No Brasil são constantes as manifestações públicas. As pessoas vão para as ruas para protestar por diversos motivos e para reivindicar direitos.
Não é incomum que nessas manifestações haja pessoas que utilizem máscaras no rosto que impeçam a identificação dos protestantes.
Historicamente, muitos direitos fundamentais foram conquistados na rua, em revoluções, em protestos. Governos tirânicos foram derrubados pelo povo na rua.
O direito à reunião, ao protesto, ao exercício da liberdade de expressão é um direito fundamental (art. 5º, IV e XVI, da CF). Todos são livres para irem para as ruas e expressarem suas opiniões, o que é uma característica do Estado Democrático de Direito.
Ocorre que todo exercício de direito possui limites. Os direitos fundamentais não podem ser exercidos de forma ilimitada, até porque encontram limites em outros direitos, igualmente, fundamentais. Ao exercer o direito à liberdade de expressão não está autorizado o discurso de ódio (hate speech)[1] ou a quebradeira. Nos dois casos poderá haver consequências criminais, como os crimes contra a honra, a apologia de crime ou de criminoso, o racismo e o crime de dano.
Em razão da impossibilidade de se exercer a liberdade de expressão de forma ilimitada, a Constituição Federal vedou o anonimato.
Art.5º (…)
IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
Igualmente, o direito de reunião deve ser exercido de forma pacífica e sem armas.
Art. 5º (…)
XVI – todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente;
Inclusive, constitui direito fundamental a indenização decorrente do dano material, moral e à imagem (art. 5º, V, da CF), o que somente é possível de ser exercido, caso se identifique o autor dos danos.
A vedação ao anonimato ao exercer a liberdade de expressão tem duplo efeito: a) intimidatório ou preventivo, pois a pessoa sabe que se extrapolar será identificada e daí advirá o segundo efeito; b) repressivo, uma vez que a pessoa poderá ser responsabilizada nas esferas cível, criminal e administrativa.
O grupo denominado “Black Bloc” é um exemplo de reunião de pessoas que utilizam da violência e do anonimato, por usarem máscaras escuras, pois se concentram com armas (pedras, paus, objetos pontiagudos, facas etc), depredam o patrimônio público e privado, causam agressões às pessoas, o que resulta em lesão corporal e até mesmo em morte.
Nota-se que a estratégia é promover a violência, a quebradeira e a prática de diversos crimes, tudo no anonimato, com o fim de serem acobertados pelo manto da impunidade.
A segurança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos e visa à preservação da ordem pública, da incolumidade das pessoas e do patrimônio.[2]
Trata-se de um direito fundamental, o qual tem como garantidor os órgãos policiais, sendo responsabilidade da Polícia Militar zelar pela preservação da ordem pública (art. 144, § 5º, da CF) e da Polícia Civil exercer as atribuições de polícia judiciária e a apuração de infrações penais (art. 144, § 4º, da CF).
O conceito de ordem pública encontra previsão no art. 2º, item 21, do Decreto-Lei n. 88.777/83.
21) Ordem Pública -.Conjunto de regras formais, que emanam do ordenamento jurídico da Nação, tendo por escopo regular as relações sociais de todos os níveis, do interesse público, estabelecendo um clima de convivência harmoniosa e pacífica, fiscalizado pelo poder de polícia, e constituindo uma situação ou condição que conduza ao bem comum.
O conceito de manutenção da ordem pública possui previsão no item 19.
19) Manutenção da Ordem Pública – É o exercício dinâmico do poder de polícia, no campo da segurança pública, manifestado por atuações predominantemente ostensivas, visando a prevenir, dissuadir, coibir ou reprimir eventos que violem a ordem pública.
A incolumidade das pessoas, mencionada no art. 144 da Constituição Federal, é a segurança das pessoas. Refere-se à proteção, cuidado, zelo com as pessoas, de forma que possa preservar a integridade física, moral, psicológica, sexual e em todas vertentes.
A incolumidade patrimonial, por sua vez, tem foco nos bens e patrimônio das pessoas físicas e jurídicas e de todo o patrimônio existente. O termo é empregado em sua acepção mais ampla.
Nota-se, portanto, que cabe, em um primeiro momento, à Polícia Militar prevenir a prática de delitos e adotar providências com o fim de cumprir a sua missão constitucional.
No Estado do Rio de Janeiro, a Lei n. 6.528/2013 proibiu o uso de máscaras nas reuniões para manifestação do pensamento.
Art. 2º É especialmente proibido o uso de máscara ou qualquer outra forma de ocultar o rosto do cidadão com o propósito de impedir-lhe a identificação.
Parágrafo único. É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato.
Art. 3º O direito constitucional à reunião pública para manifestação de pensamento será exercido:
IV – sem o uso de máscaras nem de quaisquer peças que cubram o rosto do cidadão ou dificultem sua identificação;
O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro julgou constitucional esses dispositivos.
Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei Estadual regulamentando o direito constitucional à reunião pública para manifestação de pensamento (Artigos 5, inciso XVI, da Constituição da República, e 23, da Constituição do Estado). Estabelecimento de vedação ao uso de máscara ou qualquer outra forma de ocultar o rosto do cidadão com o propósito de impedir-lhe a identificação. Conceituação de arma para fins do exercício do direito fundamental em apreço. Determinação da autoridade à qual se deve fazer a prévia comunicação da manifestação. Alegação de vícios formais e materiais na norma impugnada. Teses trazidas pelos representantes e pelo amicus curiae que não se sustentam. Inexistência, na legislação em comento, de qualquer ofensa à ordem constitucional vigente. Representações que se julgam improcedentes, declarando, por conseguinte, a constitucionalidade da Lei Estadual nº 6.528/2013 (Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Órgão Especial. Ações diretas de inconstitucionalidade 0052756-30.2013.8.19.0000 e 0053071-8.2013.8.19.0000. Relatora designada para o acórdão: Desembargadora Nilza Bitar, DJ de 4 fev. 2015).
Com isso, o Partido da República ingressou com Recurso Extraordinário[3], sendo reconhecida a relevância do tema que recebeu o número 912 (Possibilidade de lei proibir o uso de máscaras em manifestações públicas) e encontra-se pendente de julgamento.
O Procurador-Geral de Justiça manifestou-se no sentido de ser “compatível com o núcleo essencial do direito de reunião a proibição de máscaras e peças que cubram o rosto durante atos de protesto no contexto manifesto da prática de atos de violência e condutas ilícitas, excetuando-se da vedação máscaras de proteção contra doenças infectocontagiosas.”
Portanto, para a Procurador-Geral de Justiça, somente é permitida a vedação ao uso de máscaras se for em um contexto claro de prática de violência e condutas ilícitas.
Ocorre que a Constituição Federal é clara ao vedar o anonimato no exercício da liberdade de expressão, sem autorizar a possibilidade do anonimato nos protestos pacíficos.
O entendimento de que somente em contexto de violência e prática de condutas ilícitas em manifestações públicas é que deve vedar o uso de máscaras inviabiliza o trabalho da polícia e a preservação da ordem pública, pois deixar para proibir o uso somente nessas situações não surtirá os efeitos necessários de identificar os participantes do movimento, pois a partir do momento em que se inicia a quebradeira e a prática de crimes, a polícia começa a atuar de forma proporcional à violência, seja ao lançar bombas, efetuar disparos de bala de borracha e adotar outras medidas de contenção da violência. No estado de caos e de tumulto, muitas vezes, não tem como parar para mandar tirar as máscaras. Além do mais, a finalidade é prevenir a prática de violência e de condutas ilícitas, razão pela qual não há sentido em vedar a máscara somente nesses casos, pois o que se visa prevenir já terá ocorrido.
Em São Paulo, a Lei n. 15.556/2014 proibiu o uso de máscara ou qualquer outro paramento que possa ocultar o rosto da pessoa, ou que dificulte ou impeça a identificação, salvo se a manifestação for cultural e incluída no Calendário Oficial do Estado (art. 2º, parágrafo único).
O Decreto n. 64.074/19 regulamentou a referida lei e dispôs que “será formalizada a apreensão dos objetos que configurem violação dos dispositivos previstos na Lei nº 15.556, de 29 de agosto de 2014, bem como de outros de interesse policial.” (art. 5º, § 5º).
Kleber Leyser de Aquino[4] discorre sobre o tema e explica que:
Além disso, também se sobressai, com clareza, que a colocação de máscaras, panos, camisetas e etc. no rosto, para esconder a identificação, em manifestações populares, é ato preparatório para a prática de crimes, e, embora não o seja ainda um fato típico (previsto como crime), pode e deve ser impedido pela Polícia, como obrigação legal que possui de impedir a prática de crimes, sob pena de sua omissão ser caracterizada como “penalmente relevante”, nos termos do artigo 13, § 2º, alínea “a”, do Código Penal, ou seja, a omissão que normalmente é um irrelevante penal, passa a ser algo de relevância penal, nas hipóteses em que o omitente tem o dever de agir para evitar o crime e não o faz.
Considerando que o ato de participar de baderna pública com cobertura no rosto, impedindo a identificação, como dito, é fato antijurídico, ofensivo à nossa CF, além de ser também ato preparatório à prática de crimes, as Polícias Militar e Civil devem agir para impedir tal conduta.
A Polícia Militar, que atua de forma ostensiva, já no momento em que estes indivíduos colocam suas “máscaras”, demonstrando claramente a intenção de agir no anonimato, deve agir e abordá-los para apreensão de tais instrumentos (máscaras, panos, camisetas e etc.), da mesma forma que a mesma polícia apreende rojões, pedaços de madeiras, de ferros e etc. de torcedores que entram nos estádios de futebol.
Enquanto o sujeito estiver apenas com a máscara no rosto, a providência da polícia, de apreender o instrumento, é o bastante e está dentro da estrita legalidade. Contudo, tal providência pode ensejar desdobramentos, como o não atendimento à ordem legal do policial, de apreensão, o que acarretará a prática do crime de desobediência, que poderá ainda ser seguido dos crimes de desacato, caso o policial seja ofendido no exercício da função, e, se o caso, de resistência, caso seja necessário o uso de força física pelo policial para a apreensão referida. Nestas três hipóteses, em conjunto ou individualmente, já se justificaria a condução do agente à Delegacia de Polícia, para as respectivas responsabilizações criminais.
A apreensão da máscara pela polícia quando se tem previsão em norma não gera maiores dúvidas acerca da possibilidade, como é o caso de São Paulo (art. 5º, § 5º, do Decreto n. 64.074/19.
E quando não houver previsão? Seria possível apreender a máscara?
Um dos poderes administrativos é o poder de polícia, que consiste na prerrogativa do Estado em limitar, restringir, impor limites à atuação de um particular, em observância ao interesse público.
O poder de polícia autoriza que a Administração Pública, amparada pelo ordenamento jurídico, utilize-se de mecanismos que restrinjam e limitem o exercício de direitos em busca da promoção do bem comum e do interesse social.
Conforme o art. 78 do Código Tributário Nacional, Poder de Polícia é a “atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.”
Dessa forma, em razão do poder de polícia que os órgãos policiais possuem no exercício de suas atividades, é possível que máscaras ou instrumentos utilizados para garantir o anonimato em manifestações públicas, sejam apreendidos administrativamente pela polícia com a consequente destruição, da mesma forma, como consta nos ensinamentos de Kleber Leyser de Aquino, que a polícia “apreende rojões, pedaços de madeiras, de ferros e etc. de torcedores que entram nos estádios de futebol.”
É certo que utilizar máscara no rosto durante manifestações públicas não caracteriza infração penal, mas contraria diretamente a Constituição Federal.
O dispositivo constitucional que veda o anonimato no exercício da liberdade de expressão é norma de eficácia plena, portanto, independe de qualquer lei ou regulamento para ser aplicado na prática. A Constituição não é uma Carta que exorta meras recomendações, devendo, em razão do princípio da máxima efetividade, buscar eficácia à aplicação de suas normas e previsão em lei, sem que haja nenhuma consequência, é mera recomendação. A vedação ao anonimato não é mera recomendação!
Não permitir que a polícia apreenda as máscaras utilizadas no rosto, em meio a uma multidão, não surtirá os efeitos pretendidos, de vedar o anonimato, pois após a polícia pedir para tirar a máscara do rosto e se retirar do local, os manifestantes poderão utilizá-la novamente.
É inviável exigir que o policial advirta o manifestante antes de que deve retirar a máscara do rosto para, somente, em um segundo momento, caso o manifestamente seja flagrado utilizando a máscara no rosto novamente, efetue a apreensão desta, pois a polícia está a lidar com multidão e aglomeração de inúmeras de pessoas, o que impossibilita o controle das pessoas que já tenham sido advertidas.
Deve-se imaginar ainda que não é viável exigir que a polícia relacione todos os manifestantes que estiverem no uso de máscara no rosto, apreenda a máscara e depois proceda à devolução, em razão da impossibilidade fática, como decorrência da atuação em meio a uma multidão de pessoas, o que retiraria a polícia, inclusive, da atuação durante a realização do protesto, em razão do tempo gasto para o registro de tudo.
Na hipótese em que o policial advertir um manifestante de que este não pode usar a máscara e determinar que esta seja entregue, em caso de descumprimento, haverá a prática do crime de desobediência (art. 330 do CP).
Não é em toda aglomeração de pessoas que deve se vedar o uso de máscaras, pois é comum que estas sejam utilizadas em carnavais e em eventos culturais, em razão da representatividade de seu uso, o que, por uma questão de proporcionalidade, deve ser permitido, até porque a vedação descaracterizaria o próprio sentido do evento, de demonstrar a defesa de valores e ideias culturais. Trata-se de um fato aceito socialmente.
Nesse sentido, a previsão contida na Lei 15.556/2014 de que somente é possível utilizar máscara em manifestação cultural e incluída no Calendário Oficial do Estado de São Paulo é inconstitucional, pois, sem qualquer fundamento, restringe as manifestações culturais que podem expor seus ideais por intermédio de máscaras, passando o controle ao Estado, o que viola a liberdade de consciência e cultural (art. 5º, VI, da CF).
Ao Estado não cabe controlar quais manifestações poderão utilizar máscaras. Deve-se analisar a finalidade da manifestação e se o uso de máscaras possui conexão com o fim da manifestação.
Noutro giro, não há sentido em se permitir o uso de máscaras em um evento que o povo vai para as ruas protestar contra a corrupção ou participar de uma passeata contra ou a favor de um político.
O uso de máscaras pelos manifestantes deve ser analisado caso a caso, devendo-se permitir o uso por aqueles que a utilizam em razão de doenças infectocontagiosas, bem como nos eventos culturais e em época de carnaval.
NOTAS
[1] STF – HC: 82424 RS, Relator: MOREIRA ALVES, Data de Julgamento: 17/09/2003, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ 19-03-2004 PP-00017 EMENT VOL-02144-03 PP-00524.
[2] Constituição Federal, Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: (…).
[3] Recurso Extraordinário com Agravo n. 905.149 – RJ
[4] Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/a-antijuridicidade-do-uso-de-mascaras-no-rosto-em-manifestacoes-publicas/>. Acesso em: 02/05/2020.