Motorista que desobedece à ordem do policial para que um veículo pare, pratica crime de desobediência e infração de trânsito?

por | 3 maio 2020 | Atividade Policial

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A ordem policial para que um veículo pare pode ser emanada pelo policial na condição de agente de trânsito (art. 280, § 4º, do CTB) ou no exercício das funções de polícia ostensiva e preservação da ordem pública (art. 144, § 5º, da CF).

Nas hipóteses em que leis de conteúdo extrapenal trouxerem previsões de sanções civis e/ou administrativas, sem previsão de responsabilização criminal para o descumprimento de ordem da autoridade, não haverá o crime de desobediência, por ser o direito penal a ultima ratio e em razão da intervenção mínima do direito criminal. Trata-se de uma construção doutrinária e jurisprudencial.

Quando a própria lei já impõe consequências cíveis e administrativas, sem ressalvar a possibilidade da responsabilização criminal, é porque o legislador já entendeu que aquelas punições, por si sós, são suficientes para atingirem o caráter preventivo e sancionador da conduta ilícita, razão pela qual não se deve invocar o direito penal, que possui caráter subsidiário no tocante à aplicação de punições, por poder atingir um direito fundamental de elevada importância, a liberdade.

Em se tratando de atuação policial, enquanto agente de trânsito, o Código de Trânsito Brasileiro prevê a infração de desobediência à ordem de trânsito, que configura falta grave, punível com multa.

Art. 195. Desobedecer às ordens emanadas da autoridade competente de trânsito ou de seus agentes:

Infração – grave;

Penalidade – multa.

O art. 195 do CTB exige para a sua caracterização que a ordem descumprida seja emanada da autoridade competente de trânsito ou de seus agentes, que são os previstos no art. 280, § 4º, do CTB[1], quais sejam: servidor civil, estatutário ou celetista; policial militar designado pela autoridade de trânsito com circunscrição sobre a via no âmbito de sua competência.

Nota-se, ainda, que o art. 195 da Lei n. 9.503/97 não cumula a infração de trânsito com a possibilidade de haver consequência criminal, razão pela qual não há que se falar em crime de desobediência (art. 330 do CP).

A título exemplificativo, o art. 219 do Código de Processo Penal cumula a possibilidade de haver aplicação de multa (sanção extrapenal) com a responsabilização criminal.

Art. 219. O juiz poderá aplicar à testemunha faltosa a multa prevista no art. 453, sem prejuízo do processo penal por crime de desobediência, e condená-la ao pagamento das custas da diligência. (Redação dada pela Lei nº 6.416, de 24.5.1977).

Noutro giro, quando houver desobediência à ordem de parada emitida por policial no exercício da atividade-fim, consistente na preservação da ordem pública, prevenção e repressão de crimes, haverá o crime de desobediência previsto no art. 330 do Código Penal, pois não há no ordenamento jurídico a previsão de nenhuma outra sanção para esses casos.

Em se tratando de uma ordem para que um veículo pare com o fim de possibilitar que os policiais realizem buscas no veículo e no motorista, sendo esta descumprida haverá o crime de desobediência, pois não há em lei previsão de infração administrativa ou cível para o descumprimento de ordem policial relacionada à atividade de polícia ostensiva e preservação da ordem pública.

O Superior Tribunal de Justiça já decidiu que “o crime de desobediência é subsidiário e somente se caracteriza nos casos em que o descumprimento da ordem emitida pela autoridade não é objeto de sanção administrativa, civil ou processual”[2].

Salienta-se que o Superior Tribunal de Justiça já realizou a distinção ora apresentada, entre ordem emanada por policial enquanto agente de trânsito e na hipótese em que estiver no exercício da atividade-fim.

(…)

II – Segundo jurisprudência deste Tribunal Superior, a desobediência de ordem de parada dada pela autoridade de trânsito ou por seus agentes, ou mesmo por policiais ou outros agentes públicos no exercício de atividades relacionadas ao trânsito, não constitui crime de desobediência, pois há previsão de sanção administrativa específica no art. 195 do Código de Trânsito Brasileiro, o qual não estabelece a possibilidade de cumulação de sanção penal. Assim, em razão dos princípios da subsidiariedade do Direito Penal e da intervenção mínima, inviável a responsabilização da conduta na esfera criminal.

III – No presente caso, contudo, a ordem de parada não foi dada pela autoridade de trânsito e nem por seus agentes, mas por policiais militares no exercício de atividade ostensiva, destinada à prevenção e à repressão de crimes, que foram acionados para fazer a abordagem do paciente, em razão de atividade suspeita por ela apresentada, conforme restou expressamente consignado no v. acórdão impugnado. Desta forma, não restou configurada a hipótese de incidência da regra contida no art. 195 do Código de Trânsito Brasileiro e, por conseguinte, do entendimento segundo o qual não seria possível a responsabilização criminal do paciente pelo delito de desobediência tipificado no art. 330 do Código Penal.

(STJ – HC: 369082 SC 2016/0226409-3, Relator: Ministro FELIX FISCHER, Data de Julgamento: 27/06/2017, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 01/08/2017)

Diante do exposto, pode-se citar os seguintes exemplos:

Ex.1: durante uma blitz um veículo desobedece à ordem de parada emitida pelos policiais. Houve a infração de trânsito prevista no art. 195 do CTB. Não houve crime.

Ex.2: durante patrulhamento de rotina, um veículo desobedece à ordem de parada emitida pelos policiais, com o fim de realizarem busca no veículo, à procura de armas e drogas. Houve crime previsto no art. 330 do CP (desobediência). Não houve a infração de trânsito prevista no art. 195 do CTB, pois não foi emitida pelos policiais na condição de agentes de trânsito.

Ex.3: durante uma operação policial, com o fim de fiscalizar a regularidade dos motoristas e dos veículos, bem como a localização de drogas e armas, um policial, devidamente credenciado como agente de trânsito, emite ordem para que um veículo pare, sendo esta desobedecida. Como a finalidade não era somente a fiscalização de trânsito, o motorista terá praticado, além da infração de trânsito prevista no art. 195 do Código de Trânsito Brasileiro, o crime de desobediência (art. 330 do CP).

NOTAS

[1] Art. 280. Ocorrendo infração prevista na legislação de trânsito, lavrar-se-á auto de infração, do qual constará: (…) § 4º O agente da autoridade de trânsito competente para lavrar o auto de infração poderá ser servidor civil, estatutário ou celetista ou, ainda, policial militar designado pela autoridade de trânsito com jurisdição sobre a via no âmbito de sua competência.

[2] STJ, AgRg no AREsp 699.637/SP.

Sobre o autor

Rodrigo Foureaux é Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás. Foi Juiz de Direito do TJPA e do TJPB. Aprovado para Juiz de Direito do TJAL. Oficial da Reserva Não Remunerada da PMMG. Membro da academia de Letras João Guimarães Rosa. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva e em Ciências Militares com Ênfase em Defesa Social pela Academia de Polícia Militar de Minas Gerais. Mestre em Direito, Justiça e Desenvolvimento pelo Instituto de Direito Público. Especialista em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes. Autor de livros jurídicos. Foi Professor na Academia de Polícia Militar de Minas Gerais. Palestrante. Fundador do site “Atividade Policial”.

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