Juízes militares são Oficiais das Instituições Militares que são sorteados para comporem o Conselho de Justiça.
O Conselho de Justiça da Justiça Militar Estadual possui previsão constitucional (art. 125, § 3º), enquanto que o Conselho de Justiça da Justiça Militar da União possui previsão legal (art. 124, parágrafo único, da CF c/c art. 1º, III, da Lei n. 8.457/92).
O Conselho de Justiça subdivide-se em Conselho Especial de Justiça e Conselho Permanente de Justiça e possuem competência para processar e julgar militares que praticarem crimes militares.
O Conselho Especial de Justiça tem competência para processar e julgar Oficiais, enquanto que o Conselho Permanente de Justiça tem competência para processar e julgar Praças.
O Conselho de Justiça é formado por um juiz concursado, que o presidirá, e por quatro juízes militares, sorteados, que são na verdade Oficiais das Instituições Militares que exercem a função de juiz enquanto atuarem no Conselho de Justiça, sem, no entanto, ocuparem o cargo de juiz (art. 16, I e II, da Lei 8.457/92 para a Justiça Militar da União e o correspondente na legislação estadual).
Na Justiça Militar da União, os Conselhos de Justiça são responsáveis por julgarem todos os crimes militares praticados pelos militares, exceto os oficiais-generais, enquanto que na Justiça Militar dos Estados compete ao juiz de direito do juízo militar (juiz concursado) julgar, singularmente, os crimes militares cometidos contra civis, cabendo ao Conselho de Justiça processar e julgar os demais crimes militares.
Os juízes militares exercem suas funções de forma temporária, uma vez que o Conselho Especial de Justiça é constituído para cada processo e dissolvido após a conclusão dos trabalhos e o Conselho Permanente de Justiça é constituído para funcionar por três meses consecutivos na Justiça Militar da União e nos estados, a depender da legislação estadual, que poderá prever o prazo de funcionamento de quatro meses.
Os juízes militares que compõem o Conselho Especial de Justiça são dispensados de suas atividades perante a Instituição Militar nos dias em que houver sessões, enquanto que os membros do Conselho Permanente de Justiça são dispensados de suas funções e obrigações perante a Instituição Militar durante todo o período em que fizer parte do Conselho.
Os juízes militares que compõem o Conselho de Justiça constituem um órgão do Poder Judiciário (art. 92, VI, da CF).
Durante o período em que os Oficiais atuam como juízes militares exercem as mesmas atribuições nos processos que os juízes federais da Justiça Militar da União e que os juízes de direito do juízo militar, com a ressalva de que os juízes concursados presidem o Conselho de Justiça.
Os juízes militares passam a atuar no processo após o recebimento da denúncia, ocasião em que o Conselho de Justiça é instalado e deve atuar até a sentença. Durante o processo os juízes militares participam ativamente, como se juízes concursados fossem, podem fazer perguntas, devem proferir votos e fundamentarem suas decisões.
Quando o Código de Processo Penal Militar se refere a juiz abrange o juiz singular e o colegiado, no exercício das respectivas competências atributivas ou processuais (art. 36, § 1º, do CPPM).
Demonstrado que os juízes militares exercem a função de juiz no decorrer do processo, assim como o juiz federal da Justiça Militar da União e o juiz de direito do juízo militar exercem, deve-se analisar as prerrogativas que possuem enquanto juízes militares.
Matheus Carvalho[1] ensina que “Todo cargo público é criado mediante a edição de lei, fazendo parte da estrutura de um órgão público e, necessariamente, lhe será atribuída uma função. Não existe cargo sem função, não obstante exista função sem cargo.”
Os Oficiais que compõem o Conselho de Justiça exercem, na prática e juridicamente, a função de juiz, em que pese não ocuparem o cargo de juiz.
As funções judicantes exercidas pelos Oficiais que são membros do Conselho de Justiça da Justiça Militar não se enquadram no conceito de magistratura de carreira, em razão da natureza temporária da função, com a imediata desvinculação do Poder Judiciário tão logo sobrevenha o término do prazo do Conselho Permanente ou o fim do processo na primeira instância no Conselho Especial e pelo fato de não ocuparem o cargo de magistrado, mas sim exercerem as funções de juiz.[2]
O art. 95 da Constituição Federal assegura aos juízes as garantias da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos.
Art. 95. Os juízes gozam das seguintes garantias:
I – vitaliciedade, que, no primeiro grau, só será adquirida após dois anos de exercício, dependendo a perda do cargo, nesse período, de deliberação do tribunal a que o juiz estiver vinculado, e, nos demais casos, de sentença judicial transitada em julgado;
II – inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, na forma do art. 93, VIII;
Os juízes militares não possuem vitaliciedade, em razão da natureza efêmera da função de juiz militar, nem direito à irredutibilidade de subsídio, pois não recebem subsídio por atuarem como juízes, podendo receberem uma gratificação que terá natureza “pro labore”, caso haja previsão em lei[3]. Não possuem também direito à inamovibilidade, por serem na verdade Oficiais das Instituições Militares que exercem a função de juiz militar, sem ocuparem o cargo de juiz, e a inamovibilidade é para o cargo e não função, na medida em que o conceito de inamovibilidade refere-se à impossibilidade do juiz ser removido ou promovido de um cargo para outro.
Nesse sentido, José Afonso da Silva[4] ensina que a inamovibilidade:
Refere-se à permanência do juiz no cargo para o qual foi nomeado, não podendo o Tribunal e menos ainda o governo designar-lhe outro lugar, onde deva exercer suas funções (art. 95, II). Contudo, poderá ser removido por interesse público em decisão pelo voto da maioria absoluta do tribunal a que estiver vinculado (art. 93, VIII). No entanto, o magistrado pode ser removido, a pedido ou por permuta com outro magistrado de comarca de igual entrância, atendidas, no que couber, as regras previstas nas alíneas a, b, c e e do inc. II do art. 93, referentes às promoções; mas pode também ser removido compulsoriamente, por interesse público por voto da maioria absoluta do respectivo tribunal ou do Conselho Nacional de Justiça, assegurada ampla defesa. (destaquei)
De qualquer forma, os juízes militares não podem serem retirados do Conselho de Justiça fora das hipóteses previstas em lei ou sem fundamento e autorização do juiz presidente do Conselho de Justiça.
Nesse sentido, dispõe o art. 31 da Lei n. 8.457/92, com a redação dada pela Lei n. 13.774/18.
Art. 31. Os juízes militares são substituídos em suas licenças, faltas e impedimentos, bem como nos afastamentos de sede por movimentação que decorram de requisito de carreira, ou por outro motivo justificado e reconhecido pelo juízo como de relevante interesse para a administração militar. (Redação dada pela Lei nº 13.774, de 2018)
Previsão semelhante contém o art. 207, § 11, da Lei Complementar n. 59/01, de Minas Gerais, com a redação dada pela Lei Complementar n. 148/19.
Art. 207 – Os Juízes Militares serão sorteados entre militares do serviço ativo, segundo relação remetida anualmente pelo órgão competente da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militar a cada uma das Auditorias Judiciárias Militares, na qual constarão o posto, a antiguidade e o lugar onde servirem, sendo essa relação publicada em boletim até o dia 5 de dezembro.
§ 11 – É vedada a substituição de Oficial legalmente sorteado, exceto:
I – em caso de impedimento, nas hipóteses previstas no § 9º deste artigo e no Código de Processo Penal Militar;
II – por motivo relevante, a ser avaliado pelos Juízes de Direito do Juízo Militar, nos termos de ato normativo do órgão competente do Tribunal de Justiça Militar.
(Parágrafo acrescentado pelo art. 4º da Lei Complementar nº 148, de 4/10/2019.) (destaquei)
Dessa forma, cabem aos juízes presidentes do Conselho de Justiça assegurarem a “inamovibilidade” dos juízes militares, de forma que esses não sejam retirados ou afastados imotivadamente do Conselho de Justiça, o que garantirá a necessária imparcialidade na condução dos trabalhos e julgamento pelo órgão colegiado da primeira instância da Justiça Militar.
A transferência de um Oficial do Conselho de Justiça para uma cidade distante inviabilizará a permanência deste no Conselho de Justiça. Pode o juiz impedir que o Oficial saia do Conselho? Depende. Em regra, não, pois o art. 31 da Lei Federal n. 8.457/92, o que deve ser analisado nas legislações estaduais, prevê expressamente que a movimentação na carreira justifica a saída do juiz militar, contudo, caso haja indicativos de que a movimentação teve por finalidade retirar o juiz militar do Conselho, caberá ao juiz presidente impedir que o Oficial saia do Conselho, razão pela qual deverá continuar lotado na sede da Justiça Militar, pelo menos enquanto pertencer ao Conselho, pois cabe ao juiz presidente preservar a regularidade dos trabalhos do Conselho e se a movimentação for por motivos escusos não há motivo justificável, sendo autorizado ao juiz presidente, na forma da lei, impedir a movimentação.[5]
Após o encerramento dos trabalhos no Conselho caberá ao militar recorrer à justiça, caso pretenda anular a movimentação, na medida em que a decisão do juiz presidente do Conselho de Justiça pode limitar a movimentação somente até o fim da participação do Oficial, pois a vedação à movimentação será consequência da manutenção do juiz militar no Conselho. Isto é, determina-se que o juiz militar continuará no Conselho, o que, por consequência, obriga o Oficial a continuar na cidade que até então estava lotado.
Na hipótese em que o juiz militar for desligado do Conselho por decisão do juiz presidente, sem que esse desligamento seja devidamente fundamentado em fatos e nas hipóteses autorizadas pela lei, caberá ao Ministério Público, à defesa e ao próprio juiz militar ingressarem com mandado de segurança para a permanência do juiz militar no Conselho, além de ser possível manejar exceção de suspeição do juiz presidente, por ter interesse em retirar do Conselho um juiz militar em hipótese não autorizada pela lei ou diante de fundamentos fáticos incabíveis, o que torna, no mínimo, questionável a imparcialidade do juiz.[6]
Feitas essas explanações, é necessário analisar se o juiz militar possui as prerrogativas dos magistrados previstas no art. 33, II, da Lei Complementar n. 35/79, que autorizam a prisão somente em flagrante de crime inafiançável.
Art. 33 – São prerrogativas do magistrado:
II – não ser preso senão por ordem escrita do Tribunal ou do Órgão Especial competente para o julgamento, salvo em flagrante de crime inafiançável, caso em que a autoridade fará imediata comunicação e apresentação do magistrado ao Presidente do Tribunal a que esteja vinculado (VETADO); (destaquei)
Jorge César de Assis[7], com precisão, ensina que:
Os juízes militares investem-se na função (e não no cargo) após terem sido sorteados dentre a lista de oficiais apresentados, nos termos dos artigos 19 e 23 da Lei 8.457/92. São juízes de fato, não gozando das prerrogativas afetas aos magistrados de carreira. De se ressaltar, ainda, que os oficiais são juízes estando reunido o Conselho, que é efetivamente o órgão jurisdicional. Isoladamente, fora das reuniões do Conselho de Justiça, os oficiais que atuam naquela Auditoria não serão mais juízes, submetendo-se aos regulamentos e normas militares que a vida de caserna lhes impõe.
Com efeito, os juízes militares somente são juízes durante a reunião do Conselho, o que ocorre nas sessões na Justiça Militar.
A única garantia assegurada aos juízes militares é a independência funcional para julgar. Isto é, os juízes militares são livres para absolverem ou condenarem, o que deve ser feito de forma fundamentada. Surge uma situação um tanto quanto inusitada, pois o que garante a independência funcional para julgar são as garantias da magistratura e as prerrogativas do cargo do juiz, o que os juízes militares não possuem.
A independência funcional é um direito e dever de todo julgador, mas não é só do julgador, como daquele que será julgado, pois possui o direito a um julgamento justo e livre de interferências que possuam influenciar no julgamento. A bem da verdade, o direito a um julgamento justo é um direito de toda a sociedade.
A independência funcional dos jurados, que são juízes de fato, é assegurada em razão do sigilo das votações (art. 5º, XXXVIII, “b”). Isto é, os jurados possuem total segurança que seu voto jamais será revelado, a não ser que ele próprio revele. E essa segurança garante uma votação independente. E os juízes militares? Como garantir a independência funcional se não possuem as garantias e prerrogativas de um juiz de carreira?
O direito a um julgamento justo encontra-se consagrado no art. 10 da Declaração Universal dos Direitos Humanos e o direito a um juiz imparcial encontra previsão no artigo 8º, 1, da Convenção Americana de Direitos Humanos.
Como os juízes militares não possuem as garantias e prerrogativas dos magistrados de carreira, como assegurar a necessária independência funcional? Caberá ao juiz presidente do Conselho de Justiça, que é concursado e possui todas as garantias e prerrogativas do cargo, garantir, no Conselho, que os juízes militares julguem de forma independente e imparcial. Há uma espécie de extensão das garantias e prerrogativas do juiz presidente para os juízes militares durante o funcionamento e atuação do Conselho de Justiça. Portanto, o juiz presidente deve evitar que os juízes militares sejam retirados do Conselho pelos comandos das instituições militares sem um motivo previsto em lei ou relevante e devidamente comprovado, o que garante uma espécie de “inamovibilidade”; deve garantir que os juízes militares não sofrerão pressão de superiores hierárquicos nos julgamentos, o que contribui para a “imparcialidade”; deve garantir que durante as sessões que contam com a participação do Conselho, os juízes militares participem livremente e de forma independente, sem receios de sofrerem pressões, além das naturais do processo, do Ministério Público ou da defesa; deve garantir que os juízes militares não sejam presos durante as sessões, como receber “voz de prisão” do Ministério Público, defesa ou de terceiros, em razão da atuação profissional, como a hipótese em que o juiz militar vota de forma fundamentada na sessão pela decretação da prisão preventiva do réu e a defesa se insurge e dá voz de prisão em flagrante para o juiz militar, sob a alegação de abuso de autoridade (art. 9º da Lei n. 13.869/19).
As prerrogativas dos magistrados previstas no art. 33 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional não se aplicam aos juízes militares, por ausência de previsão legal de que essas garantias são extensíveis aos juízes militares e pelo fato de não ocuparem o cargo de juiz, mas somente exercerem a função de juiz.
No tocante à prerrogativa de ser preso somente em flagrante de crime inafiançável (art. 33, II), a leitura dessa previsão deixa mais nítida ainda a sua inaplicabilidade aos juízes militares, na medida em que assegura que o juiz não será preso senão por ordem escrita do Tribunal ou do Órgão Especial competente para o julgamento, salvo em flagrante de crime inafiançável.
Art. 33 – São prerrogativas do magistrado:
II – não ser preso senão por ordem escrita do Tribunal ou do Órgão Especial competente para o julgamento, salvo em flagrante de crime inafiançável, caso em que a autoridade fará imediata comunicação e apresentação do magistrado ao Presidente do Tribunal a que esteja vinculado (VETADO); (destaquei)
Nota-se que ao mencionar que o magistrado somente será preso por ordem escrita do Tribunal ou do Órgão Especial refere-se exclusivamente aos juízes de carreira, desembargadores e ministros, pois os juízes militares não possuem prerrogativa de foro para, originariamente, serem presos por determinação do Tribunal ou do Órgão Especial, na medida em que a Constituição Federal diz competir aos Tribunais de Justiça julgar os juízes estaduais (art. 96, III) e ao Tribunal Regional Federal julgar os juízes federais da Justiça Militar (art. 108, I, “a”), definições estas (juiz de direito e juiz federal) que não abrangem os juízes militares, mas somente os juízes de carreira.
Art. 96. Compete privativamente:
III – aos Tribunais de Justiça julgar os juízes estaduais e do Distrito Federal e Territórios, bem como os membros do Ministério Público, nos crimes comuns e de responsabilidade, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral.
Art. 108. Compete aos Tribunais Regionais Federais:
I – processar e julgar, originariamente:
a) os juízes federais da área de sua jurisdição, incluídos os da Justiça Militar e da Justiça do Trabalho, nos crimes comuns e de responsabilidade, e os membros do Ministério Público da União, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral;
Quando o inciso II do art. 33 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional diz que é prerrogativa do magistrado não ser preso senão por ordem escrita do Tribunal ou do Órgão Especial competente para o julgamento, SALVO EM FLAGRANTE DE CRIME INAFIANÇÁVEL, esta parte em destaque refere-se, logicamente, ao magistrado que possui prerrogativa de foro para ser julgado, originariamente pelo tribunal competente, pois essa ressalva refere-se a uma regra, que consiste na impossibilidade da prisão do juiz, a não ser por ordem do tribunal competente ou em flagrante de crime inafiançável e ao ressalvar a prisão em flagrante de crime inafiançável não amplia para todos os juízes, aplicando-se somente para aqueles que estão contidos na regra, como decorrência de uma interpretação lógica, literal e teleológica. Além do mais as restrições devem ser interpretadas restritivamente.
Portanto, os juízes militares, seja durante a atuação no Conselho de Justiça, seja fora da atuação no Conselho, não possuem a prerrogativa de serem presos somente nos crimes inafiançáveis.
Como os juízes militares são Oficiais das Instituições Militares e estes não possuem imunidades no tocante à prisão em flagrante, podem ser presos normalmente em flagrante pela prática de qualquer infração penal, obviamente, se comportar prisão, devendo receber o mesmo tratamento que as demais pessoas que não possuem imunidades prisionais.
[1] CARVALHO, Matheus. Manual de Direito Administrativo. 4ª edição. Salvador: Juspodivm. 2017. p. 863.
[2] Nesse sentido decidiu o TSE no tocante ao juiz de Tribunal Regional Eleitoral oriundo da advocacia: A função judicante exercida pelos membros dos Tribunais Eleitorais pertencentes à classe dos advogados não se enquadra no conceito de magistratura de carreira, seja por sua natureza temporária, com a imediata desvinculação do Poder Judiciário tão logo sobrevenha o término do biênio constitucional, seja porque, muito embora prestem relevante serviço ao Estado Democrático de Direito, não o fazem com dedicação exclusiva. (TSE – Processo Administrativo (PA): 48217 RN, Relator: Min. José Antônio Dias Toffoli, Data de Julgamento: 17/11/2015, Data de Publicação: DJE – Diário de justiça eletrônico, Tomo 238, Data 17/12/2015, Página 7)
[3]A respetio desse assunto, recomendo a leitura do texto “Juízes militares deveriam receber os mesmos salários dos juízes concursados.”
[4]SILVA, José Afonso Da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 39ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 597-598.
[5] Este tema foi debatido entre mim e o jurista e Promotor da Justiça Militar Cícero Coimbra, o qual me levou à reflexão, sendo as conclusões ora expostas as minhas.
[6] Este tema foi debatido entre mim e o jurista e Promotor da Justiça Militar Cícero Coimbra, o qual me levou à reflexão, sendo as conclusões ora expostas as minhas.
[7] ASSIS, Jorge César de. BASES FILOSÓFICAS E DOUTRINÁRIAS ACERCA DA JUSTIÇA MILITAR. Revista Eletrônica do CEAF. Porto Alegre – RS. Ministério Público do Estado do RS. Vol. 1, n. 1, out. 2011/jan. 2012.
A seguir, a Nota do Comando da Polícia Militar de Minas Gerais.
A respeito dessa matéria sobre a nota do comando, especificamente, do Coronel Comandante-Geral da PMMG, que antecedeu a manifestação do dia 11/02 de militares da PMMG em busca de recomposição inflacionária, a reportagem veicula a possibilidade de haver vários crimes militares por parte do Comandante-Geral.
A matéria destacou alguns trechos da nota do comando, como a parte em que o comandante disse que “se mantém, diuturnamente, engajado na defesa dos interesses e direitos da corporação” e que o “evento legítimo, inclusive com a participação de quem ombreia na ativa.”, no entanto, não destacou a parte em que o Comandante-Geral diz para o evento ser pacífico, nos trechos “cuidemos para que nenhuma ação retire o brilho do respaldo que a nossa instituição conquistou até hoje” e “Qualquer ato que saia do campo de uma manifestação pacífica poderá fazer com a nossa marca seja apedrejada…”.
Sobre eventuais crimes militares em razão do conteúdo da nota do comando, não vislumbro nenhum. Vamos analisar, tecnicamente, cada um dos possíveis crimes mencionados na matéria, partindo do pressuposto que o movimento é legítimo, como divulguei no texto “Militares podem protestar por reajuste salarial?” e na entrevista concedida ao Jornal Estado de Minas do dia 21 de fevereiro de 2022, cujo título da matéria é “Policiais e bombeiros devem fazer paralisação hoje em BH“.
1.Crime militar de crítica indevida (art. 166 do CPM)
Não houve esse crime, pois em nenhum momento na nota há crítica a qualquer resolução do Governo nem crítica a ato de superior ou assunto atinente à disciplina militar. Além do mais, a crítica a superior mencionada no crime de crítica indevida se refere ao superior que seja militar, que ocupe função militar e não há superior ao Comandante-Geral em uma instituição militar estadual. Não houve também crítica a assunto atinente à disciplina militar, pelo contrário, a nota pede por uma manifestação pacífica.
2. Crime militar de inobservância de lei, regulamento ou instrução (art. 324 do CPM)
Em razão da possibilidade de se deflagrar uma greve do movimento e, consequentemente, haver motim, o Comandante-Geral poderia responder pelo crime do art. 324 do CPM, por ter, no exercício de função, deixado de observar lei, regulamento ou instrução, dando causa direta à prática de ato prejudicial à administração militar, caso houvesse a greve. Como sustentei anteriormente, o movimento, o protesto pacífico é legítimo, é um direito fundamental, do qual os militares não estão excluídos. Deve-se coibir excessos, obviamente, mas não vedar peremptoriamente qualquer protesto pacífico por militares. Portanto, o Comandante-Geral observou um direito fundamental dos militares e para isso exige coragem e um ato de um comandante que tem pulso firme. Comandante não deve ser medroso nem jamais abandonar a sua tropa. Se do movimento houvesse greve, aí sim o Comandante-Geral deveria atuar para fazer cessá-la, visando, inclusive, resgatar a imagem da instituição. Não se pode proibir um movimento legítimo em razão da possibilidade desse movimento ser deflagrada uma greve. Seria negar um direito fundamental e os excessos devem ser combatidos pontualmente.
3.Crime militar de incitamento (art. 155 do CPM)
Não houve na nota do comando incitamento à desobediência, à indisciplina ou à prática de crime militar. Destaco que a nota pede um protesto pacífico – sem crimes, sem indisciplina, sem desobediência – como relatei anteriormente. Além do mais, dizer que há o crime militar de incitamento confunde manifestação com greve. São coisas absolutamente distintas. A manifestação pacífica é direito fundamental, do qual os militares não estão excluídos. A greve é inconstitucional, é vedada.
Não se sustenta a afirmação na matéria que o Comandante-Geral pode ter livrado a tropa de eventual participação em greve e que possuem quase uma excludente de ilicitude, pois teriam o apoio do comando. Primeiro pelo fato da nota em nenhum momento estimular a realização de greve, pelo contrário, pediu que não haja nenhuma ação que retire o brilho da instituição. Segundo porque a realização de greve é expressamente vedada pela Constituição Federal e já foi pacificada pelo STF que não é possível (art. 143, § 3º, IV c/c art. 42, § 1º, ambos da CF e STF – ARE 654.432), o que já afastaria a afirmação de que a tropa estaria livre de responsabilidades, pois não há controvérsias sobre a inconstitucionalidade e eventual autorização nesse sentido é manifestamente ilegal e criminosa, pois pode configurar motim, revolta, deserção, incitamento, razão pela qual eventual autorização não deve ser exercida e eventual ordem nesse sentido não deve ser cumprida (art. 38, § 3º, do CPM). Terceiro porque o Código Penal Militar impõe aos militares o dever de conhecer as normas, sendo impossível a alegação de estarem amparados pelo comando para deflagrarem uma greve (art. 35 do CPM).
Vamos analisar todo o contexto por uma visão macro, que inclusive vai além da análise jurídica. Uma preocupação que devemos ter, sobretudo quem é da área jurídica, é que o direito não é uma ilha. O direito não fala por si só, deve-se comunicar com outras áreas (econômica, saúde, humanas etc.), sem substituí-las ou achar que deve prevalecer, e nunca se deve esquecer, sobretudo, da gestão de pessoas, o que não é nada fácil. Por vezes uma visão “fechada” do Direito ou achar que o Direito se sobrepõe a outras ciências, muito mais atrapalha do que ajuda. Cada ciência cuida da sua área e isso deve ser respeitado.
A ausência de um posicionamento do Comandante-Geral, neste momento de tensão, poderia ter efeitos nefastos, gerar revolta na tropa e aí sim ser deflagrada greve e acontecimentos de consequências incalculáveis, com resultados trágicos, como homicídios e aumento de diversos crimes patrimoniais em toda a sociedade mineira, em razão de eventual greve. Não se tem como segurar uma tropa revoltada, o que somente com a liderança de um bom Comandante pode evitar ou atenuar os efeitos da revolta de uma tropa.
A história está aí para nos mostrar isso. A história, os acontecimentos passados, devem ser usados para balizar as ações atuais. Quantas greves das forças militares já não houve cujos resultados foram desastrosos para a sociedade?
O Comandante-Geral deve saber lidar com gestão de pessoas e pisa em ovos, pois ao mesmo tempo que deve se manter leal e fiel ao Governador do Estado, que é o Comandante Supremo das Instituições Militares Estaduais, deve estar com a tropa, não deve abandoná-la e também deve ser leal e fiel à tropa. Não é nada fácil. É um momento crítico, de grande tensão e que exige uma habilidade extraordinária, adquirida com décadas de experiência profissional, operacional e administrativa.
Diante de todo esse contexto, pode-se afirmar com tranquilidade que não houve atitude irresponsável e que não houve a prática de qualquer crime por parte do Comandante-Geral, pelo contrário, evitou-se que o pior acontecesse.
Em um Estado Democrático de Direito, a liberdade de expressão e as críticas ao Governo são pilares essenciais para a manutenção da democracia. É normal, natural, que ocorram e é até bom que ocorram. Somente na ditadura querem silenciar quem pensa diferente ou manter o controle do que pode ser falado. Não se deve permitir discurso de ódio, mas críticas sempre são bem-vindas em uma democracia. Em se tratando de militares há limitações à liberdade de expressão, em razão da hierarquia e disciplina, contudo as restrições não implicam em total ausência de liberdade de expressão, sendo perfeitamente possível que critiquem de forma respeitosa e construtiva.
Por fim, para fins didáticos, caso se entenda que houve crime militar por parte do Comandante-Geral, a competência para processá-lo e julgá-lo é do Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais em razão da prerrogativa de foro prevista no art. 106, I, “b”, da Constituição do Estado de Minas Gerais. Ao deixar o comando da instituição, caso a instrução processual ainda não tenha terminado, o processo deve ser remetido para o juiz de primeira instância. Isto é, com a publicação do despacho para a intimação para a apresentação das alegações finais, a competência para processar e julgar o Comandante-Geral não é mais afetada com a sua exoneração do cargo, em razão da passagem para a reserva ou por outro motivo (interpretação da AP 937 QO/RJ – STF).
A liberdade de expressão e de reunião constituem direito fundamental e os militares não são excluídos desses direitos, em que pese possuírem uma maior limitação.
A Constituição Federal, em diversas passagens, quando quis excluir os militares, o fez expressamente, como autorizar a prisão por transgressão disciplinar ou por crime propriamente militar, sem ordem judicial; ao vedar o habeas corpus para as punições disciplinares militares; ao proibir a sindicalização, a realização de greve e a filiação partidária.
A restrição aos direitos fundamentais deve ser interpretada restritivamente e o art. 5º, XVI, da Constituição Federal diz que todos – sem excluir os militares – podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização. Da mesma forma o art. 5º, IV, da CF assegura a liberdade de expressão sem excluir os militares.
Em se tratando de militares estaduais, especificamente, de Minas Gerais, o art. 14, XVI, do Código de Ética dos Militares do Estado de Minas Gerais considera transgressão disciplinar “comparecer fardado a manifestação ou reunião de caráter político-partidário, exceto a serviço”. Extrai-se, em uma leitura a contrario sensu que os militares estaduais podem participar, desde que não estejam fardados, o que combinado com a Constituição Federal, é possível extrair os pressupostos para o militar estadual participar.
A realização de passeatas, de manifestações e protestos em busca de reajuste salarial é legítima, desde que observadas algumas condições:
a) A reunião deve ser pacífica, logo não deve haver nenhum ato que perturbe a ordem pública, como invasão de qualquer local, interrupção do trânsito, queima de objetos e congêneres.
b) O militar não deve estar armado.
c) O militar não deve estar fardado.
d) O militar não deve estar em horário de serviço, salvo se for para trabalhar, ou seja, para participar enquanto protestante deve estar de folga, férias, licença.
e) Do protesto não pode ser deflagrada greve (art. 143, § 3º, IV c/c art. 42, § 1º, ambos da CF e STF – ARE 654.432).
f) Não deve haver por parte dos militares ofensas e insultos.
Destaco ainda que o militar da ativa deve evitar assumir a liderança do evento, pois possui sobre si o peso do Código Penal Militar e eventual fala pode vir a ser interpretada como crime militar de crítica indevida ou outro crime militar.
Há crime de motim? A simples participação no protesto por vários militares é um direito, se observadas as condições acima, e não há crime de motim. Haverá crime de motim caso um superior determine que militares cumpram a escala de serviço, mas decidem descumprir e compareçam ao protesto (art. 149, I, do CPM).
Há crime de reunião ilícita? Não, pois no crime de reunião ilícita a finalidade é, originariamente, discutir ato de superior ou assunto atinente à disciplina militar. No caso os militares reivindicam reajuste salarial.
Há o crime de crítica indevida? Para haver esse crime deve ocorrer crítica pública a ato de superior ou assunto atinente à disciplina militar ou a qualquer resolução do Governo. O superior indicado no tipo penal do art. 166 do CPM pode ser o Governador? O tema é divergente. Para parte da doutrina, somente os militares podem ser superiores (o que parece prevalecer). A outra corrente entende que como o Governador é a autoridade máxima, Chefe Supremo das Instituições Militares Estaduais, também pode ser superior. Diante desse cenário, no caso de protesto, o ideal é que parlamentares que sejam policiais e militares liderem o movimento e façam o uso da palavra, pois possuem imunidade parlamentar e a busca por reajuste salarial dos militares possui conexão com o mandato político, logo estará amparado pela imunidade material, isto é, o parlamentar é inviolável por suas palavras, opiniões e votos.
De toda forma, entendo que a crítica respeitosa, ainda que por militares, com fins construtivos, decorre da liberdade de expressão mitigada que os militares possuem e não deve sofrer repressão penal.
Por fim, é justo e merecido o reajuste para todos os policiais e militares!
Como amplamente divulgado, o então apresentador do Flow Podcast, Monark, disse em 07/02/2022, o seguinte:
“Eu acho que tinha de ter o partido nazista reconhecido pela lei.”
A fala dele está amparada pela liberdade de expressão?
Não. É bom ficar muito claro que a liberdade de expressão não é absoluta e no Brasil não há espaço para o discurso de ódio (hate speech), diversamente dos Estados Unidos que admite o discurso de ódio.
O Supremo Tribunal Federal já decidiu que “O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o ‘direito à incitação ao racismo’, dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas(…)” (HC 82424).
O discurso antissemita é um discurso de ódio e no conhecido “caso Ellwanger”, em que Siegfried Ellwanger, um escritor gaúcho, editou e publicou livros em que veiculou ideias antissemitas, que buscavam resgatar e dar credibilidade à concepção racial definida pelo regime nazista, negadoras e subversoras de fatos históricos incontroversos como o holocausto, consubstanciadas na pretensa inferioridade e desqualificação do povo judeu, foi decidido pelo STF (HC 82424), que equivale à incitação ao discrímen com acentuado conteúdo racista.
Discurso antissemita é aquele pautado em preconceito, discriminação, hostilização, contra o povo semita, que inclui os judeus. Na prática o discurso antissemita refere-se ao discurso de ódio contra os judeus.
Defender a criação de um partido nazista no Brasil viola frontalmente a Constituição Federal, pois além de ser objetivo do Brasil promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, religião, nacionalidade e qualquer forma de discriminação (art. 3º, IV), a criação de partido político deve observar os direitos fundamentais da pessoa humana e defendê-los (art. 17 da CF c/c art. 1º da Lei n. 9.096/95). Além do mais, um partido com ideias nazistas não seria um partido, mas sim uma organização criminosa.
A fala é criminosa?
Há duas correntes.
1ª corrente: Sim, artigo 20 da Lei 7.716/89, que consiste em “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.” Qualquer fala, texto ou ideia nazista divulgada caracteriza o crime do art. 20 da Lei de Racismo.
Para se ter ideia, sequer é possível divulgar e difundir imagens nazistas, como a cruz suástica ou gamada, símbolo do regime nazista, o que também caracteriza crime (art. 20, § 1º, da Lei n. 7.716/89). Neste caso deve haver a finalidade específica de se divulgar o nazismo, sendo possível a exibição dessas imagens para fins históricos e didáticos ou por colecionadores em uma exposição.
Ao defender a criação de um partido nazista induziu (lançou uma ideia) a discriminação e o preconceito contra raça, cor, etnia, religião.
Defender ideias nazistas, além de atacar profundamente os judeus, ataca toda a humanidade, fomenta a distinção entre seres humanos e o extermínio de grupos que são considerados “inferiores”, pelo critério de quem está no poder.
2ª corrente: Não houve crime, em que pese ser uma fala reprovável, pois se considerar crime não é mais possível debater condutas que são crimes e podem deixar de ser. Uma coisa é o debate contra a lei; outra é defender as condutas proibidas pela lei. O fato de defender a criação de um partido nazista não quer dizer que defendeu a prática de atrocidades ou que concorde com os ideais nazistas, somente defendeu a ampla liberdade de expressão, de reunião e de pensamentos.
Para quem não considera crime, o caso julgado pelo STF em relação à Marcha da Maconha, é um exemplo (ADPF n. 187), pois o STF decidiu, conforme voto do Relator à época o Ministro Celso de Mello, que a mera proposta de descriminalização de determinado ilícito penal não se confunde com o ato de incitação à prática do delito nem com o de apologia de fato criminoso. O debate sobre abolição penal de determinadas condutas puníveis pode ser realizado de forma racional, com respeito entre interlocutores, ainda que a ideia, para a maioria, possa ser eventualmente considerada estranha, extravagante, inaceitável ou perigosa, ponderou.
Eu tenho dificuldades de concordar com a 2ª corrente, pois deve haver um mínimo de tolerância e não consigo desvincular a defesa da criação de um partido nazista das ideias defendidas pelo nazismo, por mais que se defenda a ampla liberdade de expressão. Para mim são duas faces de uma mesma moeda. Como dizia o filósofo Popper, “A tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância”. Esse é o Paradoxo da Tolerância, ou seja, as intolerâncias, como são as ideias nazistas, não devem ser toleradas; do contrário os tolerantes serão destruídos.
No dia 06 de fevereiro de 2022 passou uma reportagem no Fantástico em que duas mulheres tomavam banho de sol na praia e estavam sem a parte de cima do biquíni (topless), ocasião em que foram abordadas pela Polícia Militar e conduzida para a Delegacia pelo crime de ato obsceno (art. 233 do CP).
O que crime de ato obsceno consiste em “Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público”.
O Código Penal é de 1940, mas o Código Penal anterior, de 1890, já previa como crime “offender os bons costumes com exhibições impudicas, actos ou gestos obscenos, attentatorios do pudor (…)”. De lá pra cá, muita coisa mudou. Naquela época, sem dúvida alguma pode-se afirmar que seria crime. E hoje? É o caso de se realizar uma interpretação progressiva, evolutiva?
O que é ato obsceno?
Ato obsceno é aquele que fere o pudor, que é desrespeitoso e possui conotação sexual. É o ato que possui sexualidade e que é suficiente para violar os valores da sociedade, de acordo com os valores locais e históricos.
O ato obsceno não precisa ser dirigido com o fim de satisfazer o apetite sexual de ninguém. É suficiente que seja um ato de natureza sexual que viole a cultura local.
Veja que para considerar o ato como obsceno é necessário realizar um juízo de valor, mas como avaliar isso? O que para umas pessoas não é nada demais, para outras pode ser grave. A chance de uma pessoa da década de 1930/1940 não concordar com o topless é muito maior se comparado com um jovem nascido em 1990/2000. Como então aferir o que é ato obsceno em um determinado local?
Deve ser feita uma valoração cultural e histórica, de acordo o sentimento médio de decência e pudor da sociedade. O ato obsceno pode variar a depender do local e do dia.
Antigamente, as mulheres iam às praias de maiô; depois passaram a usar biquíni. Com o uso do biquíni houve a opção de usar o biquíni fio-dental e ainda a retirada da parte de cima do biquíni com exibição dos seios (topless).
Percebem que com o tempo, ao longo de muitos anos, os valores vão se modificando? Na época de nossos bisavós e avós era inimaginável cogitar que uma mulher fosse à praia e usasse fio-dental e fizesse topless. Antigamente, isso era crime e não tinha dúvida. Hoje, os tempos são outros.
No carnaval não é incomum que mulheres realizem desfiles com os seios à mostra e isso é interpretado como cultural. Afinal de contas, é carnaval… Veja que os valores culturais e históricos do carnaval permitem a exibição dos seios.
Quando homens urinam em via pública há ato obsceno? Depende. Se estiverem voltados para a parede, não, pois não há exibição dos órgãos genitais e a finalidade é satisfazer as necessidades fisiológicas. Por outro lado, se o homem urinar com o órgão genital voltado para a via pública, a urina pode ser somente um meio de se exibir e haverá o crime de ato obsceno.
Andar sem roupas em uma praia de nudismo, obviamente, não caracteriza ato obsceno, em razão da adequação social. O local é próprio para ficar nu na presença de terceiros.
Um outro ponto que deve ser considerado é que hoje em dia a televisão constantemente divulga cenas de topless, o que acaba por colaborar para uma maior aceitação social
Afinal de contas, nas praias que não são de nudismo, é possível a prática de topless?
Pude perceber nas redes sociais inúmeros comentários falando que não é ato obsceno e tantos outros falando que é. Há uma grande divergência em se aceitar o topless como conduta de conotação sexual que venha a ferir o pudor. Quando você olha na praia para uma mulher sem a parte de cima do biquíni, isso te choca? Você enxerga isso como um ato de conteúdo sexual que venha a ferir a moral sexual, a cultura, a história?
O conceito de ato obsceno permite amplo juízo de valor e percebam que as respostas são variadas. Cada um terá uma percepção. Em razão da possibilidade de se criminalizar uma conduta que gera tamanha divergência perante o sentimento médio de pudor, entendo que não deve incidir o direito penal. Somente situações claras que violem o pudor para as pessoas em geral devem ser objeto do crime de ato obsceno, como andar pelado pela rua, tirar a parte inferior do biquíni ou o homem tirar a sunga em uma praia que não seja de nudismo.
O STF tem encontro marcado com esse tema e decidirá se o crime de ato obsceno é constitucional ou não, em razão da abertura do tipo penal, o que fere a taxatividade (RE 1093553). O julgamento está marcado para se iniciar em 16/03/2022.
Por fim, dada a divergência do tema, não houve nenhum abuso de autoridade por parte dos policiais militares ao efetuarem a condução das mulheres para a Delegacia, por, em tese, terem praticado ato obsceno, pois a própria Lei de Abuso de Autoridade diz que a divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade (art. 1º, § 2º).