O tema é polêmico e ainda está no campo dos debates de qual será a postura a ser adotada pelo Poder Judiciário e pelas instituições policiais em razão da decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI n. 3807, razão pela qual recomendo a leitura de todo o texto antes de extrair qualquer conclusão.
Fundamentos
• Art. 93, XIV, da Constituição Federal • Arts. 28 e 48 da Lei n. 11.343/06 • Art. 203, § 4º, do Código de Processo Civil • Art. 72 da Lei n. 9.099/95 • Art. 3º da Resolução n. 71/09 do Conselho Nacional de Justiça • Art. 3º do Decreto-Lei n. 911/69 • STF – ADI 3807 • STF – ADI 5647 • STF – Reclamação n. 22470 • Enunciado 34 do FONAJE • Enunciado n. 12 da Edição n. 131 da Jurisprudência em Teses do STJ • Nota Técnica da Associação dos Delegados de Polícia do Brasil – ADEPOL (ADI 3807)
Palavras-chaves: termo circunstanciado de ocorrência; atribuição para lavratura do termo circunstanciado; ratio decidendi; obter dictum; eficácia vinculativa do precedente; teoria da transcendência dos motivos; jurisprudência defensiva; plantão judicial; juízo competente; Polícia Militar; Polícia Civil; autoridade policial; usuário de drogas.
Síntese
a) A Polícia Militar pode continuar lavrando termo circunstanciado de ocorrência na rua, nos estados em que já lavra, mesmo diante da decisão do STF na ADI 3807, sem necessidade de encaminhar o usuário de droga (art. 28 da Lei n. 11.343/06) ao fórum, ao quartel ou à Delegacia de Polícia;
b) Caso a abordagem ao usuário seja realizada pela Polícia Civil, deve primar pela lavratura do termo circunstanciado de ocorrência na rua, no local da abordagem, e na impossibilidade, conduzir o usuário de droga (art. 28 da Lei n. 11.343/06) ao fórum, se durante o expediente, e para a Delegacia de Polícia caso o fórum esteja fechado;
c) Apresentado o usuário de droga ao fórum, seja pela Polícia Militar ou pela Polícia Civil, se houver ato normativo do juiz competente, a Secretaria do Juizado Especial Criminal deverá proceder à lavratura do termo circunstanciado de ocorrência ou tal ato poderá ser lavrado por policial militar, desde que haja convênio ou termo de cooperação entre o Poder Judiciário e a Polícia Militar, uma vez que a finalidade precípua do policial militar que permanece no fórum é a segurança;
d) Fora do horário de expediente, isto é, nos finais de semana, em feriados, no horário noturno ou em qualquer situação que o fórum esteja fechado, não cabe ao Poder Judiciário lavrar o termo circunstanciado de ocorrência (art. 1º, III e VIII, da Resolução n. 71/09 do Conselho Nacional de Justiça);
e) Nos locais em que não houver fórum não há que se falar em condução do usuário de droga ao Poder Judiciário, devendo este ser encaminhado diretamente à Delegacia de Polícia, caso não seja possível a lavratura do termo circunstanciado de ocorrência na rua;
f) O encaminhamento da droga apreendida para a perícia poderá ocorrer pelo próprio Poder Judiciário ou pela instituição policial que tiver efetuado a captura do usuário de drogas, a depender do que for acertado entre as instituições, o que deve ocorrer mediante convênio ou termo de cooperação, dentro da realidade de cada local, uma vez que há fóruns e quartéis ou delegacias que não possuem estrutura física adequada e compatível para a guarda de drogas apreendidas em decorrência do art. 28 da Lei n. 11.343/06;
g) O juiz não deve realizar audiência preliminar ou aplicar qualquer medida em desfavor do usuário de droga sem que haja o laudo de constatação da substância entorpecente.
O Supremo Tribunal Federal decidiu na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3807, de relatoria da Ministra Cármen Lúcia, por 10 votos a 01, vencido o Ministro Marco Aurélio, dois pontos muito importantes:
1º) O termo circunstanciado de ocorrência, em que pese substituir o inquérito policial como principal peça informativa dos processos penais que tramitam nos juizados especiais, não é procedimento investigativo, mas sim um boletim de ocorrência mais detalhado.
2º) O autor do crime previsto no art. 28 da Lei n. 11.343/06 (porte de droga para consumo pessoal) deve ser encaminhado ao juízo competente que será o responsável pela confecção do termo circunstanciado de ocorrência e requisição dos exames e perícias necessários. Caso não haja disponibilidade do juízo competente, deve o autor ser encaminhado à autoridade policial, que então adotará as providências que seriam adotadas pelo juízo competente.
No voto da Ministra Cármen Lúcia assentou que:
Assim, pelo procedimento previsto nos §§ 2º a 4º do art. 48 da Lei n. 11.343/2006 e na Lei n. 9.099/1995, O AUTOR DO CRIME PREVISTO NO ART. 28 DAQUELE DIPLOMA LEGAL DEVE PREFERENCIALMENTE SER ENCAMINHADO DIRETAMENTE AO JUÍZO COMPETENTE, SE DISPONÍVEL, para que ali ser lavrado termo circunstanciado e requisitados os exames e perícias que se mostrem necessários.
Com a determinação de encaminhamento imediato do usuário de drogas ao juízo competente, afasta-se qualquer possibilidade de que o usuário de drogas seja preso em flagrante ou detido indevidamente pela autoridade policial.
Considerando-se que O TERMO CIRCUNSTANCIADO NÃO É PROCEDIMENTO INVESTIGATIVO, mas peça informativa com descrição detalhada do fato e as declarações do condutor do flagrante e do autor do fato, deve-se reconhecer que A POSSIBILIDADE DE SUA LAVRATURA PELO ÓRGÃO JUDICIÁRIO NÃO OFENDE OS §§ 1º E 4º DO ART. 144 DA CONSTITUIÇÃO,NEM INTERFERE NA IMPARCIALIDADE DO JULGADOR.
O Supremo Tribunal Federal, ao julgar improcedente a ADI 3807, decidiu pela constitucionalidade do art. 48, §§ 2º e 3º, da Lei n. 11.343/06.
Art. 48. O procedimento relativo aos processos por crimes definidos neste Título rege-se pelo disposto neste Capítulo, aplicando-se, subsidiariamente, as disposições do Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal.
§ 2º Tratando-se da conduta prevista no art. 28 desta Lei, não se imporá prisão em flagrante, devendo o autor do fato ser imediatamente encaminhado ao juízo competente ou, na falta deste, assumir o compromisso de a ele comparecer, lavrando-se termo circunstanciado e providenciando-se as requisições dos exames e perícias necessários.
§ 3º Se ausente a autoridade judicial, as providências previstas no § 2º deste artigo serão tomadas de imediato pela autoridade policial, no local em que se encontrar, vedada a detenção do agente.
É importante destacar que o STF decidiu que somente na impossibilidade do agente ser encaminhado para o juízo competente é que deve ser encaminhado à autoridade policial. Ou seja, há uma ordem de prioridade, uma vez que o objetivo da lei é afastar o usuário de drogas do ambiente policial e evitar que seja detido indevidamente pela autoridade policial.
As normas dos §§ 2º e 3º do art. 48 da Lei n. 11.343/2006 foram editadas em benefício do usuário de drogas, visando afastá-lo do ambiente policial quando possível e evitar que seja indevidamente detido pela autoridade policial (Trecho do voto da Ministra Cármen Lúcia na ADI 3807).
Assim, havendo disponibilidade do juízo competente, o autor do crime previsto no art. 28 da Lei n. 11.343/2006 deve ser até ele encaminhado imediatamente, para lavratura do termo circunstanciado e requisição dos exames e perícias necessários.
Se não houver disponibilidade do juízo competente, deve o autor ser encaminhado à autoridade policial, que então adotará as providências previstas no § 2º do art. 48 da Lei n. 11.343/2006.
Diante desse cenário deve-se analisar em que consiste a indisponibilidade do juízo competente em receber o usuário de droga e a possibilidade da Polícia Militar ou Civil em proceder à lavratura do termo circunstanciado na rua, sem necessidade de encaminhar o usuário de drogas para o fórum.
Sem entrar em discussões sobre o acerto ou erro da decisão do STF, o importante é que o tema foi pacificado pelo plenário em Ação Direta de Inconstitucionalidade, o que permite afirmar que vincula todo o Poder Judiciário, o Poder Público e todas as autoridades, por mais que discordem, pelo menos no caso decidido pelo STF – possibilidade do juiz lavrar TCO em se tratando do uso de drogas, na forma do art. 48, §§ 2º e 3º, da Lei 11.343/06 -, e isso surte um importante e nítido efeito para todos os demais casos que forem levados ao Supremo Tribunal Federal ou ao Poder Judiciário, em razão do efeito persuasivo das decisões do STF, sobretudo em controle abstrato de constitucionalidade e em razão da teoria dos motivos determinantes.
A decisão judicial possui fundamentos que são divididos em ratio decidendi e obter dictum.
Ratio decidendi é o argumento utilizado na decisão que é relevante, essencial à decisão, o qual, se retirado, torna a decisão nula, por ausência de fundamentação, uma vez que a decisão estará desprovida de fundamentos pertinentes e relacionados estritamente ao caso. A ratio decidendirefere-se aos motivos determinantes ou razões de decidir.
Obter dictumé o fundamento que não influencia na decisão e não possui, necessariamente, relação com o caso em discussão. É o fundamento de passagem, como decorrência da retórica jurídica. Trata-se de uma discussão jurídica desnecessária ou irrelevante para o julgamento do caso.
A ratio decidendi não é fenômeno alheio ao direito brasileiro, pelo contrário, sendo considerada pelos tribunais superiores com relativa frequência, ora com a utilização da expressão “motivos determinantes” ora com a utilização da expressão “razões de decidir””. Mas não há dúvida de que o fenômeno terá que ser repensado.
Conforme ensina a melhor doutrina, a ratio decidendi (chamada de holding no direito americano) é o núcleo do precedente, seus fundamentos determinantes, sendo exatamente o que vincula. Distingue-se da fundamentação obiter dicta, que são prescindíveis ao resultado do julgamento, ou seja, fundamentos que, mesmo se fossem em sentido invertido, não alterariam o resultado do julgamento”. São argumentos jurídicos ou considerações feitas apenas de passagem, de forma paralela e prescindível para o julgamento, como ocorre com manifestações alheias ao objeto do julgamento, apenas hipoteticamente consideradas”. Justamente por não serem essenciais ao resultado do precedente os fundamentos obiter dicta não vinculam”.
Afirmar-se que a ratio decidendi do precedente vincula, o que não ocorre com a fundamentação obiter dicta, é indiscutível e a parte fácil de se compreender a eficácia vinculante dos precedentes. O mais problemático é a distinção entre elas no caso concreto, já que o conceito de ratio decidendi não é tranquilo, mesmo em países de muito mais tradição em seu exame do que o Brasil, havendo estudo que aponta o incrível número de 74 formas de encontrar a ratio decidendi.
Conforme considerável corrente doutrinária, o ideal é a adoção do método eclético sugerido por Rupert Cross. Dessa forma, combinam-se a técnica da inversão defendida por Wambaugh, que defende a identificação da ratio decidendi como a razão jurídica que, se invertida, resultaria em julgamento diferente e a técnica defendida por Goodhart, pela qual a identificação da ratio decidendi parte dos fatos materiais – categorias de fatos relevantes para o direito – e da decisão jurídica neles embasada – o julgamento final. (destaquei)
Fredie Didier Jr. e Leonardo Carneiro da Cunha2 discorrem didaticamente a respeito da eficácia vinculante das decisões do Supremo Tribunal Federal nos casos de controle concentrado de constitucionalidade.
A conjugação do art. 927, I, com o art. 988, ambos do CPC, reforça a eficácia formalmente vinculante dos precedentes do STF em casos de controle concentrado de constitucionalidade – e não apenas dos comandos dessas decisões.
Um acórdão de ADIn, ADC e ADPF contém duas partes diversas, assim como qualquer decisão judicial: a) a parte dispositiva, que soluciona a questão e que diz respeito ao ato normativo cuja (in)constitucionalidade foi proclamada; b) a fundamentação, que gera o precedente.
Quanto à parte dispositiva, há coisa julgada, insuscetível, no caso de ADIn, ADC e ADPF, de ação rescisória. O desrespeito a essa coisa julgada pode ser causa de pedir da reclamação.
Já em relação à fundamentação, há eficácia vinculativa do precedente. No exemplo citado, o STF não poderá rediscutir a constitucionalidade da lei estadual, em razão do efeito negativo da coisa julgada, mas o STF deverá seguir este precedente em casos futuros semelhantes; poderá, contudo, proceder ao overruling, superando o entendimento anterior. Se isso acontecer, não estará violando a coisa julgada, mas apenas alterando o seu entendimento jurisprudencial.
A teoria da transcendência dos motivos determinantes diz que os fundamentos essenciais, principais, decisivos (ratio decidendi) nos julgamentos do Supremo Tribunal Federal também possuem efeito vinculante. Trata-se do efeito irradiante ou transbordante dos motivos determinantes.
O Supremo Tribunal Federal não tem aceito referida teoria, conforme ensina Márcio Cavalcante3.
O STF não admite a “teoria da transcendência dos motivos determinantes”.
Segundo a teoria restritiva, adotada pelo STF, somente o dispositivo da decisão produz efeito vinculante. Os motivos invocados na decisão (fundamentação) não são vinculantes.
A reclamação no STF é uma ação na qual se alega que determinada decisão ou ato:
• usurpou competência do STF; ou
• desrespeitou decisão proferida pelo STF.
Não cabe reclamação sob o argumento de que a decisão impugnada violou os motivos (fundamentos) expostos no acórdão do STF, ainda que este tenha caráter vinculante. Isso porque apenas o dispositivo do acórdão é que é vinculante.
Assim, diz-se que a jurisprudência do STF é firme quanto ao não cabimento de reclamação fundada na transcendência dos motivos determinantes do acórdão com efeito vinculante.
STF. Plenário. Rcl 8168/SC, rel. orig. Min. Ellen Gracie, red. p/ o acórdão Min. Edson Fachin, julgado em 19/11/2015 (Info 808).
Trata-se de uma verdadeira jurisprudência defensiva, na medida em que admitir a teoria da transcendência dos motivos determinantes implicaria em um aumento expressivo no número de reclamações perante a Suprema Corte.
Na Reclamação n. 22470, o Supremo Tribunal Federal afirmou que “a exegese jurisprudencial conferida ao art. 102, I, “l”, da Magna Carta rechaça o cabimento de reclamação fundada na tese da transcendência dos motivos determinantes.”4
Dessa forma, não cabe reclamação para o Supremo Tribunal Federal na hipótese em que o juiz, o tribunal ou o Poder Público entender que o termo circunstanciado de ocorrência possui natureza investigativa, em que pese contrariar claramente a decisão do STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3807. O instrumento utilizado para impugnar este entendimento deve ser a ação judicial quando a decisão partir do Poder Público ou recursos quando a decisão decorrer do próprio Poder Judiciário.
Inegavelmente, contudo, temos de reconhecer que a perspectiva de transcendência dos motivos determinantes deve ser revista à luz do CPC/2015, destacando-se os arts. 927 e 988.Já expusemos a nossa crítica à vinculação ampliada pela lei processual, lembrando que a Constituição se limita a estabelecer o efeito vinculante nas ações de controle concentrado e em razão de edição de súmula vinculante.
Nesse sentido, como afirmam Barroso e Mello, “se o CPC/2015 acolheu tal concepção de tese jurídica vinculante, inclusive em sede de controle concentrado da constitucionalidade, isso significa que, com a sua vigência, o entendimento do STF que rejeitava a eficácia transcendente da fundamentação precisará ser revisitado. É que a eficácia transcendente significa justamente atribuir efeitos vinculantes à ratio decidendi das decisões proferidas em ação direta. Mesmo que este entendimento não fosse acolhido pelo STF no passado, o fato é que, ao que tudo indica, o novo Código o adotou”.
Pode-se concluir que a ratio decidendi das decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade possui eficácia vinculante, devendo ser obedecida por todo o Poder Judiciário, em todas as instâncias (art. 927, I, do CPC), contudo não cabe reclamação, como regra, das decisões judiciais que descumprem a ratio decidendi.
Diante da decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI n. 3807, por 10 votos a 01, no sentido de que o TCO não é procedimento investigativo, certamente, por coerência e integridade do direito, a ADI n. 5647, que questiona a constitucionalidade da autorização concedida pela Lei n. 22.257/16 de Minas Gerais para a Polícia Militar lavrar TCO, deve ser julgada improcedente e, consequentemente, autorizar a lavratura pela Polícia Militar, pois o principal fundamento que visa impossibilitar a Polícia Militar de lavrar TCO consiste na natureza investigativa do termo circunstanciado de ocorrência.
Em razão da decisão do STF na ADI 38071, a Associação dos Delegados de Polícia do Brasil – ADEPOL – emitiu nota técnica e recomendações para a padronização de procedimentos a serem adotados nas ocorrências envolvendo o crime previsto no art. 28 da Lei n. 11.343/06 (porte de drogas para o consumo pessoal).6
Conforme registrado em nota técnica publicada pela ADEPOL DO BRASIL e pela FENDEPOL, o precedente do STF na ADI 3807 fixou três teses:
(a) termo circunstanciado não é procedimento investigativo, mas peça informativa com descrição detalhada do fato e as declarações do condutor do flagrante e do autor do fato;
(b) termo circunstanciado não é função privativa de polícia judiciária, de modo que não existe risco à imparcialidade do julgador; e
(c) a autoridade policial pode lavrar Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO) e requisitar exames e perícias em caso de flagrante de uso ou posse de entorpecentes para consumo próprio, desde que ausente a autoridade judicial.
O julgado do STF, de caráter vinculante, é clarto e categórico: apenas de forma excepcional, no caso deausência da Autoridade Judicial, é que o usuário de drogas será conduzido até a Delegacia de Policial. Esse procedimento, segundo a ministra, afasta a possibilidade de que o usuário de drogas seja preso em flagrante ou detido indevidamente pela autoridade policial. Nessa linha, a preferência é o encaminhamento do usuário de drogas para a Autoridade Judicial, cabendo a essa a adoção dos procedimentos, até mesmo quanto à lavratura do termo circunstanciado. O objetivo é justamente retirar da esfera policial a coerção ao usuário de drogas.
Observe-se que o dispositivo legal confere ao Juiz de Direito o dever de lavratura do TCO nas condutas previstas no art. 28 da citada lei, inclusive de forma prioritária em relação a qualquer outro órgão de segurança pública. Nesses termos, a seguinte sistemática deve ser adotada a partir desse novo precedente da Suprema Corte:
1. Todos os casos envolvendo crime tipificado no art. 28 da Lei n° 11.343/06 devem ser encaminhados diretamente ao plantão do Poder Judiciário pelas Polícias Civil e Militar, em especial porque, nos termos do que foi decidido, a finalidade é retirar o cidadão do ambiente da Delegacia de Polícia.
2. Mesmo durante os fins de semana, feriados ou período noturno, o procedimento é o mencionado no tópico 1, inexistindo qualquer necessidade de acionar a equipe da Polícia Civil que esteja de plantão.
3. Na hipótese de o Magistrado compreender que não se tem o crime de uso de drogas, mas de qualquer outro crime da Lei n° 11.343/16, o caso será encaminhado ao Delegado de Polícia plantonista. Há de se ressaltar que a decisão tomada pelo magistrado não vincula a lavratura do Auto de Prisão em Flagrante Delito pelo Delegado de Polícia por ser esse dotado de autonomia ou independência funcional, podendo decidir, ao final, por lavrar ele mesmo o TCO com fundamento no art. 28 da Lei n° 11.343/16.
4.Não se aplicam as regras acima mencionadas no caso de ausência da Autoridade Judicial, assim configurada quando na comarca não houver vara criminal ou plantão judiciário, mesmo que em trabalho remoto. Como se extrai da decisão do próprio Supremo Tribunal Federal e do voto da Ministra Cármen Lúcia, a existência do plantão judicial impede a lavratura do TCO pela autoridade policial.
5.Caracterizada a ausência da autoridade judicial na localidade, inexiste necessidade de prévia autorização do Juiz para o Delegado de Polícia lavrar o TCO, uma vez que tal atribuição decorre de previsão legal e não de determinação judicial.
6.Nos casos de autoridade judicial presente, não se admite, legalmente e constitucionalmente, a autorização pelo magistrado para que o Delegado de Polícia lavre ele próprio o TCO, uma vez que incidiria em ato contrário à decisão vinculante do Supremo Tribunal Federal, passível de responsabilização disciplinar, sem contar a impugnação de tal ato por advogados e membros do Ministério Público com a consequente ilegalidade e incidência por crime na lei de abuso de autoridade. Tal premissa é “jeitinho”, ‘gambiarra jurídica” frente a uma decisão estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal.
Nas palavras do Supremo Tribunal Federal, vale a pena repetir, esse procedimento afasta a possibilidade de que o usuário de drogas seja encaminhado à Delegacia de Polícia, afastando-o do ambiente policial, que é a proposta central do precedente e que deve moldar o sistema criminal, em especial porque, nesta data, foi publicada a ata de julgamento, conferindo efeitos erga omnes e vinculante à decisão, que é de caráter obrigatório para todos os policiais, Delegados de Polícia e magistrados.
Por fim, ressaltamos que não há abuso de autoridade ou prevaricação a temer com a adoção de tais casos. Ao contrário: seguir o contrário do julgado do STF é que pode vir a gerar responsabilidade criminal na forma da Lei 13869/2019.
A Diretoria (destaques no original)
Antes de concluir se houve determinação do Supremo Tribunal Federal para que os juízes atuem nos casos de porte de drogas para uso pessoal em regime de plantão (fora do horário de expediente) deve-se analisar a ratio decidendi e a obiter dicta da fundamentação do voto da Ministra Cármen Lúcia, que foi o voto vencedor, mediante a utilização da “técnica da inversão defendida por Wambaugh, que defende a identificação da ratio decidendi como a razão jurídica que, se invertida, resultaria em julgamento diferente”7
A menção ao plantão judiciário no voto da Ministra Cármen Lúcia é feita ao citar o saudoso Professor Luiz Flávio Gomes, ao justificar a apresentação do usuário de drogas diretamente à autoridade judicial, por se tratar de uma questão de saúde pessoal e de saúde pública.
“[10] Envio do agente ao juízo competente
Normalmente, o agente que se encontra em posse de droga para consumo pessoal acaba sendo capturado por agente militar ou civil (ou federal). Dissemos normalmente porque, na verdade, qualquer pessoa (CPP, art. 301) está autorizada a proceder a essa captura (em flagrante).
Concretizada a captura do agente (e feita a apreensão da droga ou da planta tóxica) cabe ao condutor (pessoa que efetuou a captura) levar o autor do fato (imediatamente) ao juízo competente. Imediatamente significa sem demora, sem delongas, prontamente. Note-se que a lei autoriza essa condução coercitiva, por conseguinte, não há que se falar em delito contra a liberdade individual (de locomoção) do agente capturado.
A nova Lei de Drogas priorizou o “juízo competente”, em detrimento da autoridade policial. Ou seja: do usuário de droga não deve se ocupar a polícia (em regra). Esse assunto configura uma questão de saúde pessoal e pública, logo, não é um fato do qual deve cuidar a autoridade policial.
A lógica da Lei nova pressupõe Juizados (ou juízes) de plantão, vinte e quatro horas. Isso seria o ideal. Sabemos, entretanto, que na prática nem sempre haverá juiz (ou Juizado) de plantão. Conclusão: na prática, o agente flagrado com drogas para consumo pessoal normalmente será apresentado para a autoridade policial, que vai lavrar o termo circunstanciado e liberar o agente capturado.
[11] Falta ou ausência de autoridade judicial
Na falta (ou ausência) de autoridade judicial (ou seja: não havendo juiz ou juizado de plantão), todas as providências que a ela compete serão tomadas pela autoridade policial (ver comentários ao § 3.º logo abaixo). (…)
[13] Exames e perícias necessários
Uma vez lavrado o termo circunstanciado (pela autoridade judicial ou autoridade policial) devem ser requisitados os exames e perícias necessários. (…)
[14] Falta ou ausência da autoridade judicial
Se não existe autoridade judicial de plantão, uma vez capturado o agente do fato (com drogas ou planta tóxica), será ele conduzido à presença da autoridade policial. Como já enfatizamos, quer a lei (como meta prioritária) que o usuário seja apresentado ao juízo competente. Não sendo possível, então o agente do fato será apresentado à autoridade policial, que tomará as providências indicadas no § 2.º. (…) ” (GOMES, Luiz Flávio (Coord). Lei de Drogas comentada . 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014). (destaquei)
Nota-se que a menção ao plantão judicial ocorreu de forma desnecessária e a supressão dessa parte da decisão em nada alteraria o resultado do julgamento, pois a citação visou demonstrar a finalidade de se levar o usuário de droga à autoridade judicial, como dito pela própria Ministra Cármen Lúcia ao citar Luiz Flávio Gomes:
Essa interpretação é defendida por parte da doutrina. Para Luiz Flávio Gomes, o legislador optou pela apresentação do usuário de drogas diretamente à autoridade judicial por se tratar de questão de saúde pessoal e pública, da qual não deveria cuidar a autoridade policial:
Não há na decisão do STF nenhuma menção no voto, a não ser em razão da mencionada citação, da obrigatoriedade do Poder Judiciário atender os casos de usuário de drogas durante o plantão. Trata-se, portanto, de um fundamento obiter dictum, pois dito de passagem, sem maior relevância para o julgamento, razão pela qual não se deve interpretar que o STF determinou que o Poder Judiciário atenda as ocorrências dos usuários de droga durante o plantão.
Além do mais, cabe à lei estipular quais são as matérias de plantão e, consequentemente, ao Poder Judiciário disciplinar e definir quais são as matérias que serão atendidas em regime de plantão.
O art. 48, §§ 2º e 3º8, da Lei n. 11.343/06 trata da obrigatoriedade de conduzir o autor do fato à presença do juízo competente e utiliza as expressões “na falta deste” e “ausente a autoridade judicial”, sem mencionar a obrigatoriedade do usuário de droga ser encaminhado ao Poder Judiciário durante o plantão, pois o simples fato de dizer “na falta deste” ou “ausente a autoridade judicial” significa que a lei não determinada a condução do usuário de droga ao juízo competente em regime de plantão, na medida em que sempre haverá juízo de plantão em todas as comarcas do país, ainda que de forma remota. Caso fosse a vontade do legislador apresentar o usuário de drogas ao juízo competente, em qualquer situação, teria consignado que esta deveria ocorrer em plantão judiciário.
Nesse sentido, a Lei n. 13.043/14 alterou o Decreto-Lei n. 911/69 e passou a prever que o credor ou o proprietário fiduciário pode requerer contra o devedor ou terceiro a busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente, podendo a medida liminar ser apreciada em plantão judiciário.
De mais a mais, a Resolução n. 71/09 do Conselho Nacional de Justiça, recentemente, alterada pela Resolução n. 326, de 26 de junho de 2020, mesma data em que a votação da ADI 3807 foi concluída, dispõe sobre o regime de plantão judiciário em primeiro e segundo graus de jurisdição. Dentre as matérias elencadas na referida resolução que devem ser analisadas em regime de plantão, encontram-se:
Art. 1º O plantão judiciário, em primeiro e segundo graus de jurisdição, conforme a previsão regimental dos respectivos Tribunais ou juízos, destina-se exclusivamente ao exame das seguintes matérias: (Redação dada pela Resolução nº 326, de 26.6.2020)
O art. 48, § 2º, da Lei n. 11.343/06 dispõe que “Tratando-se da conduta prevista no art. 28 desta Lei, NÃO SE IMPORÁ PRISÃO EM FLAGRANTE, devendo o autor do fato ser imediatamente encaminhado ao juízo competente ou, na falta deste, assumir o compromisso de a ele comparecer, lavrando-se termo circunstanciado e providenciando-se as requisições dos exames e perícias necessários.”
A prisão subdivide-se em quatro etapas: a) captura; b) condução; c) prisão (lavratura do Auto de Prisão em Flagrante pelo Delegado) e d) encarceramento. Em se tratando do porte de drogas para consumo pessoal ocorre somente a captura e a condução, e não a prisão, em nenhuma hipótese, nos termos do art. 48, § 2º, da Lei n. 11.343/06, ainda que a pessoa se recuse a assinar o termo circunstanciado e assumir o compromisso de comparecer perante o Juizado Especial Criminal, pois não se aplica neste caso a lógica do art. 69, parágrafo único, da Lei n. 9.099/959, que permite a prisão em flagrante quando o autor do fato se recusar a assumir o compromisso de comparecer, posteriormente, à justiça, pois não existe previsão de pena privativa de liberdade para o art. 28 da Lei n. 11.343/06 (porte de drogas para consumo pessoal).
Portanto, em qualquer situação, ao usuário de droga (art. 28 da Lei de Drogas) nunca será imposta prisão pelo fato de ter sido flagrado portando drogas para uso pessoal.
Na prática em diversos estados, como o Estado de Goiás, a Polícia Militar lavra o TCO em razão do porte de drogas para uso pessoal, o que caracteriza somente a captura do autor do fato, sequer há necessidade de condução, sendo este liberado no local dos fatos, o que atende à finalidade da lei, conforme mencionado pelo Supremo Tribunal Federal, de não conduzir o usuário de droga para um ambiente policial.
Dessa forma, a análise conjunta do art. 48, § 2º, da Lei n. 11.343/06 e do art. 1º, III e VIII, da Resolução n. 71 do CNJ permite afirmar que os usuários de droga que praticarem o crime previsto no art. 28 da Lei de Drogas não devem ser conduzidos ao Poder Judiciário quando estiver em regime de plantão, pois à conduta do art. 28 da Lei 11.343/06 não se imporá a prisão em flagrante em nenhuma situação e o plantão judicial atende exclusivamente as comunicações de prisões e as medidas urgentes de natureza criminal do Juizado Especial limitam-se às comunicações de prisões ou outras medidas urgentes criminais, que não abrangem o encaminhamento do usuário de droga, conclusão esta que é possível se extrair da parte final da redação do inciso VIII do art. 1º da Resolução n. 71 do CNJ ao mencionar “limitadas às hipóteses acima enumeradas”.
Art. 1º O plantão judiciário, em primeiro e segundo graus de jurisdição, conforme a previsão regimental dos respectivos Tribunais ou juízos, destina-se exclusivamente ao exame das seguintes matérias: (Redação dada pela Resolução nº 326, de 26.6.2020)
I – pedidos de habeas corpus e mandados de segurança em que figurar como coator autoridade submetida à competência jurisdicional do magistrado plantonista; (Redação dada pela Resolução nº 326, de 26.6.2020)
V – em caso de justificada urgência, de representação da autoridade policial ou do Ministério Público visando à decretação de prisão preventiva ou temporária; (Redação dada pela Resolução nº 326, de 26.6.2020)
VII – medida cautelar, de natureza cível ou criminal, que não possa ser realizada no horário normal de expediente ou de caso em que da demora possa resultar risco de grave prejuízo ou de difícil reparação; (Redação dada pela Resolução nº 326, de 26.6.2020)
A título argumentativo não há comunicação ao juiz plantonista quando o Delegado de Polícia inicia a lavratura do Auto de Prisão em Flagrante, mas constata no decorrer da lavratura que não é o caso de flagrante, por entender, por exemplo, que atuou em legítima defesa (art. 304, § 1º, do CPP), pois o agente não terá sido preso, razão pela qual dispensa a comunicação ao Poder Judiciário em regime de plantão.
A ratio decidendi da ADI 3807 consiste no fundamento de que o termo circunstanciado não é procedimento investigativo, que a sua lavratura não é atribuição exclusiva da polícia judiciária e que não há ofensa à imparcialidade do julgador em proceder à lavratura do termo circunstanciado de ocorrência, pois são fundamentos imprescindíveis para o mérito da questão que foi julgada improcedente. Para chegar a essa conclusão basta inverter a lógica dos fundamentos e sustentar que o termo circunstanciado é procedimento investigativo, a lavratura é atribuição exclusiva da polícia judiciária e que eventual lavratura pelo juiz ofenderia a parcialidade. O resultado seria exatamente o contrário, a ação seria julgado procedente para reconhecer a inconstitucionalidade do dispositivo impugnado.
Considerando-se que o termo circunstanciado não é procedimento investigativo, mas peça informativa com descrição detalhada do fato e as declarações do condutor do flagrante e do autor do fato, deve-se reconhecer que a possibilidade de sua lavratura pelo órgão judiciário não ofende os §§ 1º e 4º do art. 144 da Constituição, nem interfere na imparcialidade do julgador.
Dessa forma, é perfeitamente possível afirmar que a Polícia Militar pode proceder à lavratura do Termo Circunstanciado de Ocorrência, já que não se trata de um procedimento investigativo e não é atribuição exclusiva da polícia judiciária.
O voto da Ministra Cármen Lúcia menciona Ada Pellerini Grinover, nos seguintes termos:
“Pode também acontecer que, ocorrido o fato, os interessados, ao invés de dirigirem-se à autoridade policial, busquem diretamente o atendimento do Juizado. Por isso mesmo, seria conveniente que a lei local previsse a presença de uma autoridade policial junto aos Juizados, para que o termo circunstanciado fosse ali lavrado. E nada impede, demais, que a lavratura do termo e a tomada das providências cabíveis sejam realizadas pela própria secretaria do Juizado.
Exatamente nesse sentido, a Comissão Nacional da Escola Superior da Magistratura, encarregada de formular as primeiras conclusões sobre a interpretação da lei (v. n. 13 das considerações introdutórias à Seção), apresentou a seguinte:
Nona Conclusão: “A expressão autoridade policial referida no art. 69 compreende todas as autoridades reconhecidas por lei, podendo a Secretaria do Juizado proceder à lavratura do termo de ocorrência e tomar as providências devidas no referido artigo” ” (GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Juizados especiais criminais: comentários à Lei 9.099, de 26.09.1995 . 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 118). (destaquei)
Nota-se que para atingir a finalidade da lei, no sentido de não conduzir a pessoa que porta droga para consumo pessoal (art. 28 da Lei n. 11.343/06) para a Delegacia de Polícia ou para qualquer ambiente policial, seria suficiente haver a presença de um policial no fórum para registrar o termo circunstanciado de ocorrência.
Ao se evitar a condução de um usuário de droga para o ambiente policial a lei tem por fim prevenir o contato do usuário com presos e criminosos, já que o tratamento dado ao usuário, nos termos da Lei n. 11.343/06, deve ser o de uma pessoa que necessita de tratamento médico. Usar droga não é crime.
A Lei de Drogas não pune o vício – visa tratar o usuário -, não pune a pessoa que “usa drogas” – não há o verbo usar ou consumir no art. 28 -, pune somente a pessoa que a porta com o fim de consumi-la (art. 28) ou de comercializá-la ou passá-la a terceiro ou de ficar com a droga para si mesmo, sem, contudo, possuir o intuito de usá-la (art. 33). Pelo fato do usuário de droga movimentar o tráfico de drogas, quando a adquire, guarda, tem em depósito, transporta ou a traz consigo para consumo pessoal, coloca a saúde pública em perigo, razão pela qual tal conduta é considerada criminosa e não o vício, pois a partir do momento em que o usuário de droga a utiliza, causa lesão a si mesmo, e o direito não pune a autolesão (princípio da lesividade).
O art. 48, § 3º, da Lei n. 11.343/06 prescreve que a ausência da autoridade judicial implica na lavratura imediata do termo circunstanciado de ocorrência pela autoridade policial, no local em que se encontrar, vedada a detenção do agente.
Art. 48. O procedimento relativo aos processos por crimes definidos neste Título rege-se pelo disposto neste Capítulo, aplicando-se, subsidiariamente, as disposições do Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal.
§ 3º Se ausente a autoridade judicial, as providências previstas no § 2º deste artigo serão tomadas de IMEDIATO pela autoridade policial, no local em que se encontrar, VEDADA A DETENÇÃO DO AGENTE.
Quis a Lei de Drogas, portanto, que o autor do crime de consumo pessoal não fosse levado à delegacia de polícia para o registro da ocorrência, reservando o ambiente policial aos narcotraficantes. Por isso, não sendo possível a lavratura do termo pela secretaria do juízo, a autoridade policial o fará, no local em que estiver o autor do fato – na rua, por exemplo –, sendo vedada a detenção do autor do fato.
Ao vedar a detenção do agente visa a sua liberação no menor tempo possível, após tomadas as providências necessárias para a lavratura do termo circunstanciado de ocorrência, o que não impede a captura e condução do usuário de drogas ao fórum ou à Delegacia de Polícia, se necessário.
De qualquer forma, a solução mais razoável, prudente e que atende aos objetivos da lei consiste na lavratura do termo circunstanciado de ocorrência pela instituição policial que abordar o usuário na rua, o que é extremamente comum de ocorrer em razão das abordagens realizadas pela Polícia Militar.11
Isso porque o contato do usuário com a polícia será inevitável e natural, pois cabe ao policial abordá-lo e conduzi-lo ao fórum ou à Delegacia de Polícia, e ao lavrar o termo circunstanciado de ocorrência na rua, imediatamente, o policial somente terá realizada a primeira fase da prisão – a captura –, tomado as providências para lavrar o termo circunstanciado de ocorrência de imediato, e liberado o agente no menor tempo possível, atendido ao disposto no art. 48, § 3º, da Lei 11.343/06 que exige a lavratura do termo circunstanciado de imediato pela autoridade policial, no local em que se encontrar, e veda a detenção do agente.
Tal providência não desobedece ao disposto no art. 48, § 2º, da Lei de Drogas, que exige o encaminhamento do usuário ao juízo competente, pois como dito por Ada Pellerini Grinover e citado pela Ministra Cármen Lúcia, “seria conveniente que a lei local previsse a presença de uma autoridade policial junto aos Juizados, para que o termo circunstanciado fosse ali lavrado.” Ao contrário, ao lavrar o TCO na rua, no local da abordagem, dará um maior cumprimento à finalidade da lei, já que sequer será necessário conduzir o usuário para qualquer local, liberando-o imediatamente.
Portanto, a condução à presença do juízo competente (leia-se: fórum) pode ser substituída por um convênio ou outro instrumento jurídico adequado que permita a lavratura do TCO pelos policiais na rua, sem necessidade de encaminhamento do usuário ao fórum. Nota-se que o Supremo Tribunal Federal citou Ada Pellerini Grinover que menciona a possibilidade do policial trabalhar no fórum e lavrar os termos circunstanciados decorrentes do art. 28 da Lei de Drogas e o fato do policial lavrar o termo circunstanciado de ocorrência na rua somente reforça o cumprimento da lei e atende à sua finalidade, conforme explanado.
Atualmente, no Brasil, em pelo menos 12 (doze) estados, a Polícia Militar lavra o termo circunstanciado de ocorrência na rua.12
Destaca-se que em fóruns maiores não é incomum que haja policiais militares responsáveis pela segurança, sendo possível verificar junto ao Comando da Instituição, caso haja a condução de usuários para o fórum, a possibilidade de autorizar a lavratura do termo circunstanciado de ocorrência por estes policiais militares.
Na prática policial, em muitas circunstâncias, não será possível lavrar o termo circunstanciado de ocorrência na rua, no local em que o agente foi flagrado com drogas para uso pessoal, razão pela qual deverá ser conduzido para um local na rua seguro para a lavratura ou para o fórum ou na impossibilidade para a Delegacia de Polícia.
Tome como exemplo o usuário de droga que é abordado pela polícia em um “ponto de tráfico” logo após comprar a droga. O local é perigoso e inviabiliza a lavratura do TCO naquele lugar, momento e circunstâncias, o que justifica a condução do usuário para um local seguro nas proximidades, sendo possível que se desloque com o indivíduo para o fórum para utilizar a estrutura física e lavrar o termo circunstanciado e, na impossibilidade, para a Delegacia de Polícia.
É comum que as instituições policiais militares proíbam a condução de usuários de droga para quartéis para a lavratura do termo circunstanciado de ocorrência, devendo este ser feito na rua. Ocorre que na impossibilidade fundamentada de se lavrar o TCO na rua, não há impedimento legal para que este seja lavrado em um quartel, pois se a PM possuir atribuição para tal, desnecessário se torna conduzir o usuário para a Delegacia de Polícia, até porque no quartel não haverá contatos com criminosos e outros presos, pois estes são conduzidos para a Delegacia de Polícia, o que atende à finalidade da lei de deixar de levar o usuário de drogas para um ambiente policial, evitando, assim, o contato com presos e criminosos.
Imaginar que levar o usuário ao quartel, quando necessário para lavrar o TCO, significa que o indivíduo sofrerá maus-tratos ou tortura, por isso deve ser evitado, é um raciocínio equivocado, pois parte da presunção de que a atuação policial é violenta e que conduzir uma pessoa ao quartel fomenta a prática de violência, o que, se for a intenção dos policiais, ocorrerá na rua ou na Delegacia de Polícia.
De qualquer forma, por uma política institucional das forças militares estaduais, não é comum conduzir usuários de droga ou qualquer conduzido ou preso para o quartel.
Pode ocorrer também dos policiais não possuírem na rua os instrumentos e materiais necessários para a lavratura do termo circunstanciado, o que exigirá o deslocamento com o usuário de drogas para o fórum ou para a Delegacia de Polícia.
Precisas são as lições deCléber Masson e Vinícius Marçal13.
Conquanto esta seja a sistemática idealizada pela Lei de Drogas, não há como negar que dificuldades práticas, por vezes, impedirão o registro do termo circunstanciado e a requisição de exames pela secretaria do juízo, assim como inviabilizarão a lavratura da ocorrência no local em que o autor do fato for encontrado, dada a notória escassez patrimonial (certamente faltarão papéis, impressoras móveis, computadores etc.) das polícias. Igualmente, dificuldades físicas também se apresentarão. Com efeito,
“imagine um agente que é surpreendido portando determinada droga para consumo pessoal em local sabidamente dominado pelo tráfico, em horário próximo ao chamado ‘toque de recolher’ das favelas. Apesar de a autoridade policial ter o dever de enfrentar o perigo, não se pode exigir dela condutas desarrazoadas e, pior, que possam colocar em risco a vida e a segurança do agente e de eventuais testemunhas. Ademais, como dito acima, apesar da omissão da lei, será necessário realizar o chamado exame preliminar, com o intuito de se atestar, provisoriamente, que se trata de droga. Dificilmente a Polícia possuirá narcotestes à disposição para realizar o referido exame no local.”14
Demais disso, nem sempre será tarefa fácil determinar se a conduta configura crime de consumo pessoal ou tráfico ilícito de drogas, o que demandará o aprofundamento das diligências e a coleta de mais elementos. Por tudo isso, não nos parece haver problema algum na captura e subsequente condução (coercitiva, se for o caso) do sujeito diretamente ao estabelecimento policial para fins exclusivos de lavratura do termo circunstanciado, o que pode ser levado a cabo até por qualquer do povo (CPP, art. 301). O que não se admitirá, ressalte-se uma vez mais, é a lavratura de auto de prisão em flagrante e a manutenção do autor do fato no cárcere (detenção). (destaquei)
No mesmo sentido são as lições de Renato Brasileiro de Lima15.
No entanto, a despeito da redação expressa do art. 48, § 3°, da Lei de Drogas, é fato notório que nem sempre será possível a lavratura do termo circunstanciado no local em que o usuário for capturado, seja por conta da ausência de condições materiais (v.g., falta de narcotestes para realização do laudo preliminar), periculosidade de se levar adiante a documentação do crime do art. 28 em locais e horários inadequados (v.g., captura de usuário em comunidade dominada pelo tráfico de drogas após o denominado “toque de recolher “), seja pela dificuldade de se estabelecer com exatidão se se trata de mero usuário ou traficante de drogas. Nessas situações, por mais que a dicção expressa da Lei não tenha deixado explícita essa possibilidade, parece-nos ser plenamente possível a condução coercitiva do usuário de drogas à Delegacia de Polícia para fins de lavratura do termo circunstanciado, desde que sejam adotadas precauções para que este agente não seja colocado em contato com outros criminosos.
O próprio art. 48, § 4°, da Lei n. 11.343/06, confirma a possibilidade de encaminhamento do usuário de Drogas à Delegacia de Polícia ao dispor que, uma vez concluídos os procedimentos de que trata o § 2° deste artigo, o agente será submetido a exame de corpo de delito, se o requerer ou se a autoridade de polícia judiciária entender conveniente, e em seguida liberado. Referindo-se expressamente à autoridade de polícia judiciária leia-se, ao Delegado de Polícia Civil ou Federal, o dispositivo deixa entrever que haverá situações em que o usuário poderá ser encaminhado à Delegacia de Polícia, oportunidade em que a autoridade policial poderá determinar a realização de exame de corpo de delito, com o objetivo de comprovar a materialidade de eventuais maus-tratos ou lesões corporais perpetradas contra o agente.
Um ponto importante é que o juiz não possui a expertise que um policial possui para detectar, no momento da captura e abordagem, se determinada quantidade de droga, nas circunstâncias em que foi apreendida, caracteriza tráfico ou uso de drogas. Ocorre que quem realizará essa filtragem inicial, se o caso é de uso ou tráfico de drogas, é o policial que realizou a abordagem na rua, geralmente, o policial militar. Caso entenda que seja porte de drogas para uso pessoal, poderá lavrar o termo circunstanciado de ocorrência, do contrário, deverá conduzir o agente para a Delegacia de Polícia em razão da prática de tráfico de drogas.
O art. 48, § 2º, da Lei 11.343/06 menciona expressamente que o autor do fato (art. 28) será encaminhado imediatamente ao juízo competente.
Juízo competente não é, necessariamente, sinônimo de juiz competente. O termo é utilizado de forma mais ampla para abranger o órgão judiciário como um todo, o que abrange a Secretaria do Juízo e as pessoas que trabalham no fórum, como os policiais militares cedidos.
No texto “Juízo é sinônimo de juiz?” publicado no Migalhas, a distinção entre juízo e juiz competente fica nítida.
2) Num primeiro aspecto, importa observar que juízo, como já sintetizava Chiovenda, é o próprio tribunal (MARQUES, 2000, p. 368), quer considerado como órgão julgador, quer tido como estrutura de decisão.
3) Nesse sentido, o vocábulo é empregado em diversos dispositivos do Código de Processo Civil de 1973: a) “Art. 12. Serão representados em juízo, ativa e passivamente…”; b) “Art. 14. São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo: I – expor os fatos em juízo conforme a verdade…”; c) “Art. 33, parágrafo único. O juiz poderá determinar que a parte responsável pelo pagamento dos honorários do perito deposite em juízo o valor correspondente a essa remuneração”.
4) Já o juiz é a pessoa física que detém a atribuição estatal de dizer o direito e, nesse sentido, o vocábulo tem por sinônimos magistrado e julgador.
5) Com essas premissas, já se vê que juízo não pode ser tido, objetivamente, como sinônimo de magistrado, de juiz ou de julgador.
6) Vale a pena observar, entretanto, que, às vezes, se emprega uma figura de linguagem conhecida como metonímia, que consiste em usar uma palavra em lugar de outra, desde que ambas tenham entre si algum tipo de relação e de proximidade. Veja-se, assim, o seguinte exemplo: “Esse juízo decidiu anteriormente…”. Ora, o que se quer dizer é que o juiz decidiu anteriormente, e não o tribunal. Afinal, quem decide é a pessoa, e não a estrutura. E esse uso de uma palavra em lugar de outra é de integral correção.
7) Desse modo, assim pode ser sintetizada a resposta à leitora: a) por um lado, o vocábulo juízo não pode ser tido como sinônimo objetivo de juiz, de magistrado ou de julgador; b) por outro lado, é possível empregar juízo em lugar de juiz, quando se faz uso da figura de linguagem denominada metonímia, pela qual uma palavra toma o lugar de outra, com base em alguma relação de proximidade entre ambas: de causa e efeito, de parte e todo, de autor e obra, etc.
Dessa forma, quando o art. 48, § 2º, da Lei de Drogas diz que “Tratando-se da conduta prevista no art. 28 desta Lei, não se imporá prisão em flagrante, devendo o autor do fato ser imediatamente encaminhado ao juízo competente (…).”, significa que a Secretaria do Juízo ou outra seção designada pelo juiz competente pode proceder à lavratura do termo circunstanciado de ocorrência. Pensar de forma diversa contraria, inclusive, a finalidade da lei, de liberação do usuário de droga o quanto antes após a sua captura, pois é comum que o juiz possua várias audiências, razão pela qual o usuário terá que aguardar por muitas horas até que seja recebido pelo juiz.
O § 3º do art. 48 da Lei de Drogas explicita que “Se ausente a autoridade judicial, as providências previstas no § 2º deste artigo serão tomadas de imediato pela autoridade policial, no local em que se encontrar, vedada a detenção do agente.”, o que demonstra que a condução ao juízo competente visa a lavratura do termo circunstanciado de ocorrência ou realização da audiência preliminar do Juizado Especial Criminal pelo juiz competente.
Ocorre que a lavratura do termo circunstanciado de ocorrência em razão da prática do art. 28 da Lei n. 11.343/06 não possui nenhum caráter decisório. Trata-se somente de um registro de fatos, motivo pelo qual a lavratura pode ser interpretada como um ato ordinatório, que é aquele destituído de qualquer carga decisória.
O art. 93, XIV, da Constituição Federal preceitua que:
Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:
O art. 203, § 4º, do Código de Processo Civil prescreve que:
Art. 203. Os pronunciamentos do juiz consistirão em sentenças, decisões interlocutórias e despachos.
§ 4º Os atos meramente ordinatórios, como a juntada e a vista obrigatória, independem de despacho, devendo ser praticados de ofício pelo servidor e revistos pelo juiz quando necessário.
Nota-se que os atos ordinatórios são plenamente delegáveis, já que não se delega o poder jurisdicional, e sim a prática de um ato sem conteúdo decisório, como é o caso da lavratura do termo circunstanciado de ocorrência decorrente do art. 28 da Lei n. 11.343/06.
(…) 3. Não há falar em nulidade da delegação aos serventuários de justiça da prática de atos ordinatórios ou de mero expediente, no caso em tela, a intimação das partes para complementação do preparo recursal. (…)”. (STJ, AgRg no AREsp 480.543/RJ, 4ª T., j. 06.09.2016, rel. Min. Marco Buzzi, DJe 14.09.2016).
Dessa forma, é perfeitamente possível delegar mediante a edição de ato normativo do juiz competente a atribuição de lavrar termo circunstanciado de ocorrência a um serventuário, pois a lavratura do TCO limita-se a registrar fatos sem conteúdo decisório, cujo desfecho já decorre da lei, que é a liberdade do usuário, além de se tratar de um ato do juiz relacionado à administração do juízo, bem como o fato do art. 48, § 2º, da Lei de Drogas dizer expressamente que o autor da conduta prevista no art. 28 da Lei n. 11.343/06 deve ser encaminhado ao juízo competente para a adoção das providências legais.
A ausência da autoridade judicial que justifica a impossibilidade da lavratura do termo circunstanciado em razão da prática do art. 28 da Lei de Drogas ocorrerá quando o juiz concentrar em si a lavratura do ato, sem delegar essa atribuição a um serventuário.
Não há que se falar em realização de audiência preliminar pelo juiz do Juizado Especial Criminal, na medida em que esta audiência tem por finalidade a proposta de transação penal (art. 72 da Lei n. 9.099/95), podendo haver propostas pelo Ministério Público de aplicação imediata da pena prevista no art. 28 da Lei n. 11.343/06 (art. 48, § 5º da Lei de Drogas), o que não é possível ocorrer após a captura do indivíduo e condução ao fórum, pois é necessário haver o laudo de constatação da substância entorpecente, na medida em que não é possível propor transação penal ou tomar qualquer decisão em desfavor do autor do art. 28 da Lei de Drogas sem que haja prova da materialidade (como deve ser em qualquer crime).
A Edição n. 131 da Jurisprudência em Teses do Superior Tribunal de Justiça traz enunciados referentes à Lei de Drogas, e o enunciado n. 12, dispõe que: “A comprovação da materialidade do delito de posse de drogas para uso próprio (art. 28 da Lei n. 11.343/2006) exige a elaboração de laudo de constatação da substância entorpecente que evidencie a natureza e a quantidade da substância apreendida.”
A jurisprudência é pacífica nesse sentido, portanto, para que haja responsabilização do agente que possui drogas para uso próprio, a comprovação da droga deve ocorrer mediante a elaboração de laudo de constatação da substância entorpecente.
O encaminhamento da droga apreendida para a perícia poderá ocorrer pelo próprio Poder Judiciário ou pela instituição policial que tiver efetuado a captura do usuário de drogas, a depender do que for acertado entre as instituições, o que deve ocorrer mediante convênio ou termo de cooperação, dentro da realidade de cada local, uma vez que há fóruns e quartéis ou delegacias que não possuem estrutura física adequada e compatível para a guarda de drogas apreendidas em decorrência do art. 28 da Lei n. 11.343/06.
É possível extrair do art. 48, § 2º, da Lei de Drogas que o responsável por lavrar o termo circunstanciado deve providenciar as requisições dos exames e perícias necessários, o que não impede, contudo, mediante aceitação voluntária e colaborativa, que instituição diversa da que lavrar o TCO encaminhe a droga, pois não se trata de procedimento investigativo, o ato de encaminhar a droga para a perícia é um ato que decorre diretamente da lei, cuja providência para a sua realização parte da autoridade que lavrar o termo circunstanciado, sendo a entrega da droga ao instituto de perícias um ato meramente mecânico. Não há, portanto, delegação de atividade investigativa, pois investigação TCO não é, nem delegação de atribuição do juízo competente a terceiro, pois a entrega física da droga não passa de um ato material, sem qualquer conteúdo decisório.
Art. 48 (…)
§ 2º Tratando-se da conduta prevista no art. 28 desta Lei, não se imporá prisão em flagrante, devendo o autor do fato ser imediatamente encaminhado ao juízo competente ou, na falta deste, assumir o compromisso de a ele comparecer, lavrando-se termo circunstanciado e providenciando-se as requisições dos exames e perícias necessários.
Por fim, o § 4º do art. 48 da Lei de Drogas ao mencionar que a autoridade de polícia judiciária (Delegado de Polícia), se entender conveniente, submeterá o agente a exame de corpo delito, não significa que dizer que restringiu a lavratura do termo circunstanciado de ocorrência, quando este for lavrado por autoridade policial, em razão da prática do art. 28 da Lei n. 11.343/06, somente ao Delegado de Polícia, pois o termo circunstanciado de ocorrência, como decidido pelo STF, não é procedimento investigativo e não é atividade exclusiva da polícia judiciária.
A leitura do § 4º do art. 48 da Lei de Drogas permite afirmar que quando for necessário exame de corpo de delito, este compete ao Delegado de Polícia requisitá-lo, tanto é que no § 3º do art. 48 o legislador utilizou o termo “autoridade policial” e não “autoridade de polícia judiciária” e é a úncia menção à “autoridade policial” contida na Lei n. 11.343/06. Em todas as demais menções a expressão utilizada é “autoridade de polícia judiciária”.
Diante de todo o exposto, é possível extrair as seguintes conclusões:
a) A Polícia Militar pode continuar lavrando termo circunstanciado de ocorrência na rua, nos estados em que já lavra, mesmo diante da decisão do STF na ADI 3807, sem necessidade de encaminhar o usuário de droga (art. 28 da Lei n. 11.343/06) ao fórum, ao quartel ou à Delegacia de Polícia;
b) Caso a abordagem ao usuário seja realizada pela Polícia Civil, deve primar pela lavratura do termo circunstanciado de ocorrência na rua, no local da abordagem, e na impossibilidade, conduzir o usuário de droga (art. 28 da Lei n. 11.343/06) ao fórum, se durante o expediente, e para a Delegacia de Polícia caso o fórum esteja fechado;
c) Apresentado o usuário de droga ao fórum, seja pela Polícia Militar ou pela Polícia Civil, se houver ato normativo do juiz competente, a Secretaria do Juizado Especial Criminal deverá proceder à lavratura do termo circunstanciado de ocorrência ou tal ato poderá ser lavrado por policial militar, desde que haja convênio ou termo de cooperação entre o Poder Judiciário e a Polícia Militar, uma vez que a finalidade precípua do policial militar que permanece no fórum é a segurança;
d) Fora do horário de expediente, isto é, nos finais de semana, em feriados, no horário noturno ou em qualquer situação que o fórum esteja fechado, não cabe ao Poder Judiciário lavrar o termo circunstanciado de ocorrência (art. 1º, III e VIII, da Resolução n. 71/09 do Conselho Nacional de Justiça);
e) Nos locais em que não houver fórum não há que se falar em condução do usuário de droga ao Poder Judiciário, devendo este ser encaminhado diretamente à Delegacia de Polícia, caso não seja possível a lavratura do termo circunstanciado de ocorrência na rua;
f) O encaminhamento da droga apreendida para a perícia poderá ocorrer pelo próprio Poder Judiciário ou pela instituição policial que tiver efetuado a captura do usuário de drogas, a depender do que for acertado entre as instituições, o que deve ocorrer mediante convênio ou termo de cooperação, dentro da realidade de cada local, uma vez que há fóruns e quartéis ou delegacias que não possuem estrutura física adequada e compatível para a guarda de drogas apreendidas em decorrência do art. 28 da Lei n. 11.343/06;
g) O juiz não deve realizar audiência preliminar ou aplicar qualquer medida em desfavor do usuário de droga sem que haja o laudo de constatação da substância entorpecente.
NOTAS
1NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. Volume Único. 10ª Edição. Editora JusPODIVM: Salvador. 2018. p. 1.045/1.046.
2 DIDIER JUNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de direito processual civil – v. 3: meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. 13. ed. Salvador: JusPODIVM, 2016. p. 549/550.
7NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. Volume Único. 10ª Edição. Editora JusPODIVM: Salvador. 2018. p. 1.045/1.046.
8 Art. 48. O procedimento relativo aos processos por crimes definidos neste Título rege-se pelo disposto neste Capítulo, aplicando-se, subsidiariamente, as disposições do Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal.
§ 2º Tratando-se da conduta prevista no art. 28 desta Lei, não se imporá prisão em flagrante, devendo o autor do fato ser imediatamente encaminhado ao juízo competente ou, na falta deste, assumir o compromisso de a ele comparecer, lavrando-se termo circunstanciado e providenciando-se as requisições dos exames e perícias necessários.
§ 3º Se ausente a autoridade judicial, as providências previstas no § 2º deste artigo serão tomadas de imediato pela autoridade policial, no local em que se encontrar, vedada a detenção do agente.
9 Art. 69. A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários. Parágrafo único. Ao autor do fato que, após a lavratura do termo, for imediatamente encaminhado ao juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança. Em caso de violência doméstica, o juiz poderá determinar, como medida de cautela, seu afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima. (Redação dada pela Lei nº 10.455, de 13.5.2002)
10 MASSON, Cleber. MARÇAL, Vinícius. Lei de Drogas. Aspectos Penais e Processuais. Método: São Paulo. 2019.
11Enunciado 34 do FONAJE: Atendidas as peculiaridades locais, o termo circunstanciado poderá ser lavrado pela Polícia Civil ou Militar.
13 MASSON, Cleber. MARÇAL, Vinícius. Lei de Drogas. Aspectos Penais e Processuais. Método: São Paulo. 2019.
14 MENDONÇA, Andrey Borges de; CARVALHO, Paulo Roberto Galvão de. Lei de drogas: Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006 – comentada artigo por artigo. 3. ed. São Paulo: Método, 2012. p. 253-254. Igualmente: “E o problema maior é este: terá, mesmo, a autoridade policial de realizar um termo circunstanciado em qualquer lugar, numa praia, numa praça, na estação de trem ou no terminal de ônibus, numa festa rave ou num estádio de futebol, isto para evitar a detenção do agente? Se assim for, o propósito do legislador não é outro senão o de tornar a cláusula procedimental absolutamente ineficaz, o que, convenhamos, não deve estar na gênese jurisfilosófica de nenhuma lei. Afinal, não se legisla para não funcionar. […] Em suma, entendemos que a autoridade policial deverá realizar o TC na delegacia de polícia, conduzindo o infrator para o efeito.” (GUIMARÃES, Isaac Sabbá. Nova Lei Antidrogas comentada: crimes e regime processual penal. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2007. p. 170)
• Art. 5º, XXXIX, da CF • Art. 1º do Código Penal • Arts. 28 e 33 da Lei n. 11.343/06 • Art. 167 do Código de Processo Penal • Art. 9º da Convenção Americana de Direitos Humanos • STF – Recurso Extraordinário n. 635.659 • STF – Recurso Extraordinário n. 430.105-9
Síntese: o ato de usar ou consumir drogas, por si só, não é crime. Como regra, a comprovação de que a substância apreendida com o usuário é droga deve se dar mediante a realização de perícia. O exame de sangue ou de urina que constate que uma pessoa usou drogas não é suficiente para responsabilizá-la pelo art. 28 da Lei n. 11.343/06, pois comprova-se somente o uso de droga, mas não a prática de nenhum dos verbos núcleos do tipo. Isto é, não comprova que a pessoa adquiriu, guardou, teve em depósito, transportou ou trouxe consigo droga para consumo pessoal, salvo se restar demonstrado por outros meios de prova que o agente possuía a droga antes de usá-la, como a prova testemunhal e filmagens, aliada à confissão do agente. Contudo, é importante destacar que a doutrina majoritária entende não ser possível a responsabilização do agente que é surpreendido pela polícia logo após ter utilizado droga, pois o risco à saúde pública não existe mais.
A finalidade deste texto não é analisar o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do Recurso Extraordinário n. 635.659 que decidirá se o art. 28 da Lei n. 11.343/06 é constitucional, isto é, se as condutas previstas no crime de porte de drogas para consumo pessoal viola a Constituição Federal.
No Recurso Extraordinário n. 430.105-9 o Supremo Tribunal Federal decidiu que o art. 28 da Lei de Drogas continua sendo crime e que houve apenas despenalização, descarcerização, e não descriminalização.
O presente texto analisa se a conduta de usar ou consumir drogas, por si só, é considerada crime.
O art. 28 da Lei n. 11.343/06 dispõe o seguinte:
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I – advertência sobre os efeitos das drogas;
II – prestação de serviços à comunidade;
III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
Nota-se que o art. 28 da Lei n. 11.343/06 não utiliza o verbo usar ou consumir drogas, mas somente os verbos “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo“, o que impossibilita a abrangência do uso ou consumo de drogas, em face do princípio da taxatividade.
A taxatividade é uma das facetas do princípio da legalidade que dispõe não haver crime sem lei anterior que o defina (art. 5º, XXXIX, da CF e art. 1º do Código Penal).
A Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), incorporada ao Brasil mediante o Decreto n. 678/1992, possui status supralegal, e dispõe no art. 9º que ninguém pode ser condenado por ações ou omissões que não sejam previstas como delituosas no momento de sua prática.
Art. 9º Ninguém pode ser condenado por ações ou omissões que, no momento em que forem cometidas, não sejam delituosas, de acordo com o direito aplicável. Tampouco se pode impor pena mais grave que a aplicável no momento da perpetração do delito. Se depois da perpetração do delito a lei dispuser a imposição de pena mais leve, o delinqüente será por isso beneficiado.
A lei penal deve ser certa, expressa, clara, precisa quanto às condutas que são consideradas criminosas, de forma que não deixe dúvidas de que determinada conduta é criminosa, o que se denomina de princípio da taxatividade, isto é, a lei deve ser taxativa, o que é constatado diante dos verbos utilizados pelo tipo penal.
Não é possível aplicar a analogia, a interpretação analógica ou a interpretação extensiva para abranger os verbos “usar” ou consumir” como condutas definidoras do crime previsto no art. 28 da Lei de Drogas.
A analogia é uma técnica de integração do direito que visa suprir as lacunas existentes nas normas mediante a aplicação de normas para situações semelhantes, pois ao legislador não é possível editar leis que prevejam todas as hipóteses de ocorrência prática. Não existe norma para situação semelhante que permita a aplicação do verbo “usar” para o crime de porte de drogas para consumo pessoal. Além do mais, ainda que houvesse, no direito penal é vedada a analogia em prejuízo do réu (in malam partem), sendo possível somente a analogia em benefício do réu (in bonam partem).
A interpretação analógica no direito penal é possível, ainda que seja em prejuízo do réu, pois trata-se de uma cláusula genérica contida no texto da lei penal que permite uma ampliação da norma para inserir outros casos, além dos já mencionados pelo tipo penal, pois ao legislador não é possível imaginar todas as situações de possível ocorrência, razão pela qual permite ao intérprete que se realize essa adequação.
Um exemplo claro de interpretação analógica encontra-se no art. 121, § 2º, I, do Código Penal.
Art. 121. Matar alguém:
§ 2° Se o homicídio é cometido:
I – mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe;
Nota-se que a lei enumera hipóteses de motivos torpes (paga ou promessa de recompensa) e depois cita “ou por outro motivo torpe”, o que permite a interpretação analógica, ainda que em prejuízo do réu, pois ao se permitir a realização de interpretação analógica nesses casos autorizados pela lei, entender que é vedada a interpretação analógica em in malam partem,seria o mesmo que retirar da lei penal as previsões que autorizam outras hipóteses (“ou por outro motivo”; “ou qualquer outro”), pois essas outras hipóteses sempre serão prejudiciais ao réu, já que se trata de norma que amplia a possibilidade de enquadramento penal, o que não existe no crime previsto no art. 28 da Lei de Drogas.
A interpretação extensiva ocorre quando o intérprete concede um maior alcance à norma, por estar ter dito menos do que deveria. A doutrina diverge a respeito de sua aplicabilidade em prejuízo do réu.
A primeira corrente sustenta não ser possível, pois violaria a estrita legalidade e ampliaria as hipóteses de incriminação, o que não cabe ao intérprete e sim ao legislador. Aplica-se o mesmo raciocínio da analogia em prejuízo do réu.
A segunda corrente, com a qual concordamos, sustenta ser possível, pois não inova, mas somente interpreta e busca a finalidade do conceito legal empregado, razão pela qual não há óbices em se realizar uma interpretação extensiva em prejuízo do réu. Não se busca, com a interpretação extensiva, suprir a lacuna da lei ou utilizar um método de integração da norma, como ocorre com a analogia, mas sim buscar sentido à lei.
Cite-se como exemplo de interpretação extensiva em prejuízo do réu o conceito de “casa” previsto no art. 150, § 4º, do Código Penal, pois este é interpretado extensivamente, como forma de abranger diversos tipos de casa (casa sobre rodas, barracos debaixo da ponte, parte interna de restaurantes e bares, casas de praia etc.), portanto, se o agente invadir uma casa em sentido amplo, decorrente de interpretação extensiva, praticará o crime de violação de domicílio.
Em se tratando do crime de porte de drogas para consumo pessoal não é possível aplicar a interpretação extensiva, pois supriria a lacuna da lei e criaria um crime. Não se trata de mera interpretação, mas de uma autêntica criação de crime mediante interpretação, o que fere o princípio da legalidade na faceta da taxatividade e, portanto, deve ser rechaçado.
Analogia
Forma de integração da lei; Em razão da ausência de previsão em norma para um caso concreto, o intérprete utiliza norma prevista para casos semelhantes. Não se admite em prejuízo do réu Admite-se em benefício do réu.
Interpretação analógica
Trata-se de uma cláusula genérica contida no texto da lei penal que permite uma ampliação da norma para inserir outros casos; Admite-se em prejuízo e em benefício do réu.
Interpretação extensiva
Ocorre quando o intérprete concede um maior alcance à norma, por estar ter dito menos do que deveria; Há divergência se admite em prejuízo do réu. Sustentamos que sim. Admite-se em benefício do réu.
A intenção do legislador ao prever o crime de porte de drogas para consumo pessoal foi dificultar a difusão de drogas, pois os usuários ao comprarem drogas fomentam o tráfico. A lei não combate o vício (saúde individual), mas sim o risco à saúde pública, que é criado ao se adquirir, guardar, ter em depósito, levar consigo ou transportar droga para consumo pessoal.
O relatório do projeto de lei aprovado que se tornou a atual Lei n. 11.343/06 e foi publicado no Diário da Câmara dos Deputados em 13 de fevereiro de 2004 afirma que:1
Ressalvamos que não estamos, de forma alguma, descriminalizando a conduta do usuário – o Brasil é, inclusive, signatário de convenções – internacionais que proíbem a eliminação desse delito. O que fazemos é apenas modificar os tipos de penas a serem aplicadas ao usuário, excluindo a privação da liberdade, como pena principal.
A Lei n. 11.343/06 em diversas passagens – ao todo 46 vezes – utiliza o termo “usuário”, como o art. 23-A que aborda o tratamento do usuário ou dependente de drogas, o que demonstra a preocupação do legislador em tratar o usuário como política de saúde pública, uma vez que sua conduta é reprovável por alimentar o tráfico de drogas.
Renato Brasileiro de Lima sustenta que “fosse o uso da droga considerado crime, não haveria necessidade de tipificação autônoma da conduta daquele que auxilia, instiga ou determina alguém a usar a droga (art. 33, § 2°), pois a norma de extensão do art. 29 do Código Penal seria suficiente para abranger o concurso de agentes para esse suposto “‘uso de droga'”2, o que não se pode concordar, na medida em que o referido crime consiste em induzir, instigar ou auxiliar ao uso indevido de droga e não em usar droga conjuntamente ou compartilhar o uso de droga, pois a partir do momento que terceiro utiliza droga com outro haverá o crime previsto no art. 33, § 3º, da Lei n. 11.343/06, caso um dos usuários tenha oferecido ao outro de forma eventual, sem objetivo de lucro e seja pessoa de seu convívio, ou então será o crime de tráfico de drogas previsto no art. 33, caso ausente qualquer uma das condicionantes mencionadas (oferecimento de droga de forma eventual, sem objetivo de lucro e pessoa do relacionamento).
A revogada Lei n. 6.368/76, da mesma forma que a Lei n. 11.343/06 não previa a conduta de usar drogas como criminosa.
Lei n. 11.343/06 (Atual Lei de Drogas)
Lei n. 6.368/76 (Revogada Lei de Drogas)
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I – advertência sobre os efeitos das drogas; II – prestação de serviços à comunidade; III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
Art. 16. Adquirir, guardar ou trazer consigo, para o uso próprio, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena – Detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e pagamento de (vinte) a 50 (cinqüenta) dias-multa.
Nota-se que foram acrescentados ao crime de porte de drogas para uso próprio as condutas de ter em depósito e transportar.
Foram acrescentados à nova figura típica os núcleos ter em depósito e transportar. Não foi inserido o núcleo usar, motivo de discussões anteriores. Havia posição no sentido de que a conduta de usar era atípica, pois não se amoldava aos núcleos adquirir, guardar e trazer consigo, previstos no revogado art. 16 da Lei n. 6.368/76. No entanto, a posição contrária dizia que quem usa, por questões óbvias, traz consigo. O exemplo que era motivo de discussão, principalmente, acadêmica, era aquele em que o cigarro de maconha era colocado, por uma terceira pessoa, na boca do sujeito, para que pudesse tragá-lo, ou, a hipótese mais acadêmica ainda, da situação daquele que tragava o mencionado cigarro, que se encontrava acondicionado sobre um objeto, sem que, para tanto, o agente tivesse que segurá-lo. Como não foi inserido o núcleo usar, a discussão ainda persiste.
Dentre os cinco verbos nucleares do art. 28, caput, da Lei nº 11.343/06, não consta a conduta de mero uso da droga. Aliás, não por outro motivo, grande parte da doutrina prefere se referir ao art. 28 com o nomen iuris de porte de drogas para consumo pessoal, e não simplesmente uso de drogas.
Pelo menos em regra, se o indivíduo é flagrado usando substância entorpecente, deverá responder pelo crime de porte de drogas para consumo pessoal, não por conta do “uso da droga”, que é uma conduta atípica, mas sim porque é muito provável que, antes do uso, já tenha praticado uma das condutas incriminadas pelo art. 28, como por exemplo, o adquirir ou trazer consigo. Nesse caso, a fim de se comprovar a materialidade delitiva por meio do exame toxicológico, é imprescindível que parte da substância entorpecente seja apreendida .
No entanto, o uso de drogas nem sempre será precedido das condutas de adquirir ou trazer consigo. Com efeito, é perfeitamente possível que determinado indivíduo, sem ter consciência de que uma pessoa de seu relacionamento havia adquirido determinada substância entorpecente, trazendo-a consigo, resolva simplesmente anuir ao uso da droga.Nesse caso, como o uso da droga não consta do art. 28 como uma das condutas típicas, o ideal é concluir pela atipicidade do fato, até mesmo porque o perigo à saúde pública consubstanciado pelo fato de o agente trazer a droga consigo teria desaparecido com o consumo da substância entorpecente. De mais a mais, fosse o uso da droga considerado crime, não haveria necessidade de tipificação autônoma da conduta daquele que auxilia, instiga ou determina alguém a usar a droga (art. 33, § 2°), pois a norma de extensão do art. 29 do Código Penal seria suficiente para abranger o concurso de agentes para esse suposto “uso de droga”.5
Na vigência da antiga Lei de Drogas, cujo art. 16 também não incriminava o uso de drogas, a matéria foi apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, in verbis: “( … ) É mais que razoável o entendimento dos que entendem não realizado o tipo do art. 16 da Lei de entorpecentes (L. 6.368/76) na conduta de quem, recebendo de terceiro a droga, para uso próprio, incontinenti, a consome: a incriminação do porte de tóxico para uso próprio só se pode explicar – segundo a doutrina subjacente à lei – como delito contra a saúde pública, que se insere entre os crimes contra a incolumidade pública, que só se configuram em fatos que “acarretam situação de perigo a indeterminado ou não individuado grupo de pessoas” (Hungria) . De qualquer sorte, conforme jurisprudência sedimentada, o exame toxicológico positivo da substância de porte vedado é elemento essencial à validade da condenação pelo crime cogitado, o que pressupõe sua apreensão na posse do agente e não de terceiro: impossível, assim, imputar a alguém a posse anterior do único cigarro de maconha que teria fumado em ocasião anterior, se só se pode apreender e submeter à perícia resíduos daquela encontrados com o outro acusado, em contexto diverso”.6
O uso de drogas não precede, necessariamente, de algum dos núcleos do tipo previstos no art. 28 da Lei n. 11.343/06 (adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo).
É perfeitamente possível que uma pessoa use, consuma droga sem ter adquirido, sem guardá-la, sem tê-la em depósito, sem transportá-la e sem levá-la consigo. Tome como exemplo uma festa em que o organizador coloque cocaína por cima da mesa para que os presentes que tiverem interesse se aproximem da mesa e comecem a aspirar cocaína com a utilização de um canudo de papel. Tal conduta, por si só, não configura a prática de crime para os usuários, pois somente consumiram, usaram a droga, e não existe os verbos usar e consumir no art. 28 da Lei n. 11.343/06.7
O mesmo ocorre quando uma pessoa que esteja fumando maconha ofereça e coloque o cigarro de maconha na boca de outra para que este use droga, sem que este obtenha a propriedade do cigarro de maconha, somente o “empréstimo de uso” (algumas tragadas). Tal conduta também será atípica para o usuário de droga.
Em ambos os casos o agente que forneceu a droga responderá pelo crime de tráfico de drogas (art. 33 da Lei n. 11.343/06), podendo responder pelo art. 33, § 3º, da Lei de Drogas, caso tenha oferecido droga, eventualmente, e sem objetivo de lucro, a pessoa de seu relacionamento, para juntos a consumirem:
Não será a hipótese de induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de droga (art. 33, § 3º, da Lei n. 11.343/06) pelo fato deste crime pressupor uma participação acessória e não o fornecimento diretamente da droga. Induzir significa fazer nascer a ideia de usar droga. Instigar consiste em incentivar a pessoa a usar drogas, sendo que esta já pensava em usar. Auxiliar, por sua vez, consiste em prestar um auxílio material, como emprestar o carro para que a pessoa vá buscar a droga ou emprestar dinheiro para que compre a droga.
Caso a pessoa aceite o cigarro de maconha e já comece a usá-lo, segurando-o com as mãos, terá adquirido o cigarro, ainda que não pague nada por isso e tenha recebido o cigarro de maconha “de graça”. Adquirir significa obter a propriedade, seja mediante pagamento ou gratuitamente. Adquirir é vir a ter, vir a possuir, independentemente, da forma como tenha obtido, seja ao pegar ou ao receber o cigarro de maconha. Portanto, ao aceitar segurar o cigarro para usá-lo terá adquirido, razão pela qual pratica o crime previsto no art. 28 da Lei de Drogas.
E caso o indivíduo não segure o cigarro com as mãos? Poderá ou não haver o crime previsto no art. 28 da Lei de Drogas. Na hipótese em que ficar demonstrado que o usuário adquiriu a droga por intermédio de terceiro e solicitou que esta pessoa colocasse a droga (cigarro de maconha) em sua boca, por ter adquirido a droga utilizando-se de outra pessoa, praticará o crime em tela em razão do verbo adquirir, sendo o terceiro responsabilizado por tráfico de drogas (art. 33 da Lei n. 11.343/06). O mesmo raciocínio se aplica à pessoa que esteja impossibilitada de movimentar os braços, por ter sofrido um acidente, por exemplo, e não consiga fumar maconha, sendo atendida por terceiro.
É possível que uma pessoa que não use drogas seja responsabilizada pelo crime previsto no art. 28 da Lei n. 11.343/06, pois trata-se de um tipo penal incongruente, assimétrico, isto é, os elementos objetivos e subjetivos do tipo penal não coincidem, pois o crime de porte de droga exige que a droga seja destinada para o consumo pessoal (especial fim de agir). Exige-se a presença do elemento subjetivo especial do tipo.
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
Quando o art. 28 menciona “para consumo pessoal” significa dizer que não basta o porte de drogas para a sua configuração, é necessário que este porte seja destinado ao consumo pessoal. Nota-se que além do dolo há a exigência de um fim especial (consumo pessoal), sem o qual o crime é diverso, o tráfico de drogas (art. 33 da Lei n. 11/343/06). Portanto, trata-se de um tipo pena incongruente, assimétrico, pois os elementos objetivos (os verbos núcleos do tipo) não coincidem com o elemento subjetivo (dolo acrescido do especial fim de agir). Diversa é a hipótese do tráfico de drogas, cujos elementos objetivos e subjetivos coincidem, pois não há nenhuma exigência no tipo penal além do porte de drogas. Trata-se, portanto, de tipo penal congruente ou simétrico.
Portanto, ao se dizer acima que é possível que uma pessoa que não consuma drogas seja responsabilizada pelo crime previsto no art. 28 da Lei de Drogas significa dizer que uma pessoa que ainda não possui coragem para usar drogas, pois sabe que faz mal para a saúde, mas tenha adquirido droga e a porte consigo pela rua, enquanto cria coragem para usá-la, ocasião em que é abordado pela polícia, responderá pelo crime de porte de drogas e não por tráfico, pois a finalidade do agente era utilizar a droga, mas ainda estava indeciso.
O agente que for flagrado com o cigarro de maconha sozinho, necessária e logicamente, trazia consigo a droga, razão pela qual deverá responder pelo crime de porte de drogas para consumo pessoal (art. 28 da Lei n. 11.343/06), o que não ocorre caso tenha sido flagrado com o cigarro de maconha na boca enquanto terceiro colocasse e tirasse o cigarro enquanto fumava (“empréstimo de uso”).
Outro exemplo pode ocorrer no local em que o traficante deixe pequenas amostras de cocaína sobre um murinho para que os usuários cheirem um pouco antes de adquirir a droga. Caso a polícia flagre os usuários cheirando a droga no murinho, antes de comprá-la, não haverá crime.
É importante mencionar julgado do Supremo Tribunal Federal que considerou não ser crime a conduta de quem recebe droga de terceiro para uso próprio e a consome imediatamente, pois não há que se falar em violação ao bem jurídico tutelado (saúde pública), que somente é ofendido se acarretar em situação de perigo a indeterminado ou não individualizado grupo de pessoas.8
É mais que razoável o entendimento dos que entendemnão realizado o tipo do art. 16 da Lei de entorpecentes (L. 6.368/76) na conduta de quem, recebendo de terceiro a droga, para uso próprio, incontinenti, a consome: a incriminação do porte de tóxico para uso próprio só se pode explicar – segundo a doutrina subjacente à lei – como delito contra a saúde pública, que se insere entre os crimes contra a incolumidade pública, que só se configuram em fatos que “acarretam situação de perigo a indeterminado ou não individuado grupo de pessoas” (Hungria). (STF – HC: 79189 SP, Relator: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Data de Julgamento: 12/12/2000, Primeira Turma, Data de Publicação: DJ 09-03-2001)
Portanto, sob essa ótica, o exemplo acima citado, do indivíduo que recebe, adquire cigarro de maconha de terceiro e o fuma imediatamente, não é crime, o que não se pode concordar, já que praticou o verbo núcleo do tipo (adquirir) e, portanto, colaborou para a difusão da droga.
Na hipótese em que o agente for flagrado utilizando o restinho de maconha ou de cocaína, de forma que os policiais não consigam apreender a droga para a realização do exame pericial, o exame toxicológico positivo (sangue, urina) poderá servir para incriminá-lo? E se o agente sequer tiver sido flagrado usando droga, mas fizer o exame, posteriormente, por qualquer motivo, e for constatado que utilizou droga, poderá ser incriminado?
A Edição n. 131 da Jurisprudência em Teses traz enunciados referentes à Lei de Drogas o enunciado n. 12 dispõe que “A comprovação da materialidade do delito de posse de drogas para uso próprio (art. 28 da Lei n. 11.343/2006) exige a elaboração de laudo de constatação da substância entorpecente que evidencie a natureza e a quantidade da substância apreendida.”
A jurisprudência é pacífica nesse sentido, portanto, para que haja responsabilização do agente que possui drogas para uso próprio, a comprovação da droga deve ocorrer mediante a elaboração de laudo de constatação da substância entorpecente.
Excepcionalmente, caso a droga não seja apreendida, por ter sido destruída imediatamente pelo agente ao visualizar a polícia, que ao chegar ao local sentiu cheiro característico de maconha e o agente se dispôs a realizar, voluntariamente, exame de sangue e/ou de urina, em razão do nemo tenetur se detegere, sendo constatado que o agente utilizou droga, é possível a condenação pelo porte de droga para consumo pessoal, pois o Código de Processo Penal permite a utilização de outros meios de prova quando não for possível realizar o exame de corpo de delito (laudo de constatação da droga), em razão do desaparecimento dos vestígios.
Código de Processo Penal
Art. 167. Não sendo possível o exame de corpo de delito, por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta.
Em casos excepcionais a jurisprudência admite o reconhecimento da droga ilícita ainda que não haja apreensão, sobretudo se a droga houver desaparecido em decorrência de ação do agente com o fim de se beneficiar.
PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. MATERIALIDADE DELITIVA. DOSIMETRIA DA PENA. REGIME INICIAL. JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.
1. A falta de laudo pericial não conduz, necessariamente, à inexistência de prova da materialidade de crime que deixa vestígios, a qual pode ser demonstrada, em casos excepcionais, por outros elementos probatórios constante dos autos da ação penal (CPP, art. 167) (HC 130.265, Rel. Min. Teori Zavascki).
2. A natureza e a quantidade da droga apreendida justificam a fixação da pena-base em patamar acima do mínimo legal (HC s 122.299 e 126.055, Rel. Min. Dias Toffoli; HC 118.389, Rel. Min. Teori Zavascki).
3. A imposição do regime de cumprimento mais severo do que a pena aplicada permitir exige motivação idônea (Súmula 719/STF). Hipótese em que o regime inicial fechado foi fixado com apoio em dados empíricos idôneos, extraídos da prova judicialmente colhida. 4. Agravo regimental a que se nega provimento.
(STF – AgR HC: 181632 PR – PARANÁ 0086772-76.2020.1.00.0000, Relator: Min. ROBERTO BARROSO, Data de Julgamento: 29/05/2020, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-148 15-06-2020)
RECURSO ESPECIAL. TRÁFICO DE DROGAS. MATERIALIDADE. AUSÊNCIA DE APREENSÃO DE DROGAS. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA. MANUTENÇÃO. RECURSO IMPROVIDO.
1. A caracterização do crime de tráfico de drogas prescinde de apreensão de droga em poder de cada um dos acusados, podendo ser comprovada pela existência de estupefacientes com apenas parte deles.
2. A prova da materialidade também pode ser demonstrada por outros meios quando seja a apreensão impossibilitada por ação do criminoso – que não poderia de sua má-fé se beneficiar.
3. Deve ser mantida a rejeição da denúncia por ausência de lastro probatório mínimo, quando não houver a apreensão de substância entorpecente com nenhum dos acusados.
4. Recurso improvido.
(STJ – REsp: 1800660 MG 2019/0062176-6, Relator: Ministro NEFI CORDEIRO, Data de Julgamento: 11/02/2020, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 25/05/2020)9
HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DO RECURSO CABÍVEL. DESCABIMENTO. EXECUÇÃO PENAL. FALTA GRAVE. POSSE DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE NO ESTABELECIMENTO PRISIONAL. FALTA DE LAUDO TOXICOLÓGICO. IMPRESCINDIBILIDADE. CONFISSÃO INSUFICIENTE. AUSÊNCIA DE MATERIALIDADE. NULIDADE DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONFIGURADO. 1. Os Tribunais Superiores restringiram o uso do habeas corpus e não mais o admitem como substitutivo de recursos outros, nem sequer para as revisões criminais. 2. O laudo toxicológico é um exame pericial imprescindível para se aferir a materialidade delitiva, no que se refere às substâncias entorpecentes, para que seja demonstrada a sua toxicidade. 3. A falta do laudo toxicológico pode ser suprida com outros elementos que confirmem o fato, se e quando possível, para a comprovação da materialidade do delito, sendo insuficiente a confissão do acusado. 4. A ingestão de um grama de maconha, em tese, não inviabilizaria a realização do exame toxicológico, pois a substância seria naturalmente expelida pelo corpo humano, Assim, a ausência de materialidade evidencia o constrangimento ilegal. 5. Ordem concedida, de ofício, para cassar o acórdão vergastado e reconhecer a nulidade do procedimento administrativo disciplinar instaurado em desfavor do paciente, relativo à prática de falta grave. (STJ – HC: 273881 MG 2013/0231168-1, Relator: Ministro MOURA RIBEIRO, Data de Julgamento: 03/12/2013, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 06/12/2013)
De qualquer forma, deve-se destacar que o reconhecimento da droga depende de laudo pericial, sendo possível excepcioná-lo, na linha dos julgados acima citados, quando restar comprovada a impossibilidade de apreensão da droga por atuação do agente, como o exemplo do agente que a destrói com a chegada da polícia com o intuito de se esquivar da responsabilização criminal.
[…] TRÁFICO DE DROGAS. AUSÊNCIA DE APREENSÃO DE TÓXICOS COM O ACUSADO OU COM AS MENORES QUE COM ELE SE ENCONTRAVAM. INEXISTÊNCIA DE LAUDO QUE COMPROVE QUE A SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE SERIA APTA A CAUSAR DEPENDÊNCIA FÍSICA OU PSÍQUICA. IMPOSSIBILIDADE DE COMPROVAÇÃO DA MATERIALIDADE DO DELITO. COAÇÃO ILEGAL CONFIGURADA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. 1. Conquanto existam precedentes em que, na hipótese de inexistência de apreensão da droga, dispensam laudo para comprovar a materialidade do delito de tráfico de entorpecentes, a melhor compreensão é a que defende a indispensabilidade da perícia no crime em questão.2. A constatação da aptidão da substância entorpecente para produzir dependência, ou seja, para viciar alguém, só é possível mediante perícia, já que tal verificação depende de conhecimentos técnicos específicos. Doutrina. 3. O artigo 50, § 1º, da Lei 11.343/06 não admite a prisão em flagrante e o recebimento da denúncia sem que seja demonstrada, ao menos em juízo inicial, a materialidade da conduta por meio de laudo de constatação preliminar da substância entorpecente, que configura condição de procedibilidade para a apuração do ilícito de tráfico. Precedentes. 4. Na hipótese em exame, verifica-se que nenhuma droga foi encontrada em poder do acusado ou das menores que com ele se encontravam, e, por conseguinte, não foi efetivada qualquer perícia que ateste que ele teria fornecido às adolescentes substâncias entorpecentes, circunstância que impede que seja incriminado pelo ilícito tipificado no artigo 33 da Lei 11.343/2006, já que ausente a comprovação da materialidade delitiva. 5. Recurso parcialmente provido apenas para determinar o trancamento da ação penal no tocante ao crime de tráfico de drogas. (RHC 65.205/RN, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 12/04/2016, DJe 20/04/2016)
Destaca-se que para que o agente responda pelo crime previsto no art. 28 da Lei n. 11.343/06 deve ficar comprovada a prática de pelo menos um dos cinco verbos núcleos do tipo previsto no referido artigo (adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo), o que não é comprovado com a simples constatação mediante exame de sangue ou de urina que detecte o uso de droga ilícita, já que o agente pode ter usado a droga sem ter adquirido, guardado, tido em depósito, transportado ou levado consigo, conforme demonstrado. Em que pese na maioria absoluta das vezes o agente que usa droga, realmente, tê-la consigo, não é possível afirmar em uma sentença condenatória que o agente, por ter usado droga, incidiu em qualquer um dos cinco verbos núcleos do tipo, na medida em que existe a possibilidade fática de não ter incidido e, ainda que mínima, é suficiente para a absolvição, pois qualquer possibilidade, ainda que extremamente improvável, que seja suficiente para gerar dúvida, deve levar à absolvição. Isto é, a certeza do juízo condenatório deve ser 200%.
A Lei de Drogas não pune o vício – visa tratar o usuário -, não pune a pessoa que “usa drogas”, pune somente a pessoa que a porta com o fim de consumi-la (art. 28) ou de comercializá-la ou passá-la a terceiro ou de ficar com a droga para si mesmo, sem, contudo, possuir o intuito de usá-la (art. 33). Pelo fato do usuário de droga movimentar o tráfico de drogas, quando a adquire, guarda, tem em depósito, transporta ou a traz consigo para consumo pessoal, coloca a saúde pública em perigo, razão pela qual tal conduta é considerada criminosa e não o vício, pois a partir do momento em que o usuário de droga a utiliza, causa lesão a si mesmo, e o direito não pune a autolesão (princípio da lesividade).
Independentemente da quantidade de drogas apreendidas, não se aplica o princípio da insignificância aos delitos de porte de substância entorpecente para consumo próprio e de tráfico de drogas, sob pena de se ter a própria revogação, contra legem, da norma penal incriminadora. Precedentes. O objeto jurídico tutelado pela norma do artigo 28 da Lei n.11.343/2006 é a saúde pública, e não apenas a do usuário, visto que sua conduta atinge não somente a sua esfera pessoal, mas toda a coletividade, diante da potencialidade ofensiva do delito de porte de entorpecentes. Para a caracterização do delito descrito no artigo 28 da Lei n.11.343/2006, não se faz necessária a ocorrência de efetiva lesão ao bem jurídico protegido, bastando a realização da conduta proibida para que se presuma o perigo ao bem tutelado. Isso porque, ao adquirir droga para seu consumo, o usuário realimenta o comércio nefasto, pondo em risco a saúde pública e sendo fator decisivo na difusão dos tóxicos. A reduzida quantidade de drogas integra a própria essência do crime de porte de substância entorpecente para consumo próprio, visto que, do contrário, poder-se-ia estar diante da hipótese do delito de tráfico de drogas, previsto no artigo 33 da Lei n.11.343/2006. (STJ. RHC 35.920/DF, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 20/05/2014, DJe 29/05/2014)
Nesse sentido, o exame de sangue ou de urina que constate que uma pessoa usou drogas não é suficiente para responsabilizá-la pelo art. 28 da Lei n. 11.343/06, pois comprova-se somente o uso de droga, mas não a prática de nenhum dos verbos núcleos do tipo. Isto é, não comprova que a pessoa adquiriu, guardou, teve em depósito, transportou ou trouxe consigo droga para consumo pessoal, salvo se restar demonstrado por outros meios de prova que o agente possuía a droga antes de usá-la, como a prova testemunhal e filmagens, aliada à confissão do agente.
Destaco a existência de entendimento no sentido de que “o uso pretérito do entorpecente não é crime, pois se a droga não mais existe – eis que consumida – o risco de difusão e propagação do entorpecente deixa de existir”10, conforme ensinamentos de Cleber Couto e Túlio Leno Góes Silva, que cita Fernando Capez e julgado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
A lei em estudo não tipifica a ação de usar a droga, mas apenas o porte, pois o que a lei visa é coibir o perigo social representado pela detenção, evitando facilitar a circulação da droga pela sociedade, ainda que a finalidade do sujeito seja apenas a de consumo pessoal. Assim, existe transcendentalidade na conduta e perigo para a saúde da coletividade, bem jurídico tutelado pela norma do art. 28. […] é exatamente por isso que a lei não incrimina o uso pretérito (desaparecendo a droga, extingue-se a ameaça) (CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal – Legislação Penal Especial. 8ª ed. Saraiva. p. 686-687).
O uso pretérito de droga, ainda que recente e induvidoso, por afirmação testemunhal ou até mesmo policial, não integra o delito porque, desaparecida a droga pela consumação, deixa de haver o risco potencial da disseminação de seu uso, fator determinante da punibilidade (TJSP – AC 122.315-3 – Rel. Reynaldo Ayrosa – JTJ 143/301).
Rogério Greco leciona que o agente que é surpreendido pela polícia logo após ter feito uso da droga “Não responderá pelo delito em estudo, pois seu comportamento não se amolda a qualquer núcleo, tampouco poderá ser objeto de prova pericial residuográfica.”11
Cleber Masson e Vinícius Marçal escrevem que “É importante recordar que o uso pretérito de droga, por si só, não configura crime. De fato, em se tratando de delito contra a saúde pública, este bem jurídico não corre perigo se a substância já deixou de existir.”12
O Tribunal de Justiça de Minas Gerais já decidiu que se o agente for encontrado quando já tiver utilizado a droga, a conduta é atípica, uma vez que não se poderá falar em “trazer consigo” aquilo que não mais existe.
Entorpecente. Posse. Descaracterização. Acusado que, ao ser preso, já havia feito uso da droga. Conduta atípica, uma vez que não se poderá falar em “trazer consigo” aquilo que não mais existe. Inteligência do art. 16 da Lei 6.368/76 (TJMG, Ap. 23.802-2, RT 673/352).13
Tal entendimento, em que pese ser majoritário, não deve prosperar, na medida em que não é possível falar em “trazer consigo” no momento da abordagem policial, mas caso haja provas de que trazia consigo imediatamente antes de consumir a droga, o agente estará em flagrante delito, pois terá praticado um crime e terá sido flagrado pelos policiais logo após a prática. A questão é a ausência de materialidade para a adoção de providências policiais, o que é uma questão probatória e não de existência de crime. O fato da substância (droga) ter deixado de existir, realmente, não coloca mais em risco o bem jurídico tutelado (saúde pública), contudo, enquanto existia, houve risco para a saúde pública.
Salienta-se que o julgado acima exposto trata da prisão da pessoa que trazia consigo droga para uso próprio na vigência da Lei n. 6.368/76, quando o porte de droga para uso pessoal possuía pena privativa de liberdade, o que inexiste desde o advento da Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006.
O Código Penal Militar prevê o crime de tráfico, posse ou uso de entorpecentes ou substância de efeito similar (art. 290), contudo, da mesma forma que o art. 28 da Lei n. 11.343/06 não utiliza os verbos usar ou consumir, razão pela qual aplica-se o mesmo raciocínio exposto neste texto para o crime previsto no art. 290 do Código Penal Militar.
Uma constatação interessante é que o nome jurídico (nomen iuris) do art. 290 é “Tráfico, posse ou uso de entorpecente ou substância de efeito similar”, contudo não há o verbo usar no tipo penal, razão pela qual a conduta de usar droga, por si só, é atípica, ainda que praticada por militares em serviço ou em local sujeito à administração militar.
Tráfico, posse ou uso de entorpecente ou substância de efeito similar
Art. 290. Receber, preparar, produzir, vender, fornecer, ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, ainda que para uso próprio, guardar, ministrar ou entregar de qualquer forma a consumo substância entorpecente, ou que determine dependência física ou psíquica, em lugar sujeito à administração militar, sem autorização ou em desacôrdo com determinação legal ou regulamentar:
Pena – reclusão, até cinco anos.
Por fim, salienta-se que é um equívoco dizer crime de “uso de drogas”. O correto é utilizar a expressão “porte de drogas para consumo pessoal”.
2 DE LIMA, Renato Brasileiro. Legislação Criminal Comentada. Volume Único. 8ª Edição. Editora JusPODIVM: Salvador. 2020. p. 1.029.
3 GRECO, Rogério. Atividade Policial. Aspectos penais, processuais penais, administrativos e constitucionais. 9ª Edição. Impetus: Niterói. 2018. p. 332.
4 DE LIMA, Renato Brasileiro. Legislação Criminal Comentada. Volume Único. 8ª Edição. Editora JusPODIVM: Salvador. 2020. p. 1.029.
5Nesse contexto: JESUS, Damásio Evangelista de. Lei Antitóxicos anotada. 3ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1997. p. 89. Na mesma linha, segundo Mendonça e Carvalho (op. cit . p. 60), “não poderia ser punido o atleta cujo exame antidoping demonstre o uso de droga , como ocorreu, há alguns anos, com um jogador de vôlei da seleção brasileira “.
6STF, 1ª Turma, HC 79.189/SP, Rei. Min . Sepúlveda Pertence, j. 12/12/2000, DJ 09/03/2001.
8Entorpecentes: posse para uso próprio: inexistência do crime ou, de qualquer sorte, de prova indispensável à condenação: habeas corpus deferido por falta de justa causa.
1. É mais que razoável o entendimento dos que entendem não realizado o tipo do art. 16 da Lei de entorpecentes (L. 6.368/76) na conduta de quem, recebendo de terceiro a droga, para uso próprio, incontinenti, a consome: a incriminação do porte de tóxico para uso próprio só se pode explicar – segundo a doutrina subjacente à lei – como delito contra a saúde pública, que se insere entre os crimes contra a incolumidade pública, que só se configuram em fatos que “acarretam situação de perigo a indeterminado ou não individuado grupo de pessoas” (Hungria).
2. De qualquer sorte, conforme jurisprudência sedimentada, o exame toxicológico positivo da substância de porte vedado é elemento essencial à validade da condenação pelo crime cogitado, o que pressupõe sua apreensão na posse do agente e não de terceiro: impossível, assim, imputar a alguém a posse anterior do único cigarro de maconha que teria fumado em ocasião anterior, se só se pode apreender e submeter à perícia resíduos daquela encontrados com o outro acusado, em contexto diverso.
(STF – HC: 79189 SP, Relator: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Data de Julgamento: 12/12/2000, Primeira Turma, Data de Publicação: DJ 09-03-2001)
9AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL PENAL. TRÁFICO DE DROGAS. (…) ALEGADA AUSÊNCIA DE MATERIALIDADE POR NÃO EXISTIR LAUDO TOXICOLÓGICO. PRESCINDIBILIDADE. PLEITO DE ABSOLVIÇÃO POR FALTA DE PROVAS. IMPOSSIBILIDADE. ÓBICE DO VERBETE SUMULAR N.º 7/STJ. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. (…) 2. A despeito da pacífica orientação desta Corte no sentido da indispensabilidade do laudo toxicológico para se comprovar a materialidade do crime de tráfico ilícito de drogas, já se posicionou esta Col. Quinta Turma (HC 91.727/MS, 5.ª Turma, Rel. Min. ARNALDO ESTEVES LIMA, DJe de 19/12/2008) no sentido de que o referido entendimento só é aplicável nas hipóteses em que a substância entorpecente é apreendida, a fim que se confirme a sua natureza. 3. Dessa forma, é possível, nos casos de não apreensão da droga, que a condenação pela prática do delito tipificado no art. 33 da Lei n.º 11.343/2006 seja embasada em extensa prova documental e testemunhal produzida durante a instrução criminal que demonstrem o envolvimento com organização criminosa acusada do delito, o que, conforme se constata dos excertos transcritos, constitui a hipótese dos autos. (…) 5. Decisão agravada que se mantém pelos seus próprios fundamentos. 6. Agravo regimental desprovido. (AgRg no AREsp 293.492/MT, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 26/08/2014, DJe 02/09/2014)
11 GRECO, Rogério. Atividade Policial. Aspectos penais, processuais penais, administrativos e constitucionais. 9ª Edição. Impetus: Niterói. 2018. p. 336.
12MASSON, Cleber. MARÇAL, Vinícius. Lei de Drogas. Aspectos Penais e Processuais. Método: São Paulo. 2019.
13 Em sentido semelhante: “Mesmo admitindo-se que o acusado houvesse confessado ter feito uso de droga, mas não tendo sido encontrada qualquer substância em seu poder, e ainda assim não poderia prosperar a sua condenação tendo por base o art. 16 da Lei 6.368/76, por não estar portando a maconha, sendo clara a atipicidade da conduta.” (TJ-RN – APR: 30905 RN 2001.003090-5, Relator: Des. Vivaldo Otavio Pinheiro, Data de Julgamento: 19/04/2002, Câmara Criminal, Data de Publicação: 09/05/2002).
• Art. 5º, XII, da Constituição Federal; • Arts. 121, § § 3º e 4º, 171, 282 e 299, todos do Código Penal; • Arts. 2º, 4º, 5º e 6º, todos da Lei n. 12.842/13; • Arts. 1º, 17 e 18, ambos da Lei n. 3.268/1957; • Art. 1º do Decreto n. 44.045/58; • Resolução CFM n. 2.070/2014; • Parecer CFM n. 25/1995; • Parecer CFM n. 08/1996; • Parecer CFM n. 17/2014; • Parecer CFM n. 21/10; • Parecer CFM n. 09/16; • Parecer do CRM/SE n. 001/2019; • Art. 1º, V, do Decreto-Lei n. 4.113/1942; • Art. 114 do Código de Ética Médica; • Art. 1º da Lei n. 6.932/81; • Art. 1º do Decreto n. 80.281/77; • Resolução CFM n. 2.221/2018; • Norma Regulamentadora 4, aprovada pela Portaria n. 3.214/1978 do Ministério do Trabalho, com a redação dada pela Portaria n. 11/90; • STF – HC 95078 ; • STJ. RHC 81451; • STJ – RHC: 115089; • STJ – HC 143.172; • STJ – REsp 1385814; • Demografia Médica no Brasil
Síntese: A doutrina majoritária sustenta que o médico que atua em área diversa da qual se especializou pratica o crime de exercício ilegal da medicina (art. 282 do CP), pois excede os limites legais de sua atuação enquanto médico, contudo este entendimento não se sustenta, pois, o crime de exercício ilegal da medicina é uma norma penal em branco e cabe exclusivamente às normas atinentes à medicina especificar os limites de atuação de um médico e o Conselho Federal de Medicina possui diversos atos normativos que são expressos em não exigir de um médico qualquer especialidade para trabalhar em qualquer ramo da medicina. A única exceção refere-se à atuação do Médico do Trabalho. O médico especialista ou não que cause a morte de um paciente durante a realização de um ato médico poderá responder pelo crime de homicídio doloso (dolo eventual) ou culposo por imperícia ou em razão da inobservância de regra técnica da profissão.
O crime de exercício ilegal da medicina encontra-se previsto no art. 282 do Código Penal.
Art. 282 – Exercer, ainda que a título gratuito, a profissão de médico, dentista ou farmacêutico, sem autorização legal ou excedendo-lhe os limites:
Pena – detenção, de seis meses a dois anos.
Parágrafo único – Se o crime é praticado com o fim de lucro, aplica-se também multa.
Nota-se que aquele que exerce a profissão de médico, ainda que sem cobrar nada para isso, sem autorização legal ou excedendo-lhe os limites, pratica o crime de exercício ilegal da medicina.
Exercer significa desempenhar, exercitar, praticar.
A doutrina sustenta que trata-se de um crime habitual, pois exercer é um verbo indicativo de habitualidade, razão pela qual não é suficiente a prática de um único ato, sendo necessário que haja uma reiteração.1
O fundamento para se tratar de um crime habitual não repousa no verbo “exercer”, pois este não indica, necessariamente, a prática de atos reiterados. Uma pessoa que realiza uma cirurgia, sem ter a qualificação necessária, exerce (pratica) uma atividade privativa da medicina. Dessa forma, o crime de exercício ilegal da medicina é habitual por se tratar de um crime contido no capítulo dos crimes contra a saúde pública, que é o bem jurídico tutelado, e a interpretação a se realizar é que não há violação à saúde pública quando se pratica um ato isolado privativo de médico, e sim uma violação à saúde individual. Soma-se ainda ao fato do tipo penal previsto no art. 282 do Código Penal exigir que o exercício seja de profissão, o que transmite a ideia de continuidade e habitualidade, uma vez que o exercício de uma profissão pressupõe, logicamente, a prática de diversos atos e não somente de um ato isoladamente.
A lei não exige um lapso temporal para que os atos sejam praticados, assim como o exercício da profissão de médico não exige a prática de atos diários, sendo possível que haja reiteração com um atendimento mensal, por exemplo. O importante é que haja continuidade, ainda que em tempos espaçados.
É irrelevante o fato do exercício da profissão se referir a somente uma pessoa ou há várias, pois o tipo penal não faz essa exigência, portanto, basta que o médico atenda uma pessoa, desde que por diversas vezes.
Excepcionalmente, é possível a consumação do crime de exercício ilegal da medicina sem que haja a prática de atos reiterados, caso seja possível constatar desde o início, inequivocamente, o propósito do agente em exercer ilegalmente a medicina.
Nesse sentido são as lições de Luiz Fernando Sicoli2:
A habitualidade, porém, não é rigorosamente indispensável, considerando-se a presença do elemento subjetivo unindo uns atos aos outros[32]: o momento em que se torna inequívoco o propósito do agente em exercer ilegalmente a profissão. Afasta-se assim, o exagero matemático de Garraud, para quem a habitualidade se configuraria com a prática reiterada de três atos.[33]
Tome como exemplo o agente que constrói uma clínica médica, mas é enfermeiro e passa a atuar como médico. A clínica possui toda estrutura para atuação de uma equipe médica, que inclusive já agendou diversas consultas e atos cirúrgicos. A prática de um único ato pelo enfermeiro como médico é suficiente para caracterizar o crime de exercício ilegal da medicina, ainda que não haja habitualidade, pois a estrutura da clínica e o agendamento das consultas e atos cirúrgicos com o enfermeiro são suficientes para demonstrar de forma inequívoca o propósito do agente. A ofensa à saúde pública é nítida, não sendo necessário aguardar que o agente pratique uma série de condutas ilegais. Além do mais, nas circunstâncias apresentadas, o exercício da profissão resta caracterizado.
De qualquer forma, a prática de um único ato isolado, como regra, não caracteriza o crime de exercício ilegal da medicina, conforme os ensinamentos de Flávio Augusto Monteiro de Barros3.
O crime de exercício ilegal da medicina pode ser praticado se o agente exerce a profissão de médico em duas situações: a) sem autorização legal; b) excedendo os limiteslegais
a) Exercício da medicina sem autorização legal
O exercício da medicina é privativo do graduado em curso superior de Medicina, que recebe a denominação de médico.
Não é suficiente que a pessoa seja formada no curso superior de Medicina para o seu exercício. É necessário que haja o prévio registro do diploma no Ministério da Educação e Cultura e inscrição no Conselho Regional de Medicina do Estado em que for atuar.
Lei n. 3.268/1957
Art. 17. Os médicos só poderão exercer legalmente a medicina, em qualquer de seus ramos ou especialidades, após o prévio registro de seus títulos, diplomas, certificados ou cartas no Ministério da Educação e Cultura e de sua inscrição no Conselho Regional de Medicina, sob cuja jurisdição se achar o local de sua atividade. (Vide Medida Provisória nº 621, de 2013)
Decreto n. 44.045/58
Art. 1º Os médicos legalmente habilitados ao exercício da profissão em virtude dos diplomas que lhes foram conferidos pelas Faculdades de Medicina oficiais ou reconhecidas do país só poderão desempenhá-lo efetivamente depois de inscreverem-se nos Conselhos Regionais de Medicina que jurisdicionarem a área de sua atividade profissional.
Parágrafo único. A obrigatoriedade da inscrição a que se refere o presente artigo abrange todos os profissionais militantes, sem distinção de cargos ou funções públicas.
O objeto da atuação do médico é a saúde do ser humano e das coletividades humanas, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo, com o melhor de sua capacidade profissional e sem discriminação de qualquer natureza (art. 2º da Lei n. 12.842/13)
O médico desenvolverá suas ações profissionais no campo da atenção à saúde para: I – a promoção, a proteção e a recuperação da saúde; II – a prevenção, o diagnóstico e o tratamento das doenças; III – a reabilitação dos enfermos e portadores de deficiências (art. 2º, parágrafo único, da Lei n. 12.842/13).
Quais são as atividades privativas do médico?
A Lei n. 12.842, de 10 de julho de 2013, conhecida como “Lei do Ato Médico”, dispõe sobre o exercício da Medicina e nos arts. 4º e 5º elenca de forma taxativa quais são as atividades privativas do médico, isto é, que só podem ser praticadas por médico.
Art. 4º São atividades privativas do médico:
I – (VETADO);
II – indicação e execução da intervenção cirúrgica e prescrição dos cuidados médicos pré e pós-operatórios;
III – indicação da execução e execução de procedimentos invasivos, sejam diagnósticos, terapêuticos ou estéticos, incluindo os acessos vasculares profundos, as biópsias e as endoscopias;
IV – intubação traqueal;
V – coordenação da estratégia ventilatória inicial para a ventilação mecânica invasiva, bem como das mudanças necessárias diante das intercorrências clínicas, e do programa de interrupção da ventilação mecânica invasiva, incluindo a desintubação traqueal;
VI – execução de sedação profunda, bloqueios anestésicos e anestesia geral;
VII – emissão de laudo dos exames endoscópicos e de imagem, dos procedimentos diagnósticos invasivos e dos exames anatomopatológicos;
VIII – (VETADO);
IX – (VETADO);
X – determinação do prognóstico relativo ao diagnóstico nosológico;
XI – indicação de internação e alta médica nos serviços de atenção à saúde;
XII – realização de perícia médica e exames médico-legais, excetuados os exames laboratoriais de análises clínicas, toxicológicas, genéticas e de biologia molecular;
XIII – atestação médica de condições de saúde, doenças e possíveis sequelas;
XIV – atestação do óbito, exceto em casos de morte natural em localidade em que não haja médico.
§ 1º Diagnóstico nosológico é a determinação da doença que acomete o ser humano, aqui definida como interrupção, cessação ou distúrbio da função do corpo, sistema ou órgão, caracterizada por, no mínimo, 2 (dois) dos seguintes critérios:
I – agente etiológico reconhecido;
II – grupo identificável de sinais ou sintomas;
III – alterações anatômicas ou psicopatológicas.
§ 2º (VETADO).
§ 3º As doenças, para os efeitos desta Lei, encontram-se referenciadas na versão atualizada da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde.
§ 4º Procedimentos invasivos, para os efeitos desta Lei, são os caracterizados por quaisquer das seguintes situações:
I – (VETADO);
II – (VETADO);
III – invasão dos orifícios naturais do corpo, atingindo órgãos internos.
§ 5º Excetuam-se do rol de atividades privativas do médico:
I – (VETADO);
II – (VETADO);
III – aspiração nasofaringeana ou orotraqueal;
IV – (VETADO);
V – realização de curativo com desbridamento até o limite do tecido subcutâneo, sem a necessidade de tratamento cirúrgico;
VI – atendimento à pessoa sob risco de morte iminente;
VII – realização de exames citopatológicos e seus respectivos laudos;
VIII – coleta de material biológico para realização de análises clínico-laboratoriais;
IX – procedimentos realizados através de orifícios naturais em estruturas anatômicas visando à recuperação físico-funcional e não comprometendo a estrutura celular e tecidual.
§ 6º O disposto neste artigo não se aplica ao exercício da Odontologia, no âmbito de sua área de atuação.
§ 7º O disposto neste artigo será aplicado de forma que sejam resguardadas as competências próprias das profissões de assistente social, biólogo, biomédico, enfermeiro, farmacêutico, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, nutricionista, profissional de educação física, psicólogo, terapeuta ocupacional e técnico e tecnólogo de radiologia.
Art. 5º São privativos de médico:
I – (VETADO);
II – perícia e auditoria médicas; coordenação e supervisão vinculadas, de forma imediata e direta, às atividades privativas de médico;
III – ensino de disciplinas especificamente médicas;
IV – coordenação dos cursos de graduação em Medicina, dos programas de residência médica e dos cursos de pós-graduação específicos para médicos.
Parágrafo único. A direção administrativa de serviços de saúde não constitui função privativa de médico.
A prática dos atos acima por quem não seja médico devidamente registrado no Conselho Regional de Medicina caracteriza o crime de exercício ilegal da medicina, por ausência de autorização legal.
Qualquer pessoa, ainda que não seja médico, pode praticar o crime de exercício ilegal da medicina na hipótese de inexistência de autorização legal, uma vez que o tipo penal exige somente o exercício da medicina sem autorização legal e qualquer pessoa que a exerça sem preencher os requisitos previstos em lei (graduação em curso superior de Medicina e registro perante o Conselho Regional de Medicina) praticará o referido crime. Trata-se, portanto, de crime comum, que é aquele crime que pode ser praticado por qualquer pessoa, pelo fato do tipo penal não exigir qualquer qualidade especial do sujeito ativo, como é o caso do crime de homicídio.
A exclusividade do exercício da medicina, da profissão de médico, não se limita à prática de atos genuinamente médicos, como atender pacientes e realizar cirurgias. Abrange também a exclusividade do exercício do magistério de disciplinas especificamente médicas (art. 5º, III, da Lei n. 12.842/13). Logo, um biólogo, por mais que seja um profundo conhecedor do coração, não poderá lecionar cardiologia nas faculdades de Medicina. Isso porque o legislador pretendeu que as aulas fossem lecionadas sob o ponto de vista teórico e prático médico. Caso uma pessoa que não seja médica lecione sobre disciplinas genuinamente médicas nas faculdades de Medicina, praticará o crime de exercício ilegal da medicina, pois estará a exercer a profissão de médico sem autorização legal.
O estudante de medicina que atua isoladamente como médico pratica o crime de exercício ilegal da medicina, assim como o farmacêutico que prescreve remédio que somente possa ser prescrito por médico, bem como qualquer pessoa que no dia a dia atue como médico.
Não configura o crime de exercício ilegal da medicina, por ausência de dolo e em razão do princípio da adequação social, os pequenos auxílios prestados a pessoas doentes no âmbito familiar, como a hipótese da mãe que possui medicamentos em casa e os fornece para o filho enfermo.
Não há crime, por ausência de dolo, nos pequenos auxílios prestados a enfermos no âmbito do recinto familiar. É o que ocorre, por exemplo, com a mãe de família que habitualmente ministra aos seus filhos xaropes caseiros para cura de resfriados.
b) Exercício da medicina excedendo os limites legais
Como se pode notar, nessa modalidade, o crime exige que o agente já seja médico, pois o tipo penal é expresso em dizer “excedendo-lhe os limites” e somente excede os limites da profissão de médico quem tem autorização para exercer a medicina, pois se não houver autorização, será a hipótese de exercer a medicina “sem autorização legal”. Cuida-se, portanto, de crime próprio, isto é, só pode ser praticado por determinadas pessoas, pois o tipo penal exige uma qualidade especial do sujeito ativo, que no caso deve, necessariamente, ser médico, dentista ou farmacêutico.
Trata-se de norma penal em branco, isto é, exige-se para a sua configuração a presença de outra lei (norma penal em branco homogênea) ou norma administrativa (norma penal em branco heterogênea) que limite ou defina as condições para o exercício da atividade profissional de medicina que, ao ser extrapolado, caracterizará o crime em análise.
Como a lei se refere ao excesso dos limites legais (das leis), tem-se uma norma penal em branco homogênea.
Quais são os limites da atuação profissional de um médico?
A Constituição Federal diz que é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer (art. 5º, XIII). Trata-se de norma de eficácia contida, pois possui aplicabilidade direta, imediata, contudo deixa margem para que o legislador restrinja o exercício profissional e estipule todos os requisitos necessários para o exercício de uma profissão, como ocorre com a medicina, dada a complexidade de seu exercício e a elevada responsabilidade social, sendo necessário impor rigorosos critérios para o seu exercício.
O Conselho Federal de Medicina, que é uma autarquia (art. 1º da Lei n. 3.268/57), é o órgão responsável por fiscalizar e normatizar a prática médica, conforme informações extraídas do site do Conselho Federal de Medicina5.
O Conselho Federal de Medicina, CFM, é um órgão que possui atribuições constitucionais de fiscalização e normatização da prática médica. Criado em 1951, sua competência inicial reduzia-se ao registro profissional do médico e à aplicação de sanções do Código de Ética Médica. Nos últimos 65 anos, o Brasil e a categoria médica mudaram muito, e hoje, as atribuições e o alcance das ações deste órgão estão mais amplas, extrapolando a aplicação do Código de Ética Médica e a normatização da prática profissional.
A Resolução CFM n. 2.070/2014 conceitua parecer como “o relatório final do processo-consulta, obrigatoriamente aprovado em plenária do Conselho de Medicina.” (art. 1º, III).
O art. 9º da Resolução CFM n. 2.070/2014 dispõe que “Os pareceres aprovados pelo Conselho Federal de Medicina, regulamentados pela presente resolução, passarão a nortear a posição sobre a matéria em todo o território nacional, inclusive em relação aos Conselhos Regionais de Medicina.”
Portanto, a atuação e prática médica é regulamentada pelo Conselho Federal de Medicina e não cabe ao Direito adentrar a essa área técnica, às Ciências Médicas para definir atribuições e limites da atuação médica.
Nesse sentido o Conselho Federal de Medicina possui diversos pareceres a respeito da atuação médica em área diversa da qual o médico se especializou.
O Parecer CFM n. 25/1995 explicita que a titulagem necessária ou obrigatória, além do diploma de médico e registro no CRM, para o exercício da medicina, não existe.
A titulação representa uma possibilidade de fomentar e estimular a especialização mediante prerrogativas culturais criadas pelas Sociedades médicas sem no entanto dispor de força legal para o impedimento do ato médico específico para o não-especialista. A publicidade do médico como especialista sim, exige o prévio registro no Conselho do título ou da qualificação específica conforme resolução do CFM nº 1.288/89 para efeito de fiscalização da especialidade praticada.
A titulagem necessária ou obrigatória não existe, ressalvado o disposto no artigo 17 da lei 3268/57 que dá ao médico competência legal para exercer a medicina ou seus ramos em aparente confronto com o dever legal com o art. 2° do CEM que recomenda ao médico oferecer o “melhor do progresso cientifico” ao paciente, sobre “tudo não praticar ato profissional danoso” (art.29) e “não incorrer em má pratica por imperícia, imprudência ou negligência”, como garantia de qualidade.
O Parecer CFM n. 08/1996 assevera que nenhum especialista possui exclusividade na realização de qualquer ato médico e que o título de especialista é apenas presuntivo de um plus de conhecimento em uma determinada área da ciência médica.
(…) o conhecimento médico e os atos e procedimentos dele decorrente são de uso amplo e irrestrito de todos os médicos, que deverão utilizá-lo com competência e responsabilidade, visando sempre o bem-estar do paciente
O Parecer CFM n. 17/2014 afirma que “Os Conselhos Regionais de Medicina não exigem que um médico seja especialista para trabalhar em qualquer ramo da Medicina, podendo exercê-la em sua plenitude nas mais diversas áreas, desde que se responsabilize por seus atos e, segundo a nova Resolução CFM n° 1.701/03, não as propague ou anuncie sem realmente estar neles registrado como especialista.”
Em outro parecer, de autoria do conselheiro Edson de Oliveira Andrade, este faz uma análise histórica sobre o surgimento das especialidades médicas, relatando que em nome de um conhecimento crescente fragmentou-se o ser humano e, assim, nasceram as especialidades.
No parecer, conclui que o conhecimento médico e os atos e procedimentos dele decorrentes são de uso amplo e irrestrito de todos os médicos, que deverão utilizá-lo com competência e responsabilidade,visando sempre o bem-estar do paciente, e prossegue dizendo que o campo de ação de uma especialidade não constitui fronteira intransponível no universo médico. Sua superação é permitida a todos os médicos,que responderão por seus atos quando agirem com imprudência, imperícia ou negligência.
O Parecer CFM n. 21/10 assevera que “O médico devidamente inscrito no Conselho Regional de Medicina está apto ao exercício legal da medicina, em qualquer de seus ramos; no entanto, só é lícito o anúncio de especialidade médica àquele que registrou seu titulo de especialista no Conselho.”
Assim, diante da farta documentação, de caráter normativo, acostada à consulta, reafirmamos que a qualquer médico inscrito no Conselho Regional de Medicina de sua jurisdição é lícito exercer toda a medicina, devendo o mesmo pautar-se única e exclusivamente pelo Código de Ética Médica, que abrange todas as situações de responsabilidades em relação ao trabalho médico.
Quanto ao anúncio de especialidade médica, sob qualquer forma, inclusive em catálogos, placas, carimbos ou cartão profissional, só é lícito praticá-la os médicos com título de especialista devidamente registrado no Conselho Regional de Medicina (CRM), constituindo infração ética o não seguimento dessa norma.
O Parecer CFM n. 09/16 dispõe que “O médico devidamente registrado no Conselho Regional de Medicina (CRM) da jurisdição na qual atua está apto a exercer a profissão em toda sua plenitude, sendo impedido apenas de anunciar especialidade sem o registro do respectivo título no CRM.”
Não é necessário que o médico, atuando como perito, seja especialista em determinada área para poder emitir parecer sobre assuntos das diversas especialidades, pois os conhecimentos adquiridos nas escolas médicas o habilitam a entender os procedimentos e condutas de outras especialidades médicas. Existe vedação apenas para o anúncio de especialidade que não esteja registrada no CRM. O médico que não se considere apto para realização de perícia em determinada área poderá solicitar a sua destituição.
O Parecer do Conselho Regional de Medicina do Estado de Sergipe n. 001/2019 tratou do limite da atuação médica de acordo com o Código de Ética Médica e a Lei do Ato Médico, tendo concluído que a todo médico é permitida a realização de qualquer ato médico, em sua plenitude, em todos os seus ramos, desde que esteja devidamente registrado no Conselho Regional de Medicina, estando proibido de propagandear títulos que não possa comprovar, conforme o Artigo n. 115 (sic) do Código de Ética Médica, sendo o médico o responsável pleno pelos seus atos.
Ao médico é vedado somente a divulgação de especialidade que não possui, na forma do art. 1º, V, do Decreto-Lei n. 4.113/1942 e art. 114 do Código de Ética Médica.
Decreto-Lei n. 4.113/1942
Art. 1º É proibido aos médicos anunciar:
V – especialidade ainda não admitida pelo ensino médico, ou que não tenha tido a sanção das sociedades médicas;
Código de Ética Médica
Art. 114. Anunciar títulos científicos que não possa comprovar e especialidade ou área de atuação para a qual não esteja qualificado e registrado no Conselho Regional de Medicina.
O profissional que possui diploma de graduação em Medicina e esteja regularmente inscrito perante o Conselho Regional de Medicina6 está habilitado e autorizado a atuar em qualquer ramo da medicina, ainda que não possua nenhuma especialização. Também poderá atuar em especialização diversa da qual possui.
A doutrina majoritária7 sustenta que o médico que atua em área diversa da qual se especializou pratica o crime de exercício ilegal da medicina (art. 282 do CP), pois excede os limites legais de sua atuação enquanto médico, contudo este entendimento não se sustenta, pois, como exposto, o crime de exercício ilegal da medicina é uma norma penal em branco e cabe exclusivamente às normas atinentes à medicina especificar os limites de atuação de um médico e o Conselho Federal de Medicina possui diversos atos normativos que são expressos em não exigir de um médico qualquer especialidade para trabalhar em qualquer ramo da medicina (Parecer CFM nº 27/95; Parecer CFM nº 08/96; Parecer CFM nº 17/04; Parecer CFM nº 9.212/09; Parecer CFM nº 21/10; Parecer CFM nº 09/16).
Portanto, não há crime quando um médico clínico geral realiza cirurgia plástica ou um pediatra realiza uma cirurgia para a retirada de um tumor cerebral ou então se um médico sem nenhuma especialização realiza uma cirurgia cardíaca. Isto é, basta se formar em medicina, possuir o diploma e registro perante o Conselho Regional de Medicina para exercer a profissão em sua plenitude, pois o Conselho Federal de Medicina não exige que o médico faça residência ou especialização, conforme os diversos atos normativos mencionados.
Assim como o advogado pode atuar em qualquer ramo do direito, ainda que não possua nenhuma especialização, o médico sem nenhuma especialização também pode atuar em qualquer ramo da medicina ou atuar em uma área diversa da qual se especializou.
Na minha opinião a não exigência de especialização para que os médicos atuem em qualquer ramo da medicina decorre de um contexto histórico em que havia poucos médicos, um número significativamente menor de especialistas e necessidade de atuação nas mais diversas áreas, alinhado ao fato da formação em medicina fornecer os conhecimentos técnicos necessários para a atuação médica em qualquer área.
Conforme estudos divulgados pela Demografia Médica no Brasil8, em 1950 havia 0,36 médico para cada 1.000 habitantes. Em 2020 há 2,20 médicos para cada grupo de 1.000 habitantes com projeção de aumento do total de médicos para cada 1.000 habitantes.
Em 2018 o Conselho Federal de Medicina divulgou estudo em que afirma que a cada 10 médicos, 06 são especialistas no Brasil.9
As conclusões da Demografia Médica 2018 são no sentido de que o número de “especialistas vem crescendo no Brasil, sobretudo em função da expansão de programas e vagas de residência médica.”10
Atualmente, o número de especialistas no Brasil já supera o número de médicos que não fizeram especialização e a tendência é este número aumentar cada vez mais, pois o mercado tem exigido que o médico seja cada vez mais especialista e, atualmente, tem se tornado comum a realização de especialização da especialização. Muitos hospitais particulares não contratam médicos sem especialização, os concursos públicos para a área médica exigem especialização e a Norma Regulamentadora 4, aprovada pela Portaria n. 3.214/1978 do Ministério do Trabalho, com a redação dada pela Portaria n. 11/90, exige que as empresas obrigadas a constituir Serviços Especializados em Engenharia de Segurança e Medicina do Trabalho deverão exigir do Médico do Trabalho o certificado de conclusão de curso de especialização em Medicina do Trabalho, em nível de pós-graduação, ou portador de certificado de residência médica em área de concentração em saúde do trabalhador. Com o tempo o mercado vai se fechar ou ficar mais difícil ainda para os médicos generalistas (sem especialização).
Dessa forma, acredito que com o tempo o Conselho Federal de Medicina deva adotar novo entendimento e passar a exigir que o médico atue somente dentro de sua área de especialização, permitindo-se a atuação fora da área somente nas regiões e locais em que não houver médico especialista. Na prática, é assim que tem ocorrido, como decorrência da exigência natural do mercado, em que pese, teoricamente, ser possível a atuação do médico em qualquer ramo da medicina.
A Residência Médica é uma modalidade de ensino de pós-graduação, destinada a médicos, sob a forma de cursos de especialização, caracterizada por treinamento em serviço, funcionando sob a responsabilidade de instituições de saúde, universitárias ou não, sob a orientação de profissionais médicos de elevada qualificação ética e profissional (art. 1º da Lei n. 6.932/81 e art. 1º do Decreto n. 80.281/77).
Na Residência Médica o médico recebe uma bolsa que, atualmente, é de R$3.330,43 (três mil, trezentos e trinta reais e quarenta e três centavos) para atuar em regime especial de treinamento em serviço por no máximo 60 (sessenta) horas semanais, não sendo incomum que extrapole essa carga horária.
No dia a dia o médico residente acompanha e pratica de diversos atos da especialidade que faz residência, dos mais simples aos mais complexos, acompanhado de um médico especialista. A Residência Médica é, predominantemente, prática, devendo possuir atividades teórico-práticas de 10% a 20% da carga horária.
O tempo de Residência Médica varia de acordo com a especialidade. Exemplificadamente, neurocirurgia são 05 anos; anestesiologia são 03 anos11 e pediatria são 02 anos.
Nota-se que durante a Residência Médica há um relevante aprofundamento prático e teórico que torna o médico profundo conhecedor da área em que decidiu se especializar.
Em que pese o Conselho Federal de Medicina não exigir formação específica de qualquer médico para atuar em qualquer ramo da medicina, é prudente, é recomendável, é razoável exigir, na prática, que o médico seja especialista para a prática de determinados atos médicos, como a realização de cirurgias e anestesias mais complexas. Ora, se para ser médico neurocirurgião exige-se 05 anos de residência, qual é o sentido em permitir que um médico que possui somente a graduação em Medicina realize uma neurocirurgia?
De qualquer forma, sob o ponto de vista da ética profissional e criminal, não há nenhuma irregularidade.
Irregularidade haverá caso o médico anuncie possuir especialidade que não tem (art. 1º, V, do Decreto-Lei n. 4.113/1942 e art. 114 do Código de Ética Médica). O simples fato de anunciar possuir especialidade a qual não tem é infração ética e caso atraia pacientes pelo fato de anunciar ser especialista em determinada área, sem ser, de forma que receba pagamento (honorários médicos) pelos atendimentos que os pacientes acreditam ser realizados por especialista, haverá a prática de crime de estelionato (art. 171 do CP), pois há a utilização de meio fraudulento para atrair pacientes e receber vantagem ilícita, pois se os pacientes soubessem que o médico não fosse especialista, sequer o teria procurado.
Caso o anúncio do médico como especialista se dê em documentos, como um “cartão de visita” ou em páginas na internet, e não chegue a atrair pacientes em razão da especialidade, haverá somente infração ética, devendo-se aplicar o mesmo raciocínio do Superior Tribunal de Justiça ao decidir que a inserção de informações falsas no currículo Lattes é fato atípico, pois a informação de que o médico é especialista é típica de currículo.
Não é típica a conduta de inserir, em currículo Lattes, dado que não condiz com a realidade.
Isso não configura falsidade ideológica (art. 299 do CP) porque:
1) currículo Lattes não é considerado documento por ser eletrônico e não ter assinatura digital;
2) currículo Lattes é passível de averiguação e, portanto, não é objeto material de falsidade ideológica. Quando o documento é passível de averiguação, o STJ entende que não há crime de falsidade ideológica mesmo que o agente tenha nele inserido informações falsas.
STJ. 6ª Turma. RHC 81451-RJ, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 22/8/2017 (Info 610).12
O excesso dos limites legais no exercício da medicina deve ser funcional e não espacial, pois a norma visa a proteção da saúde pública, visa assegurar que o profissional da saúde tenha conhecimentos técnicos e científicos suficientes para atuar na medicina, o que é comprovado mediante a graduação no curso de Medicina. O fato de um médico ser registrado perante o Conselho Regional de Medicina de um estado atuar em outro, sem registar no CRM do outro estado, não é crime. Trata-se de infração administrativa.
O art. 17 da Lei n. 3.268/17 afirma que para o médico atuar deve se inscrever no Conselho Regional de Medicina, sob cuja jurisdição se achar o local de sua atividade. Onde consta jurisdição deve-se entender por circunscrição, pois jurisdição é a atividade estatal exercida para a aplicação do direito ao caso concreto, e a circunscrição delimita um espaço territorial.
O art. 18 da Lei n. 3.268/17, por sua vez, assevera que o médico que possuir a carteira profissional estará habilitado a exercer a medicina em todo o país, desde que esteja registrado de acordo com a lei que, por sua vez, trata da necessidade de se inscrever perante o Conselho Regional de Medicina do estado em que atua, ainda que já esteja inscrito em outro.
Art . 18. Aos profissionais registrados de acôrdo com esta lei será entregue uma carteira profissional que os habitará ao exercício da medicina em todo o País.
§ 1º No caso em que o profissional tiver de exercer temporàriamente, à medicina em outra jurisdição, apresentará sua carteira para ser visada pelo Presidente do Conselho Regional desta jurisdição.
§ 2º Se o médico inscrito no Conselho Regional de um Estado passar a exercer, de modo permanente, atividade em outra região, assim se entendendo o exercício da profissão por mais de 90 (noventa) dias, na nova jurisdição, ficará obrigado a requerer inscrição secundária no quadro respectivo, ou para êle se transferir, sujeito, em ambos os casos, à jurisdição do Conselho local pelos atos praticados em qualquer jurisdição.
§ 3º Quando deixar, temporária ou definitivamente, de exercer atividade profissional, o profissional restituirá a carteira à secretaria do Conselho onde estiver inscrito.
Luiz Regis Prado13 sustenta que “Ocorre o excesso no exercício da profissão de médico quando este atesta óbito de pessoa que foi tratada por não diplomado em medicina ou também quando se manipulam medicamentos.” Ocorre que o médico que manipula medicamentos exerce a atividade exclusiva de farmacêutico14, sem autorização legal, razão pela qual se enquadra no exercício ilegal da profissão em decorrência de não possuir autorização legal e não por exceder os limites da profissão.
Um exemplo de excesso do exercício profissional da medicina por inobservância dos limites legais ocorre quando um médico que trabalha em uma empresa que é obrigada a manter Serviços Especializados em Engenharia de Segurança e Medicina do Trabalho, que são aquelas que possuem empregados regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), atua como Médico do Trabalho, sem possuir esta especialidade, pois, especificamente, neste caso, a Norma Regulamentadora 4, aprovada pela Portaria n. 3.214/1978 do Ministério do Trabalho, com a redação dada pela Portaria n. 11/90, exige a atuação do Médico do Trabalho.
Quais são as consequências criminais do erro médico culposo que resulta na morte do paciente quando o médico não possui especialização na área em que realizou o ato médico?
O art. 121, § 3º, do Código Penal prevê o crime de homicídio culposo.
A culpa decorre da imprudência, negligência ou imperícia (art. 18, II, do CP).
A imprudência é a culpa positiva, o agente atua sem os cuidados necessários, sem cautela, pratica um ato de forma afoita. A negligência é a culpa negativa, o agente deixa de fazer o que deveria, em razão da omissão, desatenção. A imperícia é a culpa profissional, o agente em que pese possuir autorização para o exercício de determinada arte, profissão ou ofício, não possui conhecimentos teóricos e práticos suficientes.
Imperícia é a chamada culpa profissional, que se traduz na falta de aptidão para o exercício de arte, profissão ou ofício. Verifica-se sempre no exercício de uma atividade em que o agente, não obstante autorizado a exercê-la, não dispõe dos conhecimentos teóricos ou práticos para bem desempenhá-la. É o caso do médico que, não possuindo cabedal suficiente para efetuar certa operação, provoca a morte do paciente.
É mister não confundir imperícia com negligência ou imprudência cometida no exercício de arte, profissão ou ofício. Na imperícia, o profissional inobserva a regra técnica ou prática que, devido ao despreparo, ele desconhecia. Na negligência, o profissional inobserva por desleixo uma regra que ele conhecia. Exemplo: o médico esquece uma pinça dentro do abdômen do paciente. Na imprudência, o profissional pratica um ato perigoso (ex.: médico realiza a cirurgia por um processo complexo quando podia efetuá-la por processo simples).
Não se perca de vista, porém, que a imperícia deve sempre ocorrer no exercício de uma atividade (arte, profissão ou ofício) que o agente esteja autorizado a exercer, caso contrário, sob o prisma jurídico, será imprudência ou negligência. O motorista que tem habilitação legal, mas não sabe dirigir o veículo que conduz, será imperito. Se, além de não saber dirigir, ainda não tem carteira de habilitação, será imprudente.
O § 4º do art. 121 do Código Penal traz as causas de aumento do crime de homicídio, dentre as quais se encontra a inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício.
§ 4o No homicídio culposo, a pena é aumentada de 1/3 (um terço), se o crime resulta de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, ou se o agente deixa de prestar imediato socorro à vítima, não procura diminuir as conseqüências do seu ato, ou foge para evitar prisão em flagrante. Sendo doloso o homicídio, a pena é aumentada de 1/3 (um terço) se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (quatorze) ou maior de 60 (sessenta) anos. (Redação dada pela Lei nº 10.741, de 2003)
A primeira (inobservância da regra técnica de profissão, arte ou ofício) só tem incidência quando houver relação de causalidade entre a morte da vítima e a não-observância da regra técnica de arte, profissão ou ofício. Aproxima-se da imperícia, pois, em ambas, comum é a não-observância de regra técnica de arte, profissão ou ofício.
A diferença é que, na imperícia, o agente não dispõe do conhecimento técnico não-observado; embora habilitado legalmente, falta-lhe aptidão para o exercício da arte, profissão ou ofício, enquanto na majorante do § 4º do art. 121, ao contrário, o agente tem esses conhecimentos técnicos, deixando, porém, de empregá-los, por indiferença ou leviandade.
Se, por exemplo, o médico especialista em cirurgia cardíaca, por descuido, cortasse um nervo do paciente, causando-lhe a morte, configurar-se-ia a aludida majorante, pois o profissional dispunha do conhecimento técnico não observado. Suponha-se, porém, que, ao invés de um especialista, a cirurgia fosse feita por um médico bisonho, que, por não dispor a necessária habilidade, cortasse o mesmo nervo do paciente. Nesse caso, tratar-se-ia de simples perícia e a majorante seria excluída.
Rogério Sanches17 também explica que na inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, diferentemente, da imperícia, o agente tem aptidão para desempenhar a atividade, mas acaba por provocar a morte em razão de descaso por desatender e não atuar de acordo com os conhecimentos técnico que possui.
Enquanto que no homicídio culposo por imperícia o agente não possui conhecimentos técnicos e científicos suficientes para o exercício da atividade, razão pela qual causa a morte da vítima, no homicídio culposo por inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, o agente possui os conhecimentos técnicos e científicos necessários para o desempenho da atividade, contudo, por desleixo, por descuido, deixa de empregá-los durante a atuação profissional, o que resulta na morte do paciente.
O Conselho Federal de Medicina afirma que nenhum especialista possui exclusividade na realização de qualquer ato médico e que o título de especialista é apenas presuntivo de um plus de conhecimento em uma determinada área da ciência médica e afirma que o conhecimento médico e os atos e procedimentos dele decorrente são de uso amplo e irrestrito de todos os médicos, que deverão utilizá-lo com competência e responsabilidade, visando sempre o bem-estar do paciente.18
Portanto, partindo desse pressuposto pode-se afirmar que qualquer médico pode realizar qualquer ato médico (de simples atendimentos clínicos à realização de cirurgias complexas), desde que possua conhecimento técnico e científico suficientes para a realização do ato médico.
O fato de um médico não possuir especialização ou possuí-la em área diversa da qual atua obriga-o a comprovar ter condições de atuar na área que decide exercer a medicina. Portanto, a distinção entre imperícia e inobservância de regra técnica de profissão não se encontra, necessariamente, na distinção entre médicos que possuem ou não especialização, e sim no conhecimento técnico e científico que cada médico possui, o que não se comprova formalmente, em que pese ser a regra.
Tome como exemplo um médico formado há décadas que sempre atuou como cirurgião cardíaco, sem, no entanto, possuir o título de especialista. Passados 50 anos de atuação como cirurgião cardíaco, o médico erra em uma cirurgia ao cortar, por descuido, determinada veia, o que resulta na morte do paciente. Haverá o crime de homicídio culposo por imperícia ou por inobservância de regra técnica de profissão? Homicídio por inobservância de regra técnica de profissão, pois, em que pese não possuir a titulação formal de especialista, possui conhecimentos técnicos e científicos para exercer a atividade e, no caso concreto, deixou de observá-lo por descuido.
Da mesma forma, um médico que se especializou em neurocirurgia decide se afastar da atividade de médico por 20 anos e ao retornar não procurou se atualizar e exercitar os conhecimentos que possuía há mais de 20 anos, assumindo, logo no primeiro ato médico após o retorno, o comando de uma neurocirurgia complexa, vindo o paciente a morrer. Haverá o crime de homicídio por imperícia médica, pois o médico já não detinha mais os conhecimentos técnicos para o exercício da atividade, o que resultou na morte do paciente.
A regra é que o médico que não for especialista, no sentido formal, isto é, que tenha realizado Residência Médica na área em que atua, responda pelo crime de homicídio culposo resultante de imperícia e não por inobservância de regra técnica de profissão, pois não possuirá os conhecimentos técnicos e científicos necessários para a realização de ato médico em área diversa da qual atua. Lado outro, caso o médico possua especialização na área que atua, deve responder por homicídio culposo por inobservância de regra técnica de profissão.
Destaca-se, mais uma vez, que esta é a regra, pois a titulação de especialista gera presunção relativa de conhecimento técnico e científico na área em que o médico atua.
Portanto, sob o ponto de vista penal, a regra é que a pena para o crime de homicídio culposo praticado por médico não especialista, seja menor do que aquele praticado por médico especialista, pois este possui um maior grau de habilidade que deve ser empregado no exercício da atividade médica e o erro médico possui uma maior reprovabilidade, já que se espera de um médico especialista maior técnica na prática do ato médico.
Homicídio culposo por imperícia
Homicídio culposo por inobservância de regra técnica de profissão
Art. 121. Matar alguém: § 3º Se o homicídio é culposo: (Vide Lei nº 4.611, de 1965)PENA – DETENÇÃO, DE UM A TRÊS ANOS.
Art. 121. Matar alguém: § 3º Se o homicídio é culposo: (Vide Lei nº 4.611, de 1965)PENA – DETENÇÃO, DE UM A TRÊS ANOS. § 4oNo homicídio culposo, a pena é AUMENTADA DE 1/3 (UM TERÇO), se o crime resulta de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, ou se o agente deixa de prestar imediato socorro à vítima, não procura diminuir as conseqüências do seu ato, ou foge para evitar prisão em flagrante. Sendo doloso o homicídio, a pena é aumentada de 1/3 (um terço) se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (quatorze) ou maior de 60 (sessenta) anos. (Redação dada pela Lei nº 10.741, de 2003)
É importante destacar que o médico não especialista que não possua nenhum conhecimento técnico e científico para atuar em determinada área da medicina com risco de vida para o paciente, dada a alta complexidade, e ainda assim atua, o que resulta na morte do paciente, por falta de conhecimento, deverá responder por homicídio doloso, pois ao atuar sem possuir os conhecimentos técnicos e científicos necessários para a realização de uma cirurgia de alta complexidade, como ocorre ao se realizar uma cirurgia com a finalidade de retirar um grave tumor cerebral, assume o risco de matar o paciente e incide, portanto, em dolo eventual. No dolo eventual o agente prevê o resultado, que no caso é a real possibilidade de morte, e assume o risco de sua ocorrência, pois sabe que não tem conhecimentos para realizar a neurocirurgia, e ainda assim, realiza o ato (cirurgia para a retirada do tumor cerebral). A pena para o crime de homicídio doloso simples é de 06 a 20 anos e para o homicídio qualificado é de 12 a 30 anos.
Dessa forma, é possível afirmar que há uma gradação de responsabilidade do médico, de acordo com os conhecimentos técnicos e científicos que possui para realizar determinado ato médico. A ausência do mínimo conhecimento técnico e científico, cuja a morte seja previsível em razão da prática do ato médico, e ainda assim, o médico atua, e o paciente vem a morrer, resulta na prática de homicídio doloso (dolo eventual). A ausência de conhecimento técnico e científico suficiente para realizar a cirurgia que implica em morte, resulta no crime de homicídio culposo em razão da imperícia. Por fim, a morte do paciente em razão de um erro médico provocado por um especialista resulta na prática de homicídio culposo em razão da inobservância de norma técnica.
É possível reconhecer o erro médico para caracterizar a formação da culpa e, portanto, condenar o médico pelo crime de homicídio culposo com o reconhecimento da inobservância da regra técnica de profissão ou seria bis in idem (dupla punição pelo mesmo fato)?
O tema é controverso!
O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça possuem julgados que admitem a possibilidade de reconhecer o homicídio culposo por imperícia e, concomitantemente, a causa de aumento decorrente da inobservância da regra técnica de profissão, desde que o fundamento seja diverso, sob pena de incidir em bis in idem, o que é vedado.
A seguir, decisão do Superior Tribunal de Justiça que invocou decisão do STF para reconhecer o bis in idem e afastar o reconhecimento da causa de aumento por inobservância da regra técnica de profissão.
PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. ART. 121, §§ 3º e 4º, DO CÓDIGO PENAL. EXCLUSÃO DA CAUSA DE AUMENTO INSERTA NO § 4º DO ART. 121 DO CÓDIGO PENAL. INOBSERVÂNCIA DE REGRA TÉCNICA DE PROFISSÃO. BIS IN IDEM. OCORRÊNCIA. RECURSO PROVIDO.
1. “A imputação da causa de aumento de pena por inobservância de regra técnica de profissão, objeto do disposto no art. 121, § 4º, do Código Penal, só é admissível quando fundada na descrição de fato diverso daquele que constitui o núcleo da ação culposa” (STF, relator Ministro CEZAR PELUSO, Segunda Turma, julgado em 10/3/2009, DJe de 15/5/2009).
2. Na hipótese, a denúncia consignou que a recorrente teria agido com negligência e imprudência, porquanto teria realizado “procedimento médico em local inapropriado (residência), sem recursos técnico-médicos de emergência, com produto (PMMA) considerado perigoso pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica. Deixou, com isso, de observar regras técnicas de profissão”. Extrai-se do excerto que a incoativa não declinou outro fator de discrímen – na linha dos precedentes desta Corte e do Supremo Tribunal Federal -, baseado em fato diverso do núcleo da ação que levou a vítima a óbito.
3. Recurso provido para decotar a majorante prevista no § 4º do art. 121 do Código Penal, com a consequente remessa dos autos ao Ministério Público para que avalie a possibilidade de oferecimento da proposta de suspensão condicional do processo.
(STJ – RHC: 115089 SP 2019/0195421-3, Relator: Ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, Data de Julgamento: 20/08/2019, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 03/09/2019)
“Não tendo a denúncia, na espécie, descrito fato diverso daquele que constitui o núcleo da ação culposa, a majorante deve ser afastada, sob pena de ocorrência de bis in idem. Veja-se que, o só ato de ser médico, não é suficiente, nos termos do entendimento jurisprudencial, para fazer incidir a causa especial de aumento, pois, em última ratio, na hipótese, seria elemento da própria culpa” (HC 143.172/RJ, j. 17/12/2015).19
Em outro caso, o STJ reconheceu a causa de aumento da inobservância de regra técnica da profissão por ter sido comprovado que a constatação da culpa tinha fundamento diverso da causa de aumento.
RECURSO ESPECIAL. PENAL. HOMICÍDIO CULPOSO. ACÓRDÃO RECORRIDO. OMISSÕES. INEXISTÊNCIA. PENA-BASE. MAJORAÇÃO. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. CAUSA DE AUMENTO. INOBSERVÂNCIA DE REGRA TÉCNICA DA PROFISSÃO. BIS IN IDEM. AUSÊNCIA.
1. O decisum recorrido não possui as omissões apontadas, pois o Tribunal estadual, fundamentadamente, apreciou a controvérsia. Apenas concluiu de modo contrário ao defendido pelo recorrente, o que não configura nulidade. Não houve, portanto, afronta aos arts.V619 do Código de Processo Penal, 128 e 535 do Código de Processo Civil.
2. O Tribunal a quo valorou negativamente as circunstâncias do crime, em razão do intenso sofrimento pelo qual passou a vítima, de pouca idade, antes de vir a óbito, o qual decorreu de complicação pós-cirúrgica. Cuida-se de elemento concreto não inerente ao tipo penal de homicídio culposo, mostrando-se idôneo o fundamento para justificar a majoração da pena-base.
3. Se a caracterização da culpa está lastreada na negligência (omissão no dever de cuidado) e a aplicação da causa de aumento da inobservância de regra técnica se assenta em outros fatos (prescrição de medicamento inadequado), inexiste o alegado bis in idem na incidência da aludida majorante.
4. Recurso especial improvido, com determinação de imediato início do cumprimento da pena, vencidos, apenas quanto à execução provisória da pena, o Relator e a Sra. Ministra Maria Thereza de Assis Moura.
(REsp 1385814/MG, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 21/06/2016, DJe 15/09/2016)
Em que pese a doutrina e a jurisprudência sustentarem ser inaplicável a causa de aumento de pena da inobservância de regra técnica da profissão ao se reconhecer o homicídio culposo, quando pautado no mesmo fato, sob pena de constituir bis in idem ou sob o argumento de que a inobservância de regra técnica é a própria imperícia20, tal raciocínio não merece prosperar, pois é perfeitamente possível reconhecer que o médico agiu com imperícia, mas não inobservou regra técnica da profissão, quando ficar demonstrado que não possuía os conhecimentos técnicos suficientes para a realização do ato médico. Para que haja inobservância de determinada regra técnica, é necessário conhecê-la e saber aplicá-la e no caso concreto, por descuido, o médico pode deixar de observar este conhecimento técnico que possuía. Logo, não há nenhuma incompatibilidade no reconhecimento simultâneo do homicídio culposo com a causa de aumento de pena por inobservância de regra técnica quando o homicídio decorrer de um único fato, pois a finalidade do tipo penal é exatamente reconhecer a maior reprovabilidade daquele que possuidor de conhecimento técnico não o observa no exercício da profissão. Todo médico é habilitado a exercer a medicina em sua plenitude, em todas as áreas, ainda que não seja especialista. Dessa forma, caso o médico realize uma cirurgia sem possuir o conhecimento técnico suficiente para realizá-la, em que pese ser habilitado para tal, deverá responder por homicídio culposo, sem o reconhecimento da causa de aumento de pena, pois foi imperito e não deixou de observar regra técnica no exercício da profissão, pois esta regra técnica sequer era de conhecimento do médico.
Em sentido semelhante ao raciocínio exposto, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que o “legislador, ao estabelecer a circunstância de especial aumento de pena prevista no art. 121, § 4º, 1ª parte, do CP, pretendeu impor uma maior reprovabilidade na conduta do profissional, que, ao agir de forma culposa, o fez com inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, não havendo, então, o que se falar em bis in idem.”21
NOTAS
1MASSON, Cleber. Código Penal Comentado. 8ª ed. São Paulo: Editora Método, 2020. p. 1145.
3 BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Manual de Direito Penal. Partes Geral e Especial. Volume Único. 1ª Ed. Salvador: Editora JusPODIVM. 2019. p. 1286.
4ALVES, Jamil Chaim. Manual de Direito Penal: Parte Geral e Parte Especial. 1. ed. Salvador: JusdPodivm, 2020. p. 1.350.
6 Art. 17 da Lei n. 3.268/1957 e Art. 1º do Decreto n. 44.045/58.
7 ALVES, Jamil Chaim. Manual de Direito Penal: Parte Geral e Parte Especial. 1. ed. Salvador: JusdPodivm, 2020. p. 1349; CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal. Parte Especial. Salvador: Editora JusPODIVM. 2017. p. 655; MASSON, Cleber. Código Penal Comentado. 8ª ed. São Paulo: Editora Método, 2020. p. 1145.
13 PRADO, Luiz Regis. Tratado de Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Forense. 2019.
14Resolução CFA n. 467, de 28/11/2007. Art. 1º No exercício da profissão farmacêutica, sem prejuízo de outorga legal já conferida, é de competência privativa do farmacêutico, todo o processo de manipulação magistral e, oficinal, de medicamentos e de todos os produtos farmacêuticos.
15 BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Manual de Direito Penal. Partes Geral e Especial. Volume Único. 1ª Ed. Salvador: Editora JusPODIVM. 2019. p. 275.
16 BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Manual de Direito Penal. Partes Geral e Especial. Volume Único. 1ª Ed. Salvador: Editora JusPODIVM. 2019. p. 709.
17 CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal. Parte Especial. Salvador: Editora JusPODIVM. 2017. p. 80.
20 ALVES, Jamil Chaim. Manual de Direito Penal: Parte Geral e Parte Especial. 1. ed. Salvador: JusdPodivm, 2020. p. 753.
21 HC 181.847/MS, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Rel. p/ Acórdão Ministro CAMPOS MARQUES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/PR), QUINTA TURMA, julgado em 04/04/2013, DJe 02/05/2013.
REFERÊNCIAS
ALVES, Jamil Chaim. Manual de Direito Penal: Parte Geral e Parte Especial. 1. ed. Salvador: JusdPodivm, 2020.
Fundamentos • Art. 144 da CF • Art. 144, § 8º, da CF • Art. 5º, I, e art. 37, ambos da CF • Lei 13.022/14 (Estatuto Geral das Guardas Municipais) • Art. 48, § 2º, da Lei 11.343/06 • Art. 69 da Lei n. 9.099/95 • STF – ADI 3807
Síntese: Os guardas municipais não podem lavrar termo circunstanciado de ocorrência, pois não são autoridades policiais, e sim autoridades municipais da Guarda Civil, e o art. 69 da Lei n. 9.099/95 autoriza a lavratura somente por autoridades policiais, contudo nada impede que haja alteração legislativa que permita a lavratura do TCO pelos guardas municipais, pois não se trata de ato de investigação nem privativo de autoridades policiais, pois o Supremo Tribunal Federal decidiu na ADI 3807 que juízes podem lavrar TCO quando envolver a prática do crime previsto no art. 28 da Lei n. 11.343/06 (porte de drogas para consumo pessoal).
A Constituição Federal preceitua que “Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei” (art. 144, § 8º).
A Constituição menciona que os municípios poderão constituir guardas municipais e a Lei 13.022/14 – Estatuto Geral das Guardas Municipais – expressa que o município pode criar, por lei, sua guarda municipal (art. 6º).
Trata-se de uma faculdade do Poder Público Municipal e não de uma obrigação, portanto, o ato de criação é discricionário e deve observar a realidade socioeconômica de cada município.
A função da Guarda Municipal é a proteção dos bens, serviços e instalações municipais, conforme dispuser a lei.
Os bens referem-se aos bens públicos, às coisas, móveis ou imóveis, corpóreas ou incorpóreas, semoventes e tudo aquilo que pertence à pessoa jurídica de direito público municipal. Inclui-se nesse conceito os bens das pessoas de direito privado que estejam afetados ao interesse da coletividade.
O art. 98 do Código Civil dispõe que “São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem.”
Os bens públicos subdividem-se em bens de uso comum do povo, como os rios, mares, estradas, ruas e praças; os de uso especial, como os edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração municipal, inclusive os de suas autarquias e os bens dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades (art. 99, I, II e III, do CC).
Os bens a que se refere o § 8º do art. 144 da Constituição Federal são os aqueles de natureza patrimonial do município, não abrangendo os bens jurídicos ou particulares, em que pese nestes poderem atuar, em caráter secundário, conforme será demonstrado.
O parágrafo único do art. 4º da Lei n. 13.022/14 assevera que os bens de competência das guardas municipais abrangem os de uso comum, de uso especial e os dominicais.
Quando a Constituição Federal quis outorgar a proteção de bens jurídicos aos órgãos de segurança pública, disse expressamente “interesse”, como consta no art. 144, § 1º, I, ao mencionar que compete à Polícia Federal apurar infrações penais em detrimento de bens, serviços e interesses da União.
Por serviços entenda-se a prestação de serviço público que seja de responsabilidade do município, como a coleta de lixo, iluminação pública nas ruas, tratamento de água potável, construção de postos de saúde e de hospitais, serviço de transporte coletivo (ônibus, trem, metrô), loteamento, calçamento de ruas e praças, dentre outros.
A prestação de serviço público, para fins do § 8º do art. 144 da Constituição Federal, consiste na atividade administrativa desempenhada pelo município, com o fim de satisfazer as necessidades coletivas e individuais dos munícipes, sob a incidência total ou parcial de um regime de direito público.
Em se tratando de instalações, tem-se a estrutura física e os logradouros do município, como o prédio em que fica a prefeitura.
O conceito de bens é mais amplo e abrange, necessariamente, as instalações do município (coisa imóvel).
A seguir, tabela esquematizada que aborda o tripé constitucional da finalidade da Guarda Municipal.
Conceito
Exemplo
Bens
Bens públicos, coisas, móveis ou imóveis, corpóreas ou incorpóreas, semoventes e tudo aquilo que pertence à pessoa jurídica de direito público municipal. Inclui-se nesse conceito os bens das pessoas de direito privado que estejam afetados ao interesse da coletividade.
Animais da prefeitura.
Serviços
Consiste na atividade administrativa desempenhada pelo município, com o fim de satisfazer as necessidades coletivas e individuais dos munícipes, sob a incidência total ou parcial de um regime de direito público.
Coleta de lixo; iluminação pública nas ruas; tratamento de água potável; construção de postos de saúde e de hospitais; serviço de transporte coletivo (ônibus, trem, metrô); loteamento; calçamento de ruas e praças.
Instalações
Estrutura física e os logradouros do município.
Prédio do município em que fica a prefeitura.
A Lei n. 13.022, de 08 de agosto de 2014, em observância ao art. 144, § 8º, da CF, instituiu as normas gerais para as guardas municipais, constituindo o Estatuto Geral das Guardas Municipais.1
As guardas municipais vinculam-se ao Poder Executivo Municipal e são instituições de caráter civil, uniformizadas e armadas, conforme previsto em lei2, e tem por função a proteção municipal preventiva (art. 2º).
A doutrina diverge quanto à caracterização da Guarda Municipal como um órgão de segurança pública.
A primeira corrente preconiza que a Guarda Municipal não é um órgão de segurança pública, com base nos seguintes argumentos3:
• As guardas municipais não pertencem ao rol de órgãos do sistema de segurança pública elencados no art. 144 da Constituição Federal, que é taxativo;
• A Guarda Municipal é mencionada no § 8º do art. 144 da CF e não no caput;
• Os constituintes rechaçaram propostas de se criar a polícia municipal, sendo função do município colaborar com a segurança pública, em apoio ao Estado;
• Lei não pode expandir a competência da Guarda Municipal, limitando-se a detalhar as atribuições referentes à proteção de bens, serviço e instalações municipais.
A segunda corrente defende ser a Guarda Municipal um órgão do sistema de segurança pública, sob os seguintes fundamentos4:
• O rol previsto no art. 144, caput, da Constituição Federal não é taxativo, na medida em que o artigo diz que a segurança pública é dever do Estado e de todos, o que permite incluir a Guarda Municipal;
• A própria Constituição Federal trata das guardas municipais no § 8º do art. 144, que trata da segurança pública, o que demonstra ser um órgão de segurança pública;
• A atuação da Guarda Municipal é voltada para a proteção de bens, serviços e instalações municipais, respeitadas as atribuições dos órgãos federais e estaduais, o que demonstra ser um órgão municipal de segurança pública.
Com o tempo as guardas municipais têm ganhado relevância na participação da segurança pública, na defesa dos bens, serviços e instalações municipais, além do apoio e colaboração com os órgãos de segurança pública previstos no rol do art. 144 da Constituição Federal. É necessário realizar uma interpretação evolutiva das normas constitucionais.
A Lei 13.675/18 instituiu o Sistema Único de Segurança Pública – SUSP –, integrado pelos órgãos relacionados no art. 144 da Constituição Federal, bem como pelas guardas municipais (art. 9º).
As guardas municipais são integrantes operacionais do Sistema Único de Segurança Pública (art. 9º, § 2º, VII), ao lado dos demais órgãos de segurança pública.
Uma das finalidades do Ministério Extraordinário da Segurança Pública é promover ações que efetivem o intercâmbio de experiências técnicas e operacionais entre os órgãos policiais federais, estaduais, distrital e as guardas municipais (art. 13).
Nota-se que a lei colocou lado a lado os órgãos policiais federais, estaduais e as guardas municipais, mas não a mencionou como órgão policial, o que, no entanto, não a exclui do sistema de segurança pública do Brasil, sendo, inclusive, integrante operacional.
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 846.854/SP, reconheceu que as Guardas Municipais executam atividade de segurança pública (art. 144, § 8º, da CF), essencial ao atendimento de necessidades inadiáveis da comunidade (art. 9º, § 1º, CF).
Ao decidir se as guardas municipais possuem direito à aposentadoria especial, a Suprema Corte destacou que as guardas municipaisnão integram o conjunto de órgãos de segurança pública relacionados no art. 144, I a V da CF e que a proximidade da atividade das guardas municipais com a segurança pública é inegável, porém, à luz do § 8º do mesmo dispositivo constitucional, sua atuação é limitada, voltada à proteção do patrimônio municipal.5
Desse modo, o rol previsto no art. 144 da Constituição Federal menciona, de forma taxativa, os órgãos policiais de segurança pública, mas não exclui a Guarda Municipal como um órgão de segurança pública, em que pese não possuir natureza de órgão policial definido pela Constituição Federal.
No Brasil, a natureza policial de uma Corporação é concedida pela própria Constituição, como o fez no art. 144, I a VI (PF, PRF, PFF, PC, PM e PP).
Logo, por opção legislativa, a Constituição relaciona, de forma exaustiva, os órgãos públicos que possuem natureza policial, o que não impede que outros órgãos integrem o sistema de segurança pública, como é o caso dos institutos oficiais de criminalística, medicina legal e identificação e a própria Guarda Municipal.
Os integrantes dos órgãos policiais elencados no art. 144 da Constituição Federal são autoridades policiais em sentido amplo, com exceção dos Delegados de Polícia que são autoridades policiais em sentido estrito.
A expressão “autoridade policial” é utilizada por diversas leis, de forma reiterada, sem apresentar um rigor técnico.
O termo “autoridade” remete à ideia de poder, o que na Administração Pública relaciona-se aos agentes públicos que possuam poder para tomar decisões que impactam de alguma forma em direitos de terceiros.
O termo “policial” refere-se a todos os policiais que pertençam aos órgãos policiais previstos no art. 144 da Constituição Federal, isto é: a) polícia federal; b) polícia rodoviária federal; c) polícia ferroviária federal; d) polícias civis; e) polícias militares e f) polícias penais.
O Código de Processo Penal utiliza o termo “autoridade policial”, na maior parte das vezes, para se referir ao Delegado de Polícia, uma vez que trata de atos de investigação ou diligências que devem ser realizadas em sede de inquérito policial, motivo pelo qual a autoridade policial é empregada, nesses casos, em seu sentido estrito, como nos seguintes exemplos:
Art. 5º (…) §3º Qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de infração penal em que caiba ação pública poderá, verbalmente ou por escrito, comunicá-la à autoridade policial, e esta, verificada a procedência das informações, mandará instaurar inquérito.
Art. 17. A autoridade policial não poderá mandar arquivar autos de inquérito.
Art. 184. Salvo o caso de exame de corpo de delito, o juiz ou a autoridade policialnegará a perícia requerida pelas partes, quando não for necessária ao esclarecimento da verdade.
Art. 322. A autoridade policial somente poderá conceder fiança nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 4 (quatro) anos.
Por outro lado, a lei, em diversas passagens, utiliza o termo “autoridade policial” em sentido genérico, sem abranger somente os Delegados de Polícia, como ocorre no art. 11 da Lei n. 11.340/06 ao elencar diversas providências policiais no atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar.
Art. 11. No atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, a autoridade policial deverá, entre outras providências:
I – garantir proteção policial, quando necessário, comunicando de imediato ao Ministério Público e ao Poder Judiciário;
II – encaminhar a ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao Instituto Médico Legal;
III – fornecer transporte para a ofendida e seus dependentes para abrigo ou local seguro, quando houver risco de vida;
IV – se necessário, acompanhar a ofendida para assegurar a retirada de seus pertences do local da ocorrência ou do domicílio familiar;
Referidas providências são adotadas comumente por policiais militares e a lei menciona caber à autoridade policial e não há qualquer questionamento ou discussão se os militares estaduais podem adotar essas providências. O termo autoridade policial utilizado no art. 11 da Lei n. 11.340/06 está em sentido amplo.
Portanto, autoridade policial pode ser qualquer integrante dos órgãos policiais previstos no art. 144 da Constituição Federal (autoridade policial em sentido amplo).
O art. 69 da Lei 9.099/95 autoriza a lavratura do termo circunstanciado de ocorrência por “autoridade policial”.
Art. 69. A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários.
Parágrafo único. Ao autor do fato que, após a lavratura do termo, for imediatamente encaminhado ao juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança. Em caso de violência doméstica, o juiz poderá determinar, como medida de cautela, seu afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima. (Redação dada pela Lei nº 10.455, de 13.5.2002))
Os guardas municipais exercem um importante e relevante papel na sociedade, contudo não são autoridades policiais, pois não estão no rol taxativo do art. 144 da Constituição Federal.
De fato a Guarda Municipal é um órgão de segurança pública, contudo não é um órgão policial em sentido estrito de segurança pública, que são aqueles relacionados no art. 144 da Constituição Federal, o que impede que seus integrantes sejam denominados de “autoridades policiais”, ainda que em sentido amplo. São autoridades, mas não policiais. São autoridades da Guarda Municipal, autoridades municipais que exercem a função de guardas municipais, pois possuem poder por estarem investidos na Administração Pública e possuírem o poder-dever de zelar pela proteção de seus bens, serviços e instalações municipais, conforme disposto na Lei n. 13.022/14, e tomar decisões que impactam de alguma forma em direitos de terceiros, como lavrar auto de infração de trânsito (art. 5º, VI), encaminhar ao delegado de polícia, diante de flagrante delito, o autor da infração (art. 5º, XIV), dentre outras.
Em que pese os guardas municipais não serem autoridades policiais, nada impede que lavrem o termo circunstanciado de ocorrência, desde que haja autorização em lei, pois o TCO não é exclusividade da autoridade policial, pois não se trata de ato de investigação.
A polícia é uma instituição que representa o Estado e usa o poder autorizado pela Constituição e pelas leis, com o fim de manter o status de estabilidade e cumprimento do ordenamento jurídico, estando autorizada a limitar direitos individuais quando necessário atender ao interesse público.
A denominação “polícia” utilizada para se referir às instituições de segurança pública, conforme consta no art. 144 da Constituição Federal, é uma opção política do constituinte, em razão do significado histórico e cultural, sendo, inclusive, utilizada a denominação “polícia” em todas as constituições da história do Brasil. Em diversos países pelo mundo a polícia de natureza militar recebe outra denominação, como a Gendarmaria Nacional na França, a Guarda Nacional Republicana em Portugal e o Carabinieri na Itália.
As funções exercidas pela instituição é que definem a sua natureza policial e não o nome que ela recebe, como a Brigada Militar do Estado do Rio Grande do Sul, que é a Polícia Militar.
A Guarda Municipal, em que pese não receber o nome Polícia Municipal, é uma instituição que possui atribuições de natureza policial, em que pese, no Brasil, a Constituição Federal ter adotado a opção taxativa de definir quais são os órgãos policiais responsáveis pela segurança pública e utilizar a denominação “polícia” para referenciá-los.
Em julgamento concluído em 26/06/2020, na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3807, de relatoria da Ministra Cármen Lúcia, o Supremo Tribunal Federal por 10 votos a 01, vencido o Ministro Marco Aurélio, decidiu que o termo circunstanciado de ocorrência embora substitua o inquérito policial como principal peça informativa dos processos penais que tramitam nos juizados especiais, não é procedimento investigativo, mas sim um boletim de ocorrência mais detalhado.
Considerando-se que O TERMO CIRCUNSTANCIADO NÃO É PROCEDIMENTO INVESTIGATIVO, mas peça informativa com descrição detalhada do fato e as declarações do condutor do flagrante e do autor do fato, deve-se reconhecer que A POSSIBILIDADE DE SUA LAVRATURA PELO ÓRGÃO JUDICIÁRIO NÃO OFENDE OS §§ 1º E 4º DO ART. 144 DA CONSTITUIÇÃO, nem interfere na imparcialidade do julgador. (Trecho do voto da Ministra Cármen Lúcia).
Dessa forma, o Supremo Tribunal Federal pacificou que o termo circunstanciado de ocorrência não é procedimento investigativo e pode ser lavrado por autoridade diversa do Delegado de Polícia e que isso não ofende o art. 144, §§ 1º e 4º da Constituição Federal, que trata das atribuições da Polícia Federal e Polícia Civil.
No caso julgado o STF decidiu que o art. 48, § 2º, da Lei n. 11.343/06 é constitucional e que o juiz pode lavrar termo circunstanciado de ocorrência quando houver a prática da infração penal prevista no art. 28 da Lei 11.343/06 (porte de drogas para consumo pessoal).
Art. 48. O procedimento relativo aos processos por crimes definidos neste Título rege-se pelo disposto neste Capítulo, aplicando-se, subsidiariamente, as disposições do Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal. § 2º Tratando-se da conduta prevista no art. 28 desta Lei, não se imporá prisão em flagrante, devendo o autor do fato ser imediatamente encaminhado ao juízo competente ou, na falta deste, assumir o compromisso de a ele comparecer, lavrando-se termo circunstanciado e providenciando-se as requisições dos exames e perícias necessários.
§ 3º Se ausente a autoridade judicial, as providências previstas no § 2º deste artigo serão tomadas de imediato pela autoridade policial, no local em que se encontrar, vedada a detenção do agente.
A decisão do STF não contraria o disposto no art. 2º, § 1º, da Lei n. 12.830/13, ao prever que “Ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais”, pois pacificou que o termo circunstanciado de ocorrência não é investigação criminal.
Sem entrar em discussões sobre o acerto ou erro da decisão do STF, a qual entendo que foi acertada, o importante é que o tema foi pacificado pelo plenário em ação direta de inconstitucionalidade, o que permite afirmar que vincula todo o Poder Judiciário, o Poder Público e todas as autoridades, por mais que discordem, pelo menos no caso decidido pelo STF – possibilidade do juiz lavrar TCO em se tratando do uso de drogas, na forma do art. 48, § 2º, da Lei 11.343/06 -, e isso surte um importante e nítido efeito para todos os demais casos que forem levados ao Supremo Tribunal Federal ou ao Poder Judiciário, em razão do efeito persuasivo das decisões do STF, sobretudo em controle abstrato de constitucionalidade e em razão da teoria dos motivos determinantes.
A teoria da transcendência dos motivos determinantes diz que os fundamentos essenciais, principais, decisivos nos julgamentos do Supremo Tribunal Federal também possuem efeito vinculante. Trata-se do efeito irradiante ou transbordante dos motivos determinantes.
O Supremo Tribunal Federal não tem aceito referida teoria, conforme ensina Márcio Cavalcante6.
O STF não admite a “teoria da transcendência dos motivos determinantes”.
Segundo a teoria restritiva, adotada pelo STF, somente o dispositivo da decisão produz efeito vinculante. Os motivos invocados na decisão (fundamentação) não são vinculantes.
A reclamação no STF é uma ação na qual se alega que determinada decisão ou ato:
• usurpou competência do STF; ou
• desrespeitou decisão proferida pelo STF.
Não cabe reclamação sob o argumento de que a decisão impugnada violou os motivos (fundamentos) expostos no acórdão do STF, ainda que este tenha caráter vinculante. Isso porque apenas o dispositivo do acórdão é que é vinculante.
Assim, diz-se que a jurisprudência do STF é firme quanto ao não cabimento de reclamação fundada na transcendência dos motivos determinantes do acórdão com efeito vinculante.
STF. Plenário. Rcl 8168/SC, rel. orig. Min. Ellen Gracie, red. p/ o acórdão Min. Edson Fachin, julgado em 19/11/2015 (Info 808).
Trata-se de uma verdadeira jurisprudência defensiva, na medida em que admitir a teoria da transcendência dos motivos determinantes implicaria em um aumento expressivo no número de reclamações perante a Suprema Corte.
Na Reclamação n. 22470, o Supremo Tribunal Federal afirmou que “a exegese jurisprudencial conferida ao art. 102, I, “l”, da Magna Carta rechaça o cabimento de reclamação fundada na tese da transcendência dos motivos determinantes.”7
Dessa forma, não cabe reclamação para o Supremo Tribunal Federal na hipótese em que o juiz, o tribunal ou o Poder Público entender que o termo circunstanciado de ocorrência possui natureza investigativa, em que pese contrariar claramente a decisão do STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3807. O instrumento utilizado para impugnar este entendimento deve ser a ação judicial quando a decisão partir do Poder Público ou recursos quando a decisão decorrer do próprio Poder Judiciário.
Inegavelmente, contudo, temos de reconhecer que a perspectiva de transcendência dos motivos determinantes deve ser revista à luz do CPC/2015, destacando-se os arts. 927 e 988.Já expusemos a nossa crítica à vinculação ampliada pela lei processual, lembrando que a Constituição se limita a estabelecer o efeito vinculante nas ações de controle concentrado e em razão de edição de súmula vinculante.
Nesse sentido, como afirmam Barroso e Mello, “se o CPC/2015 acolheu tal concepção de tese jurídica vinculante, inclusive em sede de controle concentrado da constitucionalidade, isso significa que, com a sua vigência, o entendimento do STF que rejeitava a eficácia transcendente da fundamentação precisará ser revisitado. É que a eficácia transcendente significa justamente atribuir efeitos vinculantes à ratio decidendi das decisões proferidas em ação direta. Mesmo que este entendimento não fosse acolhido pelo STF no passado, o fato é que, ao que tudo indica, o novo Código o adotou”.
Diante da decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI n. 3807, por 10 votos a 01, no sentido de que o TCO não é procedimento investigativo, certamente, por coerência, a ADI n. 5647, que questiona a constitucionalidade da autorização concedida pela Lei n. 22.257/16 de Minas Gerais para a Polícia Militar lavrar TCO, deve ser julgada improcedente e, consequentemente, autorizar a lavratura pela Polícia Militar, pois o principal fundamento que visa impossibilitar a Polícia Militar de lavrar TCO consiste na natureza investigativa do termo circunstanciado de ocorrência.
Não é possível que ato normativo do Poder Executivo Municipal ou da Guarda Municipal preveja a possibilidade de lavratura de termo circusntanciado de ocorrência pela Guarda Municipal, pois seria uma inovação no ordenamento jurídico, o que não é possível mediante atos do Poder Executivo.
O art. 5º, II, da Constituição Federal diz que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” e o art. 37, caput, diz que: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte”
Trata-se de aplicação do princípio da legalidade.
Para tanto, deve-se analisar o grau de abrangência do princípio da legalidade, se se trata somente de leis em sentido estrito, aprovadas pelo Poder Legislativo, ou normas jurídicas que podem ser editadas pelo Poder Executivo, como uma portaria, resolução, decreto.
Gilmar Mendes Ferreira e Paulo Gustavo Gonet Branco discorrem sobre o conceito de legalidade e ensinam que:9
O conceito de legalidade não faz referência a um tipo de norma específica, do ponto de vista estrutural, mas ao ordenamento jurídico em sentido material. É possível falar então em um bloco de legalidadeou de constitucionalidade que englobe tanto a lei como a Constituição.Lei, nessa conformação, significa norma jurídica, em sentido amplo, independente de sua forma.
Quando a Constituição, em seu art. 5º, II, prescreve que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, por “lei” pode-se entender o conjunto do ordenamento jurídico (em sentido material), cujo fundamento de validade formal e material encontra-se precisamente na própria Constituição. Traduzindo em outros termos, a Constituição diz que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa que não esteja previamente estabelecida na própria Constituição e nas normas jurídicas dela derivadas, cujo conteúdo seja inovador no ordenamento (Rechtsgesetze). O princípio da legalidade, dessa forma, converte-se em princípio da constitucionalidade (Canotilho), subordinando toda a atividade estatal e privada à força normativa da Constituição.
(…) como prevê a Constituição (art. 5º, II), “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Indaga-se: essa “lei” a que a Constituição se refere, é lei no sentido amplo ou lato (qualquer ato normativo do poder público, envolvendo decretos, portarias, resoluções, medidas provisórias etc.) ou lei no sentido estrito (um ato emanado do Poder Legislativo)? A expressão “lei” do artigo 5º, II, da Constituição Federal se refere à lei no sentido lato ou amplo. Assim, é possível que sejamos obrigados a fazer algo, por conta de uma Medida Provisória, por exemplo. (…) Da mesma forma, a Prefeitura de um Município poderá, por ato normativo (resolução, portaria etc.)da Secretaria de Transportes, reduzir a velocidade máxima permitida em algumas vias públicas. As pessoas serão obrigadas a dirigir seus veículos naquela velocidade, sob pena de multa.
Importante: não se pode confundir o princípio da legalidade com o princípio da reserva legal.
Enquanto o princípio da legalidade, base do Estado de Direito, é o parâmetro norteador de todos os atos do poder público e das pessoas, a reserva legal consiste numa determinação constitucional de elaboração de uma lei em sentido estrito para disciplinar determinadas relações. Nas palavras de Gilmar Mendes, “diante de normas densas de significado fundamental, o constituinte defere ao legislador atribuições de significado instrumental, procedimental ou conformador/criador do direito.
(…) há uma diferença substancial entre o princípio da legalidade e o princípio da reserva legal. Enquanto o primeiro se refere à lei no sentido amplo (qualquer ato normativo do poder público), o segundo se refere à lei no sentido estrito (ato emanado do Poder Legislativo).
Nota-se, portanto, que o princípio da legalidade não se restringe somente à lei em sentido formal, sendo possível que atos do Poder Executivo estejam abrangidos pelo conceito de legalidade.
Ocorre que a Administração Pública não pode inovar no direito ao editar atos normativos, sob pena de usurpar competência legislativa e ferir a separação de poderes, o que não a impede de editar normas que visem resguardar o interesse público, nos limites da lei.
Neste diapasão, se faz necessário lembrar que a Legalidade não exclui a atuação discricionária do agente público, tendo essa que ser levada em consideração quando da análise, por esse gestor, da conveniência e da oportunidade em prol do interesse público.Como a Administração não pode prever todos os casos onde atuará, deverá valer-se da discricionariedade para atender a finalidade legal, devendo, todavia, a escolha se pautar em critérios que respeitem os princípios constitucionais como a proporcionalidade e razoabilidade de conduta, não se admitindo a interpretação de forma que o texto legal disponha um absurdo.
O poder normativo da Administração Pública possibilita a edição de atos normativos com o fim de complementar a lei, sem, no entanto, inovar no ordenamento jurídico, o que é admitido, para a doutrina majoritária, somente na hipótese de regulamento autônomo previsto no art. 84, VI, da Constituição Federal.
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
A organização do funcionamento estrutural e hierárquico de uma instituição decorre do poder hierárquico, que permite que a administração pública estruture, organize e ordene as suas atividades administrativas e que os servidores públicos, em uma relação funcional e hierárquica, deem ordens, controlem, gerenciem, corrijam, coordenem as atividades administrativas e observem o cumprimento das regras impostas pelos superiores hierárquicos, em observância ao interesse público.
Destarte, é perfeitamente possível que uma lei preveja a possibilidade da Guarda Municipal lavrar TCO, contudo não é possível que ato normativo do Poder Executivo permita a lavratura do Termo Circunstanciado de Ocorrência pela Guarda Municipal.
E o Poder Legislativo Municipal, pode legislar e prever que cabe à Guarda Municipal lavrar o Termo Circunstanciado de Ocorrência?
Em um primeiro momento pode-se pensar que não, sob o argumento de que cabe à União e aos Estados legislarem, concorrentemente, sobre processo do juizado e procedimentos em matéria processual (art. 24, X e XI, da CF), ocorre que a lavratura do TCO não se relaciona com processo do juizado e com procedimento em matéria processual, pois trata-se de um procedimento administrativo extrajudicial, feito por um órgão de segurança pública, o que não afeta a forma como o procedimento tramitará no Juizado Especial Criminal nem a matéria de sua competência.
O Supremo Tribunal Federal na ADI 3807 chancelou que o TCO não é um ato investigativo nem privativo da autoridade de polícia judiciária. Dessa forma, é possível afirmar que por se tratar somente de um relato dos fatos que ocorreram com a tipificação penal não há vedação para que a Guarda Municipal confeccione o Termo Circunstanciado de Ocorrência, sobretudo por ser uma instituição que possui atribuições de natureza policial, conforme acima explicado.
No dia a dia das atividades da Guarda Municipal são lavrados os boletins de ocorrência quando atuam em ocorrências relacionadas às suas atribuições. Esses boletins, geralmente, são encaminhados à autoridade policial, na forma do art. 5º, XIV, da Lei n. 13.022/14.
As atribuições da Guarda Municipal encontram-se previstas nos arts. 4º e 5º da Lei n. 13.022/14, mas nada impede que lei municipal especifique e detalhe as atribuições da Guarda Municipal, dentro dos limites traçados pela Constituição Federal e pelo Estatuto Geral das Guardas Municipais.
Cabe ao Poder Legislativo Municipal criar a Guarda Municipal (art. 6º da Lei n. 13.022/14), definir o efetivo (art. 7º, parágrafo único), definir o plano de carreira e o salário (art. 9º), estabelecer os requisitos básicos para a investidura no cargo de guarda municipal (art. 10, parágrafo único), definir como se dará a perda dos mandatos do corregedor e ouvidor (art. 13, § 2º), tratar do código de conduta (art. 14), estabelecer o percentual mínimo para o sexo feminino na Guarda Municipal (art. 15, § 2º), o que possibilita afirmar que cabe à lei municipal detalhar as atribuições da Guarda Municipal, dento dos parâmetros estabelecidos pela Constituição Federal e pelo Estatuto Geral das Guardas Municipais.
Em que pese o art. 5º, XIV, da Lei n. 13.022/14 dispor que nos casos de flagrante delito a ocorrência deva ser encaminhada ao delegado de polícia, é possível afirmar que nem toda ocorrência deve obrigatoriamente ser destinada à autoridade policial quando a lei permitir destinação diversa, como ocorre nos casos de lavratura do TCO, que tem como destinatário o Juizado Especial Criminal. Portanto, sendo permitida a lavratura do Termo Circunstanciado de Ocorrência pela Guarda Municipal, o termo deve ser encaminhado para o juízo competente, conforme dispõe o art. 69 da Lei n. 9.099/95.
Em razão da simplicidade, informalidade e celeridade, princípios que regem o Juizado Especial Criminal, somado ao fato do município poder legislar sobre assuntos de interesse local (art. 30, I, da CF), bem como dispor sobre as atribuições da Guarda Municipal, mediante lei, além de ser uma instituição que possui atribuições de natureza policial, não há empecilhos para que as guardas municipais passem a lavrar o Termo Circunstanciado de Ocorrência, caso haja lei municipal, até porque os guardas municipais são autoridades administrativas que possuem poder de polícia
A título exemplificativo, a Lei n. 3.077/14 do município de Niterói prevê como atribuição da Guarda Municipal confeccionar o relato administrativo previsto no art. 69 da Lei nº 9.099/95 (art. 19, XI).
É importante destacar que nada impede do Estatuto Geral das Guardas Municipais ser alterado para passar a prever a possibilidade da Guarda Municipal lavrar o Termo Circunstanciado de Ocorrência, o que possibilitaria a lavratura do termo em todos os municípios do país que tenham a Guarda Municipal.
O conhecimento técnico e jurídico necessário para lavrar o termo circunstanciado de ocorrência, ainda que os guardas municipais não sejam formados em Direito, pode ser adquirido nos cursos de formação ao dedicarem boa parte da carga horária para o ensino teórico e prático de todos os temas afetos à lavratura do termo circunstanciado de ocorrência, o que supre a necessidade de se formar em Direito, pois o conhecimento jurídico e técnico necessário para a lavratura do TCO não possui a profundidade e complexidade dos conhecimentos que um Delegado deve possuir para conduzir um inquérito policial. Trata-se de um procedimento sem maiores complexidades, cujo conhecimento necessário para a sua lavratura pode ser ensinado em um bom curso de formação, assim como ocorre com a Polícia Militar e a Polícia Rodoviária Federal.
A exigência de conhecimento técnico e jurídico para a lavratura do TCO pela Guarda Municipal não é um óbice, pois este é facilmente resolvido com o aperfeiçoamento técnico e reformulação dos cursos de formação, além de ser possível exigir um aprofundamento nessa área nos concursos públicos para guardas municipais e cobrar nas provas toda a matéria penal e processual penal que sejam necessárias conhecer para a confecção do TCO.
Eventual autorização legal para a lavratura do TCO pelas guardas municipais, autoriza que a Guarda Municipal assim proceda nas ocorrências que sejam de seu mister constitucional, sob pena de haver um desvirtuamento das atribuições da Guarda Municipal, o que é inconstitucional. Isto é, a lavratura do TCO pela Guarda Municipal, se autorizada por lei, deve se restringir às ocorrências relacionadas à proteção de bens, serviços e instalações municipais, como no exemplo do crime de dano em coisa de valor artístico, arqueológico ou histórico previsto no art. 165 do Código Penal. Caso um agente pratique este crime contra coisa tombada pelo município, a Guarda Municipal poderia lavrar o TCO do agente.
Art. 165 – Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa tombada pela autoridade competente em virtude de valor artístico, arqueológico ou histórico:
Pena – detenção, de seis meses a dois anos, e multa.
Portanto, a lei não pode autorizar, por exemplo, que a Guarda Municipal lavre TCO de um crime de lesão corporal leve (art. 129 do CP) ou de ameaça (art. 147 do CP) praticado entre particulares, mas poderia autorizar a lavratura quando o crime atentar contra os serviços dos guardas municipais, como a lesão corporal simples a um guarda municipal que se desloca para uma ocorrência durante o serviço.
Diante de todo o exposto, pode-se afirmar que a Guarda Municipal pode lavrar termo circunstanciado de ocorrência se houver previsão em lei, desde que seja em infrações penais relacionadas à proteção de bens, serviços e instalações municipais, uma vez que o TCO não é ato de investigação e pode ser lavrado por qualquer servidor público, dentro de suas funções, desde que haja previsão em lei.
NOTAS
1. A FENEME – Federação Nacional de Entidades de Oficiais Militares Estaduais – ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI n. 5.156/2014) questionando vários dispositivos da Lei 13.022/2014. Na ação a FENEME sustenta que a União não tem competência para legislar sobre guardas municipais, sendo a competência de cada município, bem como que, em suma, a Guarda Municipal não pode atuar como a polícia.
2. Lei 10.826/03 – Art. 6o É proibido o porte de arma de fogo em todo o território nacional, salvo para os casos previstos em legislação própria e para: III – os integrantes das guardas municipais das capitais dos Estados e dos Municípios com mais de 500.000 (quinhentos mil) habitantes, nas condições estabelecidas no regulamento desta Lei; (Vide ADIN 5538) (Vide ADIN 5948) IV – os integrantes das guardas municipais dos Municípios com mais de 50.000 (cinqüenta mil) e menos de 500.000 (quinhentos mil) habitantes, quando em serviço; (Redação dada pela Lei nº 10.867, de 2004) (Vide ADIN 5538) (Vide ADIN 5948)
3. Nesse sentido: VIEIRA, Thiago Augusto. A Polícia Ostensiva e a Preservação da Ordem Pública. A competência das Polícias Militares: O município como partícipe do sistema de segurança pública e vários autores citados: José Afonso da Silva, Aristides Medeiros, Lazzarini, Ferreira Pinto, dentre outros.
4. Nesse sentido: DOMINGOS, Rafael Faria. Estatuto Geral das Guardas Municipais: análise dos dispositivos da Lei nº 13.022/2014. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4066, 19 ago. 2014. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/31004>. Acesso em: 21 dez. 2018.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Resumo esquematizado sobre a Lei n. 13.022/2014 (Estatuto Geral das Guardas Municipais). Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: https://dizerodireitodotnet.files.wordpress.com/2015/01/lei-13-022-estatuto-das-guardas-municipais.pdf. Acesso 21 dez. 2018.
5. Diante da ausência de legislação específica, não cabe ao Poder Judiciário garantir aposentadoria especial [CF; art. 40, § 4º, II] a guarda municipal. Com base nessa orientação, o Plenário, em julgamento conjunto e por maioria, (…) entendeu que o referido benefício não pode ser estendido aos guardas civis, uma vez que suas atividades precípuas não são inequivocamente perigosas e, ainda, pelo fato de não integrarem o conjunto de órgãos de segurança pública relacionados no art. 144, I a V da CF. A proximidade da atividade das guardas municipais com a segurança pública é inegável, porém, à luz do § 8º do mesmo dispositivo constitucional, sua atuação é limitada, voltada à proteção do patrimônio municipal. Conceder esse benefício por via judicial não seria prudente, pois abriria margem reivindicatória a diversas outras classes profissionais que, assim como os guardas municipais, lidam com o risco diariamente. Ademais, cabe ao legislador, e não ao Judiciário, classificar as atividades profissionais como sendo ou não de risco para fins de aposentadoria especial. [MI 6.515, MI 6.770, MI 6.773, MI 6.780, MI 6.874, rel. p/ o ac. min. Roberto Barroso, j. 20-6-2018, P, Informativo 907.]