Civil pode ser julgado pela Justiça Militar Estadual?

Na hipótese em que o militar praticar um crime militar e exonerar (der “baixa”) ou for excluído, poderá, enquanto civil, ser processado e julgado perante a Justiça Militar Estadual, pois a qualidade de militar deve ser aferida quando da prática do fato delituoso (tempus delict).

Crime militar cometido por militar no exercício da função. Em homenagem à garantia do juízo natural, a competência deve ser fixada sempre em relação à qualidade que o recorrente apresentava no momento do cometimento do fato, não podendo ser alterada por conta de alteração fática posterior (exoneração).

RHC 20.348-SC, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 24/6/2008.

Não há falar em incompetência da Justiça Militar se, à época dos fatos, o paciente era soldado da Polícia Militar e, no momento da prática dos crimes, se identificou como tal, fazendo uso de arma da corporação e, embora não estivesse fardado, estava acompanhado de outros militares devidamente fardados e em situação que denotava estarem todos em atividade.

STJ – HC 80.461 – MS Relator: Ministro Arnaldo Esteves Lima. DJ 19/08/09.

A respeito da possibilidade de civis serem julgados perante a Justiça Militar Estadual ao praticarem fatos definidos como crime no Código Penal Militar, o tema é controverso, mas é pacífico que não praticam crime militar na esfera estadual.

1ª corrente (prevalece): a Constituição Federal define no art. 125, § 4º, que compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e como a Justiça Comum não julga crimes militares, pelo menos em primeira instância, pois em segunda instância nos estados em que não existe Tribunal de Justiça Militar, cabe ao Tribunal de Justiça comum julgar os crimes militares em grau de recurso, não há que se falar em crime militar praticado por civil no âmbito estadual por inexistir órgão competente para processar e julgar civis por crimes militares, o que implica dizer que, por opção política do legislador, civis não praticam crimes militares em nível estadual.

Renato Brasileiro de Lima[1] ensina que:

Como o civil não pode ser processado e julgado pela Justiça Militar Estadual, caso pratique determinado delito contra as instituições militares estaduais, será processado na Justiça comum se os fatos por ele praticados encontrarem definição na lei penal comum. É nesse sentido o teor da súmula nº 53 do STJ(“Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar civil acusado de prática de crime conta instituições militares estaduais”). Na mesma linha, eis o teor da súmula nº 30 do extinto Tribunal Federal de Recursos: “Conexos os crimes praticados por policial militar e por civil, ou acusados estes como coautores pela mesma infração, compete à Justiça Militar Estadual processar e julgar o policial militar pelo crime militar (CPM, art. 9º) e à Justiça Comum, o civil”. (destaque nosso)

A Súmula n. 53 do STJ diz que “Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar civil acusado de prática de crime contra instituições militares estaduais”, sendo extraída de sua interpretação que para os civis serem julgados por crimes contra as instituições militares estaduais deve haver correspondência do fato típico no Código Penal comum daquele previsto no Código Penal Militar ou que o fato deve ser previsto na legislação penal comum, ainda que não encontre correspondência no CPM. Isto é, o julgamento de civis por crime contra as instituições militares estaduais ocorre somente se houver crime previsto na legislação penal comum, pois não praticam os crimes previstos no Código Penal Militar, já que não são julgados pela Justiça Militar Estadual.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é pacífica no sentido do civil responder perante a Justiça Comum por crime que atenta contra as instituições militares estaduais, no entanto, deve haver previsão da conduta como infração penal na legislação penal comum.

Com efeito, a Justiça Militar Estadual é competente para julgar militares integrantes das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros, quando pratiquem crimes, na forma do art. 9º, do CPPM.

Não possui competência para julgar civil. Sua competência é mais restrita. Interpretação da Lei Maior. Incidência da Súmula 53 desta Corte Superior de Justiça, segundo a qual “compete à Justiça Comum estadual processar e julgar civil acusado de prática de crime contra instituições militares estaduais”.

Destarte, em se tratando de estelionato previdenciário que, em tese, atinge patrimônio da Polícia Militar de São Paulo, está afastada a competência da Justiça Militar da União, por ausência de violação de interesses das Forças Armadas. De outro lado, em se tratando de crime supostamente praticado por civil, também está afastada a competência da Justiça Militar do Estado de São Paulo, ainda que configurada prejuízo ao patrimônio da Polícia Militar daquele Estado, haja vista a redação restritiva do artigo 125, § 4º, da Constituição Federal.

Conflito conhecido para declarar competente o Juízo de Direito do Departamento de Inquéritos Policiais e Polícia Judiciária de São Paulo – DIPO 3, o suscitado.

(CC n. 170.531/SP, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Terceira Seção, julgado em 24/6/2020, DJe de 29/6/2020.) (destaque nosso)

2ª corrente (minoritária): essa corrente critica a primeira, pois sustenta que há uma confusão entre o conceito de competência e de crime, pois o órgão julgador não possui nenhuma relação ao se definir se uma conduta é criminosa ou não.

Adriano Alves-Marreiros, Guilherme Rocha e Ricardo Freitas[2] ensinam que:

Não se pode deixar de aplicar a lei por não gostar dela, por não conhecê-la ou por não entendê-la. Não pode deixar, portanto, de ser aplicado o Código Penal Militar, quando há ofensa às instituições militares estaduais, apenas porque a Justiça Militar Estadual não pode julgar civis. Muda a competência, mas não muda a lei, não muda a natureza de crime militar da conduta, como, aliás, ocorre com qualquer outra justiça. Ademais, este posicionamento é reconhecido na Súmula 53 do STJ (de 1992, posterior à Constituição atual), isto é, aquela regra de competência afasta, indiscutivelmente, a aplicação da Lei Adjetiva Castrense, já que esta é aplicável, apenas, nos seus estritos termos (em especial, seu art. 6.º), nos processos perante as Justiças Militares estaduais.

Aliás, a Constituição atribui competência ao STF para processar e julgar os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica nos crimes comuns. Em geral se entende que, neste dispositivo constitucional, crime comum é aquele que não se caracteriza como crime de responsabilidade, não excluindo, assim, os crimes militares (que, neste caso, fariam parte dos crimes comuns). Mas tal discussão não é relevante em obra que trata de direito penal, até porque o entendimento diverso – o de que, em crimes militares, os comandantes citados não seriam julgados pelo STF – também nos levaria a concluir que se trata de crime militar, só que julgado na própria Justiça Militar. A mesma Carta atribui ao STJ competência para processar e julgar desembargadores federais. Todas essas pessoas não podem, então, ser processadas por crimes militares? Parece ser óbvia a resposta negativa, caso contrário, todos aqueles que têm foro por prerrogativa de função estariam fora do alcance da Lei Penal Militar, podendo cometer condutas delituosas previstas no Código Penal Militar sem consequências penais, ferindo gravemente o princípio da igualdade. (destaque nosso)

Milton Morassi do Prado [3]escreve que: 

O ponto nevrálgico da discussão se consubstancia na possibilidade, ou não, do não-militar praticar ilícito tipificado como crime militar em desfavor de militar do Estado.

Entendemos pela ocorrência desta possibilidade, pelos motivos a seguir aduzidos: primeiro, e conforme já citado, em face da imperatividade da manutenção da regularidade das instituições militares estaduais. Segundo, pela indisponibilidade do Estado na tutela dos bens jurídicos penais militares que, pela natureza de sua constituição, não podem ser disponibilizados como alguns bens tutelados pelo direito penal comum.

Assim, por exemplo, uma facção criminosa que atente contra a vida de um militar do Estado, simplesmente pelo fato deste ser um integrante de uma Instituição Militar Regular, com o único intuito de ofendê-la, não está apenas ofendendo o bem jurídico da vida, mas também o bem jurídico penal militar regularidade das Instituições militares, ocorrendo, portanto o dever de tutela do Estado, preconizado no inciso III do artigo 9º do Código Penal Militar.

(…)

O fundamento de inexistência de prestação jurisdicional da matéria ora em testilha balda-se em deveras inconformidade com os ditames do Estado Democrático de Direito, mormente quanto à ofensa ao contido no artigo 2º da Lex Mater, uma vez que a ausência de tutela pelo Estado-juiz consubstancia em deveras insegurança jurídica ao deixar de providenciar a devida proteção dos bens jurídicos penais militares.

Pelo exposto, cumpre consignar que, em que pese a divisão jurisdicional, compete à justiça comum, comumente denominada de “justiça residual”, a prestação jurisdicional nos casos não amparados pelas Justiças Especializadas.

Por este turno, faz-se pertinente concluir que o foro competente para processar e julgar os civis pela prática de crime militar em desfavor dos militares do Estado é da Justiça Comum. (destaque nosso)

Os argumentos da corrente minoritária são relevantes e nos leva a refletir se não há um equívoco ao afastar a possibilidade de civis serem julgados perante a Justiça Comum pela prática de crime militar.

Ao estudar o histórico de julgados que justificou o Superior Tribunal de Justiça a editar a Súmula n. 53, que dispõe que “Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar civil acusado de prática de crime contra instituições militares estaduais”, o STJ apresentou três conflitos de competência com as seguintes ementas:

Competência – Crime militar praticado por civil – Art. 125, § 4º, Constituição Federal. Os crimes militares praticados por civil, são de competência da Justiça Comum, face à expressa determinação constitucional (art. 125, § 4°), que não permite à Justiça Militar Estadual processar e julgar partes estranhas à corporação militar. Conflito procedente. (CC 1.258-SP)

Constitucional. Competência. Civil. Prática de crime militar contra instituição militar estadual. 1. A Constituição – art. 125, § 4.0 – confere à Justiça Militar Estadual competência para julgar apenas os policiais militares e bombeiros militares nos crimes militares definidos em lei. 2. Assim, compete à Justiça Comum Estadual julgar civil acusado da prática de crime contra instituições militares estaduais. (CC 1.525-RS)

Constitucional. Crime militar praticado por civil contra policial militar. Competência. À Justiça Militar Estadual não cabe processar e julgar civil, ainda que pela prática de crime contra instituição policial militar – CF, art. 125, § 4!l. Precedentes do STJ. (CC 2.117-RS)

Ao estudar os votos das decisões nota-se claramente que o STJ não disse que civis não praticam crimes militares, pelo contrário, asseverou que civis praticam crimes militares, mas nestes casos devem ser julgados perante a Justiça Estadual.

Trecho do voto no CC 1.525-RS: “Os civis, como deflui da norma, devem ser julgados, mesmo quando acusados de praticarem crimes militares, pela Justiça Comum Estadual.”

A Justiça Comum pode possuir competência para julgar matéria afeta à outra justiça, desde que decorra de previsão constitucional, como ocorre quando a Constituição Federal possibilita que a Justiça Estadual julgue causas trabalhistas quando a comarca não for abrangida pela Justiça do Trabalho (art. 112) e que a lei autorize que causas de competência da Justiça Federal em que forem parte instituição de previdência social e segurado possam ser processadas e julgadas na justiça estadual quando a comarca do domicílio do segurado não for sede de vara federal (art. 109, § 3º).

Até o advento da Lei n. 13.043/2014 as execuções fiscais propostas pela União, que são de competência da Justiça Federal, eram propostas perante a Justiça Estadual nas cidades que não continham a Justiça Federal.

Destaca-se que a competência da Justiça Comum é residual, face à inexistência de vácuo de competência, logo, toda matéria que não esteja prevista para ser julgada por qualquer outro ramo da justiça, deve ser julgada pela Justiça Comum, como é o caso dos crimes militares praticados por civis. Assim, pode-se afirmar que implicitamente a Constituição Federal determinou que a Justiça Estadual comum julgue os crimes militares praticados por civis contra as instituições militares estaduais.

A aplicação da Súmula n. 53 do STJ como ocorre atualmente e há bastante tempo contradiz o próprio teor da súmula, o que fica comprovado ao se estudar as razões de sua origem, que deixou consignado de forma expressa que os civis que praticam crimes militares no âmbito estadual devem ser julgados pela Justiça Comum.


[1]  LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal: volume único. 8 ed. Salvador: Juspodivm, 2020. p. 439.

[2] ALVES-MARREIROS, Adriano; ROCHA, Guilherme; FREITAS, Ricardo. Direito Penal Militar: teoria crítica & prática. São Paulo: Método, 2015.

[3] Disponível em: < https://jusmilitaris.com.br/sistema/arquivos/doutrinas/crimemilitarcivilcontrapm.pdf>. Acesso em: 17/10/2022.