumentos sonoros ou sinais acústicos;
Abuso consiste em excesso. É aquilo que extrapola, é o que foge do razoável, do bom senso.
Instrumentos sonoros são os que emitem som, como os aparelhos de música (violão, guitarra, teclado, piano).
Sinais acústicos são os aparelhos de som, como as caixas de som, as televisões, aparelhos de rádio, o som do carro.
Os sinais acústicos emitidos por viaturas policiais, por ambulâncias e por outros veículos oficiais, quando devidamente empregados, não caracterizam perturbação do trabalho ou do sossego alheios, uma vez que a atuação decorrerá do estrito cumprimento do dever legal, podendo-se, ainda, considerar o fato como atípico em razão da ausência de antinormatividade (teoria da tipicidade conglobante).
O proprietário de um estabelecimento comercial que perturba a vizinhança de modo significativo com a manutenção de som alto e algazarras em seu bar, pratica o ilícito descrito no art. 42, inc. III, da LCP.5
Uma pessoa que realiza festa particular com excessivo volume de som e incomoda vizinhos, pratica a contravenção penal em estudo.6
O dono de bar que realiza apresentações e músicas ao vivo e causa barulho acima dos limites tolerado, em horário avançado, pratica contravenção penal de perturbação de sossego, sendo irrelevantes a autorização para funcionamento do estabelecimento ou a mudança posterior da conduta.7
d.3.1) Perturbação do trabalho e do sossego alheios em razão do carnaval e de eventos festivos;
Em épocas festivas, como o carnaval que ocorre em todo o Brasil, ocasião em que é utilizado som alto decorrente do uso de instrumentos sonoros, sinais acústicos, além da gritaria e algazarra, pelas ruas da cidade, deve haver uma maior tolerância, em razão dos costumes, da adequação social e do direito ao lazer (art. 4º do Decreto-Lei n. 4.657/42; art. 6º da CF). Deve-se levar em consideração também que eventos festivos ocorrem periodicamente, como o carnaval que é realizado uma vez por ano e em todo o país.
Nesse sentido, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul já autorizou a realização de carnaval de rua em razão do direito ao lazer e pela impossibilidade de se assegurar a imposição absoluta do direito ao sossego.
AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO AMBIENTAL AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ALEGAÇÕES DE POLUIÇÃO SONORA E PERTURBAÇÃO DO SOSSEGO. CARNAVAL DE RUA DO MUNICÍPIO DE CASCA. LIMINAR DE PROIBIÇÃO. DESCABIMENTO. Diante da existência de diversos valores em exame, dentre os quais os direitos ao sossego e ao meio-ambiente saudável, bem como o direito ao lazer, diante do contexto probatório e não havendo como concluir pela preponderância absoluta dos primeiros a ponto de proibir a realização do carnaval de rua no Município de Casca, evento comemorado em todo o País, sob pena de impor excessiva limitação ao lazer, ensejando o indeferimento da liminar. Hipótese em que a Municipalidade, em audiência de justificação prévia com a presença de representantes de vários setores da comunidade, comprometeu-se à realização de diversas medidas, a fim de preservar os interesses da coletividade, no exercício do poder de polícia. (TJ-RS – AG: 70041364522 RS, Relator: Carlos Eduardo Zietlow Duro, Data de Julgamento: 23/02/2011, Vigésima Segunda Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 02/03/2011)
O Tribunal de Justiça de Minas Gerais já decidiu pela manutenção do carnaval de rua em razão da proteção ao patrimônio histórico, dos direitos culturais, do lazer, do turismo e da tradição em se realizar o evento.
(…) 2- Concessão de antecipação de tutela, em ação civil pública, no sentido de proibição de realização de festividades de carnaval, na área central de município, ao fundamento de vulneração da segurança e sossego público, bem como de danos ao patrimônio arquitetônico e histórico. 3 – Direitos do cidadão, constitucionalmente garantidos, de segurança e de sossego públicos, da mesma forma que é dever do Poder Público, e da Comunidade, a proteção e preservação do patrimônio histórico, como preceitua o § 1º, do art. 216, da CF\88. 4- Contrapartida, pela consideração da previsão constitucional ao pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, bem como ao direito constitucionalmente garantido ao lazer, além do fomento ao turismo e economia locais, como forma do poder, que possui o ente público municipal, de propulsão da comunidade local. 5- Necessidade, para a disciplina da medida antecipatória concedida, de ponderação dos interesses e princípios constitucionais envolvidos. 6- Presença, na legislação estadual e municipal, de exceção de posturas. Razoabilidade, em razão da natureza anual e isolada do evento. 7- Eventual responsabilização por ato ilícito, se ocorrente, que ser buscada na via adequada, contra os devidos causadores, ausente motivo suficientemente razoável para privar a comunidade de comemorar o carnaval em sua cidade. 8– Poder Público Municipal que é dotado de meios para garantir a segurança e o sossego públicos, através da requisição de policiamento e segurança pública, a fim de coibir os eventuais excessos dos foliões, retiradas de veículos de locais de estacionamento proibido, etc., sem que tenha de se impedir a realização da tradicional festividade. 9- Elementos probatórios colacionados aos autos, que indicam a impossibilidade de realização das festividades em outro local da cidade. 10 – Tradicional realização das festividades carnavalescas no centro da cidade, aliada à impossibilidade, até então demonstrada, de realização dos eventos em outro local do Município, que induz a necessidade de manutenção provisória da realização das festividades nos espaços públicos onde é tradicionalmente comemorada, não sendo razoável o abrupto impedimento. (…) (TJ-MG – AI: 10028140026270001 MG, Relator: Sandra Fonseca, Data de Julgamento: 16/12/2015, Câmaras Cíveis / 6ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 18/12/2015)
Não se quer dizer que nesses períodos não possa ocorrer a contravenção penal de perturbação de sossego, todavia a verificação desta contravenção durante o carnaval deve ter parâmetros que se adaptem à realidade do momento, podendo, para tanto, ser utilizado os horários de autorização para o funcionamento do carnaval de rua, o horário limite do uso do som e os locais autorizados a utilizarem o som.
Tome como exemplo um palco instalado na praça de uma cidade, autorizado pela prefeitura a ter música até as 02:00. Passado o horário, o som continua no palco, em volume alto, e incomoda os moradores locais. Haverá a prática de contravenção penal de perturbação de sossego.
Não se trata de criar um horário para definir quando será perturbação de sossego ou não, pois o direito ao sossego e tranquilidade não tem horário. Ocorre que se trata de uma excepcionalidade decorrente de um evento festivo periódico, aceito socialmente, o que legitima uma maior tolerância pelos moradores que residam nas proximidades do local que emite som alto.
Caso haja a instalação de palco em local não autorizado, o incômodo decorrente do som alto caracterizará a contravenção penal de perturbação de sossego, pois não há que se falar em aplicação da adequação social e do costume para a realização de um evento não autorizado legalmente, pois o Poder Público, em tese, estuda e analisa os pontos de foco e concentração para autorizar as festividades de acordo com a realidade local.
O princípio da adequação social, concebido por Hans Welzel, exclui a tipicidade material. O fato será atípico.
Carnaval não é uma profissão incômoda ou ruidosa. É um evento cultural, razão pela qual não há que se falar em perturbação de sossego mediante o exercício de profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais.
d.4) Perturbação provocando ou não procurando impedir barulho produzido por animal de que tem a guarda;
Provocar é dar causa, é originar. Não procurar impedir é não evitar, não fazer cessar ou pelo menos tentar fazer cessar.
O barulho pode ser emitido por qualquer animal (cachorro, gatos, pássaros).
Ter a guarda significa ter sob sua responsabilidade, seja o dono do animal ou não.
O agente que atua “provocando” estimula o animal a fazer barulho, enquanto que o agente que atua “não procurando impedir”, tem ciência do barulho emitido pelo animal, mas nada faz para cessá-lo ou diminuí-lo.
Um morador que possui cães que latem muito durante o dia, o que incomoda vizinhos, e nada faz para cessar a perturbação, pratica a contravenção penal de perturbação de sossego por omissão. Neste caso o morador deve adotar meios para manter a paz e o sossego, como instalar isolamento acústico ou cuidar dos cães para que façam menos barulho, no limite do tolerável, como eventuais latidos durante o dia.
Caso o morador estimule os cães a latirem em sua casa, o que incomoda vizinhos, também praticará contravenção penal de perturbação de sossego, dessa vez por ação.
Em condomínios não é possível proibir de maneira absoluta que os moradores tenham animais, desde que não perturbe o sossego, a segurança, a saúde e a higiene.8
e) Classificação da infração penal
A perturbação de sossego é uma infração penal comum, pois pode ser praticada por qualquer pessoa; pode ser praticada mediante ação ou omissão, neste caso quando o responsável por animal não toma as medidas necessárias para que este cesse os barulhos; é uma contravenção penal material, isto é, exige-se a ocorrência de efetiva perturbação, é necessário que haja várias pessoas que se sintam incomodadas; a sua prática é de forma vinculada, pois somente pode ser praticada nas formas indicadas pelos incisos I a V do art. 42 da Lei de Contravenções Penais; é unissubjetivo, pois pode ser praticado somente por uma pessoa ou por várias; é plurissubsistente, pois a perturbação do sossego ocorre mediante a prática de vários atos e não de um só.
Em tese, as infrações penais plurissubsistentes admitem tentativa, ocorre que nas contravenções penais a tentativa não é punível (art. 4° do Decreto-Lei n. 3.688/41).
No plano fático é possível que haja tentativa em uma contravenção penal, todavia esta não é punível por opção legislativa.
f) Consumação. Como comprovar a consumação da perturbação de sossego? É possível que haja perturbação de sossego em razão de uma denúncia anônima ou reclamação de somente uma pessoa?
A consumação ocorre a partir do momento em que é perturbado o trabalho ou o sossego de várias pessoas.
Nota-se que o caput do art. 42 da Lei de Contravenções Penais diz: perturbar o trabalho ou o sossego alheios (alheios, no plural, o que indica uma pluralidade de pessoas, uma vez que esta contravenção penal está no capítulo das contravenções que tutelam a paz pública).
Não há que se falar em paz pública de duas pessoas. Não é possível definir um mínimo de pessoas para que seja possível a ocorrência da perturbação de sossego, devendo-se, no entanto, considerar pelo menos três pessoas, o que deve ser aferido caso a caso, pois essas três pessoas podem ser moradores de uma mesma casa, dormirem no mesmo quarto, o que não é suficiente para caracterizar a contravenção penal, pois mais importante do que atingir um número mínimo de pessoas é a perturbação atingir locais diversos, casas diversas, pois a paz pública é violada quando o incômodo atinge uma coletividade e, naturalmente, ao perturbar um morador de uma casa perturbará outros moradores dessa mesma casa, o que não demonstra que a paz pública foi violada.
É possível que a contravenção penal de perturbação de sossego esteja consumada, ainda que somente uma pessoa tenha ligado para o 190 e não se identifique, pois a exigência da presença de vítimas/testemunhas visa provar a ocorrência da contravenção penal e não configurar a sua existência, já que a vítima é a coletividade. Quem reclama do som alto não é obrigado a comparecer ao local para que a polícia tome providências, mas será obrigado a fornecer os dados para ser arrolado como vítima/testemunha (arts. 201, 202 e 206, todos do CPP).
É possível que haja denúncia anônima de perturbação de sossego ou que somente uma pessoa acione a polícia, todavia os policiais que atenderem a ocorrência deverão constatar a prática da perturbação.9
A prova da perturbação de sossego pode ocorrer por qualquer meio idôneo, como gravação do barulho em uma distância que possa dizer objetivamente que está havendo perturbação de sossego, como gravar em imagem e som a uma distância de alguns quarteirões do local dos fatos, somado às diversas ligações recebidas via 190, que poderão ser comprovadas por registro das gravações que ocorrem no 190.
Nesse sentido, “não se exige, para a configuração da contravenção penal do art. 42, III, embora recomendável, que sejam perfeitamente identificadas e nominadas, tampouco inquiridas, as vítimas da perturbação do sossego. Suficiente é a prova de que o som excessivo tenha provocado perturbação ao sossego dos vizinhos, que, em mais de uma ocasião, acionaram os policiais militares à residência do acusado. Se a contravenção penal está comprovada pelo depoimento de policiais militares, acionados por vizinhos perturbados com o barulho de som mecânico, os quais constataram o excessivo volume do som produzido pela festa particular, está configurada a contravenção penal. Sabe-se que a contravenção penal de perturbação de sossego alheio não é delito que deixa vestígios, a ponto de se exigir que sua comprovação se dê somente por exame pericial, ou que seja necessário medir, por equipamento próprio, o barulho provocado pelo aparelho de som.”10
Caso não haja identificação do que representaria a coletividade atingida, como a ausência de qualquer vítima11 ou testemunha ou de filmagens ou de qualquer prova, não há que se falar em pertubação de sossego.
Na hipótese em que não houver perturbação à paz social, o fato é atípico, pois exige-se para a consumação da perturbação de sossego que haja um incômodo coletivo, plural e não somente de uma única pessoa.
Nesse sentido, já decidiu o Supremo Tribunal Federal.
Habeas Corpus. 2. Contravenção Penal. 3. Perturbação do Trabalho ou Sossego Alheios. 4. Atipicidade da conduta. 5. Ausência de perturbação à paz social. 6. Falta de justa causa. 7. Ordem concedida. (STF – HC: 85032 RJ, Relator: Min. GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 17/05/2005, Segunda Turma, Data de Publicação: DJ 10-06-2005 PP-00060 EMENT VOL-02195-02 PP-00288 RTJ VOL-00193-03 PP-01069 RJSP v. 53, n. 333, 2005, p. 139-141 RMDPPP v. 2, n. 7, 2005, p. 110-113)
O relator Ministro Gilmar Mendes fundamentou em seu voto no HC n. 85032 que:
Conforme a orientação doutrinária, o bem jurídico tutelado é a paz pública, a tranqüilidade da coletividade, não existindo a contravenção quando o fato atinge uma única pessoa. A objetividade aí não se refere ao repouso individual, mas ao da coletividade: A simples susceptibilidade de um individuo, a sua maior intolerância ou a irritabilidade de um neurastênico não é gradua a responsabilidade. A excitação auditiva, a percepção dolorosa de sons agudos, a hiperacusia de alguém não é o que justifica a repressão.
No caso, a denúncia (fl. 45) descreve um fato que atingiria apenas o morador do apartamento do andar inferior, donde a não tipificação da contravenção do art. 42. Nem é o caso de se cogitar de enquadramento na contravenção do art. 65 pois, para tanto, além da ofensa à tranqüilidade pessoal, seria necessária, também, a descrição dos elementos subjetivos do tipo, acinte ou motivo reprovável.” (fls. 129-131)
Com efeito, o interesse tutelado pelo tipo contravencional se refere às pessoas “in genere”. Tal como afirma Marcello Jardim Linhares, “o sujeito passivo da contravenção é a coletividade indistinta que em realidade concreta se identifica numa pluralidade de pessoas vivas em determinado ambiente, embora mais restrito, porque não ocorre a identificação das pessoas singulares que tenham sofrido a perturbação.” (LINHARES, Marcello Jardim. Contravenções Penais. São Paulo: Saraiva, 1980, v.1, p. 363) Sobre este tema, vale destacar os seguintes comentários ao art. 42 da Lei de Contravencoes Penais: “A excitação auditiva, a percepção dolorosa de sons agudos, a hipercusia de alguém não é que justifica a repressão. A perturbação deve, assim, ser incômoda aos que habitam um quarteirão, residem em uma vila, se recolhem a um hospital, freqüentam uma biblioteca.” (DUARTE, José. Comentários a Lei das Contravenções Penais. São Paulo: Forense, 1958, v.2, p. 179) “Já tem a jurisprudência decidido que ficará a critério do juiz a apreciação de cada caso de perturbação, quer do trabalho, quer do sossego, não se devendo levar em conta o excesso de suscetibilidade do queixoso, mas sim a sensibilidade média dos cidadãos. Não bastará, para a integração da contravenção, a perturbação que só atinja um indivíduo ou um número muito restrito de pessoas.” (COSTA LEITE, Manoel Carlos. Lei das Contravencoes Penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976, p. 166)
“Cabe considerar, inicialmente, que o simples fato de alguém, por qualquer motivo ou capricho, ou ainda ser portador de qualquer irritabilidade, se sentir perturbado em seu trabalho ou em sua tranqüilidade por fatos sem importância, pensamos, não ocorrer a figura em estudo. Necessário, pois, que a perturbação seja analisada, devidamente considerados os seus elementos em concreto, para que se caracterize a figura aqui estudada.” (FIDA, Orlando; GUIMARÃES, Carlos A. M.; BIASOLI, Ângelo. Comentários à Lei das Contravencoes Penais. São Paulo: Livraria Editora Universitária de Direito, 1974, p. 65)
O fato de uma ou mais pessoas serem mais suscetíveis a se irritarem com barulho não caracteriza a perturbação de sossego.12 O barulho tem que ser aferido de tal forma que cause incômodo para o homem médio.
É desnecessário que haja um número excessivo de vítimas, sendo suficiente a prova de que a coletividade foi afetada, como comprovar o alto barulho a uma distância considerável do local do som ou que moradores de casas diferentes foram perturbados.13
Caso o som alto ocorra em local isolado, que não seja área residencial, como em um sítio, não há que se falar em perturbação de sossego, em razão da inexistência da coletividade para figurar como vítima, o que caracteriza impropriedade absoluta do objeto (aplicação do instituto do crime impossível às contravenções penais).
O som alto que limita-se a um espaço fechado, seja dentro de uma casa ou salão de festas, não caracteriza perturbação de sossego, pois esta caracteriza-se quando atinge a coletividade. Assim, o morador de uma casa que está com som alto, mas local, em razão de uma festa de outro morador, e que aciona a polícia com o fim de silenciar o barulho local, não deve ser atendido, mas somente orientado via 190 que não se trata de “caso de polícia”, salvo se os ânimos locais estiverem aflorados e o caso puder evoluir para fatos graves.
f.1) É necessário que haja a produção de prova técnica (perícia) para a comprovação da perturbação de sossego?
Não é necessária a realização de perícia ou a utilização de um decibelímetro para aferir se há perturbação de sossego, pois o tipo contravencional exige somente a perturbação do trabalho ou do sossego alheios, o que pode ser comprovado por qualquer meio de prova admitido no direito.
A jurisprudência é pacífica pela desnecessidade de realização de perícia para comprovar a ocorrência de perturbação de sossego.14
Deve-se destacar, no entanto, que a perícia somente não será necessária quando houver outras provas que demonstrem a prática da contravenção penal de perturbação de sossego.15
g)A perturbação do sossego está condicionada a horário, local ou intensidade do som? Existe lei do silêncio?
A crença popular de que a perturbação de sossego só pode ocorrer após as 22:00 horas ou qualquer outro horário não é verdadeira, uma vez que a Lei de Contravenções Penais não delimita horários para que haja perturbação de sossego, podendo esta ocorrer a qualquer hora do dia ou da noite e em qualquer local que haja a possibilidade de perturbação do sossego da coletividade.
A intensidade do som deve ser suficiente para provocar o desconforto e incômodo a outras pessoas, o que deve ser aferido de acordo com o homem médio. Isto é, o barulho é suficiente para incomodar uma pessoa que esteja dentro dos padrões “de normalidade” da sociedade, no sentido de não ser sensível a barulhos, causador de problemas ou se irritar facilmente com os desconfortos do dia a dia?
A conhecida “lei do silêncio” trata de leis municipais que versem sobre o controle de ruídos e sons nos municípios, sem que interfira na infração penal de perturbação de sossego prevista no art. 42 do Decreto-Lei n. 3.688/41. Geralmente, essas leis possuem previsão de sanções administrativas para as hipóteses de perturbação de sossego.
Em Belo Horizonte, a Lei n. 9.505, de 23 de janeiro de 2008, é conhecida como Lei do Silêncio e proíbe a emissão de ruídos, sons e vibrações, produzidos de forma que: I – ponha em perigo ou prejudique a saúde individual ou coletiva; II – cause danos de qualquer natureza às propriedades públicas ou privadas; III – cause incômodo de qualquer natureza; IV – cause perturbação ao sossego ou ao bem-estar públicos; V – ultrapasse os níveis fixados nesta Lei (art. 2º).
Os artigos 3º e 4º estipulam os horários e o limite de decibéis dentro do município de Belo Horizonte.
Horário
Níveis máximos de decibéis
07:01 às 19:00
70
19:01 às 22:00
60
22:01 às 23:59
50
00:00 às 07:00
45
Quando a propriedade em que se dá o suposto incômodo tratar-se de escola, creche, biblioteca pública, cemitério, hospital, ambulatório, casa de saúde ou similar, deverão ser atendidos os menores limites: a) em período diurno: 55 dB; b) em período vespertino: 50; c) em período noturno: 45 dB.
A violação ao disposto na lei municipal de Belo Horizonte pode acarretar em advertência; multa; interdição parcial ou total da atividade, até a correção das irregularidades; cassação do Alvará de Localização e Funcionamento de Atividades ou de licença (art. 13).
A fiscalização do cumprimento do limite de decibéis em um município pode ocorrer por servidores do próprio município, pela Guarda Municipal ou pela Polícia Militar, contudo será necessário possuir equipamento técnico para aferir os decibéis.
O respeito ao quantitativo de decibéis limitado por um município afasta a prática da contravenção penal de perturbação de sossego, em razão da teoria da tipicidade conglobante (ausência de conduta antinormativa), pois não se tem como punir o que a própria lei autoriza. A interpretação da tipicidade exige a análise de todo emaranhado de normas, razão pela qual se a própria lei permite que durante o dia uma pessoa faça barulho até tantos decibéis, não há fundamento para permitir a sua punição, por estar “dentro dos limites da lei”.
De qualquer forma, repita-se, o art. 42 da Lei de Contravenções Penais não exigiu quantitativos de decibéis para aferir se há perturbação de sossego, devendo-se avaliar pelo homem médio, o que possibilita, inclusive, que não seja constatada a prática de infração administrativa, mas se comprove a prática de infração penal, pois esta não exige avaliação técnica, aquela sim, já que tem que aferir os decibéis.
Em síntese, para fins de infração administrativa, por exigir quantitativo de decibéis, é necessária a produção de prova técnica; para fins penais, não se exige a prova técnica, razão pela qual é possível admitir qualquer meio de prova admitido no direito.
A Lei n. 9.505/08 (Lei do Silêncio de Belo Horizonte/MG) traz consequências administrativas (multa) para quem descumprir os limites de decibéis previstos na lei, mas não ressalva a possibilidade daquele que descumprir a Lei do Silêncio responder criminalmente.
A jurisprudência é pacífica que quando a própria lei já impõe consequências cíveis ou administrativas, sem ressalvar a possibilidade da responsabilização criminal, é porque o legislador já entendeu que aquelas punições, por si sós, são suficientes para atingirem o caráter preventivo e sancionador da conduta ilícita, razão pela qual não se deve invocar o direito penal, que possui caráter subsidiário no tocante à aplicação de punições, por poder atingir um direito fundamental de elevada importância, a liberdade.16
Dessa forma, nos municípios que possuem Lei do Silêncio e imponha as sanções para o caso de descumprimento, é possível a prática de contravenção penal de perturbação de sossego? Entendo que sim, pois a Lei do Silêncio, como a de Belo Horizonte, impõe limites de decibéis, o que é desnecessário para a prática da contravenção penal de perturbação de sossego. Pode ocorrer de haver infração administrativa em razão do desrespeito ao limite previsto na Lei do Silêncio, mas não haver perturbação de sossego, por não ter ocorrido uma perturbação coletiva. Nota-se que são critérios distintos, razão pela qual é possível cumular a infração administrativa com a criminal, ainda que a lei que preveja a infração administrativa não tenha feito essa ressalva. Além do mais, é no mínimo questionável a possibilidade de uma lei municipal trazer uma infração administrativa e por via transversas impossibilitar a aplicação de uma lei de conteúdo criminal, já que a matéria de direito criminal compete à União legislar.
h) E se a perturbação de sossego decorrer do exercício da liberdade religiosa?
O art. 5º, VI, da Constituição Federal assegura o livre exercício dos cultos religiosos como um direito fundamental.
O direito à paz e a viver livre de perturbações encontra previsão constitucional, em razão do disposto no art. 144 da Constituição Federal, que assegura o direito à preservação da ordem pública que subdivide-se em salubridade, tranquilidade e segurança pública. A tranquilidade pública, por sua vez, abrange o direito ao sossego e à possibilidade de viver em paz em seu sentido mais amplo, sem que haja perturbações de ordem criminal ou cível.
O direito ao sossego entre vizinhos encontra previsão no art. 1.277 do Código Civil.
Art. 1.277. O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha.
A liberdade de culto garantida pelo art. 5º, inc. IV, da Constituição Federal, não serve para excluir a tipicidade dos responsáveis, pois o sossego e a tranquilidade alheia são bens jurídicos tutelados pelo ordenamento jurídico, de sorte que não é permitido a ninguém perturbar o trabalho ou sossego alheio com exercício de atividade ruinosa mesmo em se tratando de cultos religiosos. A propósito: Incorre nas sanções do art. 42, I e III, da LCP, os agentes que, durante cultos religiosos realizados durante a noite nos dias de semana e sábados, perturbam os vizinhos da sede da Igreja, utilizando-se de microfones e guitarras elétricas em volume alto, promovendo gritarias, lamentações e cânticos” (TACRIM-SP – RJD27/174)
Ricardo Andreucci18 cita julgado em que um pastor foi absolvido da prática da contravenção penal de perturbação de sossego pelo fato de inexistir limites previstos em lei ou em ato municipal em relação aos cultos religiosos.
Embora normalmente ruidosas, pelo clamor dos fiéis e pelo uso de guitarras, amplificadores e alto-falantes, as reuniões de oração da igreja Pentecostal Deus é Amor só tipificariam a contravenção do art. 42 da lei específica se violassem os limites eventualmente previstos em lei ou ato municipal disciplinadores das práticas públicas desse culto religioso. Logo, inexistindo prova da existência de norma ou medida nesse sentido, impõe-se a absolvição do pastor responsável por tais atividade” (TACrimSP – RT, 624/324)
Ocorre que ainda que não exista nenhum ato normativo que limite os decibéis ou a forma de exercício do culto religioso, este não pode causar grandes incômodos aos vizinhos, pois o direito ao sossego dos vizinhos encontra-se previsto no art. 1.277 do Código Civil, além de também ser um direito constitucional.
Deve haver uma ponderação de valores de forma que se permita a realização de cultos com os barulhos naturais de um evento religioso, sem excessos e incômodos excessivos. Para tanto, os locais que realizam cultos (igrejas ou até mesmo em residências) devem moderar a intensidade do som ou realizar obras necessárias para que haja isolamento acústico.
Nesse sentido, já decidiu o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
“Vizinhança. Obrigação de fazer e indenização. Preliminar rejeitada. Barulho excessivo decorrente dos cultos da igreja ré. Comprovação. De rigor a condenação da ré a promover obras necessárias para a contenção do som. Liberdade religiosa que não autoriza ignorar a perturbação do sossego alheio. Precedentes da jurisprudência. Danos morais constatados. Valor da indenização que não comporta redução” (Ap. 0000786-74.2014.8.26.0480, 36ª Câm. Dir. Privado do TJSP, j. 03.03.16, rel. Milton Carvalho).
“Direito de vizinhança. Ação de obrigação de fazer c/c indenização por danos materiais e morais. Imóvel utilizado para culto religioso. Barulho excessivo. Perturbação do sossego. Uso nocivo da propriedade. Inteligência dos artigos 1.277 e 187 do Código Civil. Sentença de parcial procedência mantida.” (Ap. 017810-06.2016.8.26.0003, 34ª Câm. Dir. Privado do TJSP, j. 14.03.18, rel. L. G. Costa Wagner)
Por óbvio as pessoas devem saber conviver harmoniosamente em sociedade e os barulhos do dia a dia devem ser toleráveis, como a da realização de uma construção civil; de uma igreja; de uma escola, no intervalo; de um estádio de futebol no dia de jogo; do trânsito; de um bar e restaurante com música ambiente, dentre outros.
O exercício da atividade religiosa (art. 5º, VI, da CF) não permite barulhos estrondosos e perturbações excessivas, como se o som estivesse dentro da casa vizinha, pois todos direitos fundamentais possuem limites para o seu exercício e a convivência social em paz deve, igualmente, ser protegida (art. 144 da CF c/c art. 1.277 do CC).
i) Competência e natureza da ação penal
A Súmula n. 38 do Superior Tribunal de Justiça dispõe que “Compete à Justiça Estadual Comum, na vigência da Constituição de 1988, o processo por contravenção penal, ainda que praticada em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades.”
A referida súmula encontra-se em consonância com o art. 109, IV, da Constituição Federal.
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
IV – os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral;
Caso haja a perturbação de um trabalho da União, ainda assim, a competência para processar e julgar a contravenção penal será da Justiça Estadual.
O Superior Tribunal de Justiça já decidiu que ainda que haja “conexão probatória entre contravenção penal e crime de competência da Justiça Comum Federal, aquela deverá ser julgada na Justiça Comum Estadual. Nessa hipótese, não incide o entendimento de que compete à Justiça Federal processar e julgar, unificadamente, os crimes conexos de competência federal e estadual (súmula n.º 122 desta Corte), pois tal determinação, de índole legal, não pode se sobrepor ao dispositivo de extração constitucional que veda o julgamento de contravenções por Juiz Federal (art. 109, inciso IV, da Constituição da República).”19
Nas hipóteses em que houver foro por prerrogativa de função, por decorrer de previsão constitucional, a contravenção penal deverá ser julgada pelo tribunal competente – e não pela justiça comum -, como a hipótese em que um Juiz Federal ou Procurador da República pratica contravenção penal, o que remete a competência para o processo e julgamento ao tribunal regional federal (art. 108, I, “a”, da CF).
As contravenções penais praticadas pelas autoridades que possuem foro por prerrogativa de função nos tribunais superiores (STF e STJ), são por eles julgados.20
Não é possível que as contravenções penais sejam consideradas de natureza militar, pois o art. 9º, II, do Código Penal Militar prevê a possibilidade de haver infração penal militar prevista fora do Código Penal Militar somente se for crime.
Logo, uma perturbação de sossego praticada em local sujeito à administração militar, por militares em serviço, será competência da Justiça Comum.
A ação penal das contravenções penais é de natureza pública incondicionada, nos termos do art. 17 da Lei de Contravenções Penais.
Art. 17. A ação penal é pública, devendo a autoridade proceder de ofício.
Em que pese não mencionar expressamente que a ação é pública incondicionada, o simples fato de dizer que é pública, sem especificar se é condicionada ou incondicionada, deve ser interpretado como pública incondicionada, pois a regra das ações na esfera penal é que somente serão condicionadas ou privadas quando a lei disser expressamente (art. 107 do CP). O silêncio ou a simples menção à natureza pública deve ser interpretado como pública incondicionada.
Pelo fato da ação penal ser de natureza pública incondicionada, obrigatoriamente, o estado deve tomar todas as providências legais, independentemente, de pedido ou autorização do ofendido.
Ainda que não haja qualquer solicitação, a polícia deve adotar providências, desde que seja possível constatar que há perturbação de sossego, o que, na prática, resta, praticamente, inviabilizado se não houver pelo menos uma pessoa para relatar a perturbação, ainda que as demais não demonstrem interesse.21
O Memorando n. 32.276.3/09 da Polícia Militar de Minas Gerais trata da atuação da Polícia Militar nas ocorrências de perturbação de sossego e no item “k” assegura que:
Argumenta-se, em alguns círculos, que o art. 17 da Lei de Contravenções Penais estabelece que todas contravenções são de ação penal pública incondicionada e que assim a Polícia Ostensiva deveria agir de ofício, independentemente de haver um solicitante que se sinta perturbado, ou seja, uma vítima do delito. Entretanto, salienta-se que a ação penal é o direito ou o poder-dever de provocar o Poder Judiciário para que decida o conflito nascido com a prática de conduta definida em lei como crime. A ação policial não confunde-se com a ação penal;
Com efeito, a ação policial não se confunde com a ação penal. Ocorre que determinadas ações policiais somente são possíveis de serem executadas se houver autorização da vítima, pois a ação penal, em que pese ser o direito ou o poder-dever de provocar o Poder Judiciário, irradia efeitos desde a prática da infração penal, pois a investigação criminal sequer pode se iniciar se não houver autorização da vítima quando a ação for de natureza pública condicionada ou incondicionada e o delegado não deve lavrar o auto de prisão em flagrante se a vítima não autorizar, ainda que informalmente, a tomada de providências (art. 5º, §§ 4º e 5º, do CPP). Além do mais, nas ações penais de natureza pública incondicionada, o policial tem a obrigação de levar o agente capturado à presença do Delegado de Polícia para a adoção das providências de polícia judiciária.
Isto é, ação penal e ação policial não se confundem, mas esta depende da natureza daquela, pois a vítima pode dispensar a tomada de providências pelo Estado e os policiais, nestes casos, devem se limitar a lavrar o Boletim de Ocorrência para futuros fins. Caso os policiais verifiquem no local que os ânimos estejam aflorados, ainda que a vítima dispense a adoção de providências, nada tem de ilegal conduzir as partes para a Delegacia de Polícia, com o fim de restabelecer a paz e garantir a tranquilidade social22, que é missão dos órgãos de segurança pública (art. 144 da CF).
j) Atuação policial na contravenção penal de perturbação de sossego. Cabe prisão em flagrante? É possível entrar na residência? É possível apreender o som? Onde a ocorrência deve ser encerrada?
Não é incomum que a Polícia Militar seja acionada para atender a ocorrências de perturbação de sossego, sobretudo no período noturno.
Por vezes as pessoas que acionam a Polícia Militar pretendem, somente, que os policiais compareçam ao local e peçam para a pessoa que está com som alto, diminuir ou desligar o som.
Os policiais podem assim proceder?
Entendo que sim. Explico.
Em um primeiro momento a resposta tende a ser que a polícia deve conduzir o agente que está com som alto à Delegacia por perturbação de sossego e apreender som, uma vez que a ação penal é pública incondicionada e o Estado é obrigado a adotar as providências contra aqueles que praticam perturbação de sossego. Uma outra opção seria a própria Polícia Militar lavrar o termo circunstanciado de ocorrência nos estados que assim procedem. Esta solução não está errada e encontra amparo na lei (arts. 301 e 6º, II, ambos do CPP).
Ocorre que a solução acima apontada pode não ser a melhor para o caso.
A perturbação de sossego é contravenção penal, razão pela qual submete-se ao rito previsto na Lei n. 9.099/95 que não admite a prisão em flagrante quando o agente assume o compromisso de comparecer ao Juizado Especial Criminal (art. 69, parágrafo único).
Portanto, cabe a captura e condução do contraventor (aquele que pratica a contravenção penal), mas não cabe a prisão, desde que assuma o compromisso de comparecer ao Juizado Especial Criminal.
A doutrina costuma dividir a prisão em flagrante em 04 (quatro) fases: captura; condução à autoridade policial; lavratura do auto de prisão em flagrante e encarceramento. A Polícia Militar executa as duas primeiras fases, salvo quando a própria Polícia Militar lavra o termo circunstanciado de ocorrência, ocasião em que realiza somente a primeira fase.
A situação caracterizadora de flagrante de contravenção penal de perturbação de sossego autoriza o ingresso em domicílio? Sim, pois a Constituição Federal autoriza no art. 5º, XI, o ingresso em casa na hipótese de flagrante delito e o art. 302, I e II, do Código de Processo Penal considera em flagrante delito quem está cometendo infração penal ou acaba de cometê-la. A infração penal subdivide-se em crime e contravenção penal, na forma do art. 1º da Lei de Introdução ao Código Penal (Decreto-Lei n. 3.914/41).
Art 1º Considera-se crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente.
Portanto, é perfeitamente possível o ingresso em domicílio em razão da prática de qualquer contravenção penal (art. 5º, XI, da CF c/c art. 302 do CPP c/c art. 1º da LICP).
A Lei n. 9.505/08 de Belo Horizonte autoriza o ingresso de agentes públicos nas residências e em locais que emitem som alto em descumprimento à lei.
Art. 7º Para o cumprimento do disposto nesta Lei, o Executivo poderá utilizar-se, além dos recursos técnicos e humanos de que dispõe, do concurso de outros órgãos ou entidades públicas ou privadas, mediante convênios, contratos e credenciamento de agentes.
Parágrafo Único – Será franqueada aos agentes públicos e agentes credenciados pelo Executivo a entrada nas dependências das fontes poluidoras localizadas ou a se instalarem no Município, onde poderão permanecer pelo tempo que se fizer necessário, para as avaliações técnico-fiscais do cumprimento dos dispositivos desta Lei.
Tal previsão deve passar por uma leitura constitucional, com o fim de proteger o domicílio quando não houver a prática de infração penal que autorize o ingresso (art. 5º, XI, da CF). Portanto, na hipótese de ocorrência somente de infração administrativa, os agentes públicos não estão autorizados a entrarem nas dependências das fontes poluidoras quando estas constituírem um domicílio.
Em que pese ser legalmente possível o ingresso em residência quando o agente praticar perturbação de sossego, é viável? Os policiais devem entrar na casa para fazer cessar o barulho de som alto?
A regra é a inviolabilidade domiciliar, que é um direito fundamental (art. 5º, XI, da CF), sendo, inclusive, crime de abuso de autoridade o ingresso ilegal (art. 22 da Lei n. 13.869/2019), o que não ocorre na hipótese em que os policiais adentrem em razão da prática de contravenção penal (art. 22, § 2º, da Lei n. 13.869/2019).
Ocorre que o policial deve atuar como um pacificador de conflitos e um garantidor de direitos fundamentais, devendo, sempre que houver espaço para tanto, adotar a decisão mais razoável e proporcional, de forma que haja um equilíbrio na preservação do direito à paz pública e do direito à inviolabilidade domiciliar e a preservação da liberdade dos envolvidos.
O art. 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – Decreto-Lei n. 4.657/42 -, com a redação dada pela Lei n. 13.655, de 2018, prevê que na esfera administrativa não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão, previsão esta que pode e deve ser aplicada ao policial na rua que poderá avaliar em uma ocorrência qual é a melhor solução a ser dada, sem que descumpra a lei e adote a melhor decisão prática que harmonize os direitos em conflito.
Deve-se observar, ainda, o princípio da pacificação social de conflitos e a função social da lei, que é manter a paz social e a harmonia.
A aplicação do direito penal é subsidiária, este é a ultima ratio, e deve ser aplicado quando as demais áreas de controle social não surtirem efeito. Salienta-se, ainda, que a perturbação de sossego é contravenção penal (um crime anão) e seria, suficientemente, resolvida, na esfera administrativa.
Nesse contexto, surge a figura do “policial conciliador”, que é aquele ponderado e aplicador do direito, que não se limita a aplicar a letra fria da lei, sem se preocupar com os efeitos que isso pode causar em uma ocorrência.
O “policial conciliador” aplica a lei, mas vai além e resolve o conflito social, pois a aplicação da lei pode colocar fim ao conflito jurídico, mas não social.
Dessa forma, o policial, ao se deslocar a uma ocorrência de perturbação de sossego poderá limitar-se a orientar (determinar) a pessoa que está com som alto dentro da residência a baixar o volume de forma que não incomode terceiros e registrar esta determinação em um registro interno (Boletim de Ocorrência Simplificado), para futuros fins.
As pessoas que acionam a polícia para uma ocorrência de perturbação de sossego pretendem que o barulho seja cessado e até preferem que esta seja a providência adotada para que não tenham que acompanhar o registro da ocorrência, nem fornecer maiores dados, pois o sossego e a tranquilidade que se busca ao acionar a polícia poderá ser interrompido de vez ao ter que acompanhar o registro da ocorrência.
Há uma ampla aceitação social de que essa providência – somente mandar cessar o som alto – seja adotada nas ocorrências de perturbação social, sendo possível a aplicação do princípio da adequação social, o que excluirá a tipicidade material da contravenção penal de perturbação de sossego.
O policial deve avaliar também o ambiente que contém o som alto, pois em festas e aglomeração de pessoas, sobretudo com bebidas alcoólicas, o ingresso da polícia na residência, que não será ilegal, pode tomar proporções catastróficas, pois poderá haver briga generalizada, início de agressões e avanço dos presentes para cima dos policiais, com tentativa de tomada de arma e disparos, o que pode resultar em lesão corporal e em homicídio. Ou seja, uma simples ocorrência de perturbação de sossego pode se tornar em uma grave ocorrência de homicídio. Essa leitura de cenário cabe aos policiais que atenderem a ocorrência.
Na hipótese em que a pessoa que esteja com som alto não atender à ordem do policial, seja para baixar o som no momento em que recebe a ordem, seja após baixar e quando os policiais se retirarem do local, aumentar o som, praticará o crime de desobediência (art. 330 do CP), sem prejuízo da contravenção penal de perturbação de sossego (art. 42 do Decreto-Lei n. 3.688/41).
Portanto, uma situação que seria legalmente contornada, caso o agente tivesse atendido à ordem do policial, tomará proporções maiores, pois o agente responderá pelo crime de desobediência e contravenção penal de perturbação de sossego.
O Memorando n. 32.276.3/09 da Polícia Militar de Minas Gerais trata da atuação da Polícia Militar nas ocorrências de perturbação de sossego e dispõe que:
4.1 Atender as reclamações a respeito de perturbação do sossego provocadas pelos estabelecimentos comerciais, residenciais e de som de veículos, tomando de imediato as providências necessárias a minimizar a situação e orientando o responsável a proceder o encerramento da perturbação, sob pena de prisão pelo cometimento do crime de desobediência, apreensão dos instrumentos do crime e lavratura do Boletim de Ocorrência;
4.2 No caso do delito de perturbação do sossego alheio cometido em residência particular, o policial militar deverá ADVERTIR o proprietário da residência sobre a perturbação causada por gritaria, algazarra, instrumentos sonoros ou sinais acústicos, fazendo com que cesse a perturbação. Persistindo a perturbação, o policial militar deverá efetuar a prisão do infrator pelo cometimento do crime de desobediência, LAVRAR o BO, efetuar a APREENSÃO do objeto causador da perturbação, se necessário;
Em que pese a perturbação de sossego ser de ação penal pública incondicionada, tem sido comum nos juizados especiais criminais a aplicação da composição civil e de acordos muitas vezes consistentes em um “pedido de desculpas”, em razão da necessária pacificação social dos conflitos, princípio fundamental do processo penal, e informalidade que rege o Juizado Especial Criminal.
PERTURBAÇÃO DO SOSSEGO. COMPOSIÇÃO CIVIL. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE DA RÉ. POSSIBILIDADE. A finalidade conciliadora dos Juizados Especiais Criminais torna incompatível a persecução penal nos casos em que as partes compõem voluntariamente o litígio, resultando na manifestação expressa da vontade da vítima em encerrar a lide. Assim, tratando-se de contravenção penal de perturbação do sossego e tendo o feito atingido a sua finalidade, isto é, a pacificação do conflito, somado aos critérios norteadores da informalidade, previstos no art. 62 da Lei 9.099/95, a conseqüência é a desistência do direito de ação, não se justificando o prosseguimento do feito. RECURSO IMPROVIDO. (Recurso Crime Nº 71005772355, Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais, Relator: Luis Gustavo Zanella Piccinin, Julgado em 04/07/2016). (TJ-RS – RC: 71005772355 RS, Relator: Luis Gustavo Zanella Piccinin, Data de Julgamento: 04/07/2016, Turma Recursal Criminal, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 13/07/2016.
Na hipótese em que o policial limitar-se a determinar que a pessoa que esteja com som alto diminua o volume e a ordem seja devidamente cumprida, sem que haja maiores transtornos, é necessário registrar termo circunstanciado de ocorrência ou comunicar os fatos para polícia judiciária?
Em razão do disposto no art. 69 da Lei n. 9.099/95, a resposta é sim, pois a autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência de infração de menor potencial ofensivo, deverá lavrar o termo circunstanciado e encaminhá-lo ao juizado. Caso a Polícia Militar não lavre o TCO, deve encaminhar o agente à Delegacia de Polícia.
Ocorre que em razão de todos os fundamentos ora expostos, sobretudo o princípio da adequação social, não se faz necessária a comunicação à polícia judiciária de advertência policial para que o agente abaixe o volume do som, sendo suficiente que esta ocorrência seja documentada para fins administrativos e de controle do próprio órgão policial.
A aplicação do princípio da adequação social permite, em situações excepcionais, que a sua análise e aplicação ocorra diretamente pelo próprio policial, como é o caso da perturbação de sossego e do ato de perfurar a orelha de uma bebê para a colocação de brincos, o que caracterizaria lesão corporal, mas o policial ao visualizar essa prática em uma farmácia, por exemplo, não precisa tomar providências, sequer comunicar a polícia judiciária, dada a ampla aceitação social.
O policial que assim procede não pratica nenhum crime, nem prevaricação, pois atua como um “policial conciliador” e pacificador de conflitos sociais, dentro da lei, em razão de todos os argumentos expostos, e não visa satisfazer nenhum interesse ou sentimento pessoal.
De qualquer forma, o tema é polêmico e o policial deve buscar orientação junto ao Comando de sua instituição que, por sua vez, poderá formalizar acordo com a Polícia Civil, Ministério Público e Judiciário locais a respeito de como proceder nessas situações de perturbação de sossego.
Caso o som alto seja emitido de um bar ou local aberto ao público, obviamente, não precisará entrar em domicílio para fazer cessar o som, salvo se a caixa de som estiver instalada na parte interna do bar (do balcão para dentro).
Pode ocorrer de uma festa com som alto ter muitas pessoas que estejam consumindo bebida alcoólica e haver várias ligações para o 190 em razão da perturbação de sossego. O policial, ao chegar no local, pede para baixar o som de forma que fique restrito ao ambiente local, mas o organizador da festa ignora a ordem do policial. Neste caso terá praticado desobediência, além da contravenção penal de perturbação de sossego, contudo o agente está dentro da casa e não desliga o som. O ingresso da polícia na residência, nestas circunstâncias, não é ilegal, pois o agente está em flagrante delito, todavia, o ingresso da polícia é conveniente? A ocorrência poderá evoluir para uma briga generalizada e provocar lesão corporal e até mesmo homicídio? Será necessário reforço policial para o ingresso? O que fazer?
Esse tipo de ocorrência não é tão simples de se resolver. Penso que o policial deva analisar o todo, o nível de incômodo do som, quem são os vizinhos (algum com problema de saúde que necessita descansar e não pode esperar), o nível de tolerância do barulho, se há hospital por perto, dentre outros fatores, para então decidir a providência a ser adotada, como entrar na residência à força ou somente registrar a ocorrência e encaminhar para a polícia judiciária.
Imagine uma guarnição com dois policiais militares em atendimento a uma ocorrência de perturbação de sossego com grande aglomeração de pessoas que bebem álcool, durante a madrugada, momento em que não há a presença de outros policiais para apoiarem a ocorrência. Os ânimos estão exaltados e o som não é reduzido após a ordem do policial. Os policiais devem ou não entrar na casa sozinhos e enfrentarem uma grande quantidade de pessoas alteradas? Obviamente, que não. A segurança dos policiais está em risco, não há efetivo em condições de dar uma resposta e uma ocorrência que até então era simples poderá se agravar. Neste caso, é prudente que o policial registre a ocorrência e a encaminhe para a polícia judiciária. A ocorrência será encerrada sem que o som seja reduzido. Trata-se da aplicação da excludente de ilicitude do estado de necessidade em razão da omissão, pois o perigo deve ser enfrentado enquanto comportar enfrentamento.
Uma solução equilibrada, se possível de ser adotada no local, é o corte de energia da residência que emite o som alto, o que pode ser feito mediante o acionamento da concessionária de energia. Feito o corte de energia, deve-se aguardar um tempo, no local ou não, a depender dos ânimos das pessoas presentes, para, então, religá-la.
Os aparelhos de som utilizados na contravenção penal de perturbação de sossego devem ser apreendidos (art. 6º, II, do CPP)23 e restituídos quando não interessarem mais ao processo (art. 118 do CPP), o que pode ser feito pela autoridade policial ou pelo juiz, mediante termo nos autos, desde que não exista dúvida quanto ao direito do reclamante (art. 120 do CPP).
Corrente em sentido diverso sustenta ser desproporcional a apreensão da aparelhagem sonora, dada a desnecessidade de realização de perícia para a comprovação da materialidade, que pode ser suprida pela prova testemunhal.24
Caso o aparelho de som seja um objeto lícito e adquirido licitamente pelo proprietário, este deverá ser restituído. Do contrário, eventual condenação poderá decretar a perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé (art. 91, II, “a”, do CP).25
Na hipótese em que ocorrer transação penal ou suspensão condicional do processo, não é possível que o juiz determine o confisco do bem apreendido com base no art. 91 do Código Penal, uma vez que a sentença é homologatória, sem qualquer juízo sobre a responsabilidade criminal da parte. As consequências desses acordos previstos na Lei n. 9.099/95 são aqueles estipulados no próprio acordo.26
No tocante ao local de encerramento da ocorrência, a regra é que esta seja direcionada à Polícia Civil, por se tratar de contravenção penal, salvo nos casos em que a Polícia Militar lavrar o TCO, ocasião em que direciona a ocorrência diretamente para o Juizado Especial Criminal.
Ocorre que é possível que a Polícia Federal investigue a prática de contravenção penal, uma vez que a justiça competente para julgar as infrações penais não implica, necessariamente, na polícia que possui atribuição para investigar. Em se tratando de contravenção penal, ainda que atente contra os interesses da União, a competência para julgar será da Justiça Comum Estadual (art. 109, IV, da CF).
O art. 144, § 1º, I, da Constituição Federal especifica que cabe à Polícia Federal apurar as infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União.
I – apurar INFRAÇÕES PENAIS contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei;
Infrações penais é o gênero que abrange crime e contravenção penal. Dessa forma, a Polícia Federal poderá investigar a prática de contravenção penal quando for praticada em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, como a hipótese em que uma pessoa finge ser policial federal (art. 45 da Lei de Contravenções Penais)27.
A perturbação de sossego pode atrair o interesse da União? Sim, como a hipótese em que for praticada reiteradamente e prejudicar os serviços de órgãos da União, em razão do alto volume de som de um morador que seja vizinho de prédios da União em que ocorre a prestação de serviço público federal.
Portanto, a ocorrência policial, caso a Polícia Militar não lavre o termo circunstanciado de ocorrência, poderá ser encerrada na Delegacia de Polícia Civil ou da Polícia Federal.
k) Perturbação de sossego causada por veículo automotor
A Resolução n. 624, de 19/10/2016, do CONTRAN, regulamenta a fiscalização de sons produzidos por equipamentos utilizados em veículos, a que se refere o art. 228, do Código de Trânsito Brasileiro – CTB.
Art. 228. Usar no veículo equipamento com som em volume ou freqüência que não sejam autorizados pelo CONTRAN:
Infração – grave;
Penalidade – multa;
Medida administrativa – retenção do veículo para regularização.
O art. 1º veda a utilização por veículo de qualquer equipamento que produza som audível pelo lado de fora do carro.
Art. 1º Fica proibida a utilização, em veículos de qualquer espécie, de equipamento que produza som audível pelo lado externo, independentemente do volume ou freqüência, que perturbe o sossego público, nas vias terrestres abertas à circulação.
Parágrafo único. O agente de trânsito deverá registrar, no campo de observações do auto de infração, a forma de constatação do fato gerador da infração.
As exceções encontram-se dispostas no art. 2º da Resolução n. 624/16 do CONTRAN.
Art. 2º Excetuam-se do disposto no artigo 1º desta Resolução os ruídos produzidos por:
I – buzinas, alarmes, sinalizadores de marcha-à-ré, sirenes, pelo motor e demais componentes obrigatórios do próprio veículo;
lI – veículos prestadores de serviço com emissão sonora de publicidade, divulgação, entretenimento e comunicação, desde que estejam portando autorização emitida pelo órgão ou entidade local competente, e
III – veículos de competição e os de entretenimento público, somente nos locais de competição ou de apresentação devidamente estabelecidos e permitidos pelas autoridades competentes.
O art. 3º assevera que a inobservância do disposto na Resolução n. 624/16 do CONTRA caracteriza a infração de trânsito prevista no art. 228 do CTB.
Isto é, basta descumprir a determinação contida na referida resolução no sentido do veículo utilizar de som audível pelo lado externo, independentemente do volume ou frequência, que perturbe o sossego público, para que esteja caracterizada a prática de infração de trânsito prevista no art. 228 do CTB.
Com o advento da Resolução n. 624, de 19/10/2016, do CONTRAN não é mais necessária a utilização de decibelímetro para constatar a infração de trânsito prevista no art. 228 do CTB, uma vez que a Resolução n. 204/06 que limitava o som a 80 decibéis medido a 7 metros de distância do veículo foi revogada.
Nota-se que é necessário que haja a perturbação do sossego público, ou seja, o incômodo causado em várias pessoas em razão do volume do som, ainda que estejam próximas ao veículo, pois o art. 1º da referida resolução é claro ao dizer que proíbe-se a utilização, em veículos de qualquer espécie, de equipamento que produza som audível pelo lado externo, independentemente do volume ou frequência, que perturbe o sossego público, nas vias terrestres abertas à circulação.
Independentemente da origem do som no carro, seja o que vem embutido da fábrica, seja um som instalado no veículo, como as caixas de som colocadas no porta-malas, haverá a infração de trânsito prevista no art. 228 do Código de Trânsito Brasileiro, quando houver um som alto que perturba o sossego público, pois esta infração exige que seja utilizado no veículo “equipamento com som”, o que abrange qualquer equipamento que emita sons e seja instalado no veículo.
A pessoa que utiliza o som do carro para colocar música em um volume alto em via pública, como na porta de um bar ou de sua residência, pratica infração de trânsito (art.228 do CTB), pois o art. 1º da Resolução n. 624, de 19/10/2016, do CONTRAN, proíbe a utilização de som que perturbe o sossego público nas vias terrestres abertas à circulação. Logo, a pessoa que utiliza de seu carro para colocar uma música em um volume alto dentro de sua casa ou em seu sítio, não praticará infração de trânsito, sem prejuízo que pratique a contravenção penal prevista no art. 42, III, da Lei de Contravenções Penais, por abusar de sinais acústicos.
O agente que utiliza o som do carro em um volume alto em via terrestre aberta à circulação, de forma que perturbe o sossego público, não pratica infração penal, uma vez que o art. 228 do Código de Trânsito Brasileiro, que é a infração de trânsito praticada pelo agente, não ressalva a possibilidade de responsabilização criminal, nem há previsão no CTB de que esta conduta configura infração penal.
Quando a própria lei já impõe consequências cíveis ou administrativas, sem ressalvar a possibilidade da responsabilização criminal, é porque o legislador já entendeu que aquelas punições, por si sós, são suficientes para atingirem o caráter preventivo e sancionador da conduta ilícita, razão pela qual não se deve invocar o direito penal, que possui caráter subsidiário no tocante à aplicação de punições, por poder atingir um direito fundamental de elevada importância, a liberdade. Trata-se de uma construção doutrinária e jurisprudencial.28
Nesse sentido a jurisprudência é pacífica, devendo-se aplicar a mesma lógica do julgado abaixo, pois onde há as mesmas razões, deve haver a mesma aplicação do direito.
Segundo jurisprudência deste Tribunal Superior, a desobediência de ordem de parada dada pela autoridade de trânsito ou por seus agentes, ou mesmo por policiais ou outros agentes públicos no exercício de atividades relacionadas ao trânsito, não constitui crime de desobediência, pois há previsão de sanção administrativa específica no art. 195 do Código de Trânsito Brasileiro, o qual não estabelece a possibilidade de cumulação de sanção penal. Assim, em razão dos princípios da subsidiariedade do Direito Penal e da intervenção mínima, inviável a responsabilização da conduta na esfera criminal. (HC 369.082/SC, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 27/06/2017, DJe 01/08/2017)
Salienta-se haver entendimento diverso, no sentido de ser possível responsabilizar o agente pela infração de trânsito (art.228 do CTB) e pela contravenção penal de perturbação de sossego (art. 42, III, do Decreto-Lei n. 3.688/41).29
O policial, no exercício da função de agente de trânsito, além de lavrar a multa, deverá ordenar que o responsável pelo veículo abaixe o som do carro quando este causar perturbação do sossego público, que é a medida administrativa cabível ao caso. Na hipótese em que a ordem de abaixar o som for descumprida, haverá a prática do crime de desobediência (art. 330 do CP).
O som do veículo, quando for destacável do carro, ou o próprio veículo, não deve ser “apreendido” quando houver somente infração de trânsito, pois não há previsão dessa medida administrativa para a infração de trânsito prevista no art. 228 do CTB. O veículo poderá ser apreendido somente se for utilizado para a prática de infração penal, como a perturbação de sossego, cujo veículo seja o instrumento utilizado.
A jurisprudência diverge a respeito da legalidade da apreensão de veículo e do som causador de perturbação de sossego. O entendimento favorável30 argumenta pela legalidade em razão de ser o objeto utilizado na prática da infração penal, enquanto que o entendimento contrário31 sustenta ser desproporcional a apreensão do veículo por não guardar relação direta e necessária com a conduta incriminada, o mesmo se aplicando à aparelhagem sonora, dada a desnecessidade de realização de perícia para a comprovação da materialidade, que pode ser suprida pela prova testemunhal.
l) Distinções entre a perturbação de sossego (art. 42 do LCP) e perturbação da tranquilidade (art. 65 da LCP)
Perturbação de sossego
Perturbação da tranquilidade
Art. 42. Perturbar alguem o trabalho ou o sossego alheios: I – com gritaria ou algazarra; II – exercendo profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais; III – abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos; IV – provocando ou não procurando impedir barulho produzido por animal de que tem a guarda: Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.
Art. 65. Molestar alguem ou perturbar-lhe a tranquilidade, por acinte ou por motivo reprovavel: Pena – prisão simples, de quinze dias a dois meses, ou multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.
Luciano Casaroti32 ensina que “para a caracterização da contravenção do art. 42 é imprescindível a perturbação de um número indeterminado de pessoas. Por sua vez, havendo perturbação de uma única pessoa, o fato encontra tipificação no art. 65 da LCP.”
Não é a finalidade deste texto detalhar a contravenção penal de perturbação da tranquilidade, o que será feito em outro momento, todavia, deve-se esclarecer as diferenças básicas em relação à contravenção penal de perturbação de sossego.
Ambas contravenções têm em comum o ato de perturbar, molestar, incomodar, sendo o traço distintivo presente no número de pessoas que são importunadas e o motivo da importunação.
Enquanto que na perturbação de sossego exige-se uma multiplicidade de pessoas, na perturbação da tranquilidade basta uma pessoa, além da perturbação de sossego não exigir dolo específico, sendo suficiente o dolo genérico (bastar perturbar diversas pessoas), enquanto que a perturbação da tranquilidade exige o dolo específico consistente no acinte (agir de propósito, de caso pensado) ou motivo reprovável (censurável, condenável).
A perturbação de sossego é uma contravenção penal que somente pode ser praticada de forma vinculada, consistente em atuar mediante das formas previstas entre os incisos I e IV do art. 42, enquanto que a perturbação de tranquilidade pode ser praticada de forma livre.
A seguir, tabela que contém as principais distinções entre as duas contravenções penais.
Diferenças
Perturbação de sossego
Perturbação da tranquilidade
Número de vítimas
Várias vítimas
Basta uma
Dolo
Genérico
Específico
Forma de praticá-la
Vinculada
Livre
m) Distinções entre a perturbação de sossego (art. 42 do LCP) e o crime de poluição sonora (art. 54 da Lei n. 9.605/98)
Perturbação de sossego
Poluição sonora
Art. 42. Perturbar alguem o trabalho ou o sossego alheios: I – com gritaria ou algazarra; II – exercendo profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais; III – abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos; IV – provocando ou não procurando impedir barulho produzido por animal de que tem a guarda: Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.
Art. 54. Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora: Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa. § 1º Se o crime é culposo: Pena – detenção, de seis meses a um ano, e multa. (…)
Luciano Casaroti33 ensina que “na hipótese de a poluição sonora se der em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ficará configurado o crime de poluição sonora (art. 54 da Lei n. 9.605/98), restando absorvida a contravenção.”
Não é a finalidade deste texto detalhar o crime de poluição sonora, o que será feito em outro momento, todavia, deve-se esclarecer os traços distintivos entre a contravenção penal e o referido crime.
A poluição sonora caracteriza-se quando há um nível alto, excessivo de barulho, de ruído, que chega a ser insuportável, de forma que resulte ou possa resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora.
A Resolução n. 1/90 do CONAMA estabelece regras relacionadas à poluição sonora e dispõe que a emissão de ruídos, em decorrência de quaisquer atividades industriais, comerciais, sociais ou recreativas, inclusive as de propaganda política. obedecerá, no interesse da saúde, do sossego público, aos padrões, critérios e diretrizes estabelecidos nesta Resolução.
A referida resolução considera prejudiciais à saúde e ao sossego público os ruídos com níveis superiores aos considerados aceitáveis pela norma NBR 10.152 da ABNT – Avaliação do Ruído em Áreas Habitadas.
A sigla NBR significa Norma Brasileira e a sigla ABNT significa Associação Brasileira de Normas Técnicas. A NBR 10.152 da ABNT foi acolhida pelo CONAMA como parâmetro para estabelecer os limites aceitáveis de barulho nas hipóteses acima mencionadas.
O texto “Quais são os níveis de ruído de acordo com a NBR 10152?”34, do site Volk do Brasil, explica que a “NBR 10152 define a faixa de valores em decibéis para o conforto acústico de cada localidade, de acordo com o cálculo dos parâmetros de pressão sonora ponderada (em pascal), nível da pressão sonora (em decibéis), nível de pressão sonora ponderado (em decibéis) e a curva de avaliação de ruído (NC).” e indica os seguintes valores em decibéis:
de 35 a 45 dB para hospitais (áreas de apartamento, enfermaria, berçários e centro cirúrgico);
de 40 a 50 dB para escolas (salas de aula e laboratórios);
de 45 a 55 dB para hotéis (portaria, recepção e circulação);
de 40 a 50 dB para restaurantes;
de 40 a 50 dB para igrejas e templos;
de 45 a 60 dB para ginásios poliesportivos.
A NBR 10.152 da ABNT é utilizada pela jurisprudência como um parâmetro para detectar se o nível de ruído é intolerável à saúde humana e se pode prejudicá-la.
Comete o crime previsto no artigo 54 da Lei n.º 9.605/98 o agente que causa poluição sonora em níveis superiores aos estabelecidos pela NBR 10.151, causando prejuízos à saúde humana, nos termos da Resolução do Conama 01/1990. (TJ-MG – APR: 10261170023509001 MG, Relator: Maria Luíza de Marilac, Data de Julgamento: 17/12/2019, Data de Publicação: 22/01/2020)
Nucci ensina que “embora pareça desnecessário o tipo dizer que a poluição seja em níveis que possam resultar em danos à saúde humana, já que toda forma de poluição é um prejuízo natural à saúde de seres vivos, quer-se demonstrar que a conduta penalmente relevante relaciona-se com níveis insuportáveis, inclusive aptos a gerar a morte de animais e a destruição de vegetais. Há diferença entre seres humanos e animais ou plantas. Quanto a pessoas, a poluição precisa apenas ser capaz de causar danos à saúde; em relação a animais ou vegetais, é fundamental chegar à mortandade ou destruição”.35
A poluição prevista no art. 54 da Lei n. 9.605/98 pode ser de qualquer natureza, já que poluição é a degradação da qualidade ambiental – o que inclui o ar e, consequentemente, o nível do som – que possa, direta ou indiretamente, prejudicar a saúde.
A poluição sonora consistirá na prática do crime previsto no art. 54 da Lei de Crimes Ambientais quando a poluição for em um nível estarrecedor, insuportável, a ponto de causar ou poder causar prejuízo à saúde humana, como dor nos ouvidos ou até mesmo a possibilidade de causar surdez ou então quando causar a morte de animais ou a destruição significativa da flora.
Rafael Schwez Kurkowski36 ensina que “se a poluição sonora ocorrer em níveis tais que possam prejudicar a saúde humana, haverá o crime tipificado no art. 54, caput; ao revés, se ela não ostentar essa capacidade, ela tipifica apenas a contravenção penal do art. 42 da LCP.”
O Superior Tribunal de Justiça já decidiu pela caracterização do crime de poluição sonora (art. 54 da Leu n. 9.605/98), inclusive na sua forma qualificada (art. 54, § 2º, I, da Lei n. 9.605/98), que considera crime o ato de tornar uma área, urbana ou rural, imprópria para a ocupação humana, em razão da emissão pela pessoa jurídica de ruídos acima dos padrões estabelecidos pela NBR 10.151, causando, por conseguinte, prejuízos à saúde humana, consoante preconiza a Resolução do Conama n. 01/1990.37
Em que pese ser comum se exigir a realização de perícia nos crimes ambientais, tratando-se de poluição sonora, a jurisprudência tem dispensada a necessidade de perícia quando houver outros meios de prova, uma vez que a poluição sonora que causa prejuízo à saúde humana é crime de natureza formal.
O delito previsto na primeira parte do artigo 54 da Lei n. 9.605/1998 possui natureza formal, sendo suficiente a potencialidade de dano à saúde humana para configuração da conduta delitiva, não se exigindo, portanto, a realização de perícia. Embargos de Divergência providos, recurso especial desprovido. STJ, Terceira Seção, EREsp 1417279/SC, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 11/04/2018.
I – Nulidade da sentença condenatória em virtude da não realização da prova pericial visando à comprovação da prática de crime ambiental (poluição sonora). II – Alegação insubsistente, pois, conforme assentou o acórdão impugnado, a materialidade do delito foi comprovada pela prova testemunhal. III – Esse entendimento vai ao encontro de jurisprudência consolidada desta Corte no sentido de que embora a produção da prova técnica seja necessária para esclarecer situações de dúvida objetiva acerca da existência da infração penal, o seu afastamento é sistemático e teleologicamente autorizado pela legislação processual penal nos casos em há nos autos outros elementos idôneos aptos a comprovar a materialidade do delito (HC 108.463/MG, Rel. Min. Teori Zavascki). IV – Recurso ordinário não provido. STF – RHC: 117465 DF, Relator: Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Data de Julgamento: 04/02/2014, Segunda Turma, Data de Publicação: DJe-033 DIVULG 17-02-2014 PUBLIC 18-02-2014.
Em se tratando de poluição sonora que resulte na morte de animais ou a destruição significativa da flora, dificilmente, será possível comprovar que este resultado teve como causa a poluição sonora, sendo de especial relevância a realização de prova pericial.
A principal distinção entre a contravenção penal de perturbação de sossego e o crime ambiental de poluição sonora reside na intensidade do som, do barulho, do ruído. Caso a poluição sonora seja intolerável, insuportável, haverá a prática do art. 54 da Lei de Crimes Ambientais e a contravenção penal de perturbação de sossego estará absorvida. Noutro giro, sendo a poluição sonora tolerável, suportável, haverá a prática da contravenção penal de perturbação de sossego. Em ambos os casos não há necessidade de perícia.
A perturbação de sossego é uma contravenção penal que somente pode ser praticada de forma vinculada, consistente em atuar mediante das formas previstas entre os incisos I e IV do art. 42, enquanto que o crime de poluição sonora pode ser praticado de forma livre.
O crime de poluição sonora não exige uma pluralidade de vítimas, como a contravenção penal de perturbação de sossego, sendo suficiente que haja uma, quando se tratar de danos à saúde humana, ao contrário dos danos causados aos animais, pois exige a morte de vários, ou à flora, que deve ser significativo.
O crime de poluição sonora e a contravenção penal de perturbação de sossego são, igualmente, dolosos e ambos são de ação penal pública incondicionada.
Por fim, ainda que a poluição sonora seja inferior aos valores toleráveis estabelecidos na NBR 10.152 da ABNT que é utilizada pela jurisprudência como um parâmetro para detectar se o nível de ruído é intolerável à saúde humana e se pode prejudicá-la, poderá haver a prática da contravenção penal de perturbação de sossego e ainda que o nível da poluição sonora seja superior aos limites estabelecidos na NBR 10.152, não, necessariamente, haverá o crime de poluição sonora, pois este deve ter pelo menos potencialidade de causar prejuízo à saúde humana ou efetivamente causar a morte de animais ou a destruição significativa da flora.
A seguir, tabela que demonstra as principais distinções entre a perturbação de sossego (art. 42 do LCP) e o crime de poluição sonora (art. 54 da Lei n. 9.605/98).
Diferenças
Perturbação de sossego
Poluição sonora
Número de vítimas
Várias
Pode ser uma, no caso de dano à saúde humana, em que pese ser pouco provável.
Forma de praticá-lo
Vinculada
Livre
Intensidade do som
Tolerável
Intolerável
n) Atendimento das ocorrências de pertubação de sossego pela Guarda Municipal
O Estatuto Geral das Guardas Municipais – Lei n. 13.022/14 – traz atribuições específicas das guardas municipais no art. 5º e dentre elas encontram-se:
Art. 5º São competências específicas das guardas municipais, respeitadas as competências dos órgãos federais e estaduais:
IV – colaborar, de forma integrada com os órgãos de segurança pública, em ações conjuntas que contribuam com a paz social;
V – colaborar com a pacificação de conflitos que seus integrantes presenciarem, atentando para o respeito aos direitos fundamentais das pessoas;
VII – proteger o patrimônio ecológico, histórico, cultural, arquitetônico e ambiental do Município, inclusive adotando medidas educativas e preventivas;
XII – integrar-se com os demais órgãos de poder de polícia administrativa, visando a contribuir para a normatização e a fiscalização das posturas e ordenamento urbano municipal;
XIV – encaminhar ao delegado de polícia, diante de flagrante delito, o autor da infração, preservando o local do crime, quando possível e sempre que necessário;
O inciso IV permite a colaboração integrada com os órgãos de segurança pública em ações conjuntas que contribuam com a paz social, o que permite afirmar que a Guarda Municipal pode atender às ocorrências de perturbação de sossego, pois deixaria as viaturas policiais livres para a realização do policiamento ostensivo e preventivo, além de possibilitar que a guarnição policial atenda a ocorrências mais graves, o que contribui para a paz social.
O inciso V permite a colaboração mediante a pacificação de conflitos que seus integrantes presenciarem, o que pode ocorrer quando a viatura da Guarda Municipal, durante a realização do patrulhamento preventivo (art. 3º, III, da Lei n. 13.022/14), presencia uma ocorrência de perturbação de sossego, ocasião em que passará a atuar nesta ocorrência com o fim de pacificar o conflito, o que pode ocorrer na forma que foi exposta no decorrer deste texto.
O inciso VII diz que compete à Guarda Municipal proteger o patrimônio ambiental do município, o que inclui, conforme exposto no tópico anterior ao tratar da poluição sonora, a proteção do ar e, consequentemente, do nível do som, em razão da possibilidade de atingir os animais e a flora do município. Pode-se falar, inclusive, na necessidade de preservação do meio ambiente do trabalho, que consiste em assegurar um local de trabalho para os munícipes livre de incômodos decorrentes de barulhos excessivos.
O inciso XII assegura que cabe à Guarda Municipal integrar-se com os demais órgãos de poder de polícia administrativa, visando a contribuir para a normatização e a fiscalização das posturas e ordenamento urbano municipal, o que pode legitimar a atuação da Guarda Municipal nas ocorrências de perturbação de sossego, pois diversos códigos de posturas dos municípios preveem a “lei do silêncio” e limites de barulho e som em âmbito municipal.
O inciso XIV, por sua vez, autoriza que a Guarda Municipal encaminhe ao delegado de polícia, diante de flagrante delito, o autor da infração, o que abrange, por óbvio, a contravenção penal de perturbação de sossego, já que se trata de uma infração penal.
Nota-se, claramente, que há diversos fundamentos para que a Guarda Municipal atue, no âmbito do município, nas ocorrências de perturbação de sossego, sem necessidade de que haja deslocamento da Polícia Militar, salvo situações mais complexas que exijam o comparecimento da Polícia Militar, como o local da ocorrência que contenha pessoas em atitude suspeita ou uma região conhecida por ser mais violenta.
Os municípios podem criar o “Disque Sossego” e a “Patrulha do Sossego”, como alguns já tem feito38, e concentrar as ações de atendimento à perturbação de sossego nas guardas municipais, o que será positivo para a sociedade que ganhará uma viatura policial liberada para atender ocorrências mais complexas e realizar o policiamento ostensivo e preventivo.
NOTAS
1STF – HC: 108455 MS, Relator: Min. LUIZ FUX, Data de Julgamento: 10/09/2013, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-187 DIVULG 23-09-2013 PUBLIC 24-09-2013.
2TJ-RS – RC: 71003078094 RS, Relator: Cristina Pereira Gonzales, Data de Julgamento: 06/06/2011, Turma Recursal Criminal, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 07/06/2011.
3TJ-DF 20160310084385 DF 0008438-78.2016.8.07.0003, Relator: FABRÍCIO FONTOURA BEZERRA, Data de Julgamento: 06/11/2017, 1ª TURMA RECURSAL, Data de Publicação: Publicado no DJE : 05/12/2017 . Pág.: 512/517.
4ANDREUCCI, Ricardo Antônio. Legislação Penal Especial. 12. ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 498.
5TJ-MG – APR: 10084130000262001 MG, Relator: Nelson Missias de Morais, Data de Julgamento: 20/02/2014, Câmaras Criminais / 2ª CÂMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 10/03/2014.
6TJ-SC – APL: 00009712720168240051 Ponte Serrada 0000971-27.2016.8.24.0051, Relator: Marco Aurélio Ghisi Machado, Data de Julgamento: 05/05/2020, Segunda Turma Recursal.
7TACrimSP – AC – Rel. França Carvalho – j. 29/07/1997 – 1120/120.
8 (…) 4.Se a convenção veda apenas a permanência de animais causadores de incômodos aos demais moradores, a norma condominial não apresenta, de plano, nenhuma ilegalidade. 5. Se a convenção proíbe a criação e a guarda de animais de quaisquer espécies, a restrição pode se revelar desarrazoada, haja vista determinados animais não apresentarem risco à incolumidade e à tranquilidade dos demais moradores e dos frequentadores ocasionais do condomínio. 6. Na hipótese, a restrição imposta ao condômino não se mostra legítima, visto que condomínio não demonstrou nenhum fato concreto apto a comprovar que o animal (gato) provoque prejuízos à segurança, à higiene, à saúde e ao sossego dos demais moradores. 7. Recurso especial provido. (Resp n. 1.783.076 – DF (2018/0229935-9). Relator: Min. Ricardo Villas Bôas Cueva).
9 Se a única referência acerca da ocorrência da contravenção penal é o relato do policial que atendeu a ocorrência, decorrente de denúncia anônima pelo telefone, o fato deve ser arquivado (TJRS – Habeas Corpus Nº 71004703757, Turma Recursal Criminal);
A perturbação do sossego alheio de que cogita o art. 42 da LCP resta caracterizada, mesmo que uma só pessoa leve o fato ao conhecimento da autoridade policial, se, na colheita de prova, outras pessoas vêm dizer que também foram incomodadas” (TACRIM – SP – AC – Rel. Xavier de Aquino – j. 14.06.1999 – Rolo-flash 1272/302).
10TJ-SC – APL: 00009712720168240051 Ponte Serrada 0000971-27.2016.8.24.0051, Relator: Marco Aurélio Ghisi Machado, Data de Julgamento: 05/05/2020, Segunda Turma Recursal.11 TJ-RS – RC: 71007336688 RS, Relator: Edson Jorge Cechet, Data de Julgamento: 26/02/2018, Turma Recursal Criminal, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 09/03/2018.
12 “A simples suscetibilidade de um indivíduo, a sua maior intolerância ou a irritabilidade de um neurastênico não é que gradua a responsabilidade. A perturbação deve, assim, ser incômoda aos que habitam um quarteirão, residem em uma vila, se recolhem a um hospital, frequentam uma biblioteca” (COMENTÁRIOS À LEI DAS CONTRAVENÇÕES PENAIS, José Duarte, 2ª. ed., Forense, 1958, pág. 179). (TJ-RS – RC: 71004398517 RS);
13RECURSO DE APELAÇÃO – ARTIGO 42, INCISOS I E III, (DECRETO-LEI Nº 3.688/1941)- PERTURBAÇÃO DO SOSSEGO ALHEIO – LEI DE CONTRAVENÇÕES PENAIS RECEPCIONADA PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL – PRECEDENTES – TIPICIDADE – DESNECESSIDADE DE NÚMERO EXCESSIVO DE VÍTIMAS – INÚMEROS VIZINHOS COM O SOSSEGO PERTURBADO – IN CASU, DIREITO PENAL UTILIZADO COMO ULTIMA RATIO – ÚNICO MEIO DE SOLUÇÃO DO PROBLEMA – SENTENÇA MANTIDA. Recurso conhecido e desprovido. s não tenham sido recepcionados, não sendo, porém, o caso dos auto (TJPR – 1ª Turma Recursal – 0001039-35.2015.8.16.0018/0 – Maringá – Rel.: Aldemar Sternadt – – J. 18.07.2016) (TJ-PR – APL: 000103935201581600180 PR 0001039-35.2015.8.16.0018/0 (Acórdão), Relator: Aldemar Sternadt, Data de Julgamento: 18/07/2016, 1ª Turma Recursal, Data de Publicação: 26/07/2016)
14TJ-AP – APL: 00429812720168030001 AP, Relator: ROMMEL ARAÚJO DE OLIVEIRA, Data de Julgamento: 16/05/2017, Turma recursal; Caracteriza a contravenção do art. 42, III, da LCP, a conduta do agente que liga o aparelho de som muito alto e abusa do uso de instrumentos sonoros em sua residência, incomodando os vizinhos, sendo desnecessária a realização de perícia para aferição da intensidade do som propagado, uma vez que se trata de fato que não deixa vestígios, bastando a existência de outro meio de prova, como a testemunhal, TACrimSP – AC – Rel. Aroldo Viotti – j. 1º/12/1999 – 1286/091.
15Na contravenção penal de perturbação do sossego, é desnecessária a prova pericial para se aferir a intensidade do som, quando há provas suficientes nos autos de que o réu incomodava os vizinhos com sua conduta. I. (TJPR – 2ª C.Criminal – AC – 1609318-6 – Pato Branco – Rel.: José Mauricio Pinto de Almeida – Unânime – – J. 09.03.2017) (TJ-PR – APL: 16093186 PR 1609318-6 (Acórdão), Relator: José Mauricio Pinto de Almeida, Data de Julgamento: 09/03/2017, 2ª Câmara Criminal, Data de Publicação: DJ: 2003 04/04/2017)
16 STJ – HC: 369082 SC 2016/0226409-3, Relator: Ministro FELIX FISCHER, Data de Julgamento: 27/06/2017, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 01/08/2017.
17 CASAROTI, Luciano (ed.). Contravenções Penais – Decreto-Lei n. 3.688/1942. In: CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista; SOUZA, Renee do Ó (org.). Leis Penais Especiais Comentadas. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2020. p. 83.
18ANDREUCCI, Ricardo Antônio. Legislação Penal Especial. 12. ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 498/499.
19 AgRg no CC 118.914/SC, Rel. Ministra LAURITA VAZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 29/02/2012, DJe 07/03/2012.
20Restrição ao foro por prerrogativa de função. As normas da Constituição de 1988 que estabelecem as hipóteses de foro por prerrogativa de função devem ser interpretadas restritivamente, aplicando-se apenas aos crimes que tenham sido praticados durante o exercício do cargo e em razão dele. Assim, por exemplo, se o crime foi praticado antes de o indivíduo ser diplomado como Deputado Federal, não se justifica a competência do STF, devendo ele ser julgado pela 1ª instância mesmo ocupando o cargo de parlamentar federal. Além disso, mesmo que o crime tenha sido cometido após a investidura no mandato, se o delito não apresentar relação direta com as funções exercidas, também não haverá foro privilegiado. Foi fixada, portanto, a seguinte tese: O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas. STF. Plenário. AP 937 QO/RJ, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 03/05/2018 (Info 900).
21 Não se argumenta, entretanto, que para se ter por integrada a perturbação, não se pode considerar a suscetibilidade de um único cidadão, pois mesmo em se tratando de várias pessoas prejudicadas, apenas uma pode pleitar o procedimento legal, pois o desinteresse das demais não deve ser causa de sua não aplicação (TACRIM – SP – AC – Rel. Barbosa de Almeida – RT 697/321).
22 Nesse sentido: Lima, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. Volume Único. 8. ed. Salvador: Juspodivm, 2020. p. 1041.
23É legal o ato de apreensão de veículo causador de perturbação de sossego, objeto de investigação criminal. (TJ-RS – REEX: 70057197972).
24 REEXAME NECESSÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. CONTRAVENÇÃO PENAL DE PERTURBAÇÃO DO TRABALHO OU DO SOSSEGO ALHEIOS. ART 42, III, DA LCP. APREENSÃO DE VEÍCULO E EQUIPAMENTO DE SOM PARA REALIZAÇÃO DE PERÍCIA. DESNECESSIDADE. DESPROPORÇÃO DA MEDIDA EFETIVADA PELA AUTORIDADE POLICIAL. SEGURANÇA CONCEDIDA NA ORIGEM. SENTENÇA MANTIDA. 1- Nas contravenções penais da espécie é desproporcional a apreensão do veículo por não guardar relação direta e necessária com a conduta incriminada, o mesmo se aplicando à aparelhagem sonora, dada a desnecessidade de realização de perícia para a comprovação da materialidade, que pode ser suprida pela prova testemunhal. 2- Assim, dispensada a perícia, descabe a alegação de que os objetos ainda interessem ao processo. 3- Confirmada a decisão de concedeu a segurança, nega-se provimento ao recurso de ofício. UNÂNIME. (Recurso Crime Nº 71006417950, Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais, Relator: Keila Lisiane Kloeckner Catta-Preta, Julgado em 07/11/2016).(TJ-RS – RC: 71006417950 RS, Relator: Keila Lisiane Kloeckner Catta-Preta, Data de Julgamento: 07/11/2016, Turma Recursal Criminal, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 18/11/2016)
25CORREIÇÃO PARCIAL. ART. 335, DO REGIMENTO INTERNO DO TJ-PR. BENS APREENDIDOS. CONTRAVENÇÃO PENAL DE PERTURBAÇÃO DO SOSSEGO. ART. 42, III, DA LCP. APARELHO DE SOM. OBJETO LÍCITO. PROPRIEDADE DE TERCEIRO. CONTRAVENÇÃO QUE ATINGE A CONDUTA DA MÁ UTILIZAÇÃO DO EQUIPAMENTO. RESTITUIÇÃO DO BEM AO PROPRIETÁRIO. PROVA QUE NÃO INTERESSA AO JUÍZO. ART. 118 E 120, CPP. PEDIDO DE DEVOLUÇÃO DO BEM RESTITUÍDO. INCABÍVEL. DECISÃO MANTIDA. Correição Parcial conhecida e não provida. (TJPR – 4ª Turma Recursal – 0001277-35.2019.8.16.9000 – Paranaguá – Rel.: Juiz Aldemar Sternadt – J. 16.09.2019)
26CONSTITUCIONAL E PENAL. TRANSAÇÃO PENAL. CUMPRIMENTO DA PENA RESTRITIVA DE DIREITO. POSTERIOR DETERMINAÇÃO JUDICIAL DE CONFISCO DO BEM APREENDIDO COM BASE NO ART. 91, II, DO CÓDIGO PENAL. AFRONTA À GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL CARACTERIZADA. 1. Tese: os efeitos jurídicos previstos no art. 91 do Código Penal são decorrentes de sentença penal condenatória. Tal não se verifica, portanto, quando há transação penal (art. 76 da Lei 9.099/95), cuja sentença tem natureza homologatória, sem qualquer juízo sobre a responsabilidade criminal do aceitante. As consequências da homologação da transação são aquelas estipuladas de modo consensual no termo de acordo. 2. Solução do caso: tendo havido transação penal e sendo extinta a punibilidade, ante o cumprimento das cláusulas nela estabelecidas, é ilegítimo o ato judicial que decreta o confisco do bem (motocicleta) que teria sido utilizado na prática delituosa. O confisco constituiria efeito penal muito mais gravoso ao aceitante do que os encargos que assumiu na transação penal celebrada (fornecimento de cinco cestas de alimentos). 3. Recurso extraordinário a que se dá provimento. (RE 795567, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno, julgado em 28/05/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-177 DIVULG 08-09-2015 PUBLIC 09-09-2015)
27Art. 45. Fingir-se funcionário público: Pena – prisão simples, de um a três meses, ou multa, de quinhentos mil réis a três contos de réis.
28 STJ – HC: 369082 SC 2016/0226409-3, Relator: Ministro FELIX FISCHER, Data de Julgamento: 27/06/2017, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 01/08/2017.
29REEEXAME NECESSÁRIO. APELAÇÃO CÍVEL. MANDADO DE SEGURANÇA. APREENSÃO DE VEÍCULO. PERTURBAÇÃO DO SOSSEGO ALHEIO. É legal o ato de apreensão de veículo causador de perturbação de sossego, objeto de investigação criminal. Não obstante, não há justa causa para a retenção do veículo. Apelo desprovido. (Apelação e Reexame Necessário Nº 70057197972, Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marco Aurélio Heinz, Julgado em 18/12/2013) (TJ-RS – REEX: 70057197972 RS, Relator: Marco Aurélio Heinz, Data de Julgamento: 18/12/2013, Vigésima Primeira Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 23/01/2014)
30REEEXAME NECESSÁRIO. APELAÇÃO CÍVEL. MANDADO DE SEGURANÇA. APREENSÃO DE VEÍCULO. PERTURBAÇÃO DO SOSSEGO ALHEIO. É legal o ato de apreensão de veículo causador de perturbação de sossego, objeto de investigação criminal. Não obstante, não há justa causa para a retenção do veículo. Apelo desprovido. (Apelação e Reexame Necessário Nº 70057197972, Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marco Aurélio Heinz, Julgado em 18/12/2013) (TJ-RS – REEX: 70057197972 RS, Relator: Marco Aurélio Heinz, Data de Julgamento: 18/12/2013, Vigésima Primeira Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 23/01/2014)
31REEXAME NECESSÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. CONTRAVENÇÃO PENAL DE PERTURBAÇÃO DO TRABALHO OU DO SOSSEGO ALHEIOS. ART 42, III, DA LCP. APREENSÃO DE VEÍCULO E EQUIPAMENTO DE SOM PARA REALIZAÇÃO DE PERÍCIA. DESNECESSIDADE. DESPROPORÇÃO DA MEDIDA EFETIVADA PELA AUTORIDADE POLICIAL. SEGURANÇA CONCEDIDA NA ORIGEM. SENTENÇA MANTIDA. 1- Nas contravenções penais da espécie é desproporcional a apreensão do veículo por não guardar relação direta e necessária com a conduta incriminada, o mesmo se aplicando à aparelhagem sonora, dada a desnecessidade de realização de perícia para a comprovação da materialidade, que pode ser suprida pela prova testemunhal. 2- Assim, dispensada a perícia, descabe a alegação de que os objetos ainda interessem ao processo. 3- Confirmada a decisão de concedeu a segurança, nega-se provimento ao recurso de ofício. UNÂNIME. (Recurso Crime Nº 71006417950, Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais, Relator: Keila Lisiane Kloeckner Catta-Preta, Julgado em 07/11/2016).(TJ-RS – RC: 71006417950 RS, Relator: Keila Lisiane Kloeckner Catta-Preta, Data de Julgamento: 07/11/2016, Turma Recursal Criminal, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 18/11/2016)
32 CASAROTI, Luciano (ed.). Contravenções Penais – Decreto-Lei n. 3.688/1942. In: CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista; SOUZA, Renee do Ó (org.). Leis Penais Especiais Comentadas. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2020. p. 83.
33 CASAROTI, Luciano (ed.). Contravenções Penais – Decreto-Lei n. 3.688/1942. In: CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista; SOUZA, Renee do Ó (org.). Leis Penais Especiais Comentadas. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2020. p. 83.
35Nucci, Guilherme. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
36 KURKOWSKI, Rafael Schwez (ed.). Contravenções Penais – Decreto-Lei n. 3.688/1942. In: CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista; SOUZA, Renee do Ó (org.). Leis Penais Especiais Comentadas. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2020. p. 1264
37 STJ, 6º Turma, AgRG no REsp 1442333/RS, Rel, Sebastião Reis Júnior, j. 14/06/2016.