A Polícia Penal pode lavrar Termo Circunstanciado de Ocorrência?

SÍNTESE

O tema é muito polêmico e controverso e este texto realiza um cotejo entre o art. 69 da Lei n. 9.099/95, que prevê ser atribuição da autoridade policial lavrar o termo circunstanciado de ocorrência, e a recente decisão do STF na ADI 3807, que decidiu que o termo circunstanciado de ocorrência não é procedimento investigativo.

É importante que seja feita uma leitura de todo o texto antes de formar opinião.

Em síntese, pode-se afirmar que a Polícia Penal pode lavrar termo circunstanciado de ocorrência nas seguintes situações:

a) Qualquer infração de menor potencial ofensivo que envolva os presos ou terceiros que visem o preso e sejam praticadas dentro do estabelecimento penal, pois em todos esses casos haverá relação com a atividade de segurança do estabelecimento penal, que possui como finalidade prevenir e reprimir imediatamente a prática de infrações penais por presos, contra os presos ou que de qualquer forma envolva os presos;

b) Qualquer infração de menor potencial ofensivo que envolva os policiais penais ou qualquer pessoa e tenha relação com a atividade de segurança do estabelecimento penal e seja praticada dentro do estabelecimento penal;

c) Qualquer infração de menor potencial ofensivo praticada fora do estabelecimento penal, desde que seja nas imediações e atente contra a segurança do estabelecimento penal, dos presos ou dos policiais penais.

Com o advento da Emenda Constitucional n. 104, de 04 de dezembro de 2019, foi criada a Polícia Penal.

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

VI – polícias penais federal, estaduais e distrital. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 104, de 2019)

A Polícia Penal foi criada em nível federal, estadual e distrital.

A Polícia Penal Federal subordina-se ao Presidente da República, enquanto que as Polícia Penais Estaduais e Distrital subordinam-se aos Governadores dos Estados e do Distrito Federal, respectivamente.

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

§ 6º As polícias militares e os corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército subordinam-se, juntamente com as polícias civis e as polícias penais estaduais e distrital, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 104, de 2019)

Inexiste Polícia Federal Municipal, uma vez que a Emenda Constitucional n. 104/2019 limitou-se a criar as Polícias Penais Federais e Estaduais e Distrital.

A Polícia Penal do Distrito Federal é organizada e mantida pela União, mas subordinada ao Governador do Distrito Federal.

A “organização e manutenção” não se confunde com a “subordinação”. A primeira refere-se à organização propriamente dita, ao caráter financeiro, à criação de cargos, concessão de aumento e de benefícios. A segunda refere-se ao vínculo administrativo e hierárquico.

Art. 21. Compete à União:

XIV – organizar e manter a polícia civil, a polícia penal, a polícia militar e o corpo de bombeiros militar do Distrito Federal, bem como prestar assistência financeira ao Distrito Federal para a execução de serviços públicos, por meio de fundo próprio; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 104, de 2019)

Art. 32. O Distrito Federal, vedada sua divisão em Municípios, reger- se-á por lei orgânica, votada em dois turnos com interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços da Câmara Legislativa, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição.

§ 4º Lei federal disporá sobre a utilização, pelo Governo do Distrito Federal, da polícia civil, da polícia penal, da polícia militar e do corpo de bombeiros militar. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 104, de 2019)

Os policiais penais eram denominados “agentes penitenciários” ou “agentes de segurança penitenciária” que passaram, automaticamente, a serem chamados de policiais penais, em razão do disposto no art. 4º da Emenda Constitucional n. 104/2019.

Art. 4º O preenchimento do quadro de servidores das polícias penais será feito, exclusivamente, por meio de concurso público e por meio da transformação dos cargos isolados, dos cargos de carreira dos atuais agentes penitenciários e dos cargos públicos equivalentes.


As atribuições dos policiais penais encontram-se previstas no § 5º-A do art. 144 da Constituição Federal.

Art. 144 (…)

§ 5º-A. Às polícias penais, vinculadas ao órgão administrador do sistema penal da unidade federativa a que pertencem, cabe a segurança dos estabelecimentos penais. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 104, de 2019)

Aos policiais penais cabe garantir a ordem e a segurança nos estabelecimentos penais do país; realizarem escolta armada de presos; trabalharem na ressocialização dos presos; fiscalizarem a entrada de pessoas e veículos nos estabelecimentos penais e realizarem buscas pessoais; cuidarem da vigilância interna, externa e da disciplina dos estabelecimentos prisionais, dentre outras atribuições especificadas em lei.

Os policiais penais compõem o Sistema Único de Segurança Pública (Susp) como um integrante operacional (art. 9º, § 2º, VIII, da Lei n.13.675/18).

A competência para legislar sobre direito penitenciário é concorrente entre a União, Estados e o Distrito Federal (art. 24, I, da CF), o que permite que estados legislem a respeito de regras para as polícias penais, inclusive, sobre as atribuições destas, desde que esteja dentro do parâmetro estabelecido no § 5º-A do art. 144 da Constituição Federal (segurança dos estabelecimentos penais).

Ao inserir a Polícia Penal no rol do art. 144 da Constituição Federal, os profissionais responsáveis pelos estabelecimentos penais são valorizados e passam a compor uma instituição policial que passa a receber mais atenção do Governo e investimentos, sendo necessário que haja uma valorização salarial, plano de carreira, além de passarem a ser vistos socialmente como policiais.

Os integrantes dos órgãos policiais elencados no art. 144 da Constituição Federal são autoridades policiais em sentido amplo, com exceção dos Delegados de Polícia que são autoridades policiais em sentido estrito.

A expressão “autoridade policial” é utilizada por diversas leis, de forma reiterada, sem apresentar um rigor técnico.

O termo “autoridade” remete à ideia de poder, o que na Administração Pública relaciona-se aos agentes públicos que possuam poder para tomar decisões que impactam de alguma forma em direitos de terceiros.

O termo “policial” refere-se a todos os policiais que pertençam aos órgãos policiais previstos no art. 144 da Constituição Federal, isto é: a) polícia federal; b) polícia rodoviária federal; c) polícia ferroviária federal; d) polícias civis; e) polícias militares e f) polícias penais.

O Código de Processo Penal utiliza o termo “autoridade policial”, na maior parte das vezes, para se referir ao Delegado de Polícia, uma vez que trata de atos de investigação ou diligências que devem ser realizadas em sede de inquérito policial, motivo pelo qual a autoridade policial é empregada, nesses casos, em seu sentido estrito, como nos seguintes exemplos:

Art. 5º (…) §3º Qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de infração penal em que caiba ação pública poderá, verbalmente ou por escrito, comunicá-la à autoridade policial, e esta, verificada a procedência das informações, mandará instaurar inquérito.

Art. 17. A autoridade policial não poderá mandar arquivar autos de inquérito.

Art. 184. Salvo o caso de exame de corpo de delito, o juiz ou a autoridade policial negará a perícia requerida pelas partes, quando não for necessária ao esclarecimento da verdade.

Art. 322. A autoridade policial somente poderá conceder fiança nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 4 (quatro) anos.

Por outro lado, a lei, em diversas passagens, utiliza o termo “autoridade policial” em sentido genérico, sem abranger somente os Delegados de Polícia, como ocorre no art. 11 da Lei n. 11.340/06 ao elencar diversas providências policiais no atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar.

Art. 11. No atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, a autoridade policial deverá, entre outras providências:

I – garantir proteção policial, quando necessário, comunicando de imediato ao Ministério Público e ao Poder Judiciário;

II – encaminhar a ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao Instituto Médico Legal;

III – fornecer transporte para a ofendida e seus dependentes para abrigo ou local seguro, quando houver risco de vida;

IV – se necessário, acompanhar a ofendida para assegurar a retirada de seus pertences do local da ocorrência ou do domicílio familiar;

Referidas providências são adotadas comumente por policiais militares e a lei menciona caber à autoridade policial e não há qualquer questionamento ou discussão se os militares estaduais podem adotar essas providências. O termo autoridade policial utilizado no art. 11 da Lei n. 11.340/06 está em sentido amplo.

O Supremo Tribunal Federal já decidiu que a interpretação restritiva do termo ‘autoridade policial’, que consta do art. 69 da Lei nº 9.099/95, não se compatibiliza com o art. 144 da Constituição Federal, que não faz essa distinção. Pela norma constitucional, TODOS OS AGENTES QUE INTEGRAM OS ÓRGÃOS DE SEGURANÇA PÚBLICA – polícia federal, polícia rodoviária federal, polícia ferroviária federal, policias civis, polícia militares e corpos de bombeiros militares –, CADA UM NA SUA ÁREA ESPECÍFICA DE ATUAÇÃO, SÃO AUTORIDADES POLICIAIS.1

Renato Brasileiro de Lima ensina que “Na expressão autoridade policial constante do caput do art. 69 da Lei nº 9.099/95 estão compreendidos todos os órgãos encarregados da segurança pública, na forma do art. 144 da Constituição Federal (…)”2

Dessa forma é perfeitamente possível afirmar que os policiais penais são autoridades policiais em sentido amplo.

Recentemente, em julgamento concluído em 26/06/2020, na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3807, de relatoria da Ministra Cármen Lúcia, o Supremo Tribunal Federal por 10 votos a 01, vencido o Ministro Marco Aurélio, decidiu que o termo circunstanciado de ocorrência embora substitua o inquérito policial como principal peça informativa dos processos penais que tramitam nos juizados especiais, não é procedimento investigativo, mas sim um boletim de ocorrência mais detalhado.

Considerando-se que O TERMO CIRCUNSTANCIADO NÃO É PROCEDIMENTO INVESTIGATIVO, mas peça informativa com descrição detalhada do fato e as declarações do condutor do flagrante e do autor do fato, deve-se reconhecer que A POSSIBILIDADE DE SUA LAVRATURA PELO ÓRGÃO JUDICIÁRIO NÃO OFENDE OS §§ 1º E 4º DO ART. 144 DA CONSTITUIÇÃO, nem interfere na imparcialidade do julgador. (Trecho do voto da Ministra Cármen Lúcia).

Dessa forma, o Supremo Tribunal Federal pacificou que o termo circunstanciado de ocorrência não é procedimento investigativo e pode ser lavrado por autoridade diversa do Delegado de Polícia e que isso não ofende o art. 144, §§ 1º e 4º da Constituição Federal, que trata das atribuições da Polícia Federal e Polícia Civil.

A decisão do STF não contraria o disposto no art. 2º, § 1º, da Lei n. 12.830/13, ao prever que “Ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais”, pois pacificou que o termo circunstanciado de ocorrência não é investigação criminal.

Sem entrar em discussões sobre o acerto ou erro da decisão do STF, a qual entendo que foi acertada, o importante é que o tema foi pacificado pelo plenário em ação direta de inconstitucionalidade, o que permite afirmar que vincula todo o Poder Judiciário, o Poder Público e todas as autoridades, por mais que discordem, pelo menos no caso decidido pelo STF – possibilidade do juiz lavrar TCO em se tratando do uso de drogas, na forma do art. 48, § 2º, da Lei 11.343/06 -, e isso surte um importante e nítido efeito para todos os demais casos que forem levados ao Supremo Tribunal Federal ou ao Poder Judiciário, em razão do efeito persuasivo das decisões do STF, sobretudo em controle abstrato de constitucionalidade e em razão da teoria dos motivos determinantes.

A teoria da transcendência dos motivos determinantes diz que os fundamentos essenciais, principais, decisivos nos julgamentos do Supremo Tribunal Federal também possuem efeito vinculante. Trata-se do efeito irradiante ou transbordante dos motivos determinantes.

O Supremo Tribunal Federal não tem aceito referida teoria, conforme ensina Márcio Cavalcante3.

O STF não admite a “teoria da transcendência dos motivos determinantes”.

Segundo a teoria restritiva, adotada pelo STF, somente o dispositivo da decisão produz efeito vinculante. Os motivos invocados na decisão (fundamentação) não são vinculantes.

A reclamação no STF é uma ação na qual se alega que determinada decisão ou ato:

• usurpou competência do STF; ou

• desrespeitou decisão proferida pelo STF.

Não cabe reclamação sob o argumento de que a decisão impugnada violou os motivos (fundamentos) expostos no acórdão do STF, ainda que este tenha caráter vinculante. Isso porque apenas o dispositivo do acórdão é que é vinculante.

Assim, diz-se que a jurisprudência do STF é firme quanto ao não cabimento de reclamação fundada na transcendência dos motivos determinantes do acórdão com efeito vinculante.

STF. Plenário. Rcl 8168/SC, rel. orig. Min. Ellen Gracie, red. p/ o acórdão Min. Edson Fachin, julgado em 19/11/2015 (Info 808).

Trata-se de uma verdadeira jurisprudência defensiva, na medida em que admitir a teoria da transcendência dos motivos determinantes implicaria em um aumento expressivo no número de reclamações perante a Suprema Corte.

Na Reclamação n. 22470, o Supremo Tribunal Federal afirmou que “a exegese jurisprudencial conferida ao art. 102, I, “l”, da Magna Carta rechaça o cabimento de reclamação fundada na tese da transcendência dos motivos determinantes.”4

Dessa forma, não cabe reclamação para o Supremo Tribunal Federal na hipótese em que o juiz, o tribunal ou o Poder Público entender que o termo circunstanciado de ocorrência possui natureza investigativa, em que pese contrariar claramente a decisão do STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3807. O instrumento utilizado para impugnar este entendimento deve ser a ação judicial quando a decisão partir do Poder Público ou recursos quando a decisão decorrer do próprio Poder Judiciário.

Pedro Lenza5 ensina que:

Inegavelmente, contudo, temos de reconhecer que a perspectiva de transcendência dos motivos determinantes deve ser revista à luz do CPC/2015, destacando-se os arts. 927 e 988.Já expusemos a nossa crítica à vinculação ampliada pela lei processual, lembrando que a Constituição se limita a estabelecer o efeito vinculante nas ações de controle concentrado e em razão de edição de súmula vinculante.

Nesse sentido, como afirmam Barroso e Mello, “se o CPC/2015 acolheu tal concepção de tese jurídica vinculante, inclusive em sede de controle concentrado da constitucionalidade, isso significa que, com a sua vigência, o entendimento do STF que rejeitava a eficácia transcendente da fundamentação precisará ser revisitado. É que a eficácia transcendente significa justamente atribuir efeitos vinculantes à ratio decidendi das decisões proferidas em ação direta. Mesmo que este entendimento não fosse acolhido pelo STF no passado, o fato é que, ao que tudo indica, o novo Código o adotou”.

Diante da decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI n. 3807, por 10 votos a 01, no sentido de que o TCO não é procedimento investigativo, certamente, por coerência, a ADI n. 5647, que questiona a constitucionalidade da autorização concedida pela Lei n. 22.257/16 de Minas Gerais para a Polícia Militar lavrar TCO, deve ser julgada improcedente e, consequentemente, autorizar a lavratura pela Polícia Militar, pois o principal fundamento que visa impossibilitar a Polícia Militar de lavrar TCO consiste na natureza investigativa do termo circunstanciado de ocorrência.

Por serem os policiais penais autoridades policiais, em sentido amplo, assim como são os policiais militares e rodoviários federais, e pelo fato do termo circunstanciado de ocorrência não ser um procedimento investigativo, nada impede que os policiais penais passem a lavrar TCO, assim como a Polícia Militar e Polícia Rodoviária Federal, por ser uma atribuição prevista em lei (art. 69 da Lei n. 9.099/95).

A finalidade precípua da Polícia Penal é a segurança dos estabelecimentos penais, o que autoria a lei a conceder outras funções que tenham relação com a atividade-fim da Polícia Penal.

Inicialmente, a Proposta de Emenda à Constituição n. 14/2016 do Senado Federal, que recebeu o número 372/2017 na Câmara dos Deputados, que posteriormente, se transformou na PEC n. 104/2019, que, por sua vez, foi aprovada e se transformou na Emenda Constitucional n. 104/2019 (Criou a Polícia Penal) previa que à Polícia Penal caberia “a segurança dos estabelecimentos penais, além de outras atribuições definidas em lei específica de iniciativa do Poder Executivo.”, sendo aprovada somente a segurança dos estabelecimentos penais.

Isso, contudo, não significa que a lei não possa trazer funções para a Polícia Penal que possuam correlação com a segurança dos estabelecimentos, até porque a Emenda Constitucional n. 104/2019 somente criou a Polícia Penal e é necessária lei para regulamentar a Polícia Penal, dispor sobre a carreira e as funções. Além do mais, a competência para legislar sobre direito penitenciário é concorrente entre a União, Estados e o Distrito Federal (art. 24, I, da CF), o que permite que estados legislem a respeito de regras para as polícias penais, inclusive, sobre as atribuições destas, desde que esteja dentro do parâmetro estabelecido no § 5º-A do art. 144 da Constituição Federal (segurança dos estabelecimentos penais).

Não pode o legislador ampliar as atribuições da Polícia Penal que não possuam correlação com a segurança dos estabelecimentos penais, como permitir a realização de policiamento ostensivo e a condução de investigações criminais.

Nesse sentido, são as lições de Henrique Hoffmann e Fábio Roque:6

Não foi aprovada a redação sugerida inicialmente na Proposta de Emenda à Constituição, segundo a qual, além de realizar a segurança dos estabelecimentos penais, caberia à Polícia Penal “outras atribuições definidas em lei específica de iniciativa do Poder Executivo”. A retirada desse trecho impede a indevida ampliação de competência por ato infraconstitucional (por exemplo uma lei federal que autorizasse a Polícia Penal a realizar investigação criminal),

A lavratura de termo circunstanciado de ocorrência pela Polícia Penal é autorizada pela lei (art. 69 da Lei n.9.099/95) e por não constituir atividade investigativa nada impede que seja lavrado pela Polícia Penal, na medida em que se trata de uma comunicação ao Poder Judiciário da ocorrência de um fato aparentemente criminoso ocorrido dentro do estabelecimento penal, o que possui direta relação com a finalidade constitucional da Polícia Penal, que é a segurança dos estabelecimentos penais.

A ocorrência de fatos que caracterizam crime dentro do estabelecimento penal possui intrínseca conexão com a função da Polícia Penal, pois a segurança do estabelecimento penal abrange a prevenção à fuga, à prática de crimes e repressão imediata, o que inclui a captura de agentes em fuga, ainda que já tenham saído das dependências do presídio, com a necessária formalização dos acontecimentos à autoridade competente.

Por óbvio, os policiais penais devem sempre atuar quando constatarem a prática de qualquer crime dentro do estabelecimento penal7 e possuem a obrigação de prender em flagrante delito (art. 301 do CPP), pois são autoridades policiais em sentido amplo e isso se refere à repressão imediata. Seria de todo inadequado, inoportuno e desarrazoável entender que aos policiais penais caberia somente a segurança do estabelecimento penal sem atuação repressiva imediata, pois esta caberia à Polícia Militar ou Polícia Civil. Inviabilizaria os trabalhos da Polícia Penal, além de ser uma interpretação extremamente restritiva do § 5º-A do art. 144 da Constituição Federal, que não foi a finalidade da Emenda Constitucional n. 104/2019, que teve por fim fortalecer e atribuir à Polícia Penal a segurança dos estabelecimentos penais em seu sentido mais amplo, pois o autor da proposta da PEC que criou a Polícia Federal consignou na justificativa da proposta que a atividade do Policial Penal preserva a ordem pública e a incolumidade das pessoas e que “O objetivo desta Proposta de Emenda à Constituição (PEC) é criar as polícias penitenciárias como órgãos de segurança pública nos âmbitos federal, estadual e distrital, conferindo aos agentes penitenciários os direitos inerentes à carreira policial e liberando os policiais civis e militares das atividades de guarda e escolta de presos.” Isto é, libera as polícias civis e militares para as suas finalidades precípuas previstas constitucionalmente e toda a segurança do estabelecimento penal, em sua acepção mais ampla, fica por conta da Polícia Penal.

Diante desse cenário é perfeitamente possível afirmar que a Polícia Penal pode lavrar os termos circunstanciados de ocorrência quando as infrações penais de menor potencial ofensivo ocorrerem dentro do estabelecimento penal ou visar atingir o estabelecimento penal e tiverem relação com a atividade-fim da Polícia Penal.

Como a Polícia Penal possui como finalidade a segurança dos estabelecimentos penais, toda ocorrência envolvendo presos ou terceiros que visem os presos ou policiais penais, desde que afete a segurança, e que seja infração penal de menor potencial ofensivo, poderá ser registada pela própria Polícia Penal, mediante a lavratura do termo circunstanciado de ocorrência com o consequente encaminhamento para o Juizado Especial Criminal.

Lado outro, caso a infração penal de menor potencial ofensivo não guarde nenhuma conexão com a segurança do estabelecimento penal, como um crime contra a honra praticado por um policial penal contra outro, por motivos pessoais, o registro deve ser feito pela Polícia Militar ou Polícia Civil.

No tocante ao conhecimento técnico e jurídico necessário para lavrar o termo circunstanciado de ocorrência, ainda que as autoridades policiais não sejam formadas em Direito, os cursos de formação podem dedicar boa parte da carga horária para o ensino teórico e prático de todos os temas afetos à lavratura do termo circunstanciado de ocorrência, o que supre a necessidade de se formar em Direito, pois o conhecimento jurídico e técnico necessário para a lavratura do TCO não possui a profundidade e complexidade dos conhecimentos que um Delegado deve possuir para conduzir um inquérito policial. Trata-se de um procedimento sem maiores complexidades, cujo conhecimento necessário para a sua lavratura pode ser ensinado em um bom curso de formação, assim como ocorre com a Polícia Militar e a Polícia Rodoviária Federal.

A exigência de conhecimento técnico e jurídico para a lavratura do TCO pela Polícia Penal não é um óbice, pois este é facilmente resolvido com o aperfeiçoamento técnico dos policiais penais e reformulação dos cursos de formação, além de ser possível exigir um aprofundamento nessa área nos concursos públicos para policiais penais e cobrar nas provas toda a matéria penal e processual penal que sejam necessárias conhecer para a confecção do TCO.

Diante de todo o exposto, pode-se afirmar que a Polícia Penal pode lavrar termo circunstanciado de ocorrência nas seguintes situações:

a) Qualquer infração de menor potencial ofensivo que envolva os presos ou terceiros que visem o preso e sejam praticadas dentro do estabelecimento penal, pois em todos esses casos haverá relação com a atividade de segurança do estabelecimento penal, que possui como finalidade prevenir e reprimir imediatamente a prática de infrações penais por presos, contra os presos ou que de qualquer forma envolva os presos;

b) Qualquer infração de menor potencial ofensivo que envolva os policiais penais ou qualquer pessoa e tenha relação com a atividade de segurança do estabelecimento penal e seja praticada dentro do estabelecimento penal;

c) Qualquer infração de menor potencial ofensivo praticada fora do estabelecimento penal, desde que seja nas imediações e atente contra a segurança do estabelecimento penal, dos presos ou dos policiais penais.

Exemplo 01: preso é flagrado com droga para uso pessoal (art. 28 da Lei n. 11.343/06) dentro do estabelecimento penal. A Polícia Penal poderá lavrar o TCO. Neste caso é importante que a Polícia Penal comunique à Polícia Civil para que avalie a apuração da prática de tráfico de drogas e como a droga chegou até o preso;

Exemplo 02: Policial Penal discute com outro dentro do estabelecimento prisional, por motivos pessoais, e pratica vias de fato (art. 21 do Decreto-Lei n. 3.688/41), consistente em um pequeno empurrão. A Polícia Penal deverá acionar a Polícia Militar para o registro da ocorrência, já que a referida contravenção penal não possui conexão com a atividade-fim da Polícia Federal (segurança dos estabelecimentos penais);

Exemplo 03: Policial Penal deixa de cumprir seu dever de vedar ao preso o acesso a celular (art. 319-A do CP). A Polícia Penal poderá lavrar o TCO.

Exemplo 04: Um visitante tenta ingressar no estabelecimento penal com um celular para passar para um preso (art. 349-A do CP), sendo impedido de entrar por um Policial Penal na parte externa do estabelecimento prisional. A Polícia Penal poderá lavrar o TCO.

Por fim, a Polícia Penal pode implementar como política de gestão administrativa a lavratura do termo circunstanciado de ocorrência imediatamente, contudo é recomendável que os policiais penais passem por capacitação técnica antes de iniciarem a lavratura. A partir do momento em que a Polícia Penal passar a lavrar TCO não será necessário acionar a Polícia Militar ou a Polícia Civil, devendo encaminhar os termos circunstanciados diretamente ao Juizado Especial Criminal.

NOTAS

1STF. RE 1.050.631-SE, Min. Rel. Gilmar Mendes, decisão monocrática em 22/09/2017.

2LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 7. ed. Salvador: Juspodivm, 2019.p. 1491

3Disponível em: <https://www.dizerodireito.com.br/search?q=O+STF+n%C3%A3o+admite+a+teoria+da+transcend%C3%AAncia+dos+motivos+determinantes>. Acesso em: 29/06/2020.

4STF. 1ª Turma. Rcl 22470 AgR, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 24/11/2017.

5. LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 24ª Edição. Saraiva: São Paulo, 2020.

6 Polícia Penal é novidade no sistema de segurança pública. Disponível em:<https://www.conjur.com.br/2019-dez-12/opiniao-policia-penal-novidade-sistema-seguranca-publica>. Acesso em: 29/06/2020.

7 Oportunamente será abordado se o policial penal possui obrigação de prender em flagrante delito fora do estabelecimento penal.

A abordagem policial a travestis, transexuais, gays, lésbicas, bissexuais, intersexuais, agênero, andrógeno, gênero fluido e a atuação policial quando forem impedidos de usarem banheiro de acesso público de acordo com a identidade de gênero

SÍNTESE

Os tópicos a seguir apresentados constituem apenas uma apertada síntese de um tema tão complexo, polêmico e relevante, razão pela qual é recomendável a leitura de todo o texto antes de formar opinião.

Fundamentos:
• Art. 249 do Código de Processo Penal
• Art. 3º, IV e art. 5, I, VI, VIII e XLI, ambos da Constituição Federal
• Art. 1º, item “i”, e art. 24, ambos da Convenção Americana de Direitos Humanos
• Art. 2º, “1” e art. 26, ambos do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos
• Princípios de Yogyakarta
• Cartilha de Atuação Policial na Proteção dos Direitos Humanos de Pessoas em Situação de Vulnerabilidade da SENASP – Secretaria Nacional de Segurança Pública
• Provimento n. 73, de 28 de junho de 2018, do Conselho Nacional de Justiça
• Resolução n. 12/2015 da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República
• Portaria nº 7/2018 do Ministério Público da União
• Decreto n. 47.148/2017 de Minas Gerais
• Resolução n. 18/2018 da Secretaria do Estado de Segurança Pública de Minas Gerais
• Decisão do Supremo Tribunal Federal na ADO 26/DF e MI 4733/DF
• Recurso Extraordinário n. 845.779 (pendente de julgamento)
• Mandado de Segurança Coletivo n. 1.0000.18.048066-7/000 do TJMG
• Processo n. 70072252539 (Nº CNJ: 0435447-18.2016.8.21.7000) do TJRS
• Lei de Racismo – Lei n. 7.716/89

No tocante à abordagem policial as conclusões são as seguintes:

a) Travestis femininos (órgão genital masculino) possuem o direito de serem abordadas por uma policial (mulher);

b) Travestis masculinos (órgão genital feminino) possuem o direito de serem abordados por um policial (homem);

c) Mulheres transexuais, independentemente, de realização de cirurgia de redesignação sexual, possuem o direito de serem abordadas por uma policial (mulher);

d) Homens transexuais, independentemente, de realização de cirurgia de redesignação sexual, possuem o direito de serem abordadas por um policial (homem);

e) Gays, lésbicas e bissexuais possuem identidade de gênero correspondente ao órgão genital, razão pela qual devem sofrer abordagem policial pelo policial correspondente ao sexo/identidade de gênero;

f) Intersexuais, andrógeno e gênero, por transitarem entre a identidade de gênero masculina e feminina, devem possuir o direito a escolher se serão abordados por um ou uma policial;

g) Os agêneros, por possuírem identidade de gênero neutra, em um primeiro momento, “tanto faz”, para eles serem abordados por um ou uma policial;

h) Em qualquer caso o fator “segurança” será decisivo para permitir que a abordagem de pessoas da identidade de gênero feminina seja realizada por uma policial.

No tocante ao uso do banheiro e à atuação policial, as conclusões são as seguintes:

a) Há tendência que o Supremo Tribunal Federal pacifique pela possibilidade de uso do banheiro correspondente à identidade de gênero para os travestis femininos e masculinos e para os transexuais mulheres e homens, independentemente, de realização de cirurgia de redesignação sexual;

b) Gays, lésbicas e bissexuais possuem identidade de gênero correspondente ao órgão genital, razão pela qual devem utilizar o banheiro correspondente ao sexo que coincide com a identidade de gênero; c)Intersexuais, andrógeno e gênero fluido devem possuir o direito a escolher o banheiro que será utilizado, pois transitam entre a identidade de gênero masculina e feminina;

c) Os agêneros, por possuírem identidade de gênero neutra, em um primeiro momento, “tanto faz”, para eles irem a um banheiro masculino ou feminino, razão pela qual, para evitar constrangimentos e desconfortos para os usuários e usuárias do banheiro, é razoável que frequente o banheiro correspondente ao seu sexo;

d) Caso a polícia seja acionada pelo fato de qualquer estabelecimento colocar empecilhos no uso do banheiro por pessoas do grupo LGBTQIA+ é prudente e razoável que a polícia somente oriente o estabelecimento a autorizar o uso do banheiro de acordo com a identidade de gênero, pois esta é a tendência de pacificação e evita que qualquer ato discriminatório em razão da orientação sexual seja praticado. Caso a polícia determine o uso do banheiro em razão da identidade de gênero e o estabelecimento não acate a ordem, haverá o crime de desobediência (art. 330 do CP). Sendo constatada a prática de ato preconceituoso haverá a prática do crime de racismo previsto no art. 20 da Lei n. 7.716/89.

Uma das formas de se realizar a abordagem policial consiste na realização de busca pessoal, nos termos dos arts. 240, § 2º e 244, ambos do Código de Processo Penal.1

A busca pessoal será realizada quando houver fundada suspeita de que alguém carregue consigo arma ilícita, drogas, objetos provenientes de infração penal ou que esteja em vias de praticar qualquer infração penal ou até mesmo quando se tratar de vítima de crime, que pode estar ameaçada pelo agente, o que deve ser verificado pelo policial. Não é o objeto deste texto discorrer detalhadamente sobre o conceito de “fundada suspeita” e as suas diversas nuances, o que será feito oportunamente.

Travestis, transexuais, gays, lésbicas e bissexuais são pessoas que possuem uma maior vulnerabilidade em razão da identidade sexual, por sofrerem discriminação social.

O policial enquanto encarregado da aplicação da Constituição e promotor dos Direitos Humanos desempenha importante papel contramajoritário na proteção das minorias e grupos vulneráveis, o que se revela na prática ao tutelar direitos fundamentais das mulheres, pessoas em situação de rua, crianças, idosos, de travestis, transexuais, gays, lésbicas, bissexuais e intersexuais.

Os grupos minoritários e vulneráveis possuem como característica comum serem vítimas de discriminação social e intolerância e estarem mais sujeitos a terem seus direitos violados pela sociedade e pelo Estado.

Minorias são grupos que ocupam uma posição de não dominância no país2 e possuem como traço característico a solidariedade entre seus membros com o fim de se protegerem e preservarem suas tradições, cultura. Minoria não significa que o grupo é menor em termos quantitativos, pode até ser superior, todavia o grupo não possui um papel dominante no país. Como exemplo tem-se os negros, indígenas, mulheres, LGBTQIA+.

Grupos vulneráveis relacionam-se a pessoas que estejam ligadas em razão de circunstâncias fáticas que as tornam mais suscetíveis de terem seus direitos violados, como a extrema pobreza, falta de escolaridade, doença grave, crianças e idosos.3

A função contramajoritária do Estado consiste na efetiva proteção de direitos fundamentais de grupos vulneráveis e minorias, como essência do Estado Democrático de Direito, de forma a evitar a violação de direitos desses grupos por uma maioria numérica ou por qualquer um que possua poder de violar direitos das pessoas pertencentes a esses grupos.

Um exemplo claro do exercício do papel contramajoritário pela polícia consiste na atuação constante na prevenção à violência doméstica, com o lançamento das patrulhas de prevenção à violência doméstica que realizam visitas às vítimas e autores com o fim de realizarem um acompanhamento “de perto” para evitar novas práticas de violência, além de estarem disponíveis para atenderem prontamente as ocorrências de violência doméstica e fiscalizarem o cumprimento das medidas protetivas.

Os travestis que atuam no mercado do sexo e se exibem publicamente, desde que não pratiquem ato obsceno, possuem a tutela do Estado, por intermédio da Polícia Militar, que garante a possibilidade desse exercício profissional sem que sejam alvos de ataques por pessoas preconceituosas. Não se afirma aqui que uma viatura tenha que ficar disponível para realizar a segurança, nestes casos, mas sim que a existência de viaturas pelas ruas, sobretudo nas regiões que os travestis realizam suas atividades, inibe em parte as agressões. A simples presença abstrata da Polícia Militar constitui em importante fator inibitório da violência e representa o papel contramajoritário.

Cabe à Polícia Militar, inclusive, garantir a segurança de eventos e passeatas do grupo LGBTQIA+, o que constitui nítido exercício do papel contramajoritário.

A Constituição Federal assegura constituir objetivo fundamental da República Federativa do Brasil “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.” (art. 3º, IV).

O art. 5º, XLI, da Constituição Federal assegura como direito fundamental a punição a qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais.

A Convenção Americana de Direitos Humanos, incorporada ao Brasil mediante o Decreto n. 678/1992, possui status supralegal, e dispõe no art. 1º, item “1”, que os direitos e liberdades devem ser respeitados e garantidos pelo Estado, sem discriminação alguma por motivo de orientação sexual ou de qualquer natureza.

Artigo 1. Obrigação de respeitar os direitos
1. Os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social.

O art. 24 da Convenção Americana de Direitos Humanos assegura que “Todas as pessoas são iguais perante a lei. Por conseguinte, têm direito, sem discriminação, a igual proteção da lei.”

O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, incorporado ao Brasil mediante o Decreto n. 592/1992, preconiza nos arts. 2º, “1” e 26 que os Estados Paetes devem respeitar todos indivíduos sem discriminação alguma por motivo de ordem sexual, bem como garantir proteção contra qualquer tipo de discriminação.

ARTIGO 2º

1. Os Estados Partes do presente pacto comprometem-se a respeitar e garantir a todos os indivíduos que se achem em seu território e que estejam sujeitos a sua jurisdição os direitos reconhecidos no presente Pacto, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo. língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer condição.

ARTIGO 26
Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito, sem discriminação alguma, a igual proteção da Lei. A este respeito, a lei deverá proibir qualquer forma de discriminação e garantir a todas as pessoas proteção igual e eficaz contra qualquer discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação.

Os Princípios de Yogyakarta tratam da aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero e afirma que “O policiamento da sexualidade continua a ser poderosa força subjacente à persistente violência de gênero, bem como à desigualdade entre os gêneros”.

No voto do Ministro Celso de Melo, quando o Supremo Tribunal Federal decidiu4 que condutas homofóbicas e transfóbicas caracterizam crime de racismo – Lei n. 7.716/89 -, descreveu a ausência de proteção estatal dos grupos que possuem determinada orientação sexual, conforme bem sintetizado por Márcio Cavalcante5.

O gênero e a orientação sexual constituem elementos essenciais e estruturantes da própria identidade da pessoa humana e integram uma das mais íntimas e profundas dimensões de sua personalidade.

No entanto, devido à ausência de adequada proteção estatal, especialmente em razão da controvérsia gerada pela denominada “ideologia de gênero”, os integrantes da comunidade LGBT acham-se expostos a ações de caráter segregacionista, com caráter homofóbico, que têm por objetivo limitar ou suprimir prerrogativas essenciais de gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transgêneros e intersexuais, entre outros.

Tais práticas culminam no tratamento dessas pessoas como indivíduos destituídos de respeito e consideração, degradados ao nível de quem não tem sequer direito a ter direitos, por lhes ser negado, mediante discursos autoritários e excludentes, o reconhecimento da legitimidade de sua própria existência.

Essa visão de mundo, fundada na ideia artificialmente construída de que as diferenças biológicas entre o homem e a mulher devem determinar os seus papéis sociais, impõe uma inaceitável restrição às suas liberdades fundamentais, com a submissão dessas pessoas a um padrão existencial heteronormativo, incompatível com a diversidade e o pluralismo que caracterizam uma sociedade democrática, e, ainda, a imposição da observância de valores que, além de conflitarem com sua própria vocação afetiva, conduzem à frustração de seus projetos pessoais de vida.

Os direitos fundamentais criam limites para a atuação estatal (não fazer), bem como deveres de proteção (um fazer). Ao assegurar o direito a não discriminação, veda que o Estado atue de forma discriminatória em suas ações, bem como evite que terceiros discriminem outros.

Lênio Luiz Streck6, com precisão, discorre a respeito dos deveres do Estado no tocante aos direitos fundamentais.

Pois bem, isso significa afirmar e admitir que a Constituição determina – explícita ou implicitamente – que a proteção dos direitos fundamentais deve ser feita de duas formas: por um lado, protege o cidadão frente ao Estado; por outro, protege-o através do Estado– e, inclusive, por meio do direito punitivo – uma vez que o cidadão também tem o direito de ver seus direitos fundamentais tutelados em face da violência de outros indivíduos.

Quero dizer com isso que este (o Estado) deve deixar de ser visto na perspectiva de inimigo dos direitos fundamentais, passando-se a vê-lo como auxiliar do seu desenvolvimento (Drindl, Canotilho, Vital Moreira, Sarlet, Streck, Bolzan de Morais e Stern) ou outra expressão dessa mesma idéia, deixam de ser sempre e só direitos contra o Estado para serem também direitos através do Estado.

Insisto: já não se pode falar, nesta altura, de um Estado com tarefas de guardião de “liberdades negativas”, pela simples razão – e nisto consistiu a superação da crise provocada pelo liberalismo – de que o Estado passou a ter a função de proteger a sociedade nesse duplo viés: não mais apenas a clássica função de proteção contra o arbítrio, mas, também, a obrigatoriedade de concretizar os direitos prestacionais e, ao lado destes, a obrigação de proteger os indivíduos contra agressões provenientes de comportamentos delitivos, razão pela qual a segurança passa a fazer parte dos direitos fundamentais (art. 5º, caput, da Constituição do Brasil).

Pois bem, isso significa afirmar e admitir que a Constituição determina – explícita ou implicitamente – que a proteção dos direitos fundamentais deve ser feita de duas formas: por um lado, protege o cidadão frente ao Estado; por outro, protege-o através do Estado – e, inclusive, por meio do direito punitivo – uma vez que o cidadão também tem o direito de ver seus direitos fundamentais tutelados em face da violência de outros indivíduos.

A atividade da Polícia Militar na rua é o próprio Estado em atuação, em movimento, e tem como missão constitucional a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública, devendo, para tanto, assegurar a proteção de direitos fundamentais no sentido de garantir que os direitos daqueles que sofrem ações da polícia sejam respeitados, bem como impedir que terceiros sejam atingidos com o descumprimento de direitos fundamentais.

A Polícia Militar possui dever de proteção e dever de abstenção. Deve proteger os direitos fundamentais e abster-se de violá-los. O direito à liberdade de locomoção, por exemplo, possui dupla proteção da Polícia Militar: garantir que as pessoas saiam de casa com segurança (dever de proteção), o que é exercido diante da presença abstrata da Polícia Militar, que possui nítido efeito inibitório no que tange à violência e a obrigação da própria Polícia em não restringir liberdades imotivadamente.

Nota-se que os direitos fundamentais possuem como pressuposto inicial a proteção de particulares perante o Estado, o que não impede a aplicação de direitos fundamentais diretamente nas relações entre particulares (teoria horizontal dos direitos fundamentais)7.

E no que tange à proteção do Estado? É possível invocar a proteção de direitos fundamentais?

Conforme assentado pelo Superior Tribunal de Justiça ao julgar um caso em que um programa de rádio e de televisão foram processados em razão de terem veiculado informações que teriam atingido a honra e a imagem do município, a “doutrina e jurisprudência nacionais só têm reconhecido às pessoas jurídicas de direito público direitos fundamentais de caráter processual ou relacionados à proteção constitucional da autonomia, prerrogativas ou competência de entidades e órgãos públicos, ou seja, direitos oponíveis ao próprio Estado e não ao particular. Porém, ao que se pôde pesquisar, em se tratando de direitos fundamentais de natureza material pretensamente oponíveis contra particulares, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal nunca referendou a tese de titularização por pessoa jurídica de direito público.”

Sustentou ainda que “a inspiração imediata da positivação de direitos fundamentais resulta precipuamente da necessidade de proteção da esfera individual da pessoa humana contra ataques tradicionalmente praticados pelo Estado. É bem por isso que a doutrina vem entendendo, de longa data, que os direitos fundamentais assumem ‘posição de definitivo realce na sociedade quando se inverte a tradicional relação entre Estado e indivíduo e se reconhece que o indivíduo tem, primeiro, direitos, e, depois, deveres perante o Estado, e que os direitos que o Estado tem em relação ao indivíduo se ordenam ao objetivo de melhor cuidar das necessidades dos cidadãos’ (MENDES, Gilmar Ferreira [et. al.]. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 222-223).”

Diante disso foi fixada a seguinte ementa8:

A pessoa jurídica de direito público não tem direito à indenização por danos morais relacionados à violação da honra ou da imagem. Não é possível pessoa jurídica de direito público pleitear, contra particular, indenização por dano moral relacionado à violação da honra ou da imagem. STJ. 4ª Turma. REsp 1258389-PB, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 17/12/2013 (Info 534).

Neste caso a decisão considerou o Estado enquanto um ente abstrato. Inequivocamente, Estado por atuar por intermédio de pessoas (teoria do órgão), igualmente, possui direitos fundamentais, que devem ser analisados sob a ótica da pessoa humana prestadora de serviços estatais. Do contrário chegaria ao absurdo de não se proteger servidores públicos no desempenho das funções. Em maior, igual ou menor grau, os servidores públicos possuem direitos fundamentais, enquanto pessoas que trabalham no Estado. O direito fundamental à segurança pública de determinadas autoridades possui uma maior carga de proteção, em razão do exercício da função que legitima essa proteção, como o Diretor de um presídio que terá direito a escolta do estado. O direito à vida e à liberdade são igualmente tutelados, enquanto que o direito à honra e à imagem, em que pese também haver proteção constitucional, sofre uma relativização por exercerem função pública (Teoria da Proteção Débil do Homem Público)9.

Nesse contexto debate-se como ficam os direitos das pessoas com as diversas orientações sexuais que são abordadas pela polícia. Possuem direito a serem abordados por policiais homens ou mulheres de acordo a orientação sexual? E os policiais, possuem direito a abordarem pessoas que sejam de sua mesma orientação sexual? Como ponderar o direito que deve prevalecer nesses casos?

Antes de se passar à análise propriamente dita de quem deve abordar travestis, transexuais, gays, lésbicas, bissexuais e intersexuais é importante apresentar a definição de cada um, de acordo com a identidade sexual.

O Ministério da Saúde elaborou a cartilha “Brasil Sem Homofobia”10, a qual apresenta os conceitos de segundo o padrão de conduta e/ou identidade sexual.

HSH: sigla da expressão “Homens que fazem Sexo com Homens” utilizada principalmente por profissionais da saúde, na área da epidemiologia, para referirem-se a homens que mantêm relações sexuais com outros homens, independente destes terem identidade sexual homossexual.

Homossexuais: são aqueles indivíduos que têm orientação sexual e afetiva por pessoas do mesmo sexo.

Gays: são indivíduos que, além de se relacionarem afetiva e sexualmente com pessoas do mesmo sexo, têm um estilo de vida de acordo com essa sua preferência, vivendo abertamente sua sexualidade.

Bissexuais: são indivíduos que se relacionam sexual e/ou afetivamente com qualquer dos sexos. Alguns assumem as facetas de sua sexualidade abertamente, enquanto outros vivem sua conduta sexual de forma fechada.

Lésbicas: terminologia utilizada para designar a homossexualidade feminina.

Transgêneros: terminologia utilizada que engloba tanto as travestis quanto as transexuais. É um homem no sentido fisiológico, mas se relaciona com o mundo como mulher.

Transexuais: são pessoas que não aceitam o sexo que ostentam anatomicamente. Sendo o fato psicológico predominante na transexualidade, o indivíduo identifica-se com o sexo oposto, embora dotado de genitália externa e interna de um único sexo.

O conceito de intersexual é pouco explorado e não significa orientação sexual, conforme expõe José Eulálio Figueiredo de Almeida, no texto “O Direito Do Intersexual à Identidade de Gênero e ao Registro Civil”11.

São inúmeros os conceitos para definir o que seja intersexual. Por essa razão, embora saiba que toda definição é reducionista, transcrevo, dentre todos, para compreensão dessa expressão, o conceito fornecido por Rodrigo da Cunha Pereira, ipsis verbis:

Intersexual é a pessoa que nasceu fisicamente entre (inter) o sexo masculino e o feminino, tendo parcial ou completamente desenvolvidos ambos os órgãos sexuais, ou um predominando sobre o outro. Popularmente era conhecido como hermafrodita. (…) Os sujeitos intersexuais, que não são poucos, são os mais invisíveis de todas as categorias sexuais. Provavelmente porque é a que mais desafia o binarismo sexual.” (Do livro Intersexo, p. 39 e 47, ed. RT, 2018).

Abro aqui um parêntesis para dizer que não se pode confundir a expressão intersexual com orientação sexual, pois como preleciona Fernanda Carvalho Leão Barreto (Op. Cit., p. 50):

A intersexualidade não se confunde, pois, com orientação sexual, que diz respeito às inclinações afetivas e sexuais da pessoa, à expressão do desejo. Nesse sentido, um intersexual pode ser, por exemplo, homossexual, heterossexual, bissexual ou assexual.

Nota-se que o intersexual não se refere à orientação sexual, mas sim ao nascimento de uma pessoa “com uma anatomia reprodutiva ou sexual que não parece corresponder às definições típicas de mulheres ou homens (Sociedade Intersexo da América do Norte, 2008)”, como exposto pelo Grupo Dignidade12.

O termo LGBTI+ abrange orientações sexuais (lésbicas, gays, bissexuais), identidades de gênero (transgêneros, transexuais e travestis) e também questões biológicas. É o caso de I, de intersexo, um termo geral utilizado para uma variedade de condições em que uma pessoa nasce com uma anatomia reprodutiva ou sexual que não parece corresponder às definições típicas de mulheres ou homens (Sociedade Intersexo da América do Norte, 2008). Assim, intersexo são todas aquelas pessoas nas quais os fatores que definem o sexo biológico – cromossomos, gônodas, hormônios e órgãos externos e internos – está variado em condições diversas, tornando difícil a classificação binária de seu sexo biológico (em sexo feminino ou sexo masculino).

Há as pessoas que não se identificam com o gênero binário homem e mulher, conforme exposto no Glossário LGBT+ do site Natura13, o que demonstra ser um conceito superado, devendo ser adotado também o gênero não-binário, o que abrange, dentre outros: a) agênero, que é aquele que tem a identidade de gênero neutra; b) andrógeno, cujo gênero transita entre homem e mulher; c) gênero fluido, que é aquele que se sente como mulher em determinados momentos e como homem em outros.

O Código de Processo Penal prevê como regra que a abordagem seja realizada por uma pessoa do mesmo sexo, o que pode se extrair da interpretação do art. 249.

Art. 249. A busca em mulher será feita por outra mulher, se não importar retardamento ou prejuízo da diligência.

Como a busca em mulher, como regra, deve ser feita por outra mulher, interpretação a contrario sensu, permite afirmar que a busca em homem deve ser feita por outro homem, na medida em que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos da Constituição (art. 5º, I). Trata-se de um direito dos homens e mulheres em serem abordados por um policial do mesmo sexo.

Em se tratando do uso de vestiários e banheiros, a tendência é pacificar que os travestis devem utilizar vestiários e banheiros de acordo com o gênero que possuem. Portanto, ainda que em sua identidade possua nome de homem, poderá utilizar um banheiro feminino.

O uso de vestiários causa mais polêmica ainda, pois ao usar o banheiro as pessoas concentram seus momentos mais íntimos em cabines fechadas, contudo em vestiários não é incomum que as pessoas fiquem completamente nuas, o que pode gerar um alto grau de desconforto e constrangimento para as mulheres, sobretudo se estiverem com crianças, ao presenciarem uma pessoa com o órgão genital masculino exposto, sendo necessário sopesar os valores envolvidos, o que pode ser definido pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário n. 845.779.

A Resolução n. 12, de 16 de janeiro de 2015, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, trata da garantia das condições de acesso e permanência de pessoas travestis e transexuais – e todas aquelas que tenham sua identidade de gênero não reconhecida em diferentes espaços sociais – nos sistemas e instituições de ensino, formulando orientações quanto ao reconhecimento institucional da identidade de gênero e sua operacionalização.

O art. 1º da referida Resolução trata do direito a ser chamado pelo nome social e o art. 6º do direito a utilizar banheiro e vestiário de acordo com o gênero.

Art. 1º – Deve ser garantido pelas instituições e redes de ensino, em todos os níveis e modalidades, o reconhecimento e adoção do nome social àqueles e àquelas cuja identificação civil não reflita adequadamente sua identidade de gênero, mediante solicitação do próprio interessado.

Art. 6º – Deve ser garantido o uso de banheiros, vestiários e demais espaços segregados por gênero, quando houver, de acordo com a identidade de gênero de cada sujeito.

A Portaria nº 7/2018 do Ministério Público da União trata do uso do nome social e utilização de banheiros e vestiários pelas pessoas transgênero no âmbito do Ministério Público da União.

O art. 3º garante o uso do nome social.

Art. 3º O documento de identificação funcional registrará exclusivamente o nome social, mantendo-se somente no registro administrativo interno do MPU a respectiva vinculação do nome social com a identificação civil, expedida por outra autoridade competente, caso sejam diferentes.

O art. 5º-A assegura o direito ao uso de banheiros, vestiários e demais espaços segregados por gênero.

Art. 5º-A: É garantido o uso de banheiros, vestiários e demais espaços segregados por gênero, quando houver, de acordo com a identidade de gênero de cada sujeito no âmbito do Ministério Público da União.

O Decreto n. 47.148/2017 de Minas Gerais dispõe sobre a adoção e utilização do nome social por parte de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública estadual.

Art. 1º – Fica assegurado o direito de uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública estadual.


Sabe-se que mulheres e crianças podem se sentir constrangidas em um banheiro ou vestiário ao se depararem com um travesti.

O Ministro Luís Roberto Barroso, relator do Recurso Extraordinário n. 845.779, que decidirá pela possibilidade ou não de uso do banheiro de acordo com a identidade de gênero, o que permitirá que transexuais utilizem banheiros femininos, afirmou em seu voto que:

Cabe por fim, dentro desse tópico, fazer a ponderação entre o direito de uso de banheiro feminino de acesso ao público por parte de transexual feminina e o direito de privacidade das mulheres (cisgênero). Note-se que o suposto constrangimento às demais mulheres seria limitado, tendo em vista que as situações mais íntimas ocorrem em cabines privativas, de acesso reservado a uma única pessoa. De todo modo, a mera presença de transexual feminina em áreas comuns de banheiro feminino, ainda que gere algum desconforto, não é comparável àquele suportado pela transexual em um banheiro masculino.

Portanto, ao se fazer esta ponderação, tem-se uma restrição leve ao direito à privacidade versus uma restrição intensa aos direitos à igualdade e à liberdade. A diferença entre os níveis de restrição aos direitos em potencial conflito, somada ao maior peso a ser dado às liberdades existenciais, revela que a solução constitucionalmente adequada consiste no reconhecimento do direito dos transexuais serem socialmente tratados de acordo com a sua identidade de gênero, inclusive no que se refere à utilização de banheiros de acesso público.

Em todos os casos em que não haja restrição significativa a direitos de terceiros ou a qualquer valor coletivo merecedor de tutela jurídica, o Estado deve adotar uma postura ativa contra o preconceito e a intolerância, protegendo as escolhas existenciais das pessoas, inclusive, no presente caso, por meio da afirmação do direito de serem tratadas socialmente em consonância à sua identidade de gênero.

E consignou a seguinte ementa e tese de seu voto:

DIREITO CONSTITUCIONAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO SOB O REGIME DA REPERCUSSÃO GERAL. DIREITO DE TRANSEXUAIS A SEREM TRATADOS SOCIALMENTE DE ACORDO COM A SUA IDENTIDADE DE GÊNERO.

1. Transexuais são pessoas que se identificam com o gênero oposto ao seu sexo de nascimento, sentindo geralmente que o seu corpo não é adequado à forma como se percebem

2. A igualdade, enquanto “política de reconhecimento”, visa a proteger grupos que possuam menor estima e prestígio social, em razão de padrões culturais enraizados que os inferiorizam, como é o caso dos transexuais. O tratamento social em conformidade com a sua identidade de gênero consiste em medida necessária ao reconhecimento dos transexuais e, assim, à tutela do seu direito à igual consideração e respeito, corolário natural do princípio da dignidade em sua dimensão de atribuição de valor intrínseco a todo e qualquer ser humano.

3. Solução diversa implicaria, ainda, gravíssima restrição à liberdade individual, porque impediria os transexuais de desenvolverem plenamente a sua personalidade, vivendo de acordo com a sua identidade de gênero. A violação à liberdade, no caso, afetaria escolhas existenciais, relacionando-se, assim, também à dignidade humana, mas, agora, na vertente da autonomia.

4. É possível que a convivência social e a aceitação (ou respeito) de identidades de gênero que fogem ao padrão culturalmente estabelecido gerem estranheza e até constrangimento em grande parte das pessoas. Afinal, trata-se de uma realidade que passou a ser abertamente exposta e debatida há relativamente pouco tempo. Vivemos, porém, em um Estado Democrático de Direito, o que significa dizer que a maioria governa, mas submetida à necessária observância aos direitos fundamentais – de quem quer seja, qualquer que seja sua identificação de gênero.

5. Provimento do recurso extraordinário para a reforma do acórdão recorrido e consequente manutenção da sentença. Afirmação, em sede de repercussão geral, da seguinte tese: “Os transexuais têm direito a serem tratados socialmente de acordo com a sua identidade de gênero, inclusive na utilização de banheiros de acesso público”.

6. Provimento do recurso extraordinário.

O Ministro Edison Fachin consignou em seu voto que “a ideia de se impedir que mulheres transexuais utilizem banheiros públicos femininos em razão do desconforto, constrangimento ou insegurança às demais usuárias não raras vezes reverbera preconceitos conscientes ou inconscientes e o desconhecimento do outro.”

Em Minas Gerais, a Resolução n. 18/2018 da Secretaria do Estado de Segurança Pública estabelece diretrizes e normativas para o atendimento e tratamento da pessoa LGBT no âmbito do Sistema Socioeducativo do Estado de Minas Gerais.

O art. 11 afirma que as revistas superficiais e minuciosas, que são aquelas que o revistado fica nu, devem ser realizadas por agente socioeducativo do gênero correspondente à pessoa que sofre a busca. Isto é, os adolescentes travestis e transexuais, que são aqueles registrados com o sexo feminino, cuja identidade de gênero é masculina, e as adolescentes travestis e transexuais, que são aquelas registradas com o sexo masculino, cuja identidade de gênero é feminina, devem, respectivamente, serem revistados por agentes socioeducativos do gênero masculino e feminino.

Art. 11º Por via de regra, a revista masculina é realizada por agente socioeducativo masculino e a revista feminina é realizada por agente socioeducativo feminino sendo que, para efeitos dessa resolução, a revista superficial e a revista minuciosa na adolescente travesti e na adolescente transexual serão procedidas por agente socioeducativo do gênero feminino, resguardando a garantia de respeito à identidade de gênero e a prevenção à violência.

§1º Deverá ser preservada a supremacia de força em todos os procedimentos de revista minuciosa de modo a garantir a segurança de todos os envolvidos.

§2º A revista superficial e a revista minuciosa no adolescente transexual (aquele designado no nascimento com o sexo feminino, cuja identidade de gênero é masculina) será procedida por agente socioeducativo do gênero feminino, em acordo com o sexo designado no nascimento do adolescente.

O Sindicato dos Servidores Públicos do Sistema Socioeducativo do Estado de Minas Gerais ingressou com mandado de segurança com o fim de suspender a referida norma por violar a dignidade das agentes de segurança socioeducativa femininas, uma vez que as expõem a constrangimento, obrigando-as a visualizarem e a lidarem com órgãos genitais do sexo oposto, o que fere direito fundamental quanto às convicções religiosas e filosóficas.14

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais denegou a segurança, consoante fundamentos constantes na ementa abaixo

MANDADO DE SEGURANÇA – REVISTA DE ADOLESCENTES TRAVESTIS E TRANSEXUAIS POR AGENTE SOCIOEDUCATIVO DO GÊNERO FEMININO – RESOLUÇÃO SESP/MG Nº 18/2018 – ORDEM DENEGADA.

I – Produzindo inequívocos efeitos individuais e concretos, não se enquadra no conceito de lei em tese o regramento que categoricamente determina que os adolescentes travestis e transexuais em cumprimento de medidas socioeducativas de restrição ou privação de liberdade no Sistema Socioeducativo do Estado de Minas Gerais sejam apenas revistados, de forma minuciosa ou superficial, por Agente Socioeducativo do gênero feminino.

II – Em sintonia com o respeito à dignidade da pessoa humana e ao direito da personalidade ressaltados pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento de seu RE n° 845.779 RG /SC, a Res. SESP/MG n° 18/2018, ao tratar em seu art. 11 da revista de adolescentes da comunidade LGBT inseridos no Sistema Socioeducativo do Estado de Minas Gerais, não conspurca qualquer legislação atinente à segurança pública e/ou aos centros socioeducativos, NEM TAMPOUCO ATRIBUI À AGENTE SOCIOEDUCATIVO FEMININA QUALQUER ATIVIDADE OU ATRIBUIÇÃO DIVERSA DAS QUE PREVISTA PARA O EXERCÍCIO DE SEU CARGO, SENDO CERTO QUE, NO CONFRONTO ENTRE O INTERESSE DAS SERVIDORAS EM VER GARANTIDO SEU LIVRE EXERCÍCIO AOS DIREITOS CONSTITUCIONAIS INDIVIDUAIS, TAIS COMO A LIBERDADE DE ESCOLHA RELIGIOSA E DE EXPRESSÃO, E A NORMATIZAÇÃO DE TRATAMENTO E DE MEDIDAS DESTINADOS À MELHORIA OU À GARANTIA DO DIREITO À SEGURANÇA PÚBLICA, IMPERIOSO VALORAR OU PRESTIGIAR O INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PRIVADO. (TJMG- Mandado de Seg. Coletivo 1.0000.18.048066-7/000, Relator(a): Des.(a) Peixoto Henriques, 7ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 12/05/0020, publicação da súmula em 17/05/2020)

O relator Desembargador Peixoto Henriques consignou em seu voto os seguintes fundamentos:


Por fim, resta acrescentar que vivemos em um Estado laico. Isso significa não apenas que o Estado não possui religião oficial, mas que seus agentes devem tratar a todos igualmente, independentemente de suas religiões específicas. Com efeito, as agentes de segurança socioeducativas podem professar a religião que entenderem correta sem que, contudo, seus dogmas e artigos de fé sirvam para instaurar diferenças preconceituosas no trato com o público. Imaginar que uma agente de segurança socioeducativa do sexo feminino tenha algum direito lesado simplesmente por efetivar revistas em travestis ou transexuais é tão absurdo quanto conceber que uma médica do serviço público tenha seus direitos negados por ter que efetivar procedimentos cirúrgicos em um homem nu. Do mesmo modo, seria inaceitável que um professor de fé islâmica se negasse a admitir em sua sala de aula alunos de confissão cristã.

Com efeito, a suposta lesão aos direitos religiosos das agentes de segurança socioeducativas é, na verdade, um preconceito, em especial porque se volta contra a mera necessidade de lidar com o diferente, não havendo nenhum ato praticado pelos travestis ou transexuais que possa ser tido como injurioso, negativo ou condenável em relação às citadas agentes. Ao que parece, a mera presença e existência dessas pessoas parece insultuosa às referidas agentes, o que, por óbvio, não pode ser aceito pelo Estado. Caso o desconforto com a presença de membros da comunidade LGBT seja tão grande que impeça uma agente de segurança socioeducativa de trabalhar com tais pessoas, é sinal que essa agente não tem perfil para realizar as funções de servidor público que, por óbvio, deve servir ao público, que é plural e diversificado, e não composto apenas por indivíduos que dividem uma específica e única visão de mundo.

Ao realizar uma abordagem, o policial deve tratar o travesti pelo nome social, isto é, pelo nome que ele é reconhecido socialmente. Para tanto, basta perguntar o nome do travesti e passar a tratá-lo da forma que ele se identificar. Pode acontecer do travesti se identificar pelo nome civil, ocasião em que o policial deve perguntar se não prefere ser tratado pelo nome social, isso porque caso não fale o nome social em um primeiro momento, certamente, foi por receio da polícia entender que estivesse mentindo ou pensar que não poderia dizer o nome social para a polícia.

De qualquer, o policial pode pedir a identidade e o nome civil para pesquisar o nome real no banco de dados para saber se possui mandado de prisão ou registros criminais.

Quanto à revista pessoal, como exposto, a regra é que busca em mulher seja feita por outra mulher e a busca em homem seja feito por outro homem, nos termos do art. 249 do Código de Processo Penal.

É importante distinguir sexo de identidade de gênero.

A identidade de gênero consiste na dimensão da identidade de uma pessoa que diz respeito à forma como se relaciona com as representações de masculinidade e feminilidade, sem guardar relação necessária com o sexo atribuído ao nascimento (art. 1º, parágrafo único, II, da Portaria n. 7/18 da PGR/MPU).

A Cartilha de Atuação Policial na Proteção dos Direitos Humanos de Pessoas em Situação de Vulnerabilidade da SENASP, ao discorrer sobre identidade de gênero, preceitua que “Refere-se a sentimentos, posturas subjetivas, representações e imagens relativas a papéis e funções sociais. Baseada nos eixos masculino e feminino, a noção de gênero expressa a recusa do determinismo biológico na construção da identidade. Isto significa que: Uma pessoa pode identificar-se com um gênero diverso de seu sexo biológico.”

Henrique Correa ensina que “Gênero não se confunde com sexo. Enquanto aquele é social e ligado à auto-percepção e à forma como a pessoa se expressa socialmente, o sexo é biológico e relacionado à conformação genital do indivíduo. Nesse sentido, é importante destacar que o transexual é a pessoa cuja identidade de gênero é diferente de seu sexo biológico.”15

A redação do art. 249 do CPP ao dispor que “A busca em mulher será feita por outra mulher”, como regra, data de 1941, e refere-se ao sexo e não identidade de gênero, o que sequer era discutido à época.

É necessário realizar uma interpretação evolutiva e progressiva da norma, à luz da Constituição Federal, com o fim de se evitar qualquer prática discriminatória ou preconceituosa institucionalizada (art. 3º, IV, e art. 5º, XLI, ambos da CF).

Nesse sentido, deve-se interpretar que as abordagens policiais devem observar a identidade de gênero de quem sofre a abordagem e esta não está ligada à formalidade de documentos, mas sim à forma como a pessoa se expressa e identifica socialmente e ao autorreconhecimento.

O Supremo Tribunal Federal reconheceu o direito da pessoa transgênero em alterar o prenome e gênero, independentemente, de realização de cirurgia de redesignação e diretamente no Registro Civil das Pessoas Naturais.16

Em razão da decisão do STF, o Conselho Nacional de Justiça editou o Provimento n. 73, de 28 de junho de 2018, que dispõe sobre a averbação da alteração do prenome e do gênero nos assentos de nascimento e casamento de pessoa transgênero no Registro Civil das Pessoas Naturais (RCPN).

O art. 4º, § 1º, assim dispõe:

Art. 4º O procedimento será realizado com base na autonomia da pessoa requerente, que deverá declarar, perante o registrador do RCPN, a vontade de proceder à adequação da identidade mediante a averbação do prenome, do gênero ou de ambos.

§ 1º O atendimento do pedido apresentado ao registrador INDEPENDE DE PRÉVIA AUTORIZAÇÃO JUDICIAL OU DA COMPROVAÇÃO DE REALIZAÇÃO DE CIRURGIA DE REDESIGNAÇÃO SEXUAL E/OU DE TRATAMENTO HORMONAL OU PATOLOGIZANTE, ASSIM COMO DE APRESENTAÇÃO DE LAUDO MÉDICO OU PSICOLÓGICO.

Nota-se que basta a manifestação da vontade da pessoa em alterar seu registro civil para trocar o nome e o gênero, que o Registro Civil das Pessoas Naturais deve assim proceder. Feita a alteração no cartório, todos os demais documentos da pessoa poderão ser alterados.

A Polícia Militar de Minas Gerais no Caderno Doutrinário n. 02 (Tática Policial, Abordagem a Pessoas e Tratamento às Vítimas)17 possui previsão normativa que trata da abordagem de pessoas de acordo com a identidade sexual e assim preconiza:

No caso das lésbicas, a busca será procedida seguindo as mesmas recomendações para mulheres. Procedimento idêntico também será dado no caso das transexuais com comprovada retificação de registro civil (nome feminino).

Em relação aos gays e travestis, o policial masculino fará a busca pessoal, evitando, sempre que possível, situações de constrangimento.

Nota-se que o critério adotado pela Polícia Militar mineira consiste na identificação formal para definir se a abordagem será realizada por um ou uma policial.

Tal orientação institucional não se sustenta, pois o Provimento n. 73/2018 do CNJ autoriza a mudança do prenome e do gênero sem necessidade de se realizar cirurgia de redesignação sexual. Ou seja, é possível que uma pessoa com órgão masculino tenha em sua identidade o nome de mulher e vice-versa.

Não há lógica em se observar a identidade civil, razão pela qual deve-se observar a realidade social. Do contrário haverá situações em que dois travestis juntos serão abordados pela polícia, sendo que um já procurou o cartório e alterou o prenome, enquanto o outro optou por não alterar o prenome formalmente. Ambos possuem órgão masculino e um será abordado por um policial e o outro por uma policial. Há tratamento diferenciado para situações existenciais iguais, o que deve ser rechaçado, sobretudo pela Polícia Militar, enquanto órgão protetor de Direitos Humanos e responsável por exercer, na rua, o seu relevante papel contramajoritário, uma vez que tal prática viola o princípio da igualdade e a proibição de qualquer tratamento discriminatório em decorrência da orientação sexual.

Nessa toada, deve se aplicar a Cartilha de Atuação Policial na Proteção dos Direitos Humanos de Pessoas em Situação de Vulnerabilidade da SENASP, que assim dispõe:

Quem faz a busca pessoal na mulher transexual e na travesti?

• Prioritariamente, o efetivo feminino deve realizar a busca pessoal na mulher transexual e na travesti. Tal orientação objetiva respeitar sua dignidade, reconhecendo seu direito de identificar-se como do gênero feminino.

• Como em toda ação policial, devem ser considerados os procedimentos de segurança. Avalie o grau de risco que a pessoa abordada oferece, considere as diferenças de porte físico entre a policial e a pessoa abordada.

• O efetivo em segurança deve ter condições de pronta-resposta, em caso de reação.

• Caso ameace a segurança, a policial pode não realizar a busca pessoal na travesti e na mulher transexual.

Verifica-se que a recomendação da Secretaria Nacional de Segurança Pública é no sentido da abordagem policial ocorrer de acordo com o gênero, ou seja, se a abordagem for realizada em uma travesti, uma policial deve realizar a busca; caso a abordagem ocorra em um travesti, um policial deve proceder à busca.

Em qualquer situação deve ser analisada a segurança no local da abordagem, como a periculosidade e riscos do local, por ser de conhecimento dos policiais que a região é violenta e constantemente ocorrem prisões por tráfico e assaltos; a compleição física da pessoa abordada em comparação com a do policial que realizará a abordagem; os ânimos no momento da abordagem e eventuais circunstâncias relevantes que possam influenciar na abordagem.

Analisada a segurança e não havendo riscos incomuns para o policial que realizará a abordagem, somente os riscos naturais de toda e qualquer abordagem, deve-se primar pela observância do gênero, independentemente, do que consta na identidade civil e no Registro Civil das Pessoas Naturais.

Não havendo segurança no local para realizar a abordagem da travesti por uma policial, o que cabe aos policiais avaliarem, esta poderá ser procedida por homem.

Em uma ponderação de valores deve prevalecer a segurança dos policiais, pois os riscos existentes podem colocar a vida e a integridade física dos policiais em risco, enquanto que uma abordagem isolada e realizada por um policial de gênero diverso da travesti pode gerar um desconforto e constrangimento momentâneo para a abordada.

Um outro fator que justifica a abordagem realizada por um policial a uma travesti consiste na ausência de uma policial em serviço ou na demora excessiva em comparecer uma policial que esteja de serviço, mas esteja atendendo a uma ocorrência, o que não é incomum de ocorrer, sobretudo nos períodos noturnos em que há locais que mulheres, homens e travestis exercem a profissão do sexo e ao serem abordados não há policiais mulheres em serviço, em razão da redução do número de viaturas lançadas em um turno de serviço na madrugada, o que justifica a abordagem realizada por um policial.

O art. 249 do Código de Processo Penal autoriza a realização de abordagens de mulheres (gênero) por homens (gênero), quando não for possível aguardar a policial, pelo fato da demora importar em retardamento ou prejuízo da diligência.

Sempre que não houver uma policial em serviço ou esta for demorar por estar em outra diligência ou pelo fato de estar em patrulhamento em local que não pode sair ou por qualquer motivo apresentar justificativa relevante, está autorizada a realização da abordagem de um policial à travesti, pois do contrário haveria expressiva demora na realização da abordagem, restringindo a liberdade da abordada por um tempo além do normal de uma abordagem, o que viola o direito à liberdade de locomoção, além de prejudicar o retorno dos policiais ao patrulhamento.

A abordagem policial deve observar, sempre que possível, a identidade de gênero, o reconhecimento social, independentemente, da identidade civil e somente em situações justificáveis é possível que um policial (homem) realize busca pessoal em uma travesti. O mesmo raciocínio se aplica ao inverso, no sentido de uma policial abordar um travesti, ocorre que na maioria das vezes, a segurança estará comprometida, pois o gênero masculino, em regra, é mais forte fisicamente que o feminino.

Corrente contrária à abordagem realizada por uma policial à travesti, pelo fato desta possuir órgão genital masculino, sustenta que a policial sente-se constrangida e desconfortável, que essa conduta viola a dignidade das policiais e o livre direito à liberdade de consciência, de crença e religiosa.

Tais argumentos não se sustentam juridicamente, em que pese ser inequívoco que na prática as policiais possam se sentir constrangidas. Para fins didáticos os argumentos invocados serão analisados sob as seguintes perspectivas: a) Constrangimento e desconforto causado às policiais e violação da dignidade da policial; b) Direito à liberdade de consciência, de crença e religiosa da policial (escusa de consciência).

a) Constrangimento e desconforto causado às policiais e violação da dignidade da policial

Mutatis mutandis, na linha dos votos dos Ministros Luiz Roberto Barroso e Edison Fachin, no Recurso Extraordinário n. 845.779, que decidirá pela possibilidade ou não de uso do banheiro de acordo com a identidade de gênero, o suposto constrangimento causado às policiais não se compara ao constrangimento suportado pelas transexuais e não raras vezes a resistência em abordar mulheres travestis decorre de preconceitos conscientes ou inconscientes e o desconhecimento do outro.

A polícia representa o Estado, é o Estado em atuação, em movimento, e todas as ações policiais devem ser voltadas para a preservação de direitos de qualquer pessoa, independentemente, de quaisquer circunstâncias, sobretudo de natureza sexual.

Os direitos dos particulares devem ser tutelados pelo Estado, assim como o Estado deve amparar os direitos de seus servidores, mas neste caso o interesse público sobrepõe ao particular, pois o órgão estatal somente atua mediante ação de seus servidores e pensar o contrário impossibilitaria o Estado de tutelar direitos fundamentais de particulares sempre que servidores invocassem, igualmente, no exercício da função pública, os mesmos direitos fundamentais dos particulares.

O policial é encarregado da aplicação da Constituição e enquanto promotor dos Direitos Humanos desempenha importante papel contramajoritário na proteção das minorias e grupos vulneráveis, o que se destaca ao preservar os direitos de travestis, transexuais, gays, lésbicas, bissexuais e intersexuais.

Entender que uma policial possui o direito a não realizar abordagem em uma transexual, por possuir órgão genital masculino, seria o mesmo que admitir que uma médica que trabalha em hospital público não realize cirurgias em homens nus ou em travestis nus ou que uma médica ou enfermeira não realize o procedimento de sondagem vesical, que consiste em tocar com luvas o órgão genital masculino para passar uma sonda pela uretra até a bexiga, o que ocorre em determinadas cirurgias ou condições clínicas, o que seria absurdo para a prestação e gestão de serviço público, comprometeria o interesse público, além de ter como efeito um impacto negativo nas profissionais, que poderão ser discriminadas no serviço público por não realizarem um serviço completo18. A atuação é profissional. Faz parte da atividade policial.

Pode-se pensar em interpretação contrária, no sentido de que sob este mesmo raciocínio estaria permitida a realização de abordagens de mulheres por homens, já que médicos realizam cirurgias em mulheres nuas, bem como o procedimento de sondagem vesical. Ocorre que a ótica aplicada na abordagem policial é sob o ângulo de quem sofre a abordagem, no sentido de tutelar os direitos fundamentais da pessoa abordada e da mesma forma que uma travesti (possui órgão genital masculino) deve, prioritariamente, ser abordada por uma policial, um travesti (possui órgão genital feminino) deve, prioritariamente, ser abordado por um policial. A questão analisada perpassa pelo gênero e não órgão sexual.

Um outro exemplo que pode ser utilizado como reforço argumentativo, embora na órbita privada, sem imposições estatais, ocorre nos contratos entre emissoras de televisão e atores de novelas que são obrigados, por vínculo contratual, a aceitarem os papéis que forem deliberados pela emissora de televisão, podendo, para tanto, ter que beijar outra pessoa do mesmo sexo, o que decorre da natureza da profissão de ator. Nesses casos a atuação é profissional e faz parte da atividade do ator. A não aceitação deste contrato poderá implicar em multa, punições administrativas e até mesmo a rescisão contratual mediante justa causa, em razão da insubordinação.

É inegável que muitas policiais sintam-se constrangidas e desconfortáveis em realizarem buscas em uma pessoa que possua órgão genital masculino, mas seja do gênero feminino, contudo este desconforto e constrangimento fica no plano fático, sem respaldo jurídico suficiente para impossibilitar que as policiais realizem buscas pessoas nas travestis.

b) Direito à liberdade de consciência, de crença e religiosa da policial (escusa de consciência)

A liberdade de consciência, de crença e religiosa é um direito fundamental (art. 5º, VI, da CF) e qualquer pessoa pode exercê-los livremente sem que sofra sanções ou restrição de direitos (art. 5º, VIII, da CF).

Qualquer pessoa é livre para exercer sua convicção filosófica, política e enxergar o mundo como bem entender, contudo a exteriorização de atos decorrentes das convicções de cada um jamais pode ter qualquer natureza discriminatória, sobretudo quando a diferença do outro decorrer da identidade sexual.

O direito tutela a diferença, o pensamento diferente, a diversidade, a pluralidade de ideias, desde que o exercício da diferença não viole direitos de outrem.

Cada um é livre para exercer sua fé como bem entender, mas não pode em nome da fé discriminar terceiros.

Nesse contexto, o direito à liberdadede consciência, de crença e religiosa da policial não pode ser utilizado como fundamento para legitimar qualquer tipo de preconceito na relação com o público.

Além do mais, o Estado é laico, o que implica em um tratamento igualitário do Estado em relação a qualquer usuário do serviço público, independentemente, da religião que a policial possua ou que terceiros que lidam com o Estado possuam.

A escusa de consciência, que consiste na possibilidade que uma pessoa tem em recusar e deixar de cumprir determinadas obrigações previstas em normas, como deixar de prestar serviço militar, sendo submetido a serviço alternativo (art. 143, § 1º, da CF)19, não pode ser utilizada para a prática de qualquer ato que possua conteúdo discriminatório (art. 3º, IV, da CF).

E na hipótese em que a situação se inverter e o (a) policial responsável pela abordagem for travesti, transexual, gay, lésbica ou bissexual, intersexual?

Os direitos dos policiais que pertençam ao grupo LGBTQIA+ também devem ser respeitados, assim como o dos policiais que não pertencem ao grupo LGBTQIA+.

Nesse contexto, em razão de todos argumentos já expostos, deve-se observar a regra de que policiais do gênero masculino abordam pessoas do gênero masculino e policiais do gênero feminino abordam pessoas do gênero feminino

A abordagem policial a um homem que conta com a presença de dois policiais, sendo um travesti, observado o fator segurança, poderá ser realizada por qualquer um dos policiais. Caso a pessoa abordada seja mulher, deve-se primar pelo acionamento de uma policial travesti ou não para a realização da abordagem.

Pode ocorrer da pessoa abordada manifestar algum tipo de preconceito em razão de ser abordada por uma travesti, o que não legitima a troca da policial por uma não travesti, pois trata-se de uma manifestação discriminatória. Na prática, todavia, nada impede para evitar que os ânimos no local não se aflorem que uma policial que não seja travesti, se houver, realize a busca pessoal.

Na prática são muito raros os casos de policiais travestis do gênero masculino ou feminino.

E no caso da policial se recusar a dar buscas em uma travesti?

Como a ordem será legal, poderá ser responsabilizada disciplinarmente, sem prejuízo do crime de recusa de obediência (art. 163 do Código Penal Militar).

O crime de recusa de obediência consiste em descumprir ordem sobre assunto ou matéria de serviço, ou relativamente a dever imposto em lei, regulamento ou instrução.

Art. 163. Recusar obedecer a ordem do superior sôbre assunto ou matéria de serviço, ou relativamente a dever impôsto em lei, regulamento ou instrução:

Pena – detenção, de um a dois anos, se o fato não constitui crime mais grave.

A abordagem policial é matéria de serviço, além de decorrer de dever imposto em lei ou regulamento ou instrução, razão pela qual o descumprimento da ordem por uma policial em abordar uma travesti, caracteriza o crime em tela.

Como proceder nas hipóteses em que a pessoa abordada for intersexual ou se autodenominar agênero, andrógeno, gênero fluido, ou qualquer outra denominação que não seja possível definir o gênero masculino ou feminino?

Nesses casos o policial deve, observada a segurança e a veracidade das informações passadas pelo abordado, deixar a pessoa livre para escolher quem deve abordá-la, se um policial ou uma policial, como forma de assegurar o direito a um tratamento igualitário e respeitoso por parte do Estado.

A abordagem policial por gênero diverso da pessoa que sofre a abordagem e pertença ao grupo LGBTQIA+ caracteriza crime?

O fato, por si só, de um policial (masculino) abordar uma travesti não caracteriza crime.

Na hipótese em que o policial (masculino) abordar uma travesti em decorrência de discriminação, como dizer que a está abordando para “ver se vira homem” e que não tem nenhum direito a ser abordada por uma policial, praticará o crime de racismo previsto no art. 20 da Lei n. 7.716/1989.

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

Pena: reclusão de um a três anos e multa.(Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

Isso porque o Supremo Tribunal Federal decidiu que a prática de atos preconceituosos decorrentes de orientação sexual pode configurar crime de racismo previsto na Lei n. 7.716/89, conforme sintetiza Márcio Cavalcante20.

1. Até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a implementar os mandados de criminalização definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição da República, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716, de 08.01.1989, constituindo, também, na hipótese de homicídio doloso, circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe (Código Penal, art. 121, § 2º, I, “in fine”);

2. A repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, qualquer que seja a denominação confessional professada, a cujos fiéis e ministros (sacerdotes, pastores, rabinos, mulás ou clérigos muçulmanos e líderes ou celebrantes das religiões afro-brasileiras, entre outros) é assegurado o direito de pregar e de divulgar, livremente, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu pensamento e de externar suas convicções de acordo com o que se contiver em seus livros e códigos sagrados, bem assim o de ensinar segundo sua orientação doutrinária e/ou teológica, podendo buscar e conquistar prosélitos e praticar os atos de culto e respectiva liturgia, independentemente do espaço, público ou privado, de sua atuação individual ou coletiva, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero;

3. O conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se para além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta, enquanto manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável (LGBTI+) e por não pertencerem ao estamento que detém posição de hegemonia em uma dada estrutura social, são considerados estranhos e diferentes, degradados à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito.

STF. Plenário. ADO 26/DF, Rel. Min. Celso de Mello; MI 4733/DF, Rel. Min. Edson Fachin, julgados em em 13/6/2019 (Info 944).

Como a polícia deve proceder quando acionada pelo fato de um(a) travesti ser impedido(a) de usar o banheiro de acordo com a sua identidade de gênero?

O uso de banheiro de acesso público em razão do gênero é um tema polêmico e encontra-se pendente de julgamento pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário n. 845.779, que já possui dois votos favoráveis (Ministros Luís Roberto Barroso e Edison Fachin).

No Brasil inexiste lei que trate do uso de banheiro de acesso público.

Em São Paulo, o Tribunal de Justiça reconheceu a inconstitucionalidade formal de uma lei municipal de Sorocaba que impedia o uso de banheiro ou vestiário feminino por mulher trans, sendo obrigadas a utilizarem o banheiro de acordo com o sexo biológico, sem observar a identidade de gênero.

A Lei Municipal n. 11.185, de 28 de setembro de 2015, assim dispunha:

Art. 1º Fica vedada a utilização de banheiros, vestiários e demais espaços segregados, de acordo com a identidade de gênero, em instituições que atendam ao ensino fundamental, público ou privado, instaladas no âmbito do Município.

Parágrafo único. Para os efeitos do caput deste artigo considera-se identidade de gênero o conceito pessoal, individual, psíquico e subjetivo, divergente do sexo biológico, adotado pela pessoa.

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo reconheceu a inconstitucionalidade formal por usurpar competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional (art. 22, XXIV, da CF) e por violação do Pacto Federativo (arts. 1º, 144 e 237, inciso VII, da CE).

Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei nº 11.185, de 28 de setembro de 2015, de iniciativa parlamentar, que veda “a utilização de banheiros, vestiários e demais espaços segregados, de acordo com a identidade de gênero, em instituições que atendam ao ensino fundamental, público ou privado, instaladas no âmbito do Município”. Matéria veiculada na lei que discute questão relativa à ideologia de gênero nas instituições que atendem ao ensino fundamental. Usurpação da competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional (art. 22, XXIV, da CF). Violação do Pacto Federativo (arts. 1º, 144 e 237, inciso VII, da CE). Patente, pois, a incompetência municipal para legislar sobre a matéria, eis que afronta as normas constitucionais e a disciplina complementar existente, configurando vício de inconstitucionalidade formal. Ação direta julgada procedente. (TJ-SP – ADI: 21372207920188260000 SP 2137220-79.2018.8.26.0000, Relator: Cristina Zucchi, Data de Julgamento: 09/10/2019, Órgão Especial, Data de Publicação: 11/10/2019)

A Resolução nº 12, de 16 de janeiro de 2015, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, assegura o acesso nos sistemas e instituições de ensino, ao banheiro de acordo com a identidade de gênero, ao dispor que deve ser garantido o uso de banheiros, vestiários e demais espaços segregados por gênero, quando houver, de acordo com a identidade de gênero de cada sujeito (art. 6º).

A Portaria nº 7/2018 do Ministério Público da União trata da utilização de banheiros e vestiários pelas pessoas transgênero no âmbito do Ministério Público da União e garante o uso de banheiros, vestiários e demais espaços segregados por gênero, quando houver, de acordo com a identidade de gênero de cada sujeito no âmbito do Ministério Público da União (art. 5º-A).

O Decreto n. 47.148/2017 de Minas Gerais dispõe sobre a adoção e utilização do nome social por parte de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública estadual e no art. 1º reconhece à identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública estadual.

Nada dispõe o referido decreto sobre o uso de banheiros, contudo autoriza o uso do nome social durante o serviço e ao reconhecer a identidade de gênero de travestis e transexuais no âmbito da administração pública estadual deve-se permitir o exercício de direitos e a convivência de acordo com a identidade de gênero.

Fato é que esse reconhecimento perante a Administração Pública independe de formalidades por parte do Estado, pois decorre da própria Constituição e de documentos internacionais, conforme exposto.

No Recurso Extraordinário n. 845.779, o Ministro Edson Fachin, em seu voto, observou que a criação de um terceiro banheiro, para além da divisão binária entre masculino e feminino, pela mulher transexual, certamente enfraqueceria o próprio senso de inclusão no seio comunitário e à reprimenda da afirmação da própria identidade e citou Roger Raupp Rios e Alice Hertzog Resadori:


Banheiros neutros do ponto de vista de gênero somente para transexuais ou banheiros indicados expressamente e exclusivamente para transgêneros,sem a possibilidade de transexuais femininas adentrem em banheiros femininos, criam uma terceira e estigmatizada classe de usuários, o que viola a dignidade humana das usuárias transexuais e configura discriminação inconstitucional. Ao mesmo tempo, desrespeita a identidade de gênero feminina das pessoas transexuais e anuncia uma estranha e exótica categoria, desviada da “normalidade” de gênero” (RIOS, Roger Raupp; RESADORI, Alice Hertzog. Direitos Humanos, Transexualidade e ‘Direito dos Banheiros’. In: Direito & Práxis, V. 06, N. 12, Rio de Janeiro, 2015, p. 196-227, p. 217)

Nesse contexto, face à inexistência de uma norma e de decisão do Supremo Tribunal Federal, como proceder? O estabelecimento comercial, como um restaurante, bar ou hotel que impede o acesso de uma travesti em um banheiro feminino, praticaria crime?

Como inexiste uma definição clara no Brasil sobre o uso de banheiro por travestis, certamente, o funcionário do estabelecimento comercial ao vetar o uso do banheiro feminino por uma transexual, atua pensando no desconforto e constrangimento de outras usuárias do banheiro, o que afasta a presença do dolo exigido pelo art. 20 da Lei de Racismo – Lei n. 7.716/89.

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

Pena: reclusão de um a três anos e multa.(Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

Nesse contexto, até que o Supremo Tribunal Federal defina o direito do uso de banheiro de acordo com a identidade de gênero ou sobrevenha uma lei ou norma específica, como nos casos citados, é prudente e razoável que a polícia somente oriente o estabelecimento comercial a autorizar o uso do banheiro de acordo com a identidade de gênero, pois esta é a tendência de pacificação e evita que qualquer ato discriminatório em razão da orientação sexual seja praticado.

Caso a orientação não seja suficiente a polícia poderá ordenar que o funcionário autorize o uso, sob pena de ser responsabilizado pelo crime de desobediência (art. 330 do CP).

Noutro giro, caso a polícia constate que houve prática de ato preconceituoso, como a afirmação pelo funcionário, em tom depreciativo e preconceituoso, que se tratava de travesti e naquele estabelecimento não seria respeitada, poderá ter ocorrido a prática de racismo (art. 20 da Lei n. 7.716/89), o que enseja a condução para a Delegacia de Polícia.

Gays, lésbicas e bissexuais possuem identidade de gênero correspondente ao órgão genital, razão pela qual devem utilizar o banheiro correspondente ao sexo que coincide com a identidade de gênero.

Dessa forma, caso um estabelecimento impeça um gay de utilizar o banheiro masculino por ser manifestamente gay e isso incomodaria os demais homens no banheiro, haverá a prática do crime previsto no art. 20 da Lei n. 7.716/89.

Intersexuais, andrógeno e gênero fluido devem possuir o direito a escolher o banheiro que será utilizado, pois transitam entre a identidade de gênero masculina e feminina.

Os agêneros, por possuírem identidade de gênero neutra, em um primeiro momento, “tanto faz”, para eles irem a um banheiro masculino ou feminino, razão pela qual, para evitar constrangimentos e desconfortos para os usuários e usuárias do banheiro, é razoável que frequente o banheiro correspondente ao seu sexo.

O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul21 condenou um clube em danos morais, no valor de R$ 8.000,00 (oito mil) reais, por ter praticado ofensas contra uma travesti, dentre elas por ter colocado obstáculos no uso do banheiro feminino.

Diante de todo o exposto, não restam dúvidas que travestis, transexuais, gays, lésbicas, bissexuais, intersexuais, agênero, andrógeno e gênero fluido e qualquer outra categoria que possa vir a denominar possuem direito de serem abordados por policiais que possuam a mesma identidade de gênero.

Em qualquer caso deve-se primar pela segurança dos policiais que realizam a abordagem. Constatado que a abordagem por uma policial em uma travesti coloca a policial em risco, ainda que mínimo, a abordagem deve ser realizada por um policial.

A avaliação da segurança da abordagem compete aos policiais que atuam na ocorrência, dada a experiência que possuem, conhecimento técnico e avaliação do cenário por quem vivencia a situação do momento na rua.

Tome como exemplo uma travesti franzina, magra, em um local seguro na rua, que fora abordada por uma guarnição policial com dois policiais, um homem e uma mulher. Neste caso a policial deverá realizar a busca pessoal. Por outro ângulo, caso a travesti abordada seja alta, forte ou haja mais travestis com ela ou seja em um local que os policiais avaliem ser mais perigoso, o que exige uma atuação mais firme, rápida e segura, o policial deverá realizar a busca pessoal, como forma de garantir a segurança dos policiais e da própria travesti que em eventual ação contra uma policial que a aborda, por crer ser mais forte, poderá ter consequências desastrosas para a vida da travesti.

A observância da identidade de gênero para a realização de buscas aplica-se a qualquer tipo de busca, seja superficial ou íntima.

Durante a abordagem policial deve-se evitar qualquer exposição desnecessária de LGBTQIA+, não devendo ser discutida a identidade sexual do abordado de forma que tão logo identifique a identidade de gênero procede-se à busca, sendo o abordado tratado pelo nome social.

Há casos que mulheres travestis são facilmente detectadas com o simples olhar, o que torna desnecessário qualquer questionamento sobre a identidade de gênero, devendo a policial proceder à busca e quando não for possível, seja em razão da ausência de uma policial, por qualquer motivo, ou em razão do fato segurança, o policial deve proceder à busca e após esta justificar o motivo da realização por um policial (homem). A justificativa posterior legitima-se por razões de segurança e necessária agilidade na realização da busca, pois se a pessoa abordada estiver no porte de algum ilícito poderá querer se livrar ou então poderá chegar outras pessoas para tumultuarem a abordagem.

Quando não for possível detectar com o simples olhar e a pessoa abordada aparentar possuir identidade de gênero diversa do sexo, o policial deve perguntar à pessoa como gostaria de ser chamada. Persistindo a dúvida, pois o nome apresentado pode ser utilizado por homem ou mulher ou por receio da polícia entender que estivesse mentindo ou pensar que não poderia dizer o nome social para a polícia, os policiais podem questionar por quem gostaria de ser abordada ou de forma prudente procurar saber sobre a identidade de gênero.

Atos discriminatórios que tenham por alvo o grupo LGBTQIA+ configuram crime de racismo previsto na Lei n. 7.716/89.

Em síntese, toda a situação neste texto apresentada pode assim ser definida.

Em relação à abordagem policial:

a) Travestis femininos (órgão genital masculino) possuem o direito de serem abordadas por uma policial (mulher);

b) Travestis masculinos (órgão genital feminino) possuem o direito de serem abordados por um policial (homem);

c) Mulheres transexuais, independentemente, de realização de cirurgia de redesignação sexual, possuem o direito de serem abordadas por uma policial (mulher);

d) Homens transexuais, independentemente, de realização de cirurgia de redesignação sexual, possuem o direito de serem abordadas por um policial (homem);

e) Gays, lésbicas e bissexuais possuem identidade de gênero correspondente ao órgão genital, razão pela qual devem sofrer abordagem policial pelo policial correspondente ao sexo/identidade de gênero;

f) Intersexuais, andrógeno e gênero, por transitarem entre a identidade de gênero masculina e feminina, devem possuir o direito a escolher se serão abordados por um ou uma policial;

g) Os agêneros, por possuírem identidade de gênero neutra, em um primeiro momento, “tanto faz”, para eles serem abordados por um ou uma policial.

h) Em qualquer caso o fator “segurança” será decisivo para permitir que a abordagem de pessoas da identidade de gênero feminina seja realizada por uma policial.

Em relação ao uso do banheiro:

a) Há tendência que o Supremo Tribunal Federal pacifique pela possibilidade de uso do banheiro correspondente à identidade de gênero para os travestis femininos e masculinos e para os transexuais mulheres e homens, independentemente, de realização de cirurgia de redesignação sexual;

b) Gays, lésbicas e bissexuais possuem identidade de gênero correspondente ao órgão genital, razão pela qual devem utilizar o banheiro correspondente ao sexo que coincide com a identidade de gênero;

c)Intersexuais, andrógeno e gênero fluido devem possuir o direito a escolher o banheiro que será utilizado, pois transitam entre a identidade de gênero masculina e feminina;

d) Os agêneros, por possuírem identidade de gênero neutra, em um primeiro momento, “tanto faz”, para eles irem a um banheiro masculino ou feminino, razão pela qual, para evitar constrangimentos e desconfortos para os usuários e usuárias do banheiro, é razoável que frequente o banheiro correspondente ao seu sexo;

e) Caso a polícia seja acionada pelo fato de qualquer estabelecimento colocar empecilhos no uso do banheiro por pessoas do grupo LGBTQIA+ é prudente e razoável que a polícia somente oriente o estabelecimento a autorizar o uso do banheiro de acordo com a identidade de gênero, pois esta é a tendência de pacificação e evita que qualquer ato discriminatório em razão da orientação sexual seja praticado. Caso a polícia determine o uso do banheiro em razão da identidade de gênero e o estabelecimento não acate a ordem, haverá o crime de desobediência (art. 330 do CP). Sendo constatada a prática de ato preconceituoso haverá a prática do crime de racismo previsto no art. 20 da Lei n. 7.716/89.

NOTAS

1 Art. 240. A busca será domiciliar ou pessoal. § 2o Proceder-se-á à busca pessoal quando houver fundada suspeita de que alguém oculte consigo arma proibida ou objetos mencionados nas letras b a f e letra h do parágrafo anterior.

Art. 244. A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar.

2 CARMO, Cláudio Márcio do. Grupos minoritários, grupos vulneráveis e o problema da (in)tolerância: uma relação linguístico-discursiva e ideológica entre o desrespeito e a manifestação do ódio no contexto brasileiro. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0020 38742016000200201&lng=en&nrm=iso&tlng=pt >. Acesso em: 19/06/2020.

TREVIZAN, Ana Flávia; AMARA, Sérgio Tibiriça. DIFERENCIAÇÃO ENTRE MINORIAS E GRUPOS VULNERÁVEIS Ana Flávia TREVIZAN. Revista Etic. v. 6, n. 6 (2010)

3 CARMO, Cláudio Márcio do. Grupos minoritários, grupos vulneráveis e o problema da (in)tolerância: uma relação linguístico-discursiva e ideológica entre o desrespeito e a manifestação do ódio no contexto brasileiro. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0020 38742016000200201&lng=en&nrm=iso&tlng=pt >. Acesso em: 19/06/2020.

Segundo Rogers e Ballantyne, existem fontes de vulnerabilidade, a partir das quais seria possível estabelecer uma tipificação básica: a) vulnerabilidade extrínseca – ocasionada por circunstâncias externas, como falta de poder socioeconômico, pobreza, falta de escolaridade ou carência de recursos; e b) vulnerabilidade intrínseca – causada por características que têm a ver com os próprios indivíduos, tais como doença mental, deficiência intelectual, doença grave, ou os extremos de idade (crianças e idosos).

4 STF. Plenário. ADO 26/DF, Rel. Min. Celso de Mello; MI 4733/DF, Rel. Min. Edson Fachin, julgados em em 13/6/2019 (Info 944).

5 Disponível em: <https://www.dizerodireito.com.br/2019/07/atos-homofobicos-e-transfobicos-sao.html>. Acesso em: 19/06/2020.

6STRECK, Lenio Luiz. O dever de proteção do Estado (Schutzpflicht). O lado esquecido dos direitos fundamentais ou qual a semelhança entre os crimes de furto privilegiado e o tráfico de entorpecentes?Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13n. 184015 jul. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11493. Acesso em: 19 jun. 2020.

7SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO. I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais. III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAÇO PÚBLICO, AINDA QUE NÃO-ESTATAL. ATIVIDADE DE CARÁTER PÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. APLICAÇÃO DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIO. As associações privadas que exercem função predominante em determinado âmbito econômico e/ou social, mantendo seus associados em relações de dependência econômica e/ou social, integram o que se pode denominar de espaço público, ainda que não-estatal. A União Brasileira de Compositores – UBC, sociedade civil sem fins lucrativos, integra a estrutura do ECAD e, portanto, assume posição privilegiada para determinar a extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de seus associados. A exclusão de sócio do quadro social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do devido processo constitucional, onera consideravelmente o recorrido, o qual fica impossibilitado de perceber os direitos autorais relativos à execução de suas obras. A vedação das garantias constitucionais do devido processo legal acaba por restringir a própria liberdade de exercício profissional do sócio. O caráter público da atividade exercida pela sociedade e a dependência do vínculo associativo para o exercício profissional de seus sócios legitimam, no caso concreto, a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF/88). IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO. (STF – RE: 201819 RJ, Relator: ELLEN GRACIE, Data de Julgamento: 11/10/2005, Segunda Turma, Data de Publicação: DJ 27-10-2006 PP-00064 EMENT VOL-02253-04 PP-00577)

8CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Ente público e direito à imagem. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/8d7d8ee069cb0cbbf816bbb65d56947e>. Acesso em: 19/06/2020

10CONSELHO Nacional de Combate à Discriminação. Brasil Sem Homofobia: Programa de combate à violência e à discriminação contra GLTB e promoção da cidadania homossexual. Brasília : Ministério da Saúde, 2004. p. 30.

11 Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/73878/o-direito-do-intersexual-a-identidade-de-genero-e-ao-registro-civil#:~:text=%22Intersexual%20%C3%A9%20a%20pessoa%20que,Popularmente%20era%20conhecido%20como%20hermafrodita. >. Acesso em: 20/06/2020.

12 Disponível em: <https://www.grupodignidade.org.br/intersex-o-que-voce-precisa-saber-sobre-o-i-em-lgbti-no-dia-da-visibilidade-intersexual/>. Acesso em: 20/06/2020.

13 Disponível em: <https://www.natura.com.br/blog/mais-natura/glossario-lgbt-entenda-o-que-e-queer-intersexual-genero-fluido-e-mais>. Acesso em 20/06/2020.

14Disponível em: <https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2020/06/02/interna_gerais,1153036/adolescentes-trans-e-travestis-terao-revista-humanizada.shtml>. Acesso em: 20/06/2020.

15 Uso do banheiro por transexual e meio ambiente do trabalho. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/uso-do-banheiro-por-transexual-e-meio-ambiente-do-trabalho-23012019 >. Acesso em: 20/06/2020.

16ADI 4275/DF, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o acórdão Min. Edson Fachin, julgamento em 28.2 e 1º.3.2018. (ADI-4275)

17MANUAL TÉCNICO-PROFISSIONAL nº 3.04.02/2013-CG. P. 110.

18Remete à ideia da teoria do impacto desproporcional, segundo a qual ao se adotar uma medida de cunho igualitário, deve-se analisar se a adoção dessa medida não agravará a desigualdade de forma indireta.

19 A Lei n. 12.608/2012 alterou a Lei n. 8.239/1991 e passou a prever no art. 3º, § 4º, desta Lei, que “O Serviço Alternativo incluirá o treinamento para atuação em áreas atingidas por desastre, em situação de emergência e estado de calamidade, executado de forma integrada com o órgão federal responsável pela implantação das ações de proteção e defesa civil.”

20Disponível em: <https://www.dizerodireito.com.br/2019/07/atos-homofobicos-e-transfobicos-sao.html>. Acesso em: 20/06/2020.

21 Autos n. Nº 70072252539 (Nº CNJ: 0435447-18.2016.8.21.7000)

A relevância do preenchimento da data de nascimento do adolescente infrator, mediante consulta a documentos, no Boletim de Ocorrência

Síntese

O Superior Tribunal de Justiça fixou a seguinte tese jurídica, de observância obrigatória pelos juízes e tribunais (art. 927, III, do CPC).

Para ensejar a aplicação de causa de aumento de pena prevista no art. 40, VI, da Lei n. 11.343/2006 ou a condenação pela prática do crime previsto no art. 244-B da Lei n. 8.069/1990, a qualificação do menor, constante do boletim de ocorrência, deve trazer dados indicativos de consulta a documento hábil – como o número do documento de identidade, do CPF ou de outro registro formal, tal como a certidão de nascimento. STJ – ProAfR no REsp 1.619.265-MG, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, Terceira Seção, por unanimidade, julgado em 07/04/2020, DJe 18/05/2020 (Informativo 671)

Após o estudo do julgado do Superior Tribunal de Justiça e aprofundamentos realizados por este autor, chegou-se às seguintes conclusões:

a) O policial, ao registrar Boletim de Ocorrência em razão da prática do crime de corrupção de menor (art. 244-B da Lei 8.069/90) ou um dos crimes previstos entre os arts. 33 e 37 da Lei n. 11.343/06, como o tráfico de drogas, que envolva menor, não deverá constar a data de nascimento do adolescente no Boletim de Ocorrência somente em razão de sua palavra. Deverá consignar a data de nascimento do menor e citar, necessariamente, o número do documento utilizado para obter a informação da data de nascimento;

b) O policial deve sempre buscar registrar a data de nascimento obtida por meios oficiais, seja mediante a apresentação de qualquer documento idôneo (identidade, certidão de nascimento, carteira de estudante, passaporte, cartão do SUS, dentre outros) ou mediante informações e dados fornecidos pelo sistema de registro de ocorrência;

c) Sempre que o próprio sistema de registro de ocorrência fornecer a data de nascimento e outros dados, automaticamente, como decorrência da inserção do nome ou RG ou CPF do adolescente infrator no sistema, é importante que o policial explique no histórico da ocorrência que a data de nascimento foi obtida pelo próprio sistema de registro de ocorrência que possui banco de dados oficial que, automaticamente, insere os demais dados, como a data de nascimento.

A observância do item “c” não deve dispensar, sempre que possível, por cautela, a observância do item ‘b”.

A inobservância desses procedimentos policiais poderá acarretar em impunidade.

Quando um agente pratica infração penal com um adolescente deverá responder também pelo crime de corrupção de menor.

Art. 244-B. Corromper ou facilitar a corrupção de menor de 18 (dezoito) anos, com ele praticando infração penal ou induzindo-o a praticá-la: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

Pouco importa se o adolescente já possui vasto histórico de envolvimento com a prática de atos infracionais (crimes e contravenções penais), pois o crime de corrupção de menor é formal. Logo, é desnecessário que se comprove que o adolescente foi “contaminado” pelo crime pelo agente que com ele praticou infração penal.

A Súmula 500 do Superior Tribunal de Justiça afirma ser o crime previsto no art. 244-B do Estatuto da Criança e do Adolescente de natureza formal.

Súmula 500-STJ. A configuração do crime previsto no artigo 244-B do Estatuto da Criança e do Adolescente independe da prova da efetiva corrupção do menor, por se tratar de delito formal.

Em se tratando do envolvimento de adolescentes com tráfico de drogas, incide a causa de aumento de pena prevista no art. 40, VI, da Lei n. 11.343/06, em razão do princípio da especialidade.

Art. 40. As penas previstas nos arts. 33 a 37 desta Lei são aumentadas de um sexto a dois terços, se:

VI – sua prática envolver ou visar a atingir criança ou adolescente ou a quem tenha, por qualquer motivo, diminuída ou suprimida a capacidade de entendimento e determinação;

Em qualquer caso é necessário que a idade do adolescente seja comprovada para que o agente seja responsabilizado pelo crime de corrução de menor ou pelo crime de tráfico de drogas com causa de aumento de pena.

Como comprovar a idade do adolescente, de forma que o judiciário reconheça a validade dessa comprovação ao sentenciar o agente?

Não é incomum que autores de crime e de atos infracionais andem pelas ruas sem documentos de identificação, exatamente, com o intuito de dificultar o trabalho da polícia ao serem abordados ou presos.

Salienta-se que não há, no Brasil, nenhuma lei que obrigue o porte de documento pelas pessoas que transitam pelas ruas, o que não as desobrigam de se identificarem quando solicitadas pela polícia, pois a negativa em se identificar caracteriza contravenção penal.

Decreto-Lei n. 3.688/41

Art. 68. Recusar à autoridade, quando por esta, justificadamente solicitados ou exigidos, dados ou indicações concernentes à própria identidade, estado, profissão, domicílio e residência:

Pena – multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.

Fato é que agentes maiores de idade e adolescentes serão capturados em flagrante delito e conduzidos à Delegacia especializada para a lavratura do Boletim de Ocorrência.

Sempre que um adolescente for apreendido em flagrante de ato infracional e houver a prisão de um maior de idade em razão da coautoria, a condução dos autores deve ser feita para a repartição policial especializada no atendimento de adolescente.

Lei n. 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente

Art. 172. O adolescente apreendido em flagrante de ato infracional será, desde logo, encaminhado à autoridade policial competente.

Parágrafo único. Havendo repartição policial especializada para atendimento de adolescente e em se tratando de ato infracional praticado em co-autoria com maior, prevalecerá a atribuição da repartição especializada, que, após as providências necessárias e conforme o caso, encaminhará o adulto à repartição policial própria.

Na Delegacia especializada deve ser lavrado o Boletim de Ocorrência, ocasião em que o policial deverá constar a data de nascimento do adolescente infrator para que o autor do crime (maior de idade) seja flagrado também pelo crime de corrupção de menor ou para que o Delegado de Polícia reconheça a causa de aumento prevista no art. 40, VI, da Lei n. 11.343/06.

A Súmula 74 do Superior Tribunal de Justiça preconiza que:

Para efeitos penais, o reconhecimento da menoridade do réu requer prova por documento hábil.


Nota-se que a súmula exige a prova da menoridade do RÉU por documento hábil. Não trata da comprovação da menoridade da VÍTIMA, que é o caso do adolescente infrator que pratica ato infracional com um adulto. É autor do ato infracional e vítima do crime de corrupção de menor, pois este crime visa tutelar a formação moral e a personalidade do menor de 18 anos e ainda que este já tenha se envolvido na prática de outros atos infracionais, novos envolvimentos com atos infracionais só pioram o quadro de formação moral e da personalidade.

O Código de Processo Penal ao tratar dos meios de prova prescreve que “somente quanto ao estado das pessoas serão observadas as restrições estabelecidas na lei civil.” (art. 155, parágrafo único).

Isto é, os fatos podem ser comprovados por qualquer meio de prova, com exceção dos fatos referentes ao estado das pessoas que deve observar as restrições estabelecidas na lei civil.

Estado da pessoa refere-se às características que distinguem e individualizam a pessoa, como o nome, sexo, idade, estado civil, naturalidade e saúde mental.

O casamento prova-se, como regra, pela certidão do registro do casamento, nos termos do art. 1.543 do Código Civil.

Art. 1.543. O casamento celebrado no Brasil prova-se pela certidão do registro.

Parágrafo único. Justificada a falta ou perda do registro civil, é admissível qualquer outra espécie de prova.

O art. 9º do Código Civil prevê que serão registrados em registro público:

I – os nascimentos, casamentos e óbitos;

II – a emancipação por outorga dos pais ou por sentença do juiz;

III – a interdição por incapacidade absoluta ou relativa;

IV – a sentença declaratória de ausência e de morte presumida.

Tais registros são fundamentais para a organização da sociedade e identificação das pessoas.

A idade, nos termos da Lei n. 6.179/1974, prova-se “mediante certidão do registro civil ou por outro meio de prova admitido em direito, inclusive assento religioso ou carteira profissional emitida há mais de 10 (dez) anos.”

Nesse contexto, por ser a menoridade um estado da pessoa deve-se comprovar na forma da lei civil, motivo pelo qual o documento hábil a comprovar a idade deve ser qualquer documento idôneo, que possua grau de fidedignidade suficiente para demonstrar que as informações nele contidas são verdadeiras, seja o documento de identidade, certidão de nascimento, certidão de casamento, Carteira Nacional de Habilitação ou até mesmo documento particular, como a carteira estudantil, pois a lei admite “outro meio de prova admitido em direito”, e não há nenhuma vedação no ordenamento jurídico no sentido de vedar a comprovação da idade mediante apresentação de documento particular.

No voto do Ministro Rogério Schietti Cruz, Relator do Recurso Especial n. 1.619.265, cita Fernando da Costa Tourinho Filho1, que apresenta relevantes considerações acerca da comprovação da idade no processo penal.

Vigorando no Processo Penal o princípio da verdade real, é corolário não deva haver qualquer limitação ou restrição à prova. Apesar disso, o legislador, por razões várias, estabelece algumas limitações. A lei civil não admite que determinados fatos sejam demonstrados por qualquer meio de prova. Assim, por exemplo, o testemunho de menores, de pessoas de má reputação; às vezes, exige que certo fato seja provado deste ou daquele modo. Pois bem: o Código de Processo Penal não acata essas restrições, salvo quando se tratar daquelas limitações impostas à prova do estado civil das pessoas. O casamento se prova com a respectiva certidão, diz a lei civil. Pois bem: se no processo penal houver necessidade de provar que o agente é casado, de nada valerão depoimentos e declarações. E indispensável a certidão. Nesse sentido: […]. Evidente que se não for possível a exibição do registro, em virtude de extravio, incêndio, revolução, guerra, admitem-se provas supletórias, nos termos do parágrafo único do art. 1.543 do Código Civil. No que tange à prova da menoridade, porque ligada ao estado das pessoas, a situação é a mesma: obedece-se à lei civil. […] Quando se trata de verificação de idade (e muitas e muitas vezes há necessidade de saber a idade da pessoa para fins penais), o normal é a prova por meio de certidão, uma vez que o art. 9º do CC exige o registro do nascimento. Mas sabemos todos que no Brasil a evasão ao registro atinge proporções alarmantes. Em face disso, quando houver necessidade de se proceder à verificação de idade (ante a falta de registro), haverá uma perícia médica que se baseia na análise dos ossos (normalmente pela radiografia), dentes, caracteres sexuais secundários, pele e peso. Assim, o núcleo do crescimento dos ossos (até os 20 anos), nos dentes definitivos há certa ordem na sua irrupção (há tabelas indicando a época dessas irrupções), pelos axilares e pubianos, menarca (primeira menstruação) etc

No que tange à condenação de agente pelo crime de corrupção de menor, Renato Brasileiro de Lima2 sustenta que:

(…) não é viável a condenação de alguém pela prática do crime de corrupção de menores se for admitida, como prova da idade da vítima, declaração por ela prestada perante a autoridade policial. Como a idade compõe o estado civil da pessoa e se prova, em regra, pelo assento de nascimento, cuja certidão tem sido considerada prova inequívoca, para fins criminais, tanto da idade do acusado quanto da vítima, não se revela possível a condenação pelo crime do art. 244-B da Lei nº 8.069/90 sem a prova civil da menoridade do corréu.

O Superior Tribunal de Justiça possui diversas decisões que exigem a comprovação da idade mediante a apresentação de documento hábil, não sendo suficiente a palavra do réu no interrogatório ou no boletim de ocorrência.3

A menoridade, para fins de prescrição da pena, deve ser comprovada por meio de documento, não bastando, para isso, a simples alegação contida no termo de interrogatório.REsp n. 2.081/SP (Rel. Ministro William Patterson, DJ 4/6/1990)
Comprovado, através de documento oficial, que o réu era menor de vinte e um anos de idade à época do fato delituoso, deve ser aplicado o art. 115 do Código Penal vigente, reduzindo-se à metade o prazo prescricional.REsp n. 1.039/SP (Rel. Ministro Jesus Costa Lima, 5ª T., DJ 5/3/1990)
Para o reconhecimento da redução do prazo prescricional pela metade, nos termos do art. 115 do Código Penal, seria necessário a juntada de documentos hábeis para a comprovação da menoridade do Réu ao tempo do fato criminoso.EDcl nos EDcl nos EDcl no REsp n. 945.311/SP, Rel. Ministra Laurita Vaz, 5ª T., DJe 17/11/2008.
1. A jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça entende que a atenuante prevista no art. 65, inciso I, do CP deve ser reconhecida sempre que o denunciado for menor de 21 anos na data do fato imputado, razão pela qual deve ser reconhecida, no caso. 2. Nos termos da Súmula nº 74 do STJ, certo é que a certidão de nascimento ou a cédula de identidade não são os únicos documentos válidos para fins de comprovação da menoridade, podendo esta ser demonstrada por meio de outro documento firmado por agente público dotado de fé pública atestando a idade do adolescente.HC n. 407.857/RJ, Rel. Ministro Jorge Mussi, 5ª T., DJe 27/9/2017.
O Superior Tribunal de Justiça tem entendimento no sentido de que se não apresentada justificativa satisfatória para a falta de documento apto a comprovar a idade da vítima, não há que se suprir esta deficiência com outros dados, de menor força probatória. Essa providência ensejaria, com base em juízo de menor certeza, uma piora na situação do réu, o que não se admite no Direito Penal. 4. Agravo regimental a que se nega provimento. (Comprovação da idade de vítimas de crimes contra a dignidade sexual)AgRg no REsp n. 1.158.384/RJ, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, 5ª T., DJe 15/5/2014.

No que tange à comprovação da idade da vítima no crime de corrupção de menor ou para a incidência da causa de aumento prevista no art. 40, VI, da Lei n. 11.343/06, o Superior Tribunal de Justiça possuía diversos julgados que admitia como prova a simples palavra da vítima perante os policiais.

A despeito da suposta ausência de documento de identidade ou certidão de nascimento, no processo, a comprovar a idade da vítima, consta dos autos que ela pôde ser atestada através de outros documentos com fé pública, notadamente, pela qualificação na esfera policial. (precedentes). Agravo regimental desprovido. (AgRg no HC n. 374.783/MG, Rel. Ministro Felix Fischer, 5ª T., DJe 16/2/2017)

No caso, o próprio adolescente afirmou, em seu depoimento prestado perante a autoridade policial a data do seu nascimento, de modo a não deixar dúvidas de que, no dia dos fatos possuía 17 anos de idade. A menoridade foi, portanto, devidamente atestada por meio do inquérito policial, em que consta a qualificação do menor. (AgRg no REsp n. 1.619.740/MG, Rel. Ministro Rogerio Schietti, 6ª T., DJe 10/10/2016)

Nota-se haver uma incongruência entre as decisões do Superior Tribunal de Justiça em se admitir o reconhecimento de idade para uns casos somente mediante a apresentação de documento e para outros casos não, sendo que todas matérias são processuais penais. Não há lógica em se exigir documento hábil para a prova da menoridade quando for réu (Súmula 74), mas não se exigir documento hábil quando for vítima, uma vez que a finalidade é a mesma para ambos os casos: provar a idade.

O Ministro Rogério Schietti Cruz, registrou uma importante observação em seu voto no Recurso Especial n. 1.619.265.

Não se pretende, com isso, colocar em dúvida a palavra do agente policial, que registra a qualificação da pretensa vítima no boletim de ocorrência. Ao contrário, o que se busca é evitar o abuso à boa-fé do servidor público que se limita a reduzir à termo o que foi dito pela pessoa que lhe foi apresentada – até mesmo como forma de tentar evitar responsabilização criminal.

Não se duvida que a informação mencionada pelo policial no Boletim de Ocorrência seja verdadeira, contudo a informação obtida pode não ser verdadeira.

O Boletim de Ocorrência, por ser um documento público, goza de presunção de veracidade em relação aquilo que o próprio policial declarar que tenha ocorrido em sua presença.4 O conteúdo do Boletim de Ocorrência inserido pelo policial em razão de relato de terceiros não goza de presunção de veracidade. Prova-se somente que terceiro procurou o policial e relatou-lhe uma informação que foi registrada.

Dessa forma, o Superior Tribunal de Justiça pacificou a questão e decidiu que para ensejar a aplicação de causa de aumento de pena ou a condenação do réu pelo crime de corrupção de menor, a qualificação do menor constante do boletim de ocorrência deve trazer dados indicativos de consulta a documento hábil – como o número do documento de identidade, do CPF ou de outro registro formal, tal como a certidão de nascimento e fixou a seguinte tese:

Para ensejar a aplicação de causa de aumento de pena prevista no art. 40, VI, da Lei n. 11.343/2006 ou a condenação pela prática do crime previsto no art. 244-B da Lei n. 8.069/1990, a qualificação do menor, constante do boletim de ocorrência, deve trazer dados indicativos de consulta a documento hábil – como o número do documento de identidade, do CPF ou de outro registro formal, tal como a certidão de nascimento.

Não se exige que seja juntado aos autos do inquérito policial ou do processo penal cópia do documento hábil, sendo suficiente que conste a data do nascimento do adolescente e demonstre como foi obtida essa informação com o registro do número do documento consultado (identidade, certidão de nascimento, documento estudantil). Não terá validade para reconhecer a responsabilidade criminal do autor do crime de corrupção de menor ou reconhecer a causa de aumento do tráfico, caso a data de nascimento que esteja registrada no Boletim de Ocorrência decorra unicamente da fala do adolescente ou de terceiros, como a própria mãe da pessoa em desenvolvimento, ou então se não houver menção aos dados do documento consultado, consignando somente que determinado documento foi consultado, contudo não se registra o número deste documento, pois pode não comprovar a realização da consulta, e a lei exige que a idade seja comprovada documentalmente.

Na prática os sistemas de registro de ocorrência dos órgãos policiais já são automatizados para “puxarem” os dados em um bando de informações oficiais ao constar nome ou número de identidade ou CPF da pessoa qualificada na ocorrência (autor, vítima testemunha). Com isso, a data de nascimento do adolescente, automaticamente, estará registrada no sistema, independentemente, do que este disser. Por se tratar de um banco de dados e informações oficiais, também é considerado prova e, portanto, é válido para provar a idade do adolescente para fins de se responsabilizar o autor do crime de corrupção de menor ou reconhecer a causa de aumento do tráfico de drogas.

É importante que a autoridade policial conste essa informação, quando for o caso, no inquérito policial ou auto de prisão em flagrante, com o fim de levar ao conhecimento do Ministério Público e do Poder Judiciário.

É importante consignar que as teses fixadas pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de Recurso Especial repetitivo vinculam os juízes e os tribunais a decidirem de acordo o entendimento fixado (art. 927, III, do CPC).

O descumprimento das teses fixadas pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento de Recurso Especial repetitivo enseja a reclamação prevista no art. 988, IV, do Código de Processo Civil, após o esgotamento dos recursos cabíveis perante as instâncias ordinárias (art. 988, § 5º, II, do CPC).

Diante de todo o exposto é possível afirmar que:

a) O policial, ao registrar Boletim de Ocorrência em razão da prática do crime de corrupção de menor (art. 244-B da Lei 8.069/90) ou um dos crimes previstos entre os arts. 33 e 37 da Lei n. 11.343/06, como o tráfico de drogas, que envolva menor, não deverá constar a data de nascimento do adolescente no Boletim de Ocorrência somente em razão de sua palavra. Deverá consignar a data de nascimento do menor e citar, necessariamente, o número do documento utilizado para obter a informação da data de nascimento;

b) O policial deve sempre buscar registrar a data de nascimento obtida por meios oficiais, seja mediante a apresentação de qualquer documento idôneo (identidade, certidão de nascimento, carteira de estudante, passaporte, cartão do SUS, dentre outros) ou mediante informações e dados fornecidos pelo sistema de registro de ocorrência;

c) Sempre que o próprio sistema de registro de ocorrência fornecer a data de nascimento e outros dados, automaticamente, como decorrência da inserção do nome ou RG ou CPF do adolescente infrator no sistema, é importante que o policial explique no histórico da ocorrência que a data de nascimento foi obtida pelo próprio sistema de registro de ocorrência que possui banco de dados oficial que, automaticamente, insere os demais dados, como a data de nascimento.

A observância do item “c” não deve dispensar, por cautela, a observância do item ‘b”.

A inobservância desses procedimentos policiais poderá acarretar em impunidade.

NOTAS

1 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal comentado: volumes 1 e 2. 15 ed., revista e de acordo com a Lei n. 12.850/2013. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 568-569.

2 Lima, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 8. ed. rev. e atual. Salvador: Juspodivm, 2020. p. 800/801.

3 No voto do Ministro Rogério Schietti Cruz no Recurso Especial n. 1.619.265 as decisões são referenciadas.

4 CPC. Art. 405.  O documento público faz prova não só da sua formação, mas também dos fatos que o escrivão, o chefe de secretaria, o tabelião ou o servidor declarar que ocorreram em sua presença.

A instituição policial pode exigir que o policial more no local em que trabalha e condicionar a saída do local de residência para outra cidade, estado ou para o exterior à previa autorização do Comando?

SÍNTESE

Fundamentos
• Art. 93, VII, e art. 129, § 2º da Constituição Federal
• Art. 22 da Convenção Americana de Direitos Humanos
• Art. 5º, XV e LIV, da Constituição Federal
• Art. 319, IV, e art. 320 do Código de Processo Penal
• Art. 76 do Código Civil

O Supremo Tribunal Federal decidiu na ADPF n. 90, de Relatoria do Ministro Luiz Fux, julgada em 03/04/2020 que:

1. A regra que estabelece a necessidade de residência do policial no município em que exerce suas funções é compatível com a Constituição de 1988, a qual já prevê obrigação semelhante para magistrados, nos termos do seu artigo 93, VII (“o juiz titular residirá na respectiva comarca, salvo autorização do tribunal”);

2. A proibição de saída do município sede da unidade em que o servidor atua sem autorização do superior hierárquico configura grave violação da liberdade fundamental de locomoção (artigo 5º, XV, da Constituição de 1988) e do devido processo legal (artigo 5º, LIV, da Constituição), mercê de constituir medida de caráter excepcional no âmbito processual penal (artigo 319, IV, do CPP), a revelar a desproporcionalidade da sua expansão como regra no âmbito administrativo. A investidura em cargo público não afasta a incidência dos direitos e garantias fundamentais assegurados pela Carta Magna, de modo que o agente público não pode ficar confinado aos limites do Município no qual exerce suas funções, submetido ao alvedrio de seus superiores para transitar pelo território nacional.

Após o estudo do julgado do Supremo Tribunal Federal e aprofundamentos realizados por este autor, chegou-se às seguintes conclusões:

a) É possível que lei ou norma da instituição policial obrigue o policial a residir na cidade em que trabalha;

b) Não é possível que lei ou norma da instituição policial exija prévia autorização para que o policial saia da cidade em que trabalha para viajar para outra cidade ou estado;

c) Em que pese haver entendimento em sentido diverso, temos que é possível que a instituição policial, mediante lei em sentido formal e não atos normativos do Poder Executivo, exija prévia autorização para que o policial saia do país.

A Constituição Federal prevê no art. 93, VII, que o juiz titular deve residir na comarca, salvo autorização do tribunal.

Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:

VII o juiz titular residirá na respectiva comarca, salvo autorização do tribunal; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

O art. 129, § 2º, da Constituição Federal possui semelhante previsão para os membros do Ministério Público.

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

§ 2º As funções do Ministério Público só podem ser exercidas por integrantes da carreira, que deverão residir na comarca da respectiva lotação, salvo autorização do chefe da instituição. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

Nada prevê a Constituição Federal acerca da necessidade de policiais terem que morar na cidade em que trabalha. Diante da ausência de previsão constitucional, discute-se se é constitucional a previsão em lei ou ato normativo da instituição que obrigue policiais e militares a residirem no local em que trabalha.

O Supremo Tribunal Federal1 enfrentou essa questão e decidiu pela possibilidade da instituição policial exigir que o policial resida na cidade em que trabalha.

No caso concreto foi analisado o art. 244 da Lei Complementar n. 3.400/81 do Espírito Santo.

Art. 244. As autoridades policiais, seus agentes e auxiliares ficam obrigados a residir no município sede da unidade policial em que prestarem serviços ou onde lhes tenha sido permitido, não podendo afastar-se sem prévia autorização superior, salvo para atos e diligências de seus encargos.

O Supremo Tribunal Federal fundamentou que a Constituição Federal autoriza exigir que magistrados residam na comarca, por ser compatível a exigência com as liberdades fundamentais e as atribuições profissionais, logo, não há motivo que justifique vedar que essa exigência seja estendida a outras categorias profissionais

Quanto à regra que estabelece a necessidade de residência no município sede da unidade policial, não se vislumbra incompatibilidade em relação à Carta de 1988, na qual já existe obrigação semelhante para magistrados, nos termos do seu artigo 93, VII: “o juiz titular residirá na respectiva comarca, salvo autorização do tribunal”. Desse modo, se o constituinte entendeu compatível com as liberdades fundamentais a exigência de moradia onde são exercidas as atribuições profissionais, não há motivos para vedar que o legislador amplie a regra para abranger outros servidores públicos.

Vale consignar que residência e domicílio são conceitos distintos e não se confundem.

O Código Civil afirma que o servidor público possui domicílio necessário no lugar em que exerce permanentemente suas funções e o militar no local em que servir, o que não significa dizer que o Código Civil obrigue o servidor público e o militar a residirem no local em que trabalham, pois o conceito de residência é diverso do conceito de domicílio.

Art. 76. Têm domicílio necessário o incapaz, o servidor público, o militar, o marítimo e o preso.

Parágrafo único. O domicílio do incapaz é o do seu representante ou assistente; o do servidor público, o lugar em que exercer permanentemente suas funções; o do militar, onde servir, e, sendo da Marinha ou da Aeronáutica, a sede do comando a que se encontrar imediatamente subordinado; o do marítimo, onde o navio estiver matriculado; e o do preso, o lugar em que cumprir a sentença.

Carlos Roberto Gonçalves2 leciona que:Domicílio é a sede jurídica da pessoa, onde ela se presume presente para feitos de direito e onde pratica habitualmente seus atos e negócios jurídicos.

A residência é, portanto, apenas um elemento componente do conceito de domicílio, que é mais amplo e com ela não se confunde. Residência, como foi dito, é simples estado de fato, sendo o domicílio uma situação jurídica. Residência, que indica a radicação do indivíduo em determinado lugar, também não se confunde com morada ou habitação, local que a pessoa ocupa esporadicamente, como a casa de praia ou de campo, ou o hotel em que passa uma temporada, ou mesmo o local para onde se mudou provisoriamente até concluir a reforma de sua casa. É a mera relação de fato, de menor expressão que residência.

Uma pessoa pode ter um só domicílio e mais de uma residência. (…)

Admite-se, também, que uma pessoa possa ter domicílio sem possuir residência determinada, ou em que esta seja de difícil identificação. Preleciona Orlando Gomes que, nesses casos, para resguardar o interesse de terceiros, vem-se adotando a teoria do domicílio aparente, segundo a qual, no dizer de Henri de Page, ‘aquele que cria as aparências de um domicílio em um lugar pode ser considerado pelo terceiro como tendo aí seu verdadeiro domicílio.’” (destaquei)

Portanto, é perfeitamente possível que um servidor público ou militar possuam domicílio em local diverso da residência, já que aquele decorre de um status jurídico, no sentido de fixar o local em que a pessoa, no dia a dia, pratica e realiza seus atos jurídicos, enquanto que a residência decorre de um status fático, que consiste no local em que o servidor efetivamente more, onde permaneça fisicamente no dia a dia nos horários de folga.

Como exemplo de prática de atos jurídicos no domicílio do servidor público ou do militar, tem-se a intimação judicial realizada para a audição na condição de testemunha, cuja intimação será feita, respectivamente, ao chefe da repartição ou ao comando do corpo em que servir (art. 455, § 4º, III, do CPC).


A exigência para que o policial resida na cidade em que trabalha deve estar contida em lei em sentido estrito (lei propriamente dita) ou pode decorrer de um ato normativo da instituição policial (lei em sentido amplo)?

O Supremo Tribunal Federal não entrou nesse mérito, tendo o Ministro Luiz Fux, Relator da ADPF 90, mencionado genericamente que se o constituinte entendeu compatível com as liberdades fundamentais a exigência de moradia onde são exercidas as atribuições profissionais, não há motivos para vedar que o legislador amplie a regra para abranger outros servidores públicos.

A Constituição Federal tratou da obrigatoriedade de residência no local de trabalho somente para juízes e promotores, pois são cargos públicos cujos membros possuem previsão na própria Constituição Federal e dada a atividade-fim das funções é conveniente e prudente que o juiz e promotor residam na comarca, com o intuito de conhecerem melhor a realidade e aplicarem o direito sem desconhecer a realidade local. No entanto, normas específicas das carreiras dos servidores públicos podem, também, obrigarem a residência na cidade em que trabalham.

O art. 5º, II, da Constituição Federal diz que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” e o art. 37, caput, diz que: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte”

Trata-se de aplicação do princípio da legalidade.

Para tanto, deve-se analisar o grau de abrangência do princípio da legalidade, se se trata somente de leis em sentido estrito, aprovadas pelo Poder Legislativo, ou normas jurídicas que podem ser editadas pelo Poder Executivo, como uma portaria, resolução, decreto.

Gilmar Mendes Ferreira e Paulo Gustavo Gonet Branco discorrem sobre o conceito de legalidade e ensinam que:3

O conceito de legalidade não faz referência a um tipo de norma específica, do ponto de vista estrutural, mas ao ordenamento jurídico em sentido material. É possível falar então em um bloco de legalidadeou de constitucionalidade que englobe tanto a lei como a Constituição.Lei, nessa conformação, significa norma jurídica, em sentido amplo, independente de sua forma.

Quando a Constituição, em seu art. 5º, II, prescreve que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, por “lei” pode-se entender o conjunto do ordenamento jurídico (em sentido material), cujo fundamento de validade formal e material encontra-se precisamente na própria Constituição. Traduzindo em outros termos, a Constituição diz que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa que não esteja previamente estabelecida na própria Constituição e nas normas jurídicas dela derivadas, cujo conteúdo seja inovador no ordenamento (Rechtsgesetze). O princípio da legalidade, dessa forma, converte-se em princípio da constitucionalidade (Canotilho), subordinando toda a atividade estatal e privada à força normativa da Constituição.

Flávio Martins Alves Nunes Júnior4 leciona que:

(…) como prevê a Constituição (art. 5º, II), “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Indaga-se: essa “lei” a que a Constituição se refere, é lei no sentido amplo ou lato (qualquer ato normativo do poder público, envolvendo decretos, portarias, resoluções, medidas provisórias etc.) ou lei no sentido estrito (um ato emanado do Poder Legislativo)? A expressão “lei” do artigo 5º, II, da Constituição Federal se refere à lei no sentido lato ou amplo. Assim, é possível que sejamos obrigados a fazer algo, por conta de uma Medida Provisória, por exemplo. (…) Da mesma forma, a Prefeitura de um Município poderá, por ato normativo (resolução, portaria etc.) da Secretaria de Transportes, reduzir a velocidade máxima permitida em algumas vias públicas. As pessoas serão obrigadas a dirigir seus veículos naquela velocidade, sob pena de multa.

Importante: não se pode confundir o princípio da legalidade com o princípio da reserva legal.

Enquanto o princípio da legalidade, base do Estado de Direito, é o parâmetro norteador de todos os atos do poder público e das pessoas, a reserva legal consiste numa determinação constitucional de elaboração de uma lei em sentido estrito para disciplinar determinadas relações. Nas palavras de Gilmar Mendes, “diante de normas densas de significado fundamental, o constituinte defere ao legislador atribuições de significado instrumental, procedimental ou conformador/criador do direito.

(…) há uma diferença substancial entre o princípio da legalidade e o princípio da reserva legal. Enquanto o primeiro se refere à lei no sentido amplo (qualquer ato normativo do poder público), o segundo se refere à lei no sentido estrito (ato emanado do Poder Legislativo).

Nota-se, portanto, que o princípio da legalidade não se restringe somente à lei em sentido formal, sendo possível que atos do Poder Executivo estejam abrangidos pelo conceito de legalidade.

A Administração Pública não pode inovar no direito ao editar atos normativos, sob pena de usurpar competência legislativa e ferir a separação de poderes, o que não a impede de editar normas que visem resguardar o interesse público, nos limites da lei.

Matheus Carvalho5 ensina que:

Neste diapasão, se faz necessário lembrar que a Legalidade não exclui a atuação discricionária do agente público, tendo essa que ser levada em consideração quando da análise, por esse gestor, da conveniência e da oportunidade em prol do interesse público. Como a Administração não pode prever todos os casos onde atuará, deverá valer-se da discricionariedade para atender a finalidade legal, devendo, todavia, a escolha se pautar em critérios que respeitem os princípios constitucionais como a proporcionalidade e razoabilidade de conduta, não se admitindo a interpretação de forma que o texto legal disponha um absurdo.

O poder normativo da Administração Pública possibilita a edição de atos normativos com o fim de complementar a lei, sem, no entanto, inovar no ordenamento jurídico, o que é admitido, para a doutrina majoritária, somente na hipótese de regulamento autônomo previsto no art. 84, VI, da Constituição Federal.

Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:

VI – dispor, mediante decreto, sobre:(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)

a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos;(Incluída pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)

b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos;(Incluída pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)

A organização do funcionamento estrutural e hierárquico de uma instituição decorre do poder hierárquico, que permite que a administração pública estruture, organize e ordene as suas atividades administrativas e que os servidores públicos, em uma relação funcional e hierárquica, deem ordens, controlem, gerenciem, corrijam, coordenem as atividades administrativas e observem o cumprimento das regras impostas pelos superiores hierárquicos, em observância ao interesse público.

Demonstrado ser possível a edição de atos normativos pela Administração Pública, com o fim de dar fiel cumprimento à execução da lei e que o princípio da legalidade previsto no art. 5º, II e art. 37, ambos da Constituição Federal, não tratam, necessariamente, de lei em sentido formal, é perfeitamente possível que a instituição policial, mediante ato do Poder Executivo ou do Comando da Instituição edite norma que obrigue o policial a residir na cidade em que trabalha.

Qual é a finalidade em se exigir que um policial resida na cidade em que trabalha?

O policial que mora na cidade em que trabalha conhece melhor a cidade e os moradores, o que é muito comum em pequenas cidades do interior, o que permite uma maior aproximação social e facilita a troca de informações relevantes que poderão ser utilizadas pela polícia para a prevenção e investigação.

Além do mais, o policial ao residir na cidade em que trabalha passa a se envolver mais com os problemas sociais, conhecer a realidade e se torna mais conhecido da comunidade, o que pode torná-lo conhecido pelo nome e essa aproximação com a sociedade é importante para transmitir mais confiança do trabalho da polícia e para que o policial conheça melhor os agentes que atuam no crime.

Conhecer as peculiaridades do local em que trabalha é importante para a atuação policial.

O policial, enquanto morador de uma cidade, possui, naturalmente, um maior zelo, cuidado e preocupação com o bem-estar e segurança da cidade.

Jeferson Botelho Pereira6 defende que:

(…) as autoridades somente residindo na Comarca de sua respectiva lotação, sentindo, por conseguinte, seus anseios e necessidades de perto e integrando-se nela, poderão realizar plena e perfeitamente suas funções, cumprindo sua missão mais relevante: a de paladino dos direitos difusos, coletivos e individuais indisponíveis.

Registra-se, ainda, que é comum nas instituições policiais que haja um plano de chamada, com o fim de acionar todos os policiais de um determinado local nos casos emergenciais, como a realização de um assalto envolvendo um grande número de agentes em uma pequena cidade do interior. Certamente, o plano será acionado para que todos os policiais, ainda que de folga ou férias, em curto espaço de tempo, estejam prontos para atuarem.

Como demonstrado, a Corporação pode exigir que o policial resida na cidade em que trabalha, bem como estabelecer as hipóteses em que será autorizada a residência fora da cidade.

É razoável que a instituição policial analise diversos fatores ao decidir determinar, como regra, que o policial resida no município em que trabalha, como a convivência familiar, a segurança, a qualidade de vida e a estrutura da cidade, de forma que haja um equilíbrio entre o interesse público na permanência constante do policial na cidade e a qualidade de vida e saúde psicológica e mental que o policial deve ter, de forma que esteja em condições físicas e psicológicas de atuar sempre que necessário. Dessa forma, ao se determinar a residência na cidade como regra, é prudente que o comando da instituição flexibilize essa regra para analisar casos pontuais que justifiquem a não moradia no município.

E no que tange à exigência de prévia autorização do comando para que o policial saia do local de residência para outra cidade, estado ou para o exterior?

O Supremo Tribunal Federal7 enfrentou essa questão e decidiu pela impossibilidade da instituição policial exigir que o policial solicite autorização para sair da cidade em que trabalha.

No caso concreto foi analisado o art. 244 da Lei Complementar n. 3.400/81 do Espírito Santo.

Art. 244. As autoridades policiais, seus agentes e auxiliares ficam obrigados a residir no município sede da unidade policial em que prestarem serviços ou onde lhes tenha sido permitido, não podendo afastar-se sem prévia autorização superior, salvo para atos e diligências de seus encargos.

O Supremo Tribunal Federal fundamentou que tal exigência viola a Constituição Federal, pois constitui uma grave medida restritiva de liberdade e constitui uma espécie de medida cautelar penal prevista no art. 319, IV, do Código de Processo Penal, que somente pode ser imposta em situações extremas. Considerou que mesmo durante um processo criminal a proibição de deixar a comarca assume caráter extraordinário, não é possível que imponha essa condição administrativamente. Sustentou que a Constituição Federal assegura a liberdade de locomoção em todo o território nacional e não prevê a possibilidade de se exigir do servidor público prévia autorização para se ausentar da cidade em que mora.

Em contrapartida, submeter ao crivo da Administração superior a possibilidade de saída do município sede da autoridade policial equivale a estabelecer, em desfavor do servidor, grave medida restritiva de liberdade, sem razões válidas que a amparem. Note-se que a proibição de ausentar-se da Comarca é medida cautelar penal prevista no artigo 319, IV, do Código de Processo Penal, que apenas pode ser decretada em caráter excepcionalíssimo, quando: (i) a permanência for conveniente ou necessária para a investigação ou instrução; e (ii) a medida for adequada à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado (artigo 282, II, CPP). Considerando que mesmo durante a persecução penal a proibição de deixar a Comarca assume caráter extraordinário, deve-se concluir que essa intervenção drástica na liberdade ambulatorial não pode assumir caráter geral e irrestrito na disciplina administrativa do regime jurídico dos servidores públicos. O artigo 5º, XV, da Constituição é de clareza meridiana ao garantir que “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”. A investidura em cargo público, evidentemente, não afasta a incidência da norma fundamental, de modo que o agente público não pode ficar confinado aos limites do Município no qual exerce suas funções, submetido ao alvedrio de seus superiores para transitar pelo território nacional. Afinal, como já definido pelo Plenário desta Corte, mesmo no âmbito militar o interesse do serviço não é escusa para a violação de liberdades fundamentais em normas que disciplinam a conduta dos agentes públicos (…)

Márcio Cavalcante8 explica que:

Essa previsão viola a Constituição Federal.

Submeter ao crivo da Administração superior a possibilidade de saída do município sede da autoridade policial equivale a estabelecer, em desfavor do servidor, grave medida restritiva de liberdade, sem razões válidas que a amparem.

A proibição de ausentar-se da Comarca é medida cautelar penal prevista no art. 319, IV, do CPP, que apenas pode ser decretada em caráter excepcionalíssimo, quando:

a) a permanência for conveniente ou necessária para a investigação ou instrução; e

b) a medida for adequada à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado (art. 282, II, CPP).

Considerando que mesmo durante a persecução penal a proibição de deixar a Comarca assume caráter extraordinário, deve-se concluir que essa intervenção drástica na liberdade ambulatorial não pode ser imposta no regime jurídico dos servidores públicos.

O art. 5º, XV, da Constituição assegura a liberdade de locomoção. A investidura em cargo público não tem o condão de fazer com que o servidor perca essa garantia constitucional. Assim, o agente público não pode ficar confinado aos limites do Município no qual exerce suas funções, submetido à autorização de seus superiores para transitar pelo território nacional.

O STF já declarou inconstitucionais, em diversas oportunidades, normas que proibiam o afastamento de juízes de suas comarcas, podendo esse mesmo raciocínio ser aplicado ao caso concreto.

Dessa forma, o Supremo Tribunal Federal julgou parcialmente para reconhecer a não recepção do trecho “não podendo afastar-se sem prévia autorização superior, salvo para atos e diligências de seus encargos” contido no art. 244 da Lei Complementar n. 3.400/81.

O Supremo Tribunal Federal tratou da impossibilidade de se exigir prévia autorização de superior hierárquico para que policiais se desloquem no âmbito do território nacional. Nota-se que a abrangência territorial decidida na ADPF n. 90 é o território do Brasil.

5. A investidura em cargo público não afasta a incidência dos direitos e garantias fundamentais assegurados pela Carta Magna, consoante já definido pelo Plenário desta Corte mesmo no âmbito militar (ADPF 291, Relator Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 28/10/2015), de modo que o agente público não pode ficar confinado aos limites do Município no qual exerce suas funções, submetido ao alvedrio de seus superiores para transitar pelo território nacional.

Diante disso deve-se analisar se a impossibilidade de se exigir prévia autorização do policial para se ausentar da cidade em que mora abrange também as viagens para o exterior.

Certamente, haverá duas correntes.

A primeira sustentar-se-á nos próprios fundamentos da ADPF n. 90, uma vez que o art. 320 prevê como medida cautelar penal a proibição de se ausentar do país, ocasião em que o investigado ou acusado deve entregar o passaporte no prazo de 24 (vinte e quatro) horas. A proibição de se ausentar do país é uma medida extrema, não sendo possível condicionar a viagem ao exterior à autorização de superior hierárquico, pois a liberdade de locomoção abrange, inclusive, o direito a viajar para o exterior, sendo esta a exegese do art. 5º, XV, da Constituição Federal, ao dispor que “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”.

Nota-se que o direito fundamental à liberdade de locomoção assegura o direito a entrar, permanecer e sair do território nacional e não somente a liberdade de transitar livremente dentro do país.

A segunda corrente, por nós defendida, consiste na possibilidade do comando exigir que o policial solicite prévia autorização para as viagens internacionais, uma vez que os direitos fundamentais não são absolutos e o próprio inciso XV do art. 5º da Constituição Federal prevê a possibilidade de restrição do direito ao ingresso e saída do território nacional nos termos da lei. Trata-se de uma norma de eficácia contida, pois a lei pode restringir, em determinadas situações, o direito de entrar, permanecer e sair do território nacional.

Quando a Constituição Federal prevê a restrição de um direito “nos termos da lei”, “na forma da lei”, “segundo a lei”, exige a edição de lei em sentido restrito (reserva legal), como ensina Flávio Martins Alves Nunes Júnior9

Enquanto o princípio da legalidade, base do Estado de Direito, é o parâmetro norteador de todos os atos do poder público e das pessoas, a reserva legal consiste numa determinação constitucional de elaboração de uma lei em sentido estrito para disciplinar determinadas relações. Nas palavras de Gilmar Mendes, “diante de normas densas de significado fundamental, o constituinte defere ao legislador atribuições de significado instrumental, procedimental ou conformador/criador do direito.”

A Constituição Federal de 1988 traz muitos dispositivos com expressões como “na forma da lei”, “nos termos da lei”, “segundo a lei”. Exemplos não faltam: “é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva” (art. 5º, VII); (…) “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal (art. 5º, XXXIX) etc.

Por se tratar da restrição a um direito fundamental (liberdade de locomoção) e pelo fato da Constituição prever expressamente que é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, NOS TERMOS DA LEI, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens, somente lei em sentido formal (lei em sentido estrito) pode restringir o direito de entrar, permanecer e sair do país.10

A Convenção Americana de Direitos Humanos, incorporada ao Brasil mediante o Decreto n. 678/1992, possui status supralegal, e dispõe no art. 22, itens 2 e 3 que toda pessoa tem o direito de sair do próprio país e que este direito somente pode ser restringido em virtude de lei, na medida indispensável para a segurança ou a ordem públicas.

Artigo 22

Direito de Circulação e de Residência

2. toda pessoa tem o direito de sair livremente de qualquer país, inclusive do próprio.

3. O exercício dos direitos acima mencionados não pode ser restringido senão em virtude de lei, na medida indispensável, numa sociedade democrática, para prevenir infrações penais ou para proteger a segurança nacional, a segurança ou a ordem públicas, a moral ou a saúde públicas, ou os direitos e liberdades das demais pessoas. (destaquei)

Dessa forma, qualquer ato normativo do Poder Executivo (decreto, portaria, resolução etc.) que preveja a necessidade do comando conceder prévia autorização para o policial se ausentar do país é inconstitucional. A exigência dessa autorização deve decorrer de lei, sendo possível que a instituição policial somente a regulamente.

Por serem os órgãos policiais os responsáveis pela segurança e ordem pública, sobretudo a Polícia Militar, cuja missão constitucional é a preservação da ordem pública (art. 144, § 5º, da CF), a Convenção Americana de Direitos Humanos autoriza a exigência de prévia autorização para que os policiais realizem viagens internacionais.

Não é incomum que leis estaduais e normas institucionais prevejam que o policial deverá estar em condições, a qualquer hora, independentemente, de estar em gozo de férias ou folga, de atender a convocações da Corporação em situações extremas e ao solicitar autorização para viajar para o exterior o comando analisará a viabilidade de concedê-la, pois caso necessite do retorno imediato ou rápido do policial que esteja em viagem pelo exterior, corre-se o risco de não pode contar com o policial no horário e local que for necessário. Em se tratando de viagem de caráter nacional, aparentemente, é mais fácil que ocorra a apresentação do policial no local que for necessário.

Um exemplo é o art. 15 do Estatuto dos Militares do Estado de Minas Gerais – Lei n. 5.301/69.


Art. 15 – A qualquer hora do dia ou da noite, na sede da Unidade ou onde o serviço o exigir, o policial-militar deve estar pronto para cumprir a missão que lhe for confiada pelos seus superiores hierárquicos ou impostos pelas leis e regulamentos.

Não se deve confundir o recolhimento do passaporte enquanto medida cautelar de natureza penal com a necessidade de prévia autorização para realizar viagem para o exterior, pois este possui cunho administrativo e visa o resguardo do interesse público e necessidade de permanência do policial no país, em vista de um interesse superior, como a possibilidade da eclosão de uma greve ou de um tumulto social de grandes proporções que impossibilite a autorização para a realização da viagem. O recolhimento do passaporte possui natureza processual e visa impossibilitar a saída de um investigado ou acusado do país para a garantia da aplicação da lei penal. São medidas diversas, com causas, finalidades e fundamentos diversos, portanto, não se justifica o argumento de que a medida é extremamente danosa para ser aplicada administrativamente.

Em qualquer caso que a corporação negar autorização para que o policial realize viagem internacional, o ato administrativo deverá estar fundamentado em fatos concretos que demonstre ser o indeferimento a medida indispensável.

O remédio jurídico para combater eventual ilegalidade no indeferimento do pedido de realização de viagem internacional é o habeas corpus, pois a liberdade de locomoção é protegida não somente nos casos de riscos de prisão criminal, mas em qualquer situação em que este direito consagrado corra risco de ser afetado.

Ainda que o indeferimento infundado decorra de decisão de instituição militar estadual, a justiça comum será a competente para analisar eventual habeas corpus, na medida em que não se trata de ação judicial contra ato disciplinar militar (art. 125, § 4º, da CF), salvo se restar demonstrado que o indeferimento do pedido decorreu de uma espécie de punição do militar.

Em Minas Gerais, a Lei n. 4.775/68 fixou o efetivo da Polícia Militar e deu outras providências, sendo previsto no art. 2º, § 1º, que o Poder Executivo editaria decreto para baixar o Regulamento Disciplinar da Polícia Militar.

Art. 2º – Fica o Poder Executivo autorizado a estruturar ou reestruturar administrativamente a Polícia Militar.

§ 1º – O Executivo deverá, por decreto, baixar o Regulamento Disciplinar da Polícia Militar, atendidas as normas legais vigentes.

§ 2º – Até o cumprimento do disposto no parágrafo anterior, continuarão a ser adotadas, no que lhe for aplicável, as normas do regulamento do Exército Brasileiro.


Diante dessa previsão em lei, o Governador do Estado aprovou o Regulamento Geral da Polícia Militar de Minas Gerais – Decreto n. 11.636/69 – apresentado pelo Comando da Corporação, que no art. 522, III, prevê a necessidade de prévia autorização do Comandante para viagens nacionais, no período de férias, e do Governador do Estado para autorização de viagem para o exterior.

Art. 522 – O gozo de férias obedecerá as seguintes prescrições:

III – O período de férias anuais poderá ser gozado onde interessar ao policial-militar, dentro do pais, mediante permissão do respectivo Comandante do Corpo, Estabelecimento ou Repartição, e, no exterior, mediante autorização do Governador do Estado;

O Governador do Estado, por intermédio do Decreto n. 36.885/95 (art. 1º, VI)11 delegou ao Comandante-Geral a autorização para viagens de militares para o exterior, que por sua vez, delegou aos Comandantes Regionais da Polícia Militar (Resolução n. 3.283/96, art. 6º, X) e, posteriormente, subdelegou aos Diretores de Unidade de Direção Intermediária a competência para autorizar viagens internacionais dos militares (Resolução n. 3.448/98, art. 1º).

Nota-se que a previsão de exigência de prévia autorização para que o policial militar em Minas Gerais realize viagem internacional decorre de Decreto do Governador do Estado e não de lei em sentido formal, razão pela qual tal exigência é inconstitucional, por violar o art. 5º, XV, da Constituição Federal e inconvencional por violar o art. 22, item 3, da Convenção Americana de Direitos Humanos.

Constituição FederalConvenção Americana de Direitos Humanos
Art. 5º (…) XV – é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, NOS TERMOS DA LEI, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;Artigo 22 Direito de Circulação e de Residência 2. toda pessoa tem o direito de sair livremente de qualquer país, inclusive do próprio. 3. O exercício dos direitos acima mencionados não pode ser restringido senão em VIRTUDE DE LEI, na medida indispensável, numa sociedade democrática, para prevenir infrações penais ou para proteger a segurança nacional, a segurança ou a ordem públicas, a moral ou a saúde públicas, ou os direitos e liberdades das demais pessoas.

Uma importante observação refere-se aos policiais que residem e trabalham em cidades que fazem divisa com a Venezuela e o Paraguai, por exemplo. Deve ser feita uma interpretação razoável e proporcional, diante da finalidade em se exigir a prévia autorização do comando para realizar uma viagem internacional, conforme exposto. Nesses casos, não se deve exigir prévia autorização do comando, em razão da rotina e facilidade de acesso e retorno desses países, não sendo exigível, nem mesmo, passaporte, sendo suficiente a identidade civil. Deve-se admitir, por exemplo, o livre trânsito de um policial pela Ponte Internacional da Amizade, localizada entre Foz do Iguaçu (Brasil) e a Ciudad del Este (Paraguai).

ACORDO SOBRE DOCUMENTOS DE VIAGEM E DE RETORNO DOS ESTADOS PARTES DO MERCOSUL E ESTADOS ASSOCIADOS

DOCUMENTOS DE VIAGEM

Reconhecer a validade dos documentos de identificação pessoal de cada Estado Parte e Associado do MERCOSUL estabelecidos no Anexo I do presente documento como Documento de Viagem hábil para o trânsito de nacionais e/ou residentes regulares dos Estados Partes e Associados do MERCOSUL em seus territórios.

Para efeitos deste artigo, entender-se-á como:

a) “Trânsito” o movimento de nacionais ou residentes regulares provenientes do território de algum dos Estados Partes ou Associados do MERCOSUL, com destino ao território de outro Estado Parte ou Associado do MERCOSUL, não sendo necessário que sua partida seja de seu país de origem ou residência.

O prazo de validade dos documentos do Anexo I será o neles estabelecido pelo Estado emissor. No caso de não possuir data de vencimento, entender-se-á que os documentos mantêm sua vigência por tempo indefinido.

Caso a fotografia ou os dados pessoais gerem dúvidas sobre a identidade do portador do documento, poderá ser solicitada outra documentação efetiva para sanar tal circunstância.

ANEXO I

(…)

República Federativa do Brasil

Registro de Identidade Civil.

Cédula de Identidade expedida por cada Unidade da Federação com validade nacional.

Cédula de Identidade (para estrangeiros).

Passaporte.

O raciocínio exposto neste texto aplica-se a todos os policiais ou a qualquer servidor público, pois a interpretação apresentada decorre da Constituição e da Convenção Americana de Direitos Fundamentais.

Diante de todo o exposto é possível concluir que:

a) É possível que lei ou norma da instituição policial obrigue o policial a residir na cidade em que trabalha;

b) Não é possível que lei ou norma da instituição policial exija prévia autorização para que o policial saia da cidade em que trabalha para viajar para outra cidade ou estado;

c) Em que pese haver entendimento em sentido diverso, temos que é possível que a instituição policial, mediante lei em sentido formal e não atos normativos do Poder Executivo, exija prévia autorização para que o policial saia do país.

NOTAS

1 STF. Plenário. ADPF 90, Rel. Luiz Fux, julgado em 03/04/2020.

2 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: direito das coisas. Volume 1. São Paulo: Saraiva, 9ª Edição, 2014.

3MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

4NUNES JÚNIOR, Flávio Martins Alves. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 839/840.

5CARVALHO, Matheus. Manual de Direito Administrativo. 4ª edição. Salvador: Juspodivm. 2017. p. 68.

6PEREIRA, Jeferson Botelho. O delegado de polícia civil e a gestão participativa. Necessidade de residir na comarca da respectiva lotaçãoRevista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18n. 358020 abr. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24244. Acesso em: 16 jun. 2020.

7 STF. Plenário. ADPF 90, Rel. Luiz Fux, julgado em 03/04/2020.

8 Disponível em: <https://www.dizerodireito.com.br/2020/06/lei-estadual-pode-exigir-que-servidor.html>. Acesso em: 17/06/2020.

9NUNES JÚNIOR, Flávio Martins Alves. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 839/840.

10 O art. 144, § 7º, da Constituição Federal prevê que “A LEI disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades.”

11Art. 1º – Fica delegada competência ao Comandante-Geral da Polícia Militar, referente às atribuições do Governador do Estado, para a prática dos seguintes atos: VI – autorização para viagens do pessoal da Polícia Militar ao exterior, sem ônus para o Estado, exceto a percepção da remuneração básica e demais vantagens remuneratórias;

O tráfico de drogas próximo a igrejas e a incidência de causa de aumento de pena

SÍNTESE

Fundamentos
• Art. 40, III, da Lei n. 11. 343/2006
• STJHC 528.851-SP (Informativo 671)
• AgRg no REsp n. 1.810.121/SP

Não incide a causa de aumento de pena prevista no inciso III do art. 40 da Lei n. 11.343/2006 em caso de tráfico de drogas cometido nas dependências ou nas imediações de igreja, por ser vedada a analogia in malam partem. STJHC 528.851-SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, por unanimidade, julgado em 05/05/2020, DJe 12/05/2020. (Informativo 671)

Cuidado!

O Superior Tribunal de Justiça possui julgado em que afirma incidir a causa de aumento de pena prevista no inciso III do art. 40 da Lei n. 11.343/2006 quando o tráfico ocorre nas dependências ou imediações de igreja, pois o objetivo da lei é proteger espaços que promovam a aglomeração de pessoas, circunstância que facilita a ação criminosa. (AgRg no REsp n. 1.810.121/SP, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, DJe 27/2/2020)

O que isso impacta na atividade policial?

Na atividade policial, em que pese o fato do agente traficar próximo a igrejas ou em suas dependências, em um primeiro momento, parecer não ser relevante para a fixação da pena, em razão da divergência apresentada, é importante o registro detalhado em ocorrência não só para que a polícia possa mapear na região em que atua a forma de agir dos agentes do tráfico (modus operandi) e, consequentemente, planejar a atuação policial preventiva e repressiva, mas também para que essa circunstância (traficar próximo a igreja ou em suas dependências) possa ser levada ao judiciário pelo Ministério Público que conhecerá essa circunstância em razão do trabalho da polícia, já que ninguém melhor do que o policial que trabalha na rua para conhecer, com detalhes, a rua, os locais próximos ao ponto em que uma pessoa é presa, e as características físicas e geográficas da região da prisão. É importante também que o policial registre se a igreja estava em funcionamento durante a traficância – realização de culto, missa ou outra atividade – e a quantidade aproximada de pessoas que estavam no local da prisão. São detalhes que podem eventualmente repercutir na dosimetria da pena, caso se comprove uma maior gravidade na conduta, que extrapole a natureza do tipo penal, ou então visará reforçar a impossibilidade de se aumentar a pena. Além do mais, tais informações podem ser utilizadas para demonstrar o perigo do caso concreto de forma que justifique ou não a decretação da prisão preventiva.

A Lei de Drogas – Lei n. 11.343/06 – prevê no art. 40 sete causas de aumento de pena que se aplicam ao tráfico de drogas.

Art. 40. As penas previstas nos arts. 33 a 37 desta Lei são aumentadas de um sexto a dois terços, se:

I – a natureza, a procedência da substância ou do produto apreendido e as circunstâncias do fato evidenciarem a transnacionalidade do delito;

II – o agente praticar o crime prevalecendo-se de função pública ou no desempenho de missão de educação, poder familiar, guarda ou vigilância;

III – a infração tiver sido cometida nas dependências ou imediações de estabelecimentos prisionais, de ensino ou hospitalares, de sedes de entidades estudantis, sociais, culturais, recreativas, esportivas, ou beneficentes, de locais de trabalho coletivo, de recintos onde se realizem espetáculos ou diversões de qualquer natureza, de serviços de tratamento de dependentes de drogas ou de reinserção social, de unidades militares ou policiais ou em transportes públicos;

IV – o crime tiver sido praticado com violência, grave ameaça, emprego de arma de fogo, ou qualquer processo de intimidação difusa ou coletiva;

V – caracterizado o tráfico entre Estados da Federação ou entre estes e o Distrito Federal;

VI – sua prática envolver ou visar a atingir criança ou adolescente ou a quem tenha, por qualquer motivo, diminuída ou suprimida a capacidade de entendimento e determinação;

VII – o agente financiar ou custear a prática do crime.

Abordaremos neste momento a causa de aumento prevista no inciso III do art. 40 da Lei 11.343/06, que assim dispõe:

III – a infração tiver sido cometida nas dependências ou imediações de estabelecimentos prisionais, de ensino ou hospitalares, de sedes de entidades estudantis, sociais, culturais, recreativas, esportivas, ou beneficentes, de locais de trabalho coletivo, de recintos onde se realizem espetáculos ou diversões de qualquer natureza, de serviços de tratamento de dependentes de drogas ou de reinserção social, de unidades militares ou policiais ou em transportes públicos;

Esta causa de aumento de pena visa punir com mais rigor os agentes que traficam em locais em que haja uma maior facilidade para comercializar e disseminar a droga, dada a maior movimentação de pessoas, o que dificulta, inclusive, a fiscalização policial.

Nota-se que a referida causa de aumento não prevê a sua incidência quando ocorrer nas dependências ou imediações de igrejas.

Diante da ausência de previsão da igreja na relação contida no inciso III do art. 40 da Lei 11.343/06, discute-se se essa causa de aumento de pena incide quando se tratar de tráfico de drogas nas dependências ou proximidades de uma igreja.

O Superior Tribunal de Justiça possui julgados nos dois sentidos.

Esta Corte Superior firmou compreensão no sentido de que o objetivo da lei, ao prever a causa de aumento de pena do inc. III do art. 40, é proteger espaços que promovam a aglomeração de pessoas, circunstância que facilita a ação criminosa. De acordo com os autos, o local onde era praticado o tráfico de drogas ficava próximo a duas igrejas (AgRg no AREsp 1028605/SP, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, Quinta Turma, DJe 10/8/2018). 2. Agravo regimental improvido.(AgRg no REsp n. 1.810.121/SP, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, DJe 27/2/2020)Uma vez que, no Direito Penal incriminador, não se admite a analogia in malam partem e porque a hipótese dos autos (tráfico de drogas cometido em local próximo a igrejas) não foi contemplada pelo legislador no rol das majorantes previstas no inciso III do art. 40 da Lei n. 11.343/2006, deve ser afastada a causa especial de aumento de pena em questão. Ordem parcialmente concedida, para afastar a majorante prevista no inciso III do art. 40 da Lei de Drogas e, por conseguinte, reduzir a reprimenda da paciente para 5 anos de reclusão e 500 dias-multa. (STJ – HC: 528851, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, Data de Julgamento: 05/05/2020, T6 – SEXTA TURMA, DJe 12/05/2020)

Nota-se a divergência de entendimento entre julgados recentes.

O primeiro entendimento analisa a finalidade da lei, consistente em punir mais severamente locais e espaços que possuem uma maior aglomeração de pessoas, o que facilita a disseminação da droga e a ação criminosa.

Para esta corrente, os exemplos mencionados na causa de aumento (art. 40, III, da Lei 11.343/06) não são taxativos, pois o legislador não poderia prever, objetivamente, todas as hipóteses de aglomeração de pessoas que facilitasse o tráfico de drogas.

Não haveria lógica em haver uma maior reprimenda para o tráfico praticado em locais congêneres às igrejas, como os estabelecimentos sociais, culturais, recreativas, esportivas, ou beneficentes, e deixar as entidades religiosas de fora.

O segundo entendimento, com o qual concordamos,sustenta a impossibilidade de se realizar uma analogia in malam partem. O inciso III do art. 40 da Lei n. 11.343/06 menciona expressamente todas as hipóteses em que a causa de aumento deve ser reconhecida. A ampliação desse rol por via interpretativa fere o princípio da reserva legal.

A nosso ver o inciso III do art. 40 da Lei n. 11.343/06 não deve ser interpretado analogicamente ou ser realizada analogia, pois esta causa de aumento foi expressa ao mencionar as diversas hipóteses de sua incidência e não possui nenhuma cláusula geral que permita a ampliação para outras hipóteses, como ocorre na qualificadora de motivo torpe do crime de homicídio.

Art. 121. Matar alguém:

§ 2° Se o homicídio é cometido:

I – mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe;

É importante explicar o que é analogia, interpretação analógica e interpretação extensiva.

A analogia é uma técnica de integração do direito que visa suprir as lacunas existentes nas normas mediante a aplicação de normas para situações semelhantes, pois ao legislador não é possível editar leis que prevejam todas as hipóteses de ocorrência prática.

No direito penal é vedada a analogia em prejuízo do réu (in malam partem), sendo possível a analogia em benefício do réu (in bonam partem).

Um exemplo de analogia em prejuízo do réu consiste na possibilidade de incidência de qualificadora no crime de homicídio praticado contra filho adotivo do policial, em razão da função, pois o art. 121, § 2º, VII, prevê a incidência da qualificadora quando a vítima for cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, portanto, admitir que incida esta qualificadora quando se tratar de filho adotivo do policial, constitui analogia in malam partem e não deve ser admitida. Trata-se de uma distinção infeliz e inconstitucional da lei, por violar o tratamento igualitário entre os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção (art. 227, § 6º, da CF), contudo não cabe ao intérprete realizar analogia in malam partem para reconhecer a qualificadora quando a vítima do crime for um filho adotivo, o que viola o princípio da legalidade incriminadora (art. 5º, XXXIX, da CF).

Em se tratando de analogia em benefício do réu, admitir a possibilidade de aborto em razão da prática do crime de violação sexual mediante fraude, é um exemplo citado por Nucci1, pois o art. 128, II, do Código Penal prevê a possibilidade de aborto somente para os casos de estupro.

A interpretação analógica no direito penal é possível, ainda que seja em prejuízo do réu, pois trata-se de uma cláusula genérica contida no texto da lei penal que permite uma ampliação da norma para inserir outros casos, além dos já mencionados pelo tipo penal, pois ao legislador não é possível imaginar todas as situações de possível ocorrência, razão pela qual permite ao intérprete que se realize essa adequação.

Um exemplo claro de interpretação analógica encontra-se no art. 121, § 2º, I, do Código Penal.

Art. 121. Matar alguém:

§ 2° Se o homicídio é cometido:

I – mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe;

Nota-se que a lei enumera hipóteses de motivos torpes (paga ou promessa de recompensa) e depois cita “ou por outro motivo torpe”, o que permite a interpretação analógica, ainda que em prejuízo do réu, pois ao se permitir a realização de interpretação analógica nesses casos autorizados pela lei, entender que é vedada a interpretação analógica em in malam partem,seria o mesmo que retirar da lei penal as previsões que autorizam outras hipóteses (“ou por outro motivo”; “ou qualquer outro”), pois essas outras hipóteses sempre serão prejudiciais ao réu, já que se trata de norma que amplia a possibilidade de enquadramento penal.

A interpretação extensiva ocorre quando o intérprete concede um maior alcance à norma, por estar ter dito menos do que deveria. A doutrina diverge a respeito de sua aplicabilidade em prejuízo do réu.

A primeira corrente sustenta não ser possível, pois violaria a estrita legalidade e ampliaria as hipóteses de incriminação, o que não cabe ao intérprete e sim ao legislador. Aplica-se o mesmo raciocínio da analogia em prejuízo do réu.

A segunda corrente, com a qual concordamos, sustenta ser possível, pois não inova, mas somente interpreta e busca a finalidade do conceito legal empregado, razão pela qual não há óbices em se realizar uma interpretação extensiva em prejuízo do réu. Não se busca, com a interpretação extensiva, suprir a lacuna da lei ou utilizar um método de integração da norma, como ocorre com a analogia, mas sim buscar sentido à lei.

Cite-se como exemplo de interpretação extensiva em prejuízo do réu o conceito de “casa” previsto no art. 150, § 4º, do Código Penal, pois este é interpretado extensivamente, como forma de abranger diversos tipos de casa (casa sobre rodas, barracos debaixo da ponte, parte interna de restaurantes e bares, casas de praia etc.), portanto, se o agente invadir uma casa em sentido amplo, decorrente de interpretação extensiva, praticará o crime de violação de domicílio.

AnalogiaForma de integração da lei; Em razão da ausência de previsão em norma para um caso concreto, o intérprete utiliza norma prevista para casos semelhantes. Não se admite em prejuízo do réu Admite-se em benefício do réu.
Interpretação analógicaTrata-se de uma cláusula genérica contida no texto da lei penal que permite uma ampliação da norma para inserir outros casos; Admite-se em prejuízo e em benefício do réu.
Interpretação extensivaOcorre quando o intérprete concede um maior alcance à norma, por estar ter dito menos do que deveria; Há divergência se admite em prejuízo do réu. Sustentamos que sim. Admite-se em benefício do réu.

Feitas essas explicações, é possível afirmar que a inclusão da igreja como causa de aumento de pena para o crime de tráfico de drogas, por não possui expressa previsão no rol do inciso III, do art. 40 da Lei de Drogas, constitui indevida analogia em prejuízo do réu, pois não se trata de interpretação analógica, já que não contém uma cláusula genérica que permita uma ampliação da norma para inserir outros casos, e não se trata de interpretação extensiva, pois o tipo penal foi taxativo em prever todas as hipóteses de sua incidência, já que se fosse a intenção punir mais severamente sempre que houvesse traficância em local com maior aglomeração de pessoas ou em local que mereça maior repressão ou teria utilizado uma cláusula genérica para possibilitar a ampliação ou haveria uma causa de aumento que mencionasse expressamente a sua incidência nessas hipóteses, o que permitiria ao intérprete realizar uma interpretação extensiva.

O Relator Ministro Rogério Schietti Cruz, no HC n. 528851, citou os penalistas Rogério Greco e Cezar Roberto Bitencourt, que abordam com precisão a impossibilidade de ampliação da norma penal para suplantar lacunas penais.

“Em matéria penal, por força do princípio da reserva legal, não é permitido, por semelhança, tipificar fatos que se localizam fora do raio de incidência da norma, elevando-os à categoria de delitos. No que tange às normas incriminadoras, as lacunas, porventura existentes, devem ser consideradas como expressões da vontade negativa da lei. E, por isso, incabível se torna o processo analógica. Nestas hipóteses, portanto, não se promove a integrarão da norma ao caso por ela não abrangido” (GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Geral. 4. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2004, p. 48, destaquei)

Na mesma linha, assinala Cezar Roberto Bitencourt que “O recurso à analogia não é ilimitado, sendo excluído das seguintes hipóteses: a) nas leis penais incriminadoras – como essas leis, de alguma forma, sempre restringem a liberdade do indivíduo, é inadmissível que o juiz acrescente outras limitações além daquelas previstas pelo legislador.” (Tratado de Direito Penal. Parte Geral. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 258)

Renato Brasileiro de Lima2 ensina não ser possível encaixar no art. 40, III, da Lei n. 11.343/06 outras hipóteses, pois o rol é taxativo, em razão da vedação do emprego de analogia in malam partem.

Na medida em que não se admite o emprego de analogia in malam partem no Direito Penal, forçoso é concluir que se trata de rol de natureza taxativa. Por isso, se o local onde o crime de tráfico de drogas não constar do art. 40, inciso III, da Lei nº 11.343/06, não será possível a incidência da referida majorante, ainda que se trate de local de grande aglomeração de pessoas (v.g., praça pública).

Portanto, por ferir o princípio da reserva legal, por não ser admitida a analogia in malam partem, não se deve reconhecer a prática de tráfico de drogas nas dependências ou imediações de igrejas como causa de aumento de pena, sob pena de criação judicial de uma majorante, o que fere a separação de poderes.

É importante discorrer sobre os conceitos de “dependências ou imediações” previsto no inciso III do art. 40 da Lei n. 11.343/06.

Por dependências deve-se entender todo o espaço físico que faça parte de uma estrutura física fixa ou móvel, que no caso, são os estabelecimentos prisionais, de ensino ou hospitalares, de sedes de entidades estudantis, sociais, culturais, recreativas, esportivas, ou beneficentes, de locais de trabalho coletivo, de recintos onde se realizem espetáculos ou diversões de qualquer natureza, de serviços de tratamento de dependentes de drogas ou de reinserção social, de unidades militares ou policiais ou em transportes públicos.

Qualquer local dentro de uma estrutura física qualquer pode ser denominado de dependência, seja o local aberto, como uma praça pública em que se realiza um evento recreativo ou fechado, como um presídio.

Por imediações deve-se entender tudo que está ao redor e cerca um local físico qualquer de forma que seja possível se deslocar a pé, em curto tempo. É tudo aquilo que está próximo, não necessariamente, grudado. Pode estar a alguns quarteirões que estará no contexto de imediações, desde que faça parte do percurso natural, comum das pessoas no dia a dia.

Nesse sentido são as lições de Renato Brasileiro de Lima.

O art. 40, inciso III, deixa claro que a incidência da majorante deve ocorrer não apenas quando a infração tiver sido cometida nas dependências desses locais, mas também quando for praticado em suas imediações. Apesar de não haver conceito legal de imediações, a doutrina sustenta que o termo “não pode ser convertido em medida aritmética rígida, mas deve ser entendido dentro de critério razoável, em função do perigo maior que a lei procura coibir; as imediações, portanto, abrangem a área em que poderia facilmente o traficante atingir o ponto protegido em especial, com alguns passos, em alguns segundos, ou em local de passagem obrigatória ou normal das pessoas que saem do estabelecimento ou a ele se dirigem3. (destaquei)

Destaca-se que da mesma forma que o juiz não pode utilizar o fato da traficância de drogas ocorrer nas dependências de igreja ou em suas imediações como causa de aumento de pena, não pode também reconhecer esse fato para valorar negativamente como circunstância judicial, pois seria uma forma do juiz, por vias transversas, reconhecer uma causa de aumento que o legislador não previu ao estipular as causas de aumento que tenham por finalidade punir com mais rigor os agentes que traficam em locais em que haja uma maior facilidade para comercializar e disseminar a droga.

Na atividade policial, em que pese o fato do agente traficar próximo a igrejas ou em suas dependências, em um primeiro momento, parecer não ser relevante para a fixação da pena, em razão da divergência apresentada, é importante o registro detalhado em ocorrência não só para que a polícia possa mapear na região em que atua a forma de agir dos agentes do tráfico (modus operandi) e, consequentemente, planejar a atuação policial preventiva e repressiva, mas também para que essa circunstância (traficar próximo a igreja ou em suas dependências) possa ser levada ao judiciário pelo Ministério Público que conhecerá essa circunstância em razão do trabalho da polícia, já que ninguém melhor do que o policial que trabalha na rua para conhecer, com detalhes, a rua, os locais próximos ao ponto em que uma pessoa é presa, e as características físicas e geográficas da região da prisão. É importante também que o policial registre se a igreja estava em funcionamento durante a traficância – realização de culto, missa ou outra atividade – e a quantidade aproximada de pessoas que estavam no local da prisão. São detalhes que podem eventualmente repercutir na dosimetria da pena, caso se comprove uma maior gravidade na conduta, que extrapole a natureza do tipo penal, ou então visará reforçar a impossibilidade de se aumentar a pena. Além do mais, tais informações podem ser utilizadas para demonstrar o perigo do caso concreto de forma que justifique ou não a decretação da prisão preventiva.

NOTAS

1NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 18° ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018.

2LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Criminal Especial Comentada. Volume Único. 8. ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2020. 1099 p.

3 Citado por Renato Brasileiro de Lima: GRECO FILHO, Vicente; RASSI, João Daniel. Lei de Drogas Anotada: Lei 11.343/2006. São Paulo: Editora Saraiva, 2007. p. 135