A vacinação de crianças e adolescentes contra a Covid-19, a responsabilização dos pais, o que pode e não ser feito, à luz da lei e das decisões do Supremo Tribunal Federal

Esse tema tem suscitado divergências e tem sido muito debatido nos últimos dias.

O que diz a lei?

O art. 14, § 1º, do Estatuto da Criança e do Adolescente diz que “É obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias”.

O Decreto n. 78.231/76 diz em seu artigo 29 que “É dever de todo cidadão submeter-se e os menores dos quais tenha a guarda ou responsabilidade, à vacinação obrigatória.”

O parágrafo único do art. 29 diz que “Só será dispensada da vacinação obrigatória, a pessoa que apresentar Atestado Médico de contra-indicação explícita da aplicação da vacina.”

Portanto, os pais podem deixar de vacinar seus filhos menores (crianças e adolescentes) somente se houver atestado médico que contraindique determinada vacina de caráter obrigatório.

É constitucional obrigar a vacina de crianças e adolescentes?

O Supremo Tribunal Federal já pacificou que SIM e fixou a seguinte tese, no tema 1103 (ARE 1267879/SP).

É constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, (i) tenha sido incluída no Programa Nacional de Imunizações ou (ii) tenha sua aplicação obrigatória determinada em lei ou (iii) seja objeto de determinação da União, Estado, Distrito Federal ou Município, com base em consenso médico-científico. Em tais casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar.

Quais são as autoridades sanitárias competentes para recomendar vacinas que venham a possuir o caráter de obrigatoriedade?

O art. 3º da Lei n. 6.259/75, que trata do Programa Nacional de Imunizações, diz o seguinte:

Art 3º Cabe ao Ministério da Saúde a elaboração do Programa Nacional de Imunizações, que definirá as vacinações, inclusive as de caráter obrigatório.

Nota-se claramente que cabe ao Ministério da Saúde definir no Programa Nacional de Imunizações – PNI – quais são as vacinas de caráter obrigatório.

A vacina contra a Covid-19 está no Programa Nacional de Imunizações?

Não.

Veja abaixo as vacinas de caráter obrigatório que constam no DATASUS[1], que é o departamento do Governo Federal responsável por divulgar informações do Sistema Único de Saúde do Brasil. A vacina contra o coronavírus não está relacionada, razão pela qual os pais não podem ser, juridicamente, compelidos a vacinarem seus filhos (crianças e adolescentes).

IDADEVACINASDOSESDOENÇAS EVITADAS
Ao nascerBCG – IDdose únicaFormas graves de tuberculose
Vacina contra hepatite B (1)1ª doseHepatite B
1 mêsVacina contra hepatite B2ª doseHepatite B
2 meses Vacina tetravalente (DTP + Hib) (2) 1ª dose  Difteria, tétano, coqueluche, meningite e outras infecções causadas pelo Haemophilus influenzae tipo b
VOP (vacina oral contra pólio)1ª dosePoliomielite (paralisia infantil)
VORH (Vacina Oral de Rotavírus Humano) (3)1ª doseDiarréia por Rotavírus
 Vacina tetravalente (DTP + Hib)2ª doseDifteria, tétano, coqueluche, meningite e outras infecções causadas pelo Haemophilus influenzae tipo b
4 mesesVOP (vacina oral contra pólio)2ª dosePoliomielite (paralisia infantil)
VORH (Vacina Oral de Rotavírus Humano) (4)2ª doseDiarréia por Rotavírus
6 mesesVacina tetravalente (DTP + Hib)3ª doseDifteria, tétano, coqueluche, meningite e outras infecções causadas pelo Haemophilus influenzae tipo b
VOP (vacina oral contra pólio)3ª dosePoliomielite (paralisia infantil)
Vacina contra hepatite B3ª doseHepatite B
9 mesesVacina contra febre amarela (5)dose inicialFebre amarela
12 mesesSRC (tríplice viral)dose únicaSarampo, rubéola e caxumba
15 mesesVOP (vacina oral contra pólio)reforçoPoliomielite (paralisia infantil)
DTP (tríplice bacteriana)1º reforçoDifteria, tétano e coqueluche
4 – 6 anosDTP (tríplice bacteriana2º reforçoDifteria, tétano e coqueluche
SRC (tríplice viral)reforçoSarampo, rubéola e caxumba
10 anosVacina contra febre amarelareforçoFebre amarela

Os Estados, por intermédio das Secretarias de Saúde, podem tornar a vacina contra a Covid-19 obrigatória?

O Decreto n. 78.231/76, em seu art. 28, diz que as Secretarias de Saúde dos Estados, do Distrito Federal, e dos Territórios poderão tornar obrigatório o uso de outros tipos de vacina para a população de suas áreas geográficas desde que:

I – Obedeçam ao disposto neste Decreto e nas demais normas complementares baixadas para sua execução pelo Ministério da Saúde;

II – O Ministério da Saúde aprove previamente, a conveniência da medida;

III – Reúnam condições operacionais para a execução das ações.

Veja que é necessária prévia aprovação do Ministério da Saúde para que nos estados as vacinas se tornem obrigatórias.

Portanto, nos estados as vacinas contra a Covid-19 podem se tornar obrigatórios, no entanto o Ministério da Saúde deve aprovar previamente.

De toda forma, o Supremo Tribunal Federal (ADI 6341), em uma leitura constitucional, já decidiu, em razão do disposto nos arts. 23, II e 198, I, ambos da Constituição Federal, que os estados e municípios podem adotar medidas de combate ao coronavírus, ainda que a União não adote, uma vez que a proteção à saúde é concorrente e deve ser observada a autonomia dos entes federativos.

Nesse sentido, o STF (ADPF 756) decidiu que “A decisão de promover a imunização contra a Covid-19 em adolescentes acima de 12 anos, observadas as evidências científicas e análises estratégicas pertinentes, insere-se na competência dos estados, do Distrito Federal e dos municípios.” No caso, o Ministério da Saúde havia recomendado a não vacinação de adolescentes, ainda que não possuíssem comorbidades. Note, portanto, que já há decisão do STF que permite os estados e municípios decidirem de forma diversa da União, em se tratando de vacina contra a Covid-19.

O Ministério da Saúde incluiu as crianças de 5 a 11 anos no Plano Nacional de Operacionalização da vacinação contra a Covid-19, contudo a imunização nessa faixa etária é de caráter facultativo e cabe aos pais decidirem e, conforme, a orientação do Ministério da Saúde, os pais devem procurar recomendação prévia de um médico antes de realizarem a imunização em seus filhos.[2]

Dessa forma, em uma interpretação literal do art. 3º da Lei n. 6.259/75 e art. 28, II, do Decreto n. 78.231/76, permitem afirmar que os estados e municípios não podem obrigar a vacinação de crianças, pois o Ministério da Saúde, órgão que possui atribuição para assim determinar, disse expressamente que a vacinação não é obrigatória.

De toda forma, em uma leitura constitucional, o Supremo Tribunal Federal tem decidido em situações semelhantes, conforme exposto, que a proteção à saúde é concorrente e deve ser observada a autonomia dos entes federativos, portanto, pode-se afirmar que a lógica e fundamentos da decisão do STF na ADPF 756 aplica-se à vacinação das crianças entre 05 e 11 anos, desde que observadas as evidências científicas e análises estratégicas pertinentes.

Em síntese, há duas correntes acerca da vacinação obrigatórias de crianças contra a Covid-19, a saber:

1ª) Somente as vacinas incluídas no Plano Nacional de Imunizações (art. 3º da Lei n. 6.259/75) são obrigatórias. Como a vacina contra a Covid-19 não está no rol de vacinas do PNI, não é obrigatória. Essa é a interpretação literal da lei.

2ª) As vacinas que não estejam no Plano Nacional de Imunizações, desde que recomendadas pelas autoridades sanitárias dos estados e municípios, são obrigatórias, uma vez que a competência para tratar da proteção à saúde é concorrente e deve ser observada a autonomia dos entes federativos. Essa é a interpretação constitucional que pode ser extraída das decisões do STF (ARE 1267879/SP e APDF 756), em razão do disposto nos arts. 23, II e 198, I, ambos da Constituição Federal.

Em caso de discordância entre os pais, o que deve prevalecer?

É óbvio que todo pai e mãe quer o melhor para os filhos, mas por uma questão de entendimento do que seja melhor para o filho, pode haver divergência. Nesses casos, como solucionar?

O art. 21 do Estatuto da Criança e do Adolescente prevê que em caso de discordância sobre as decisões do filho em comum, pode o pai ou a mãe recorrer ao Judiciário, que decidirá o que for melhor para a criança/adolescente.

Eu não acho essa solução boa, pois delega-se a um terceiro, o juiz, a decisão sobre o próprio filho. O juiz, como todo ser humano, tem suas concepções pessoais e poderá decidir para o filho de terceiros o que decidiu para seus próprios filhos ou o que acredita ser melhor. A melhor solução, muitas vezes, não está em levar para o Judiciário, mas chegar a um consenso entre os próprios pais. É muito difícil levar para o Judiciário a tomada de decisões que afetem o núcleo familiar. De toda forma, as crianças e adolescente sempre devem ter em seu favor as melhores decisões para o desenvolvimento saudável, mas, quais são as melhores? Muitas vezes há um subjetivismo e isso deve ser respeitado. O que eu acho melhor para o meu filho, outra pessoa pode achar que não é. Em todo caso, defendo o respeito da ciência.

Há abuso de autoridade, caso as autoridades entendam que os pais devem vacinar seus filhos?

A Lei de Abuso de Autoridade prescreve no art. 1º, § 2º, que a divergência na interpretação da lei não configura abuso de autoridade. Além do mais, para que haja abuso de autoridade, é necessário que se demonstre o elemento subjetivo do tipo, consistente em prejudicar terceiro ou beneficiar a si mesmo ou outro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal. Acredito que quem defende a vacinação não tem por objetivo causar prejuízo a terceiros ou que seja para satisfazer o ego, o que é necessário para a caracterização do crime de abuso de autoridade.

Portanto, dificilmente, as autoridades que entenderem que a vacina é obrigatória, ainda que não esteja no Plano Nacional de Imunização, responderão por abuso de autoridade, pois as decisões do STF, até então, abrem essa possibilidade de interpretação, como exposto.

As escolas podem exigir, por conta própria, passaporte da vacina contra a Covid-19 para as crianças/adolescentes?

Entendo que, atualmente, não, com base no art. 5º, II, da Constituição Federal, que trata do princípio da legalidade, que assim dispõe: ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

A Portaria n. 597/2004 do Ministério da Saúde prevê no § 2º do art. 5º a obrigatoriedade de se apresentar o cartão de vacinação com as vacinas elencadas no Plano Nacional de Imunização para matricular em creches, pré-escola, ensino fundamental, ensino médio e universidade. Como a vacina contra o coronavírus não está elencada no PNI, em tese, não é possível que as escolas exijam, por conta própria, o cartão de vacinação contra a Covid-19.

É importante frisar que o Supremo Tribunal Federal (ADI n. 6586) decidiu que a União, os Estados e Municípios podem adotar medidas indiretas para determinar a vacinação compulsória, desde que haja previsão diretamente na lei ou decorra da lei. Logo, enquanto não houver lei que autorize restringir o acesso de crianças e adolescentes às escolas, essa medida não pode ser adotada.

Destaca-se que o Supremo Tribunal Federal (ADPF n. 756) suspendeu despacho do MEC que proibia as universidades de exigirem o comprovante de vacina contra a Covid-19, em razão da autonomia administrativa e gerencial universitária (art. 207 da CF). É um indicativo, portanto, que o mesmo raciocínio possa vir a ser aplicado nas escolas, contudo, essas não possuem a autonomia que as universidades têm, sendo necessário a autorização em lei para que assim procedam.

Os pais são obrigados a vacinarem seus filhos, sob pena de perderem a guarda ou praticarem infração administrativa prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente?

Perder a guarda é uma medida extrema demais.

Quando se perde a guarda de um filho? Quando se perde o poder familiar?

O Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código Civil apresentam várias hipóteses. Uma delas é faltar com os deveres inerentes ao poder familiar de forma reiterada (arts. 1.637 e 1.638, IV, ambos do CC). Vacinar os filhos é um dever inerente ao poder familiar? Sem dúvidas, desde que seja pacificada a obrigatoriedade da vacina, como as constantes no Programa Nacional de Imunização.

De toda forma, suspender o poder familiar, retirar a guarda, é medida extrema e deve haver razoabilidade.

Nesse sentido, antes de se adotar qualquer medida extrema, caso a vacina se torne, legalmente, obrigatória para crianças/adolescentes, deve-se aplicar a infração administrativa prevista no art. 249 do Estatuto da Criança e do Adolescente, cuja sanção é a aplicação de multa.

Art. 249. Descumprir, dolosa ou culposamente, os deveres inerentes ao poder familiar ou decorrente de tutela ou guarda, bem assim determinação da autoridade judiciária ou Conselho Tutelar: (Expressão substituída pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência

O Conselho Tutelar ou o juiz podem determinar a obrigatoriedade dos pais vacinarem seus filhos contra a Covid-19?

Não, somente as autoridades sanitárias competentes podem determinar. Quem é a autoridade sanitária competente? Voltamos à discussão acima. Em tese, é o Ministério da Saúde mediante a inserção da vacina no Programa Nacional de Imunização, no entanto, diante das decisões do STF citadas, certamente, admitir-se-á que autoridades sanitárias dos estados e municípios assim procedam. A partir do momento que a vacina se tornar legalmente obrigatória, o Conselho Tutelar e o juiz poderão sim determinar a vacinação, pois mandarão cumprir a lei e não partirá de uma convicção da pessoa da autoridade do que é melhor para os filhos de terceiros.


[1] http://pni.datasus.gov.br/calendario_vacina_Infantil.asp

[2] Informação extraída do site do Ministério da Saúde: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2022/janeiro/ministerio-da-saude-inclui-criancas-de-5-a-11-anos-na-campanha-de-vacinacao-contra-a-covid-19#:~:text=VACINA%C3%87%C3%83O%20INFANTIL-,Minist%C3%A9rio%20da%20Sa%C3%BAde%20inclui%20crian%C3%A7as%20de%205%20a%2011%20anos,vacina%C3%A7%C3%A3o%20contra%20a%20Covid%2D19&text=O%20Minist%C3%A9rio%20da%20Sa%C3%BAde%20anunciou,11%20anos%20n%C3%A3o%20ser%C3%A1%20obrigat%C3%B3ria.

A pena imposta a condenado solto, as medidas cautelares diversas da prisão e as medidas protetivas devem ser fiscalizadas por quem?

SÍNTESE

Fundamentos  

Constituição Federal
• Art. 144, VI
•  Art. 144, § 5º-A
•  Art. 144, §§ 5º e 6º
•  Emenda Constitucional n. 104/2019  

Lei de Execução Penal
• Art. 61, VI, da LEP
• Art. 79, II e III, da LEP  

Decreto-Lei 667/69

• Art. 3º  

Síntese

a) Não cabe, pela Constituição Federal, à Polícia Penal realizar a fiscalização de condenados criminalmente e que estejam em liberdade nem a fiscalização do cumprimento de medidas cautelares diversas da prisão e de medidas protetivas no contexto de violência doméstica;  

b) Na hipótese em que houver lei que preveja ser atribuição da Polícia Penal a fiscalização de condenados que estejam soltos, a lei será de duvidosa constitucionalidade;  

c) Cabe ao patronato proceder à fiscalização do cumprimento das penas de prestação de serviço à comunidade e de limitação de fim de semana e colaborar na fiscalização do cumprimento das condições da suspensão e do livramento condicional, no entanto, no Brasil, o órgão é inoperante ou inexistente;  

d) A preservação da ordem pública, a prevenção situacional, a ausência de outros órgãos policiais ou instituições responsáveis para proceder à fiscalização, o papel subsidiário da Polícia Militar, em atuar em todos os temas afetos ao universo policial e segurança pública que não pertençam às demais instituições, faz nascer para a Polícia Militar, o papel de órgão fiscalizador do cumprimento da pena por condenados em liberdade, além de fiscalizar o cumprimento de medidas cautelares diversas da prisão e de medidas protetivas no contexto de violência doméstica, sempre que necessário;  

e) Em tema de segurança pública não pode haver um vácuo de atribuição, o que gera imensa insegurança pública e jurídica. A amplitude constitucional das atribuições da Polícia Militar permite afirmar, diante de todos os fundamentos expostos, que é a instituição policial com maiores atribuições e cabe à Polícia Militar o papel fiscalizador nas situações mencionadas.        

Não raras vezes uma pessoa é condenada criminalmente a pena privativa de liberdade, contudo continua ou obtém a liberdade, seja por ter sido fixado o regime semiaberto ou aberto e não haver estabelecimento penal compatível com o regime; seja pelo fato de progredir para esses regimes.

É possível também que o agente não condenado tenha em seu desfavor a fixação de medidas cautelares diversas da prisão, na forma do art. 319 do Código de Processo Penal, ou medidas protetivas no contexto de violência doméstica e familiar, conforme previsto na Lei Maria da Penha.

Nessas situações surge a discussão a respeito de qual instituição policial deve fiscalizar as condições impostas judicialmente.

Dentre as condições impostas nessas situações, a que exige uma fiscalização constante, sob pena de se tornar uma medida ineficaz, consiste no recolhimento domiciliar e na proibição de frequentar determinados locais. Certo que a tornozeleira eletrônica pode substituir o papel de um órgão fiscalizador presente fisicamente, contudo, a presença do Estado na fiscalização é muito importante por surtir no agente um efeito psicológico inibidor de que o Estado o está acompanhando e caso descumpra alguma medida, poderá ser preso. Além do mais, não tem como, mediante tornozeleira eletrônica, saber com exatidão se o agente está frequentando algum local proibido, como, por exemplo, um bar que fora proibido de frequentar temporariamente. O agente poderá alegar que estava nas proximidades, pois a indicação da tornozeleira eletrônica não possui uma precisão exata.

Pena sem fiscalização é impunidade! Medida cautelar diversa da prisão sem fiscalização é ineficaz!

Por vezes juízes expedem ofícios para a Polícia Militar solicitando o apoio na fiscalização. A qual instituição policial cabe realizar a fiscalização? É, realmente, atribuição constitucional da Polícia Militar ou seria da Polícia Penal?

Com o advento da Emenda Constitucional n. 104, de 04 de dezembro de 2019, foi criada a Polícia Penal.

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

VI – polícias penais federal, estaduais e distrital. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 104, de 2019)

Os policiais penais eram denominados “agentes penitenciários” ou “agentes de segurança penitenciária” que passaram, automaticamente, a serem chamados de policiais penais, em razão do disposto no art. 4º da Emenda Constitucional n. 104/2019.

Art. 4º O preenchimento do quadro de servidores das polícias penais será feito, exclusivamente, por meio de concurso público e por meio da transformação dos cargos isolados, dos cargos de carreira dos atuais agentes penitenciários e dos cargos públicos equivalentes.


As atribuições dos policiais penais encontram-se previstas no § 5º-A do art. 144 da Constituição Federal.

Art. 144 (…)

§ 5º-A. Às polícias penais, vinculadas ao órgão administrador do sistema penal da unidade federativa a que pertencem, cabe a segurança dos estabelecimentos penais. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 104, de 2019)

Aos policiais penais cabe garantir a ordem e a segurança nos estabelecimentos penais do país; realizarem escolta armada de presos; trabalharem na ressocialização dos presos; fiscalizarem a entrada de pessoas e veículos nos estabelecimentos penais e realizarem buscas pessoais; cuidarem da vigilância interna, externa e da disciplina dos estabelecimentos prisionais, dentre outras atribuições especificadas em lei.

A finalidade precípua da Polícia Penal é a segurança dos estabelecimentos penais, o que autoriza a lei a conceder outras funções que tenham relação com a atividade-fim da Polícia Penal.

Inicialmente, a Proposta de Emenda à Constituição n. 14/2016 do Senado Federal, que recebeu o número 372/2017 na Câmara dos Deputados, que posteriormente, se transformou na PEC n. 104/2019, que, por sua vez, foi aprovada e se transformou na Emenda Constitucional n. 104/2019 (Criou a Polícia Penal) previa que à Polícia Penal caberia “a segurança dos estabelecimentos penais, além de outras atribuições definidas em lei específica de iniciativa do Poder Executivo.”, sendo aprovada somente a segurança dos estabelecimentos penais.

Isso, contudo, não significa que a lei não possa trazer funções para a Polícia Penal que possuam correlação com a segurança dos estabelecimentos, até porque a Emenda Constitucional n. 104/2019 somente criou a Polícia Penal e é necessária lei para regulamentar a Polícia Penal, dispor sobre a carreira e as funções. Além do mais, a competência para legislar sobre direito penitenciário é concorrente entre a União, Estados e o Distrito Federal (art. 24, I, da CF), o que permite que estados legislem a respeito de regras para as polícias penais, inclusive, sobre as atribuições destas, desde que esteja dentro do parâmetro estabelecido no § 5º-A do art. 144 da Constituição Federal (segurança dos estabelecimentos penais).

Não pode o legislador ampliar as atribuições da Polícia Penal que não possuam correlação com a segurança dos estabelecimentos penais, como permitir a realização de policiamento ostensivo e a condução de investigações criminais. A condução e o deslocamento de presos para audiências e hospitais é atividade intrínseca à missão constitucional da Polícia Penal, na medida em que os presos se encontram sob responsabilidade da Polícia Penal, sendo, portanto, a instituição responsável pela vigilância e segurança dos presos. A partir do momento que os presos obtêm liberdade, deixa de ser responsabilidade da Polícia Penal realizar o acompanhamento e vigilância.

Na hipótese em que a lei ampliar as atribuições da Polícia Penal que não possuam correlação com a segurança dos estabelecimentos penais, na prática, certamente, será aplicada, em que pese ser de duvidosa constitucionalidade. Fábio Nakaharada entende que se a lei autorizar a fiscalização pela Polícia Penal será constitucional, apesar de alargar o texto constitucional, assim como ocorreu com o Estatuto das Guardas Municipais que alargou a proteção de bens, serviços e instalações, alçando em lei ordinária, atribuição de patrulhamento ostensivo, pois é matéria afeta às atribuições do Poder Executivo e será uma hipótese de definir legalmente qual instituição deve exercer essa atribuição, sobretudo por estar afeta à atividade de inteligência da Polícia Penal.

E continua sustentando seus argumentos que diferente da competência jurisdicional que é rígida, uma vez que visa a imparcialidade e a isenção perante partes contrárias, a atribuição de órgãos do poder executivo objetiva a prestação de serviços públicos universalmente, sendo que, em matéria de segurança pública, o STF tem levado o caráter utilitarista ao sistema de segurança pública: quanto mais órgãos puderem prover as necessidades da população na matéria ordem pública, melhor. Nesse mesmo sentido, a votação maioritária, ainda em andamento e irreversível, das polícias militares terem atribuição de lavrar termo circunstanciado.

E a fiscalização de condenados em liberdade ou de pessoas que possuam em seu desfavor medidas diversas da prisão? É atribuição da Polícia Penal?

Trata-se de atribuição que, igualmente, foge da previsão constitucional da Polícia Penal (segurança dos estabelecimentos penais), pois uma vez que o agente se encontra em liberdade, não há mais nenhuma correlação com a segurança dos estabelecimentos penais, e a possibilidade de se ampliar as atribuições da Polícia Penal mediante a edição de lei de iniciativa do Poder Executivo, foi retirada durante a tramitação da PEC que criou a Polícia Penal.

Portanto, a referida fiscalização não é atribuição da Polícia Penal.

Por não ser atribuição da Polícia Penal, cabe à Polícia Militar realizar a fiscalização? Qual é o papel da Polícia Militar?

Às polícias militares, que são forças auxiliares e reservas do Exército e subordinam-se aos Governadores dos Estados e do Distrito Federal, cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública (art. 144, §§ 5º e 6º).

A Constituição Federal traz duas missões constitucionais para a Polícia Militar, consistentes na polícia ostensiva e na preservação da ordem pública.

A amplitude dos conceitos de “polícia ostensiva” e de “preservação da ordem pública” permite dizer que a polícia militar, dentre os órgãos de segurança pública elencados no art. 144 da Constituição Federal, é a que possui maiores atribuições.

O conceito de “polícia ostensiva” é amplo e surgiu com a Constituição de 1988.

A polícia ostensiva envolve a atuação preventiva e visual da polícia, com o fim de se evitar a ocorrência de crimes; perpassa pelas quatro fases do poder de polícia[1]; engloba toda atividade ostensiva voltada para a segurança pública que não esteja expressamente na Constituição para os demais órgãos de segurança pública.

Quando a Constituição quis limitar a atuação da Polícia ao patrulhamento ostensivo, disse expressamente como o caso da Polícia Rodoviária e Ferroviária Federal (art. 144, §§ 2º e 3º).

A polícia ostensiva, dada a sua amplitude conceitual, abrange o policiamento ostensivo, que por sua vez abrange o patrulhamento.

A expressão “preservação da ordem pública” também surgiu com a Constituição de 1988.

A Emenda Constitucional n. 01, de 17 de outubro de 1969, previa que competia à Polícia Militar a “manutenção da ordem pública” (art. 13, § 4º).

A Constituição de 1988 menciona que cabe à polícia militar a “preservação da ordem pública” (art. 144, § 5º).

Nota-se que houve a substituição do termo “manutenção” por “preservação”, sendo este mais amplo que aquele.

A manutenção da ordem pública consiste no ato de manter, de conservar, de fazer permanecer a ordem pública. A atividade da Polícia Militar, enquanto mantenedora da ordem pública tem-se por cumprida enquanto a ordem pública não é violada, enquanto crimes não ocorrem.

Na preservação da ordem pública, tem-se um plus. Não basta sua manutenção, conforme apresentado acima. É necessário que a ordem pública seja preservada, o que consiste em restaurá-la imediatamente, tão logo esta seja quebrada. Portanto, a preservação da ordem pública possui caráter dúplice: preventivo e repressivo.

O Decreto-Lei 88.777/83, que aprova o regulamento para as polícias militares e corpos de bombeiros militares, conceitua ordem pública no art. 2º, item 21:

21) Ordem Pública – Conjunto de regras formais, que emanam do ordenamento jurídico da Nação, tendo por escopo regular as relações sociais de todos os níveis, do interesse público, estabelecendo um clima de convivência harmoniosa e pacífica, fiscalizado pelo poder de polícia, e constituindo uma situação ou condição que conduza ao bem comum.

Álvaro Lazzarini leciona que “A ordem pública é mais fácil de ser sentida do que definida, mesmo porque ela varia de entendimento no tempo e no espaço. Aliás, nessa última hipótese, pode variar, inclusive, dentro de um determinado país. Mas sentir-se-á a ordem pública segundo um conjunto de critérios de ordem superior, políticos, econômicos, morais e, até mesmo, religiosos. A ordem pública não deixa de ser uma situação de legalidade e moralidade normal. Apurada por quem tenha competência para isso sentir e valorar. A ordem pública, em outras palavras, existirá onde estiver ausente a desordem, isto é, os atos de violência de que espécie for, contra as pessoas, bens ou o próprio Estado. A ordem pública não é figura jurídica, embora dela se origine e tenha a sua existência formal.”[2]

Trata-se, a bem da verdade, de um conceito jurídico indeterminado, ou seja, são termos ou expressões inseridos em normas jurídicas, que possuem um conteúdo aberto, de forma que o intérprete possa moldar o conteúdo de acordo com os valores reinantes na sociedade, a depender da época, do tempo e da finalidade da forma.

A Lei 11.473/07, que dispõe sobre cooperação federativa no âmbito da segurança pública, traz um rol exemplificativo no art. 3º, do que se consideram atividades e serviços imprescindíveis à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, a saber: a) o policiamento ostensivo; b) o cumprimento de mandados de prisão; c) o cumprimento de alvarás de soltura; d) a guarda, a vigilância e a custódia de presos; e) os serviços técnico-periciais, qualquer que seja sua modalidade; o registro e a investigação de ocorrências policiais; f) as atividades relacionadas à segurança dos grandes eventos; g) as atividades de inteligência de segurança pública; h) a coordenação de ações e operações integradas de segurança pública; i) o auxílio na ocorrência de catástrofes ou desastres coletivos, inclusive para reconhecimento de vitimados; j) o apoio às atividades de conservação e policiamento ambiental.

Consoante o Decreto-Lei n. 88.777/83, a perturbação da ordem “Abrange todos os tipos de ação, inclusive as decorrentes de calamidade pública que, por sua natureza, origem, amplitude e potencial possam vir a comprometer, na esfera estadual, o exercício dos poderes constituídos, o cumprimento das leis e a manutenção da ordem pública, ameaçando a população e propriedades públicas e privadas.” (art. 2º, item 25).

O Decreto-Lei 667/69, que reorganiza as Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros Militares, trata no art. 3º, que foi alterado pelo Decreto-Lei n. 2.010/83, e recepcionado pela Constituição Federal de 1988[3], das atribuições da Polícia Militar.

Art. 3º – Instituídas para a manutenção da ordem pública e segurança interna nos Estados, nos Territórios e no Distrito Federal, compete às Polícias Militares, no âmbito de suas respectivas jurisdições[4]: (Redação dada pelo Del nº 2010, de 1983)

a) executar com exclusividade, ressalvas as missões peculiares das Forças Armadas, o policiamento ostensivo, fardado, planejado pela autoridade competente, a fim de assegurar o cumprimento da lei, a manutenção da ordem pública e o exercício dos poderes constituídos; (Redação dada pelo Del nº 2010, de 1983)

b) atuar de maneira preventiva, como força de dissuasão, em locais ou áreas específicas, onde se presuma ser possível a perturbação da ordem; (Redação dada pelo Del nº 2010, de 12.1.1983)

c) atuar de maneira repressiva, em caso de perturbação da ordem, precedendo o eventual emprego das Forças Armadas; (Redação dada pelo Del nº 2010, de 1983)

d) atender à convocação, inclusive mobilização, do Governo Federal em caso de guerra externa ou para prevenir ou reprimir grave perturbação da ordem ou ameaça de sua irrupção, subordinando-se à Força Terrestre para emprego em suas atribuições específicas de polícia militar e como participante da Defesa Interna e da Defesa Territorial; (Redação dada pelo Del nº 2010, de 1983)

e) além dos casos previstos na letra anterior, a Polícia Militar poderá ser convocada, em seu conjunto, a fim de assegurar à Corporação o nível necessário de adestramento e disciplina ou ainda para garantir o cumprimento das disposições deste Decreto-lei, na forma que dispuser o regulamento específico. (Redação dada pelo Del nº 2010, de 1983)

O art. 3º data de 1983 e menciona “manutenção” em razão da Emenda Constitucional de 1969, considerado por muitos como uma Constituição, por referir-se à polícia militar como responsável pela manutenção da ordem pública.

Em que pese a Constituição de 1967 referir-se à Polícia Militar como responsável pela “manutenção da ordem e segurança interna”[5] e a Emenda Constitucional n. 01/69 como responsável pela “manutenção da ordem pública”[6], o próprio Decreto-Lei 667/69 atribuiu à polícia militar, originariamente, a atuação repressiva em caso de perturbação da ordem, no art. 3º, “c”, o que coaduna-se com o conceito de preservação da ordem pública.

Lazzarini[7] ainda salienta que (1989, p. 235-236 apud David, 2017, p. 34):

[…] às Polícias Militares, instituídas para o exercício da polícia ostensiva e preservação da ordem pública (art. 144, § 5º), compete todo o universo policial, que não seja atribuição constitucional prevista para os demais seis órgãos elencados no art. 144 da Constituição da República de 1988. Em outras palavras, no tocante à preservação da ordem pública, às polícias militares não só cabe o exercício da polícia ostensiva na forma retro examinada, como também a competência residual de exercício de toda atividade policial de segurança pública não atribuída aos demais órgãos. A competência ampla da Polícia Militar na preservação da ordem pública engloba, inclusive, a competência específica dos demais órgãos policiais, no caso de falência operacional deles, a exemplo de greves ou outras causas, que os tornem inoperantes ou ainda incapazes de dar conta de suas atribuições, funcionando, então, a Polícia Militar como verdadeiro exército da sociedade. Bem por isso as Polícias Militares constituem os órgãos de preservação da ordem pública para todo o universo da atividade policial em tema da ‘ordem pública’ e, especificamente, da ‘segurança pública‘.

O âmbito de atuação da Polícia Militar é em nível estadual, o que não a impede de atuar em vias federais e municipais, localizadas no estado em que a Corporação atua, pois a Constituição Federal não estabeleceu nenhuma limitação territorial quanto ao exercício da polícia ostensiva e da preservação da ordem pública, devendo as polícias atuarem em conjunto, visando à colaboração recíproca em prol do interesse maior, que é a segurança pública, “respeitados os raios de competência institucional de cada uma delas, sem qualquer limitação territorial, à míngua de qualquer respaldo legal.”[8]

Portanto, é possível afirmar que a Polícia Militar se funda em dois pilares, a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública, que são conceitos amplos, que englobam todas as atividades policiais que não estejam previstas expressamente para os demais órgãos de segurança pública.

A preservação da ordem pública possui uma maior feição preventiva, que é o cenário ideal para a sociedade e cumpre com a missão constitucional de se garantir o status de paz social. A partir do momento em que ocorre o crime a ordem pública é violada, a Constituição Federal é violada, direitos coletivos e individuais são violados. A atuação da Polícia Militar é, predominantemente, preventiva, deve-se antecipar ao crime, evitar a sua ocorrência, o que exige estratégia e inteligência, de forma que o avanço do crime nunca fique à frente do avanço tecnológico e estratégico das instituições policiais.

Quando a Polícia Militar fiscaliza as medidas fixadas judicialmente ou decorrentes da lei para condenados em liberdade, atua preventivamente, pois atua voltada para um público que já possui condenação criminal que ainda deve possuir um acompanhamento pelo Estado, devendo-se levar em consideração ainda que esses condenados estão em um processo de readaptação para o convívio social por terem abalado a ordem pública, que deve ser preservada pela Polícia Militar.

Deve-se levar em consideração ainda que no Brasil há um número significativo de reincidência, conforme tabela abaixo extraída do documento “Reincidência Criminal no Brasil: relatório de pesquisa”[9], de autoria do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.

O trabalho de acompanhamento de condenados em liberdade pela Polícia Militar surte ainda um importante efeito psicológico nos condenados, de que estão sendo vigiados e acompanhados pelo Estado e que caso pratiquem qualquer ilegalidade poderão regredir de regime. Há um claro efeito preventivo.

Pode-se afirmar que a presença da Polícia Militar periodicamente na vida de grupos de pessoas que possuem condenação criminal colabora para prevenir ações delituosas e, consequentemente, colabora com a preservação da ordem pública, que é missão constitucional da Polícia Militar.

Dentre as atribuições preventivas da Polícia Militar inclui-se a prevenção situacional, que consiste em reduzir as oportunidades para que um infrator pratique o crime, seja por intermédio de instalação de câmeras de segurança, orientação à sociedade de como se precaver, como evitar ruas sem movimento e mais escuras à noite, bem como um trabalho direcionado ao infrator, como “marcar presença”, para que ele tenha ciência de que o Estado se mantém vigilante, “de olho”, e que a prática de qualquer ilegalidade poderá resultar em sanções, já que um dos fatores que desinibe o crime é a crença na impunidade.[10]

No exercício das funções preventivas no que tange ao crime, o Estado atua, essencialmente, sob três frentes, que constituem a prevenção primária, secundária e terciária. A prevenção terciária é voltada para os condenados e tem por fim evitar a reincidência e visa a reinserção social, que, em tese, deve ser feita por outra instituição, como a Polícia Penal.

Em relação aos agentes que possuem medidas cautelas diversas da prisão e medidas protetivas no contexto de violência doméstica, a fiscalização é de suma importância, devendo-se aplicar o mesmo raciocínio acima exposto, uma vez que a fiscalização previne, evita a prática de crime, o que é missão constitucional da Polícia Militar.

Nota-se, portanto, que Polícia Militar é uma instituição gigante, que exerce atribuições complexas e de extrema importante para a sociedade, devendo atuar em várias frentes e realiza um trabalho preventivo, no sentido mais amplo.

E o patronato?

O patronato é um órgão de execução penal (art. 61, VI, da LEP) e possui, dentre as suas atribuições (art. 79, II e III, da LEP), fiscalizar o cumprimento das penas de prestação de serviço à comunidade e de limitação de fim de semana e colaborar na fiscalização do cumprimento das condições da suspensão e do livramento condicional.

O patronato pode ser um órgão público ou particular e exerce, além da função fiscalizatória, a função de prestar assistência aos condenados que cumprem pena privativa de liberdade no regime aberto e pena de limitação de fim de semana, além dos egressos. Nota-se, portanto, haver uma importante função social. Assim, é possível falar que o patronato possui dupla função: social e fiscalizatória.

Infelizmente, no Brasil, o patronato não é estruturado e possui pouca efetividade, por falta de investimento e de interesse político.

Paulo Henrique Brant Vieira[11], com precisão, afirma que:

Passado o tempo, o Patronato continua como um órgão ainda carente de afirmação, com ações pontuais não como um órgão do Estado, mas como um órgão de composição em que a execução penal é aplicada. Todavia, quanto a ação de fiscalização dos egressos, conforme previsto em lei, o caminho que se desenha é monitoração eletrônica. (..)

(…)

Neste ponto, reconhecendo o impacto da reincidência no campo da segurança pública, impossível afastar a necessária contribuição dos órgãos de polícia, em especial das polícias militares dos estados, as quais cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública e, neste campo, compreender as estratégias de intervenção utilizadas para conter o avanço da criminalidade, bem como o alinhamento destas ações, em especial no Estado de Minas Gerais. (destaquei)

Feita essas explicações acerca das atribuições constitucionais da Polícia Militar, Polícia Penal e do patronato, cabe à Polícia Militar realizar a fiscalização de condenados em liberdade, das medidas cautelares diversas da prisão e das medidas protetivas fixadas no contexto de violência doméstica?

Por inexistir órgão que cuide da fiscalização de condenados em liberdade, sendo o patronato inefetivo e caber à Polícia Militar a prevenção e preservação da ordem pública, inclusive, suprir a ausência ou falência de outros órgãos, em relação à segurança pública, cabe à Polícia Militar realizar a fiscalização de condenados em liberdade, bem como fiscalizar o cumprimento das medidas cautelares diversas da prisão e das medidas protetivas no contexto de violência doméstica, quando necessário, o que pode ocorrer diante da ausência de tornozeleira eletrônica.

A preservação da ordem pública, a prevenção situacional, a ausência de outros órgãos policiais ou instituições responsáveis para proceder à fiscalização, o papel subsidiário da Polícia Militar, em atuar em todos os temas afetos ao universo policial e segurança pública que não pertençam às demais instituições, faz nascer para a Polícia Militar, o papel de órgão fiscalizador do cumprimento da pena por condenados em liberdade, além de fiscalizar o cumprimento de medidas cautelares diversas da prisão e de medidas protetivas no contexto de violência doméstica, sempre que necessário.

Nas precisas lições do saudoso Álvaro Lazzarini, compete à Polícia Militartodo o universo policial, que não seja atribuição constitucional das demais instituições policiais, devendo atuar no caso de falência operacional ou inoperância dos demais órgãos policiais.

Em tema de segurança pública não pode haver um vácuo de atribuição, o que gera imensa insegurança pública e jurídica. A amplitude constitucional das atribuições da Polícia Militar permite afirmar, diante de todos os fundamentos expostos, que é a instituição policial com maiores atribuições e cabe à Polícia Militar o papel fiscalizador nas situações mencionadas.

Em um passado não muito distante era comum a Polícia Militar, por todo o Brasil, realizar a segurança interna de estabelecimentos penais, o que hoje é papel constitucional da Polícia Penal. O que justificava a Polícia Militar, responsável pela polícia ostensiva e preservação da ordem pública, cuidar da segurança dos presídios? Exatamente, os fundamentos acima expostos.

Nesse sentido, Paulo Henrique Brant Vieira[12] afirma que:

Em alinhamento à doutrina do professor Lazzarini (1989), e, considerando que mesmo havendo o órgão com competência para exercer a fiscalização na execução penal, como no caso dos Patronatos, previstos tanto na Lei de Execução Penal brasileira, como no Lei Estadual nº 11.404/94, restando por parte deste órgão deficiência que cause prejuízo à segurança pública ou a ordem pública, é necessário reconhecer a necessidade de ação complementar por partes das polícias militares dos estados. (destaquei)

Thiago Colnago Cabral no artigo “A quem cabe a fiscalização da pena imposta ao condenado solto?”[13] explica que:

Efetivamente, há estímulo à violação da lei quando se fixam condições à prisão domiciliar, ao livramento condicional e às saídas temporárias, mas se consigna a inexistência de vigilância direta e se deixa de definir quem será encarregado da fiscalização.

É imperiosa a correção de tais incongruências, prestando-se como melhor parâmetro as deliberações administrativas do Comando da Polícia Militar da 8ª Região Integrada de Segurança Pública de Minas Gerais, sediada em Governador Valadares, já aplicadas em todo o estado.

A Polícia Militar constituiu Patrulha de Atenuação de Risco Social (Paris), cujo objetivo remonta justamente à fiscalização do cumprimento das condições de recolhimento e de horário da prisão domiciliar, do livramento condicional e das saídas temporárias.

A deliberação em comento tem lastro no artigo 144 da Constituição, que atribui à Polícia Militar a preservação da ordem pública, ratificada pela verificação de que, no mais das vezes, as práticas delitivas estão atreladas a agentes que já apresentam histórico delitivo.

Logo, fiscalizar o regular cumprimento da pena em liberdade é importante elemento de atenuação da criminalidade, especialmente da violenta. (destaquei)

O Projeto de Lei n. 1596/2019, de autoria do Deputado Federal Major Vitor Hugo, visa alterar a Lei de Execução Penal – Lei n. 7.210/83 – para estabelecer que compete ao oficial de liberdade condicional acompanhar o cumprimento das condições impostas ao beneficiário do instituto do livramento condicional. O projeto de lei cria um cargo específico para realizar a fiscalização, o que seria bom se fosse ampliado para as demais situações, como fiscalizar todos condenados em liberdade e que tiverem contra si medida cautelar diversa da prisão e medidas protetivas no contexto de violência doméstica.

A Polícia Militar de Minas Gerais realiza o acompanhamento de condenados em liberdade, inclusive, com acesso ao Sistema Eletrônico de Execução Unificado – SEEU – que é o sistema de controle informatizado da execução penal que permite acompanhar todas as informações e a execução penal dos condenados. Na prática, o militar após proceder à fiscalização, lança relatório direto no SEEU que é acompanhado pelo juiz e Ministério Público. Trata-se, portanto, de uma atividade institucionalidade pela PMMG em parceria com o Poder Judiciário.

É importante frisar que apesar da Polícia Militar realizar esse papel fiscalizatório, não possui nenhum vínculo ou subordinação com o Poder Judiciário e Ministério Público, razão pela qual cabe ao Comandante definir como será realizada a fiscalização, o efetivo empregado, os dias e horários, de acordo com o interesse da segurança pública, sobretudo por comprometer parte do efetivo que poderia estar no policiamento ostensivo e preventivo e atendendo ocorrências policiais.

É inegável que o acúmulo de atribuições por parte da Polícia Militar compromete o efetivo, que muitas vezes já é reduzido, além de reduzir a presença da Polícia Militar em outras atividades, como o patrulhamento, o atendimento de ocorrência e realização de operações. Portanto, em um cenário ideal, a realização da fiscalização de condenados em liberdade e de agentes que possuam contra si medidas cautelares diversas da prisão e medidas protetivas no contexto de violência doméstica, deve ser realizada por outro órgão, no entanto, enquanto não houver essa previsão constitucional ou em lei, cabe à Polícia Militar.

Na prática pode ocorrer da Polícia Penal assumir para si a fiscalização do cumprimento da pena quando o preso estiver em liberdade, contudo, não há essa previsão na Constituição Federal, sendo mais uma atuação colaborativa (princípio da cooperação entre os órgãos de segurança pública) do que obrigação.

Diante de todo o exposto, é possível afirmar que:

a) Não cabe, pela Constituição Federal, à Polícia Penal realizar a fiscalização de condenados criminalmente e que estejam em liberdade nem a fiscalização do cumprimento de medidas cautelares diversas da prisão e de medidas protetivas no contexto de violência doméstica;

b) Na hipótese em que houver lei que preveja ser atribuição da Polícia Penal a fiscalização de condenados que estejam soltos, a lei será de duvidosa constitucionalidade;

c) Cabe ao patronato proceder à fiscalização do cumprimento das penas de prestação de serviço à comunidade e de limitação de fim de semana e colaborar na fiscalização do cumprimento das condições da suspensão e do livramento condicional, no entanto, no Brasil, o órgão é inoperante ou inexistente;

d) A preservação da ordem pública, a prevenção situacional, a ausência de outros órgãos policiais ou instituições responsáveis para proceder à fiscalização, o papel subsidiário da Polícia Militar, em atuar em todos os temas afetos ao universo policial e segurança pública que não pertençam às demais instituições, faz nascer para a Polícia Militar, o papel de órgão fiscalizador do cumprimento da pena por condenados em liberdade, além de fiscalizar o cumprimento de medidas cautelares diversas da prisão e de medidas protetivas no contexto de violência doméstica, sempre que necessário;

e) Em tema de segurança pública não pode haver um vácuo de atribuição, o que gera imensa insegurança pública e jurídica. A amplitude constitucional das atribuições da Polícia Militar permite afirmar, diante de todos os fundamentos expostos, que é a instituição policial com maiores atribuições e cabe à Polícia Militar o papel fiscalizador nas situações mencionadas.


[1] Ordem de polícia; consentimento de polícia; fiscalização de polícia e sanção de polícia.

[2].      Lazzarini, 1998, p. 8.

[3].      Recepcionado pelo art. 22, XXI, da CF. Parecer nº AGU/TH/ 02/2001, de 29 de julho de 2001.

[4].      Em que pese o caput do art. 3º mencionar jurisdição, o correto é circunscrição.

[5].      Art. 13, § 4º, da Constituição de 1967.

[6].      Art. 13, § 4º, da Emenda Constitucional n. 01/69.

[7].      DAVID, Louize Campos. ASPECTOS JURÍDICOS, BENEFÍCIOS E DESAFIOS DA IMPLANTAÇÃO DO CICLO COMPLETO DE POLÍCIA NO BRASIL: UMA ANÁLISE DAS PROPOSTAS DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. 2017. 120f. Trabalho de Conclusão de Curso – Universidade do Sul de Santa Catarina. Tubarão, 2017.

[8].Nesse sentido: CONSTITUIÇÃO E ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PATRULHAMENTO EM RODOVIAS FEDERAIS. POLÍCIA RODOVIÁRIA FEDERAL E POLÍCIA MILITAR. CONFLITO DE ATRIBUIÇÕES. NÃO OCORRÊNCIA. I – O patrulhamento ostensivo das rodovias federais é da competência da Polícia Rodoviária Federal, nos termos da lei (CF, art. 144, § 2º), cabendo às polícias militares o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública (CF, art. 144, § 5º). II – A atuação das polícias militares encontra-se subordinada aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios (CF, art. 144, § 6º), observados os limites territoriais da Unidade da Federação, sem qualquer ressalva quanto às rodovias federais ali existentes, respeitando-se, contudo, as regras de ocupação de área de domínio federal, seja no tocante à instalação de edificação (provisória ou permanente), seja por ocasião da realização de operação policial, de que resulte alteração no fluxo do tráfego, nas referidas rodovias. III – Remessa oficial desprovida. Sentença confirmada. (TRF-1 – REO: 38441 PI 96.01.38441-3, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL SOUZA PRUDENTE, Data de Julgamento: 01/12/2008, SEXTA TURMA, Data de Publicação: 26/01/2009 e-DJF1 p. 123)

[9] BRASIL. IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Reincidência Criminal no Brasil: relatório de pesquisa. Rio de Janeiro: IPEA, 2015.

[10] Nesse sentido é o Memorando n. 008.3/2020 – 36º BPM PMMG.

[11] VIEIRA, Paulo Henrique Brant. A REINCIDÊNCIA DE EGRESSOS DO SISTEMA PENAL: impactos da criminalidade violenta e a experiência das ações do controle criminal na 15ª região de polícia militar.. 2021. 99 f. Monografia (Especialização) – Curso de Curso de Especialização em Segurança Pública, Academia da Polícia Militar de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2021.

[12] VIEIRA, Paulo Henrique Brant. A REINCIDÊNCIA DE EGRESSOS DO SISTEMA PENAL: impactos da criminalidade violenta e a experiência das ações do controle criminal na 15ª região de polícia militar.. 2021. 99 f. Monografia (Especialização) – Curso de Curso de Especialização em Segurança Pública, Academia da Polícia Militar de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2021.

[13] Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2014-jul-01/tiago-cabral-quem-cabe-fiscalizar-pena-condenado-solto>. Acesso em: 16/01/2022.

O conceito de “fronteira” e de “faixa de fronteira” para o Código Penal Militar

O termo “fronteira” aparece duas vezes no Código Penal Militar, a saber:

Art. 189 (…) Agravante especial
II – se a deserção ocorre em unidade estacionada em fronteira ou país estrangeiro, a pena é agravada de um têrço.
Art. 330. Abandonar cargo público, em repartição ou estabelecimento militar:        
§ 2º Se o fato ocorre em lugar compreendido na faixa de fronteira: Pena – detenção, de um a três anos.

Por “faixa de fronteira” deve ser empregado o conceito previsto no art. 20, § 2º, da Constituição Federal.

Art. 20 (…)

§ 2º A faixa de até cento e cinqüenta quilômetros de largura, ao longo das fronteiras terrestres, designada como faixa de fronteira, é considerada fundamental para defesa do território nacional, e sua ocupação e utilização serão reguladas em lei.

O art. 1º da Lei n. 6.634/79 diz que é considerada área indispensável à Segurança Nacional a faixa interna de 150 Km (cento e cinqüenta quilômetros) de largura, paralela à linha divisória terrestre do território nacional, que será designada como Faixa de Fronteira.

Veja que a Constituição Federal e a Lei n. 6.634/79, que dispõe sobre a faixa de fronteira, estabelecem conceitualmente que a faixa de fronteira refere-se à faixa de até cento e cinquenta quilômetros de largura, ao longo das fronteiras terrestres.

Em que pese a doutrina não distinguir “fronteira” de “faixa de fronteira”, o legislador, ao dizer somente “fronteira” e não “faixa de fronteira”, como fez no art. 189, II, do Código Penal Militar, distinguiu os dois conceitos, seja porque não há palavras inúteis na lei, seja porque interpretação diversa seria prejudicial ao réu ao alargar demasiadamente o conceito de “fronteira”.

Por “fronteira” deve-se entender o real limite, de forma precisa, entre as fronteiras do Brasil e dos demais países que com o Brasil fazem fronteira. Fronteira é o espaço físico, decorrente de uma linha real ou imaginária, que obedece as regras dos tratados internacionais e a real divisão territorial. Portanto, somente nessas situações delimitadas e precisas é que deve incidir a causa de aumento prevista no art. 189, II, do Código Penal Militar, e não em qualquer distância da fronteira, desde que dentro dos 150 quilômetros, pois isso é faixa de fronteira e não fronteira.

Nesse sentido são as lições de Vanderlei Borba no artigo “Fronteiras e faixa de fronteira: expansionismo, limites e defesa”.[1]

Na caracterização da fronteira terrestre brasileira, prevalecem dois conceitos: (a) de fronteira linha (limite), que é constituída pela linha imaginária (natural ou artificial) que segue o traçado estabelecido em tratados internacionais, completada, quando necessário, pelo detalhamento de acidentes físicos e pela colocação de marcos que a torne mais nítida; e, (b) de fronteira faixa (faixa de fronteira), que é uma faixa de até 150 km de largura, ao longo da fronteira linha, regrada por normas para ocupação, trânsito e exploração econômica, tendo em vista a preservação dos interesses e defesa da soberania do território nacional[2]. Fronteira Limite está ligada a uma concepção precisa e definida de terreno, enquanto Fronteira Faixa é mais abrangente e se refere a uma região. (destaque nosso)

Dessa forma, quando o art. 189, II, do Código Penal Militar diz “se a deserção ocorre em unidade estacionada em fronteira” significa que a unidade militar (móvel, como um acampamento, ou imóvel) deve estar localizada em uma área próxima da fronteira (Fronteira Limite), de forma que seja possível visualizar ou estar, rapidamente, na fronteira real, física, que passa para outro país. Isso porque o legislador visou punir com mais rigor o militar que deserta estando em local sensível e de elevada importância para o país, não que a “faixa de fronteira” não seja, contudo, ao estar, realmente, próximo da fronteira, a ausência ilegal (deserção) causa um maior risco para o país. Em que pese esse ser o nosso entendimento, a doutrina não distingue e o Superior Tribunal Militar entende que por “unidade estacionada em fronteira” deve abranger aquela situada até de 150 (cento e cinquenta) quilômetros de largura ao longo das fronteiras terrestres, considerada como fundamental para a defesa do Território Nacional.[3]


[1] Disponível em: https://biblat.unam.mx/pt/revista/historiae-rio-grande/articulo/fronteiras-e-faixa-de-fronteira-expansionismo-limites-e-defesa. Acesso em: 13/01/2022.

[2] Conforme Cap. II, art. 20, alínea XI, § 2º da Constituição Federal de 1988.

[3] STM, Apelação n. 2002.01.049183-1, rel. Min. José Luiz Lopes da Silva, j. 11/02/2003.