É possível que os hotéis, motéis, pousadas e congêneres retenham (peguem) dos clientes as bagagens, objetos como notebook, joias, dinheiro, o carro na garagem, dentre outros, visando o pagamento das despesas e consumo realizados pelo hóspede (art. 1.467, I, do Código Civil).
Art. 1.467. São credores pignoratícios, independentemente de convenção: I – os hospedeiros, ou fornecedores de pousada ou alimento, sobre as bagagens, móveis, jóias ou dinheiro que os seus consumidores ou fregueses tiverem consigo nas respectivas casas ou estabelecimentos, pelas despesas ou consumo que aí tiverem feito;
Trata-se do instituto jurídico denominado penhor legal. Penhor no sentido de garantia (direito real). Legal por estar previsto em lei (art. 1.467, I, do Código Civil). Isto é, é uma garantia do hotel prevista em lei.
O penhor legal é uma forma de defesa do hotel, visando garantir que a dívida seja paga, na medida em que é comum os hotéis lidarem com pessoas desconhecidas e que ingressam no hotel sem darem nenhuma garantia de que pagarão as despesas ao final.
Nesse sentido, ensina Carlos Roberto Gonçalves[1]:
O penhor legal encontra justificativa na circunstância de que as pessoas mencionadas no art. 1.467 do Código Civil são obrigadas, por força de suas atividades, a receber e tratar com pessoas que não conhecem e que aparentemente nenhuma garantia oferecem, senão os bens e valores que trazem consigo. Embora o interesse diretamente protegido seja do credor, pode-se verificar que, indiretamente e de modo geral, há na concessão da garantia em causa um interesse social a ser preservado.
Não é por outra razão que o art. 176 do Código Penal considera infração o fato de alguém tomar refeição em restaurante, alojar-se em hotel ou utilizar-se de meio de transporte sem dispor de recursos para efetuar o pagamento. Denota-se o interesse da sociedade em facilitar o pagamento de débitos dessa natureza, para preservar a segurança das relações que se estabelecem nessa área.
Essa garantia pode atingir somente os bens dos hóspedes que estejam no interior do estabelecimento. Portanto, não é possível impedir que o hóspede saia do hotel com carro alugado ou em nome de terceiros, pois atingiria bem de terceiro que não possui relação jurídica com o hotel, todavia é possível impedir que saia com carro próprio.
Após pegar (tomar os bens em garantia) os bens do hóspede, ato contínuo, o credor (dono do hotel) deverá ingressar com ação judicial para a homologação do penhor legal ou então promover a homologação pela via extrajudicial, em cartório (art. 703, § 2º, do CPC)[2].
No processo judicial os bens poderão ser vendidos para o pagamento da dívida e devolução ao devedor do que sobrar. Parte da doutrina critica o penhor legal, dizendo que se trata de uma forma abusiva de cobrança, o que é vedado nas relações de consumo (art. 42 do CDC).
Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.
Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.
O Código de Defesa do Consumidor veda a submissão do consumidor, na cobrança de dívida, a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça, devendo-se interpretar que o constrangimento ou ameaça para ser abusiva não deve estar prevista em lei. Não há nada de ilegal em ameaçar ir à justiça ou constranger a pessoa retendo seus bens caso não queira pagar as dívidas do hotel.
Os hotéis que assim procedem estão no exercício regular de um direito (art. 188, I, do Código Civil).
Art. 188. Não constituem atos ilícitos:
I – os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido;
Nem todos os bens do devedor podem ser retidos pelo hotel, devendo-se observar, como regra, os bens que são impenhoráveis, em razão da interpretação dada pelo art. 833 do Código de Processo Civil, adequando-se à natureza e finalidade do penhor legal.
O art. 833, III, do CPC diz que são impenhoráveis os vestuários, salvo se de elevado valor. Ocorre que em um hotel é absolutamente comum haver vestuários do hóspede e impossibilitar o penhor legal de vestuários inviabilizaria o próprio penhor legal. Lado outro, o inciso V do art. 833 do CPC assegura a impenhorabilidade dos materiais de trabalho, o que deve ser observado pelo hotel ao se realizar o penhor legal, pois comprometeria a realização do trabalho do hóspede e, consequentemente, a dignidade da da pessoa humana, em razão da possibilidade de afetar o estatuto jurídico do patrimônio mínimo. Além do mais, o trabalho poderá propiciar o pagamento da dívida.
Destaca-se ainda que hospedar-se em hotel sem dispor de recursos para efetuar o pagamento é crime de “outras fraudes” previsto no art. 176 do Código Penal.
Art. 176 – Tomar refeição em restaurante, alojar-se em hotel ou utilizar-se de meio de transporte sem dispor de recursos para efetuar o pagamento:
Pena – detenção, de quinze dias a dois meses, ou multa.
Parágrafo único – Somente se procede mediante representação, e o juiz pode, conforme as circunstâncias, deixar de aplicar a pena.
Por hotel deve-se entender qualquer estabelecimento que presta serviço de hospedagem, como pousadas e motéis. Trata-se de uma interpretação extensiva, a qual é admitida no direito penal, ainda que seja in malam partem.
O agente pratica o crime quando se hospeda (aloja) em hotel sem que possua dinheiro para efetuar o pagamento. Portanto, o crime se consuma no ato da hospedagem, pois o autor já tem ciência de que não possui recursos para efetuar o pagamento e o tipo penal é claro em dizer que o ato de alojar-se em hotel sem dispor de recursos para efetuar o pagamento é crime. Logo, basta realizar o check-in ciente de que não efetuará o pagamento por não possuir dinheiro, que o crime terá se consumado.
Como a lei autoriza a retenção de objetos e pertences dos hóspedes nessas situações, o funcionário do hotel não praticará o crime previsto no art. 345 do Código Penal.
Art. 345 – Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite:
Pena – detenção, de quinze dias a um mês, ou multa, além da pena correspondente à violência.
Parágrafo único – Se não há emprego de violência, somente se procede mediante queixa.
Diante do exposto, é possível citar os seguintes exemplos:
Ex.1: após o hóspede consumir valor significativo no hotel, deixa de pagar a conta e pede a mala com roupas que está no maleiro ou o carro que está na garagem. O hotel poderá não entregar a mala ou não entregar o carro, o que for suficiente para pagar a dívida, devendo optar pelo meio menos oneroso para o devedor;
Ex.2: o hóspede vai ao motel e no momento de sair não paga a conta. Poderá o motel impedir a saída com o carro, estando a pessoa liberada para ir embora por outros meios;
Ex.3: o hóspede permanece cinco dias no hotel e ao realizar o check-out diz esqueceu o cartão do banco e não possui condições de pagar. O hotel poderá não liberar seus objetos pessoais até que efetue o pagamento;
Ex.4: um hóspede que trabalha on-line com o seu notebook passa um dia em um hotel somente com o notebook, sem outros objetos, e ao sair diz não ter dinheiro para pagar a estadia. Entendo que o hotel não deverá reter o notebook, pois é instrumento de trabalho do hóspede.
NOTAS
[1] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: direito das coisas. Volume V. São Paulo: Saraiva, 9ª Edição, 2014.
[2] Art. 703. Tomado o penhor legal nos casos previstos em lei, requererá o credor, ato contínuo, a homologação.
§ 1º Na petição inicial, instruída com o contrato de locação ou a conta pormenorizada das despesas, a tabela dos preços e a relação dos objetos retidos, o credor pedirá a citação do devedor para pagar ou contestar na audiência preliminar que for designada.
§ 2º A homologação do penhor legal poderá ser promovida pela via extrajudicial mediante requerimento, que conterá os requisitos previstos no § 1º deste artigo, do credor a notário de sua livre escolha.
§ 3º Recebido o requerimento, o notário promoverá a notificação extrajudicial do devedor para, no prazo de 5 (cinco) dias, pagar o débito ou impugnar sua cobrança, alegando por escrito uma das causas previstas no art. 704 , hipótese em que o procedimento será encaminhado ao juízo competente para decisão.
§ 4º Transcorrido o prazo sem manifestação do devedor, o notário formalizará a homologação do penhor legal por escritura pública.