9. ANTEPROJETO DE LEI DE INICIATIVA POPULAR DE PREVENÇÃO E COMBATE AO ASSÉDIO SEXUAL NAS INSTITUIÇÕES POLICIAIS E MILITARES

Cria mecanismos para prevenir e coibir o assédio sexual contra a mulher no âmbito das instituições de Segurança Pública e nas Forças Armadas.

TÍTULO I

DISPOSIÇÕES PRELIMINARES

Art. 1º Esta Lei cria mecanismos para prevenir e coibir o assédio sexual contra a mulher no âmbito das instituições de Segurança Pública e das Forças Armadas, nos termos da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil

Art. 2º Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência sexual, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.

Art. 3º O assédio sexual configura grave violação aos direitos humanos e causa danos morais.

Art. 4º Para efeitos desta Lei considera-se instituição de Segurança Pública todos os órgãos policiais previstos no art. 144 da Constituição Federal e a guarda municipal.

TÍTULO II

DA VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA A MULHER

CAPÍTULO I

DISPOSIÇÕES GERAIS

Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura o assédio sexual contra a mulher qualquer ação ou omissão de natureza sexual, contra a vontade da vítima:

I – no ambiente de trabalho, compreendido como qualquer espaço ou local em que seja exercido o trabalho;

II – em qualquer relação de trabalho, compreendido como a relação decorrente do trabalho, ainda que fora das dependências do local de trabalho

III – em razão da relação de trabalho, ainda que não esteja no horário de trabalho, independentemente, do emprego, cargo ou função exercida.

Parágrafo único. Para fins desta Lei, considera-se mulher a sua identidade de gênero.

CAPÍTULO I

DAS FORMAS DE VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA A MULHER

Art. 6º São formas de violência sexual, entre outras:

I – qualquer conduta consistente em falar, escrever ou realizar gestos para alguém com conotação sexual, por qualquer meio;

II – qualquer conduta com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro ou obter vantagem ou favorecimento sexual;

III – qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força;

IV – a omissão das autoridades que possuem o dever de agir quando ocorrer uma das hipóteses previstas nos incisos anteriores.

Parágrafo único. Não há violência sexual quando houver consentimento prévio ou concomitante da vítima.

TÍTULO III

DA ASSISTÊNCIA À MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA SEXUAL

CAPÍTULO I

DAS MEDIDAS DE PREVENÇÃO

Art. 7º As instituições previstas nos artigos 142 e 144 da Constituição Federal deverão adotar como política institucional medidas para prevenir, punir e erradicar a violência sexual contra a mulher, tendo por diretrizes:

I – a promoção de estudos e pesquisas, estatísticas e outras informações relevantes relacionadas ao assédio sexual nas instituições para a sistematização de dados, a serem unificados nacionalmente, e a avaliação periódica dos resultados das medidas adotadas;

II – a adoção de ouvidorias pelas instituições, chefiadas por mulheres, para o atendimento das mulheres vítimas de violência sexual;

III – a promoção e a realização de campanhas educativas de prevenção da violência sexual contra a mulher, inclusive com o incentivo de que denunciem os casos de assédio sexual;

IV – a celebração de convênios, protocolos, ajustes, termos ou outros instrumentos de promoção de parceria entre órgãos governamentais ou entre estes e entidades não-governamentais, tendo por objetivo a implementação de programas de prevenção e erradicação da violência sexual contra a mulher;

V – a capacitação permanente dos servidores públicos, policiais e militares quanto à prevenção e combate ao assédio sexual;

VI – a inclusão de disciplina que aborde o assédio sexual de mulheres nas instituições de Segurança Pública e das Forças Armadas nos cursos de formação ao ingressar na carreira e nos cursos obrigatórios no decorrer da carreira, como condição para ascensão funcional;

VII – a inclusão nos editais de concursos públicos para as instituições de Segurança Pública e Forças Armadas de disciplina que aborde o assédio sexual nas referidas instituições.

VIII – os autores de assédio sexual deverão ser incluídos automaticamente, no prazo de 30 (trinta) dias, após o trânsito em julgado da punição administrativa ou judicial, em programa de reeducação.

CAPÍTULO II

DA ASSISTÊNCIA À MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA SEXUAL

Art. 8º A assistência à mulher em situação de violência sexual será prestada de forma articulada e conforme os princípios e as diretrizes previstos na Lei Orgânica da Assistência Social, no Sistema Único de Saúde, no Sistema Único de Segurança Pública, entre outras normas e políticas públicas de proteção, e emergencialmente quando for o caso.

§ 1º As mulheres vítimas de violência sexual possuem prioridade de atendimento e direito ao uso do sistema de assistência social, psicológica e médica da instituição a que pertencer.

§ 2º Aquele que, por ação ou omissão, praticar violência sexual fica obrigado a ressarcir todos os danos causados, inclusive ressarcir ao Sistema Único de Saúde (SUS), de acordo com a tabela SUS, os custos relativos aos serviços sociais e de saúde prestados para o total tratamento das vítimas em situação de violência sexual, recolhidos os recursos assim arrecadados ao Fundo de Saúde do ente federado responsável pelas unidades de saúde que prestarem os serviços.

§ 3º O ressarcimento de que trata o § 2º deste artigo não poderá importar ônus de qualquer natureza ao patrimônio da mulher e dos seus dependentes, nem configurar atenuante ou ensejar possibilidade de substituição da pena aplicada.

Art. 9º. Havendo indícios da prática de assédio sexual, o servidor público, policial ou militar que for o autor da violência sexual deverá ser transferido da unidade em que estiver lotado, caso seja a mesma unidade da mulher vítima de violência sexual.

§ 1º A movimentação da unidade será provisória até a conclusão do processo administrativo.

§ 2º A punição decorrente do ato de assédio sexual torna a movimentação da unidade definitiva, não podendo o autor da violência sexual voltar a trabalhar na unidade de origem pelo período de 05 (cinco) anos, contado da data do trânsito em julgado da punição administrativa ou judicial, a que ocorrer por último.

§ 3º A ausência de responsabilização do autor do assédio, nas esferas administrativa e judicial, implica no retorno à unidade de origem, observada a vontade do servidor público, policial ou militar e o interesse da administração pública.

§ 4º A instauração de processo administrativo disciplinar ou o recebimento de denúncia pelo juiz competente implica na presença de indícios mencionado no caput.

Art. 10. A mulher vítima de assédio sexual somente será transferida da unidade em que estiver lotada, durante as investigações ou processo administrativo e judicial, se for de seu interesse.

Art. 11. A mulher vítima de assédio sexual deverá tomar ciência da instauração de qualquer ato apuratório e da solução do processo administrativo, inclusive a decisão em instância recursal.

CAPÍTULO III

DA ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Art. 12. O Ministério Público deverá fiscalizar o assédio sexual nas instituições de Segurança Pública e nas Forças Armadas.

§ 1º A fiscalização será de forma presencial e eletrônica.

§ 2º A fiscalização presencial consistirá no comparecimento periódico do Ministério Público às dependências das instituições de Segurança Pública e nas Forças Armadas, ocasião em que ouvirá reservadamente, por amostra, diversas mulheres.

§ 3º A fiscalização eletrônica consistirá em um canal de comunicação criado pelo Ministério Público que receberá denúncias de assédio sexual no âmbito das instituições.

§ 4º As instituições de Segurança Pública e as Forças Armadas deverão enviar relatório semestral para o Ministério Público contendo dados detalhados de todas medidas adotadas em âmbito institucional que tratem da prevenção, punição e erradicação do assédio sexual.

§ 5º O Conselho Nacional do Ministério Público regulamentará a fiscalização, inclusive a periodicidade.

Art. 13. O Ministério Público realizará, anualmente, as pesquisas e estudos referidos no art. 7º, I, desta Lei, nas instituições de Segurança Pública e nas Forças Armadas.

§ 1º A coleta de dados e informações deverá ocorrer de forma anônima para as participantes.

§ 2º As instituições de Segurança Pública e as Forças Armadas são obrigadas a fornecerem, anualmente, para o Ministério Público, os números de telefone, celular, e-mail particular e funcional, cargo e função das mulheres que integram as instituições.

§ 3º Os dados obtidos na forma do § 2º deste artigo serão utilizados exclusivamente para fins da pesquisa mencionada no § 1º.

Art. 14. O Ministério Público deverá acompanhar todos os processos administrativos instaurados com o fim de apurar denúncia de assédio sexual.

§ 1º A autoridade competente ao determinar a instauração de qualquer processo administrativo que investigue o assédio sexual deverá dar ciência ao Ministério Público.

§ 2º A solução do processo administrativo que apura a prática de assédio sexual será comunicada ao Ministério Público, inclusive a decisão em instância recursal.

§ 3º Entende-se por processo administrativo para os fins deste artigo qualquer processo, procedimento, sindicância ou ato apuratório, acusatório ou um mero levantamento de informações da denúncia de assédio sexual.

TÍTULO IV

DISPOSIÇÕES FINAIS

Art. 15. As instituições de Segurança Pública e as Forças Armadas deverão adaptar seus órgãos no prazo de 90 (noventa) dias às diretrizes previstas nesta Lei, contados da entrada em vigor desta Lei.

Art. 16. Aplica-se, no que couber, as medidas protetivas previstas na Lei n. 11.340/06 – Lei Maria da Penha.

Art. 17. A defesa dos interesses e direitos transindividuais previstos nesta Lei poderá ser exercida, concorrentemente, pelo Ministério Público e por associação de atuação na área, regularmente constituída há pelo menos um ano, nos termos da legislação civil.

Parágrafo único. O requisito da pré-constituição poderá ser dispensado pelo juiz quando entender que não há outra entidade com representatividade adequada para o ajuizamento da demanda coletiva.

Art. 18. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, no limite de suas competências e nos termos das respectivas leis de diretrizes orçamentárias, poderão estabelecer dotações orçamentárias específicas, em cada exercício financeiro, para a implementação das medidas estabelecidas nesta Lei.

Art. 19. Aos crimes praticados com violência sexual contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995.

Art. 20. Os processos administrativos e judiciais que envolvam a prática de violência sexual contra a mulher são sigilosos e terão prioridade de tramitação.

Parágrafo único. A mulher que denunciar a prática de assédio sexual não sofrerá nenhuma punição, caso o acusado não seja condenado por falta de provas.

Parágrafo único. O conceito de processo administrativo para fins deste artigo é o previsto no art. 14, § 3º, desta Lei.

Art. 21. As instituições de Segurança Pública e as Forças Armadas deverão providenciar a instalação de câmeras que captem a entrada dos vestiários femininos, sem que possibilite a captação de imagens da parte interna do vestiário, no prazo de 03 (três) anos.

§ 1º. Para fins desta Lei considera-se vestiário qualquer compartimento destinado a troca de roupas, com ou sem armário ou camas.

§ 2º. Os locais destinados a repouso das mulheres também deverão possuir câmeras na forma do caput deste artigo.

Art. 22. O art. 216-A do Decreto-Lei n. 2.848, de 07 de dezembro de 1940 (Código Penal), passa a vigorar com a seguinte redação:

Art. 216-A. Constranger alguém com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro ou obter vantagem ou favorecimento sexual, independentemente, da relação hierárquica, desde que o constrangimento ocorra no exercício ou em razão do emprego, cargo ou função.

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

§ 1º Para fins do caput caracteriza constrangimento falar, escrever ou realizar gestos para alguém com conotação sexual, por qualquer meio, sem prejuízo de outras condutas que possam ser consideradas constrangedoras.

§ 2º A pena aumenta-se de um terço se o autor for superior hierárquico.

§ 3º O servidor público que se omitir ao visualizar ou tomar conhecimento do assédio sexual, e deixar de comunicar o fato à autoridade competente para a apuração, incorre na pena de detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos.

§ 4º A autoridade competente para investigar o crime do caput que se omitir incorrerá na pena de detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos.

Art. 23. O Decreto-Lei n. 1.001, de 21 de outubro de 1969 (Código Penal Militar) passa a vigorar com a seguinte redação:

Art. 232-A. Constranger alguém com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro ou obter vantagem ou favorecimento sexual, independentemente, da relação hierárquica, desde que o constrangimento ocorra no exercício ou em razão do emprego, cargo ou função.

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

§ 1º Para fins do caput caracteriza constrangimento falar, escrever ou realizar gestos para alguém com conotação sexual, por qualquer meio, sem prejuízo de outras condutas que possam ser consideradas constrangedoras.

§ 2º A pena aumenta-se de um terço se o autor for superior hierárquico.

§ 3º O militar que se omitir ao visualizar ou tomar conhecimento do assédio sexual, e deixar de comunicar o fato à autoridade competente para a apuração, incorre na pena de detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos.

§ 4º A autoridade competente para investigar o crime do caput que se omitir incorrerá na pena de detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos.

Art. 24. O Decreto-Lei n. 1.002, de 21 de outubro de 1969 (Código de Processo Penal Militar) passa a vigorar com a seguinte redação:

Art. 15-A. Nos casos de crime de violência sexual praticados contra mulher, será encarregada do inquérito, sempre que possível, oficial do sexo feminino, de posto não inferior ao de capitão ou capitão-tenente, devendo a impossibilidade ser justificada.

Art. 399-A. A composição do Conselho Especial de Justiça e do Conselho Permanente de Justiça serão regulamentadas em lei, devendo-se observar nos crimes praticados mediante violência sexual contra a mulher, a presença de dois oficiais do sexo masculino e duas oficiais do sexo feminino.

Art. 25. A Lei 8.457, de 04 de setembro de 1992 (Lei de Organização da Justiça Militar da União) passa a vigorar com a seguinte redação:

Art. 16-A. Nos casos de crime de violência sexual praticados contra mulher, os Conselhos de Justiça serão compostos da seguinte forma:

  1. Conselho Especial de Justiça, constituído pelo juiz federal da Justiça Militar ou juiz federal substituto da Justiça Militar, que o presidirá, e por 4 (quatro) juízes militares, dentre os quais 1 (um) oficial-general ou oficial superior, dentre estes, necessariamente, dois oficiais do sexo masculino e duas oficiais do sexo feminino;
  1. Conselho Permanente de Justiça, constituído pelo juiz federal da Justiça Militar ou juiz federal substituto da Justiça Militar, que o presidirá, e por 4 (quatro) juízes militares, dentre os quais pelo menos 1 (um) oficial superior, dentre estes, necessariamente, dois oficiais do sexo masculino e duas oficiais do sexo feminino.

Art. 26. A Lei n. 6.880, de 09 de dezembro de 1980 (Estatuto dos Militares) passa a vigorar com a seguinte redação:

Art. 42 (…)

§ 2º No concurso de crime militar e de contravenção ou transgressão disciplinar, quando forem da mesma natureza, será aplicada somente a pena relativa ao crime, exceto nas infrações disciplinares praticadas com violência à mulher.

Art. 27. A Lei n. 8.429, de 02 de junho de 1992 (Lei de Improbidade Administrativa) passa a vigorar com a seguinte redação:

Art. 11 (…)

XI – praticar assédio sexual.

Art. 28. Esta Lei entra em vigor 45 (quarenta e cinco) dias após sua publicação.

Justificativa do Projeto de Lei

Pesquisa realizada por Rodrigo Foureaux e Mariana Aquino acerca do assédio sexual nas instituições de Segurança Pública e nas Forças Armadas, demonstrou uma realidade de alto índice de assédio sexual nessas instituições.

1.897 mulheres, de todo o Brasil, da Polícia Militar, da Polícia Civil, do Corpo de Bombeiros Militar, da Polícia Penal, da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal, da Guarda Municipal e das Forças Armadas participaram da pesquisa, respondendo às perguntas pelo Formulário do Google no final de agosto de 2020 e no início de setembro de 2020.

O estudo apontou que 74% das mulheres que participaram da pesquisa sofreram assédio sexual. 83% das mulheres assediadas não denunciaram o assédio por não acreditarem na instituição, por medo de sofrer represália, medo de se expor e de atrapalhar a carreira. 88% das mulheres não se sentem protegidas pela instituição para denunciarem o assédio sexual. 92% das mulheres relataram que as instituições não possuem nenhuma campanha de prevenção e combate ao assédio sexual. A maioria das mulheres que denunciou o assédio sofreu represálias e o assediador não foi punido.

Foram colhidos relatos, por escrito, de como o assédio sexual ocorreu e foram disponibilizados mais de 700 relatos que são chocantes e difíceis de serem escritos. Há relatos de estupro que ‘não deram em nada’, além de inúmeros relatos absurdos e chocantes.

Há vários relatos de depressão e pensamentos suicidas. Inclusive, relato de mulher que pensou em matar o assediador. Várias mulheres relataram sequelas e a realização de tratamento médico e psicológico.

Há um alto número de relatos de que chefes e superiores hierárquicos pedem favores sexuais para concederem privilégios e benefícios para as mulheres na carreira. Uma entrevistada relatou que chegou a ter relações sexuais com o chefe para conseguir o que queria, pois era a condição. As que não aceitam são perseguidas, punidas, transferidas.

A atividade policial e/ou militar apresenta-se cultural e socialmente, por razões históricas, como uma atividade tipicamente masculina, em que pese as mulheres possuírem completas condições de desempenharem as mesmas atividades que os homens com qualidade igual ou superior. A hegemonia masculina, decorrente na maior parte em razão da limitação de vagas para o ingresso na carreira, e a discriminação contra a mulher, tornam-se evidentes quando a mulher busca superar as barreiras culturais, sociais e históricas, e ocupar posições de destaque ou, até então, ocupadas somente por homens ou majoritariamente por homens, sendo o assédio sexual uma das formas de discriminação e que busca dificultar e impedir o avanço da mulher, que receosa em denunciar, sofrer perseguições, se expor e não progredir na carreira profissional, acaba por aderir à “cultura do silêncio”.

Expressões como “polícia é coisa pra homem”, “polícia não é lugar pra mulher”, “que bom que tem mulher para enfeitar o quartel”, “as mulheres são patrimônio da polícia”, “as novinhas”, “novo curso de formação está cheio de novinhas gostosas” são expressões que não são incomuns e demonstram a coisificação da mulher pelos policiais e militares.

Nesse sentido Eduardo Godinho Pereira e Adla Betsaida Martins Teixeira no artigo “A Profissionalização de Mulheres e Homens na Polícia Militar Mineira segundo a Perspectiva de Gênero” afirmam que:

Porém, os resultados mostraram que ainda existe um tratamento diferenciado entre mulheres e homens, que influencia na formação policial. Ficou evidente que as mulheres são segregadas de algumas atividades acadêmicas, pois, verificou-se que aos homens são destinadas as funções de destaque durante o Curso de Formação de Oficiais, enquanto que as mulheres assumem funções de “menor” prestígio. Essa distinção marca e evidencia fortemente a segregação de gênero no ambiente policial militar, desde os bancos de escola.

Os resultados obtidos na pesquisa mostram que as mulheres enfrentam desigualdade de gênero. Pelo que foi verificado nas respostas apresentadas pelos professores durante as entrevistas, no tocante às atividades práticas de suas disciplinas, percebeu-se que as mulheres são tratadas de forma diferenciada. O que ficou explícito nas entrevistas é que há uma espécie de eleição de uma masculinidade hegemônica para a realização de atividades policiais, resultando na negação da feminilidade. Exige-se aquele homem que atenda a um “ideal masculino”, segregando as mulheres e homens que não atendam a este perfil. Ficou demonstrado na pesquisa uma negação da feminilidade para as funções que envolvam o risco à vida e o emprego do uso da força. Para estas funções são “idealizados” o homem guerreiro, viril, combativo, destemido e corajoso, sempre pronto a enfrentar o perigo, deixando para as mulheres as funções burocráticas e essencialmente aquelas que não tragam risco elevado ou que estejam diretamente ligadas às áreas do assistencialismo e cuidado. (grifos nossos)

A divisão sexual do trabalho policial e militar é uma realidade. Existem funções que somente homens podem exercer, ainda que plenamente possível de serem realizadas por mulheres, o trabalho do homem vale mais do que o da mulher e as mulheres possuem uma barreira invisível – e muitas vezes visível – que as impedem de ascender em condições de igualdade com os homens, sendo o assédio sexual uma das barreiras.

A análise dos diversos relatos nesta pesquisa e de outros estudos semelhantes permitem afirmar que há uma falsa crença em desmerecer as conquistas das mulheres que ocupam o topo das instituições ou que obtêm promoções e funções de destaque, em razão do imaginário de que a mulher obteve sucesso por ter cedido às investidas sexuais de superiores hierárquicos, o que representa uma visão discriminatória e de que as mulheres não possuem condições, em razão, única e exclusivamente de seu trabalho, em ascender profissionalmente.

Há muitos relatos de superiores hierárquicos que oferecem benefícios e vantagens na carreira, caso as mulheres prestem favores sexuais, como promessas de promoções, escalas de serviço melhores e proteção, criando-se um imaginário de que as mulheres que se destacam e ocupam posições de prestígio nas instituições dependessem dos homens.

Chama atenção o fato de pesquisa realizada anteriormente, em 2015, ter constatado o alto índice de assédio das mulheres nas instituições policiais, ter sido amplamente divulgada no país, e até a presente data as instituições nada ou muito pouco fizeram para adotarem sérias medidas de prevenção e combate ao assédio sexual.

É importante destacar que houve muitos relatos de mulheres das instituições de Segurança Pública e das Forças Armadas que sofreram assédio sexual, conforme consta no tópico 5.3 desta revista. Os diversos relatos, de forma detalhada, aliados ao estado da arte, concedem credibilidade à pesquisa, por reforçar que foram mulheres das instituições de Segurança Pública e das Forças Armadas que responderam, já que os detalhes, as informações, a seriedade de cada relato, somado a pesquisas semelhantes que foram detalhadas no tópico 5.2 e comprovam o alto índice de assédio sexual, somente demonstra que a pesquisa ora realizada demonstra a realidade nas instituições de Segurança Pública e nas Forças Armadas, em termos de altos índices de assédio sexual, sendo necessário realizar uma pesquisa mais profunda em cada instituição com uma amostra maior, por pesquisador externo, com o fim de obter dados que se aproximem mais da realidade.

A partir do momento em que as instituições de Segurança Pública e as Forças Armadas têm ciência que a prática do assédio sexual possui números alarmantes e não adotam medidas eficazes com o fim de prevenir, coibir e erradicar essa prática, torna-se um problema institucional e não isolado dos policiais, bombeiros, guardas e militares que assediam.

As mulheres que trabalham nas instituições de Segurança Pública e nas Forças Armadas não possuem segurança e confiança para denunciarem as práticas de assédio sexual – 88% não se sentem protegidas institucionalmente para denunciarem -, não acreditam que as instituições levariam a sério a denúncia e possuem receio de as denúncias voltarem contra si e sofrerem diversos prejuízos relacionados à imagem e à carreira.

Diversos são os relatos de depressão e pensamentos suicidas pelas vítimas de assédio sexual. Houve relato, inclusive de pensamento homicida, em razão da falta de apoio das instituições.

Em São Paulo, em 12 de maio de 2020, uma Cabo da Polícia Militar chegou a praticar o crime de homicídio contra um Capitão da PMESP e alegou que era assediada pela vítima e havia denunciado o caso e pedido a transferência para outra unidade da corporação.

Os assédios sexuais nas instituições de Segurança Pública e nas Forças Armadas se iniciam no curso de formação, no início da carreira, e se prolongam por toda a carreira e na medida em que a mulher ascende na profissão os assédios diminuem, já que passam a ocupar cargos e funções de maior respeitabilidade em âmbito institucional e reduz o número de superiores hierárquicos, que são os principais assediadores.

A pesquisa constatou interferências, por parte de superiores hierárquicos, na vida privada das mulheres, com críticas aos namorados, sobretudo se estes são civis ou subordinados hierárquicos, como se ser superior hierárquico à mulher ou ao namorado fosse “mais interessante” para a mulher.

Verificou-se haver um ambiente institucional de “normalização” da prática de assédio sexual, na medida em que são vários os relatos de mulheres que procuraram o comando, a chefia para relatar o assédio sexual, não obtêm apoio, são desacreditadas e ainda há resposta que é normal as mulheres policiais sofrerem esse “tipo de assédio”, pois hoje são mais bonitas do que antigamente.

Constatou-se que muitas mulheres que realizam a denúncia são punidas pelo comando, por motivos diversos que ocultam os motivos reais ou por terem inventado história, ou extraoficialmente, ao serem escaladas nos “piores” em serviços.

Apurou-se que as mulheres quando assediadas na presença de outros policiais e militares, estes nada fazem e, muitas vezes, endossam a prática do assédio e ao serem arrolados como testemunhas não dizem a verdade por receio de sofrer represália por parte do assediador, quando este é superior hierárquico.

Notou-se também um desrespeito com as mulheres homoafetivas, em razão das propostas de homens para que tivessem relação sexual juntos ou que o problema da mulher homoafetiva foi não ter tido um homem que “desse um jeito”.

Ficou demonstrado que há um grande desrespeito e desprezo pelas mulheres, em razão do uso de termos extremamente baixos, ofensivos e indecentes pelos homens dentro das viaturas e no ambiente de trabalho.

As mulheres vítimas de assédio sexual ficam em uma situação extremamente difícil. Se não cedem às investidas do assediador passam a ser perseguidas e rejeitadas profissionalmente; se denunciam ao superior hierárquico muitas vezes são desacreditadas e são vistas como causadoras do assédio, além de serem expostas e mal faladas. Há uma completa inversão de valores.

Diversas mulheres disseram que não conseguiriam relatar o ocorrido, em razão do sofrimento causado e lembranças negativas ao rememorar o assédio sexual sofrido. Isto é, pesquisas como a aqui apresentada devem ser realizadas com cautela, evitando-se que sejam feitas em curto espaço de tempo para evitar a revitimização.

Uma parcela expressiva de mulheres (40%) não responderia uma pesquisa realizada pela própria instituição em que trabalham da mesma forma que responderam a essa pesquisa, o que demonstra a necessidade de pesquisas que abordem esse tema serem realizadas por pesquisador externo.

Constatou-se que as mulheres das instituições de Segurança Pública e das Forças Armadas encontram-se sufocadas, querem pedir socorro, gritar, mas não possuem voz.

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Autores da
Pesquisa

Introdução

Considerações sobre a Pesquisa,
Objetivo e Metodologia

Assédio
Sexual

Análise de
Pesquisa

Entrevistas com mulheres que foram assediadas, com profissionais da saúde e com a Secretaria Nacional de Segurança Pública

Considerações
Finais

Propostas.
Campanha Nacional das “10 Medidas contra o Assédio Sexual”

Anteprojeto de Lei de iniciativa popular de Prevenção e Combate ao Assédio Sexual nas Instituições Policiais e Militares

Referências