Aspectos relevantes da decisão do STF que descriminalizou o porte de maconha para o consumo pessoal e impactos na atuação policial na rua

O Supremo Tribunal Federal (RE 635659) fixou as seguintes teses ao descriminalizar o porte de maconha para consumo pessoal:

1. Não comete infração penal quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, a substância cannabis sativa, sem prejuízo do reconhecimento da ilicitude extrapenal da conduta, com apreensão da droga e aplicação de sanções de advertência sobre os efeitos dela (art. 28, I) e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo (art. 28, III);

2. As sanções estabelecidas nos incisos I e III do art. 28 da Lei 11.343/06 serão aplicadas pelo juiz em procedimento de natureza não penal, sem nenhuma repercussão criminal para a conduta;

3. Em se tratando da posse de cannabis para consumo pessoal, a autoridade policial apreenderá a substância e notificará o autor do fato para comparecer em Juízo, na forma do regulamento a ser aprovado pelo CNJ. Até que o CNJ delibere a respeito, a competência para julgar as condutas do art. 28 da Lei 11.343/06 será dos Juizados Especiais Criminais, segundo a sistemática atual, vedada a atribuição de quaisquer efeitos penais para a sentença;

4. Nos termos do § 2º do artigo 28 da Lei 11.343/2006, será presumido usuário quem, para consumo próprio, adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, até 40 gramas de cannabis sativa ou seis plantas-fêmeas, até que o Congresso Nacional venha a legislar a respeito;

5. A presunção do item anterior é relativa, não estando a autoridade policial e seus agentes impedidos de realizar a prisão em flagrante por tráfico de drogas, mesmo para quantidades inferiores ao limite acima estabelecido, quando presentes elementos que indiquem intuito de mercancia, como a forma de acondicionamento da droga, as circunstâncias da apreensão, a variedade de substâncias apreendidas, a apreensão simultânea de instrumentos como balança, registros de operações comerciais e aparelho celular contendo contatos de usuários ou traficantes;

6. Nesses casos, caberá ao Delegado de Polícia consignar, no auto de prisão em flagrante, justificativa minudente para afastamento da presunção do porte para uso pessoal, sendo vedada a alusão a critérios subjetivos arbitrários;

7. Na hipótese de prisão por quantidades inferiores à fixada no item 4, deverá o juiz, na audiência de custódia, avaliar as razões invocadas para o afastamento da presunção de porte para uso próprio;

8. A apreensão de quantidades superiores aos limites ora fixados não impede o juiz de concluir que a conduta é atípica, apontando nos autos prova suficiente da condição de usuário.

A decisão do STF que descriminalizou o porte de maconha para o consumo pessoal gerou muitas dúvidas, sobretudo na atuação policial na rua.

Os tópicos abordados a seguir não tem a pretensão de esgotar o assunto, apenas de contribuir, ainda que minimamente para os debates.

1. O STF decidiu que portar maconha para consumo pessoal não é crime. Cuidado, pois não houve liberação. Apenas deixou de ser crime e passou a ser ilícito extrapenal. O porte das demais drogas para consumo pessoal continua sendo o crime previsto no art. 28 da Lei n. 11.343/06, se previstas na Portaria SVS/MS nº 344/98 (cocaína, crack, heroína etc.).

As consequências para quem for flagrado portando maconha para consumo pessoal podem ser essas duas: advertência sobre os efeitos do uso da maconha e aplicação de medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. Para as demais drogas ilícitas, além dessas medidas é possível aplicar a prestação de serviço à comunidade, o que agora não é mais possível para o usuário de maconha (art. 28 da Lei de Drogas). Ate que o CNJ regulamente, o juiz do juizado especial criminal será o responsável por aplicar as referidas medidas ao portador de maconha.

2. Criou-se uma presunção de porte de maconha para uso pessoal quando a quantidade que a pessoa portar for de até 40 gramas de cannabis sativa ou seis plantas-fêmeas.

Isso não impede que uma pessoa que porte menos de 40 gramas não seja enquadrada no tráfico, pois há apenas uma presunção de que é usuária. Imagine o agente que ande pelas ruas vendendo drogas, mas sempre com no máximo 40 gramas, o que é pesado antes de sair de casa para não ser flagrado no tráfico. Ele vende, retorna em casa e pega mais droga. E assim faz a distribuição da droga na região em que atua. Neste caso atua claramente como “aviãozinho” e deve responder por tráfico de drogas (art. 33 da Lei n. 11.343/06).

3. A pessoa que é flagrada portando quantidade superior a 40 gramas não será, automaticamente, enquadrada como traficante, pois em todo caso deverá estar comprovado que a quantidade de droga se destina ao tráfico, pois até 40 gramas há uma presunção relativa de uso. Acima de 40 gramas não há presunção de uso, mas não se trata de presunção de traficância. Fica em aberto devendo-se analisar as provas do caso. A defesa terá mais trabalho para demonstrar que é usuário.

Quando houver uma quantidade de maconha superior a 40 gramas aplica-se o mesmo raciocínio do crime de receptação.

Quando há a apreensão do bem resultante de crime na posse do agente, é ônus do imputado comprovar a origem lícita do produto ou que sua conduta ocorreu de forma culposa. Isto não implica inversão do ônus da prova, ofensa ao princípio da presunção de inocência ou negativa do direito ao silêncio, mas decorre da aplicação do art. 156 do Código de Processo Penal, segundo o qual a prova da alegação compete a quem a fizer.

STJ. AgRg no AREsp n. 2.309.936/SP, relator Ministro Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do TJDFT), Sexta Turma, julgado em 14/5/2024, DJe de 17/5/2024.

Portanto, será ônus do agente comprovar que a droga se destina ao uso, como decorrência do art. 156 do CPP.

4. A quantidade estabelecida pelo STF aplica-se apenas nos casos de porte de maconha. Não há a mesma presunção se uma pessoa for flagrada portando, por exemplo, menos de 40 gramas de cocaína, o que não significa também que será traficante. O ônus da prova continua sendo da acusação.

5. A polícia deverá analisar vários aspectos para identificar se os casos, independentemente, da quantidade de drogas, configuram uso ou tráfico, como a forma de acondicionamento da droga, as circunstâncias da apreensão, a variedade de substâncias apreendidas, a apreensão simultânea de instrumentos como balança, registros de operações comerciais e aparelho celular contendo contatos de usuários ou traficantes.

6. As instituições policiais, certamente, vão adquirir balanças certificadas pelo INMETRO para que fiquem nas viaturas e nas Delegacias, pois quando o policial abordar uma pessoa na rua usando maconha precisará antes de conduzi-la certificar-se de que a quantidade é superior a 40 gramas.

7. Certamente, nas Polícias Militares em que o TCO é lavrado na rua continuarão sem conduzir o usuário de maconha para a Delegacia, mas nas instituições militares em que o TCO não é lavrado tenho minhas dúvidas se vão apresentá-lo na Delegacia em razão de uma infração extrapenal. De toda forma, o Delegado de Polícia poderá analisar o caso para dizer sé é tráfico ou uso de drogas.

8. Como a abordagem policial na rua de usuários muitas vezes ocorre sem investigação prévia ficará muito difícil demonstrar que se trata de traficante se a pessoa estiver com no máximo 40 gramas de maconha.

9. A polícia pode realizar busca pessoal na rua quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos que constituam corpo de delito (infração penal). Há previsão também de busca pessoal para apreender coisas obtidas por meios criminosos ou para colher qualquer elemento de convicção de infração penal (arts. 240, §§ 1º e 2º e 244). Fato é que o STF e o STJ têm sido rigorosos com as buscas pessoais.

A busca pessoal prevista no CPP tem natureza probatória e correlação com a prática de infração penal. Como portar até 40 gramas de maconha não é mais crime é possível a realização de busca pessoal quando o policial se deparar na rua com um indivíduo com maconha? Visualizo dois possíveis entendimentos.

1º) Não é possível realizar a busca pessoal, pois se trata de infração extrapenal e não há previsão legal que autorize a busca nesses casos, devendo a polícia atuar apenas quando houver situação de flagrante uso de maconha e não por fundada suspeita de que a pessoa porta maconha. Neste caso, ao constatar o uso o policial vai aprender a maconha e ordenar que o indivíduo entregue toda a maconha que estiver com ele, podendo, para tanto, verificar os bolsos, mochila etc. Caso a pessoa descumpra a ordem haverá desobediência (o crime de desobediência neste caso é discutível e pode ser que prevaleça a inexistência de crime)

2º) É possível realizar a busca pessoal, já que há fundada suspeita de portar maconha que, em que pese não ser considerado crime, a aquisição da maconha decorre da prática de um crime por terceiro (tráfico). Como o CPP autoriza a busca pessoal para apreender coisas obtidas por meios criminosos (quem vendeu praticou crime), bem como para colher elementos de convicção de infração penal (é necessário investigar a prática do tráfico de quem vendeu), permite-se a busca pessoal.

Outro argumento que sustenta a possibilidade de busca pessoal decorre da determinação do STF para que a polícia apreenda a maconha que o usuário portar e é impossível a apreensão sem a realização de busca, razão pela qual o STF autorizou, implicitamente (teoria dos poderes implícitos), a realização de buscas pessoais pela polícia de natureza administrativa.

É muito importante que as instituições militares se posicionem formalmente, mediante ato do Comandante-Geral e defina o protocolo operacional, conforme determina o art. 30 da Lei n. 14.751/2023. Adotando-se segundo entendimento que expus isentará os policiais militares de eventual alegação de abuso de autoridade nas buscas pessoais, em razão da ausência da finalidade específica de abusar da autoridade, já que o elemento subjetivo no caso será o cumprimento de norma do comando da instituição, a qual está obrigado a cumprir (obediência hierárquica/estrito cumprimento do dever legal).

10. A polícia pode adentrar à residência do indivíduo que fuma maconha?

Como a Constituição Federal não autoriza o ingresso em residência em razão da prática de ilícito extrapenal (art. 5º, XI, CF) não é possível mais ingressar na casa de usuário de maconha. Logo, se a polícia visualiza uma pessoa fumando maconha pela janela, não poderá entrar.

11. Caso o usuário de maconha incomode os vizinhos com o cheiro, o que fazer?

A solução é extrapenal e deve ocorrer mediante a aplicação de multa, se morar em condomínio de casas ou apartamentos, ou mediante o ajuizamento de uma ação de obrigação de não fazer com pedido de multa.

Os vizinhos possuem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais ao sossego e à saúde (art. 1.277 do CC). No condomínio não se pode utilizar o espaço de maneira prejudicial à salubridade (art. 1.336, IV, do CC).

Caso as multas não sejam suficientes elas podem ir aumentando e serem cobradas judicialmente, com o bloqueio de bens, conta bancária etc. Em último caso, após reiteradas multas e comportamentos antissociais, é possível até mesmo a expulsão do condômino antissocial, sem perda da propriedade, mediante ação judicial. O mesmo raciocínio se aplica ao condômino que se utiliza de seu apartamento para prostituição e há, no dia a dia, um constante entra e sai de pessoas.

12. A decisão do STF não impacta em nada o crime militar de porte de drogas para consumo pessoal (art. 290 do CPM), pois este crime tutela também o regular funcionamento das instituições militares. Eu e o Luiz Paulo Spinola escrevemos isso em nosso livro que comenta a minirreforma do CPM. Continua sendo crime portar maconha para consumo pessoal em quartel ou em serviço. De toda forma o parâmetro fixado pelo STF de até 40 gramas de maconha haver presunção de ser porte para consumo pessoal pode também ser utilizado no crime militar de porte de drogas para consumo pessoal.

13. O candidato a ingressar nas instituições militares continua sendo contraindicado se houver registro administrativo de porte de maconha para consumo pessoal, pois essa conduta, ainda que não seja criminosa é incompatível com o serviço prestado pelas instituições militares. A sindicância social analisa também os aspectos morais e a conduta social, o que vai além dos antecedentes criminais e na esfera militar o porte de drogas para consumo pessoal é punido rigorosamente com pena de reclusão de um a cinco anos e como já dizia o Ministro Ayres Britto “uso de drogas e o dever militar são como água e óleo: não se misturam”.

14. Não é possível enquadrar quem compra droga como receptador (art. 180 do CP), pois não obstante a maconha seja droga ilícita e adquirida de forma ilegal (comprada de traficante), o STF decidiu que o porte de maconha para consumo pessoal não é crime, o que afasta qualquer possibilidade de enquadrar em outro tipo penal.

15. O adolescente ou criança que for flagrado utilizando maconha não praticará ao infracional e essa conduta também deve ser registrada administrativamente e encaminhada ao Conselho Tutelar e Ministério Público.

O Conselho Tutelar deve atuar para atender crianças e adolescentes quando estiverem vulneráveis em razão de suas próprias condutas e deve encaminhá-los aos pais ou responsáveis (arts. 136, I, 98, III e 101, I, do ECA).

    Ao Ministério Público cabe zelar pelo efetivo respeito aos direitos e garantias legais assegurados às crianças e adolescentes, promovendo as medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis (art. 201, VIII, do ECA), o que permite afirmar que é atribuição do Ministério Público, enquanto garantidor dos direitos das pessoas em desenvolvimento, acompanhar os casos em que adolescentes e crianças forem flagrados utilizando maconha.

    16. O art. 33, § 3º, da Lei de Drogas prevê que é crime “Oferecer droga, eventualmente e sem objetivo de lucro, a pessoa de seu relacionamento, para juntos a consumirem”. Essa conduta criminosa não foi afetada pela decisão do STF, pois discutiu-se a constitucionalidade do art. 28 da Lei de Drogas e não do art. 33, § 3º, e neste caso o agente envolve terceiros no uso de drogas e não utiliza apenas sozinho.

    17. Houve uma espécie de abolitio criminis judicial. Portanto, não é possível mais constar, na folha de antecedentes criminais, o art. 28 da Lei de Drogas. Logo, esse registro deve ser apagado.

    18. O STF já decidiu ser inadmissível a Revisão Criminal em razão de meras variações jurisprudenciais, ressalvadas situações excepcionais de abolitio criminis ou declaração de inconstitucionalidade de dispositivos legais (HC 153805 AgR, Relator(a):  Min. Dias Toffoli, 2ª Turma, j. 11/09/2018).

    Portanto, em tese será cabível uma revisão criminal para analisar as condenações penais de quem portava até 40 gramas, para que seja feita uma nova valoração dos fatos. Comprovando que a condenação não possui outros elementos que indique a traficância, apenas tendo sido condenado em razão da quantidade, será o caso de procedência da revisão criminal em razão da abolitio criminis.

    Foi divulgado que o Conselho Nacional de Justiça fará mutirão carcerário para analisar os processos dos condenados por tráfico que portavam até 40 gramas de maconha.

    Cabe revisão criminal até mesmo se a pena já tiver sido cumprida (art. 622 do CPP).

    A Polícia Militar atua em ocorrências de esbulho possessório sem repercussão criminal?

    O papel da Polícia Militar é muito mais amplo do que atender ocorrências em que haja a prática de crimes, pois a PM atua na preservação da ordem pública, que é um conceito mais amplo do que a prevenção e repressão criminal.

    A preservação da ordem pública engloba a convivência pacífica e harmoniosa, a prevenção a ilícitos civis e criminais, o bom convívio social.

    A convivência em sociedade permite situações conflituosas que não possuem repercussão criminal, apenas cível, como os casos de esbulho possessório, em que um terceiro toma ou entra ilegalmente no imóvel fora dos casos que configura o crime de esbulho possessório.

    Para que haja o crime de esbulho possessório a invasão deve ocorrer mediante violência a pessoa ou grave ameaça ou mediante concurso de pelo menos três pessoas e devem ter o fim de tomar a posse para si (esbulho possessório), não caracterizando o crime o simples ingresso na propriedade alheia desabitada.

    Caso a invasão, ainda que haja somente um agente, ocorra com o fim de esbulho possessório, a uma casa que seja financiada pelo Sistema Financeiro da Habitação, o crime será o previsto no art. 9º da Lei n. 5.741/71. Em se tratando de invasão, com a intenção de ocupar, terra da União, dos Estados ou dos Municípios, ainda que seja um agente, o crime será o previsto no art. 20 da Lei n. 4.947/66.

    Nota-se que em todos os casos deve haver a intenção de ocupar o imóvel e não caracteriza o crime de esbulho possessório o simples fato de entrar.

    Ingressar ilegalmente em imóvel não caracteriza, necessariamente, o crime de violação de domicílio (art. 150 do CP), pois este tem por finalidade proteger a intimidade (art. 5º, X, da CF), a vida privada, o direito à paz, ao sossego, à tranquilidade como decorrência da inviolabilidade domiciliar, que é um direito fundamental (art. 5º, XI, da CF).

    O art. 150, § 4º, I, do Código Penal afirma que a expressão “casa” compreende qualquer compartimento habitado, que significa qualquer espaço destinado à ocupação humana, como casas, apartamentos, quartos de hotel e de motel, barcos, boleia de caminhão, abrigo debaixo de pontes e viadutos etc.

    Nesse sentido, tendo em vista o bem jurídico tutelado (privacidade) e que um compartimento desabitado não é considerado “casa” para fins violação de domicílio, caso um agente adentre, sem autorização, em uma casa desabitada, como uma que não tem morador e está à venda, não haverá crime de violação de domicílio. O mesmo raciocínio se aplica a terrenos que estejam à venda.

    Diante desse contexto, perceba que é possível a ocorrência de invasão de terreno, imóvel, sem que haja crime, cuja proteção deve ser buscada no direito civil e pode ocorrer, inclusive, imediatamente, sem necessidade de ajuizar ação judicial. O nome disso é desforço imediato.

    O desforço imediato (arts. 1.210, § 1º, e 1.224, ambos do Código Civil) consiste na autoproteção de seu imóvel. Isto é, o proprietário de um imóvel pode expulsar uma pessoa que adentre ao seu imóvel utilizando-se da força moderada, ainda que não haja autorização judicial, desde que atue tão logo saiba que seu imóvel foi invadido.

    Permitir que o cidadão se utilize do desforço imediato sem que haja um amparo estatal acabará por resultar na prática de crimes, como dano, lesão corporal e até mesmo em homicídio. Além do mais, o cidadão que não puder contar com o apoio do estado para exercer o desforço imediato, acaba tendo o seu direito esvaziado, já que na prática pode ser muito difícil para um particular conseguir retirar outro, pacificamente, de um imóvel invadido.

    A Polícia Militar é o contraponto da violência, previne, evita a sua ocorrência quando presente. O papel constitucional e social da Polícia Militar vai muito além de prevenir crimes. A Polícia Militar permite que os cidadãos exerçam os mais diversos direitos no dia a dia ao tutelar a ordem pública.

    É importante destacar que a Polícia Militar já atua em invasões de terra em cumprimento a ordem judicial, ainda que não decorra de crime. A diferença decorre do fator tempo. O desforço imediato exige a atuação tão logo o proprietário/morador saiba que o imóvel foi invadido. Caso o possuidor do direito não se utilize do desforço imediato terá que ingressar com uma ação possessória e a decisão judicial, caso haja necessidade para o seu cumprimento, contará com o apoio da Polícia Militar e o mesmo pode ocorrer para a resolução dos conflitos extrajudicialmente.

    Se a Polícia Militar não atuar nesses casos, como o cidadão exercerá o direito ao desforço imediato? Qual órgão do estado concederia esse apoio? Deixar na mão do particular para resolver isso sozinho fomentaria a selvageria. A simples presença da PM, na maioria dos casos, seria suficiente e, se for necessário, está autorizado a usar a força moderada para retirar o(s) invasor(es).

    Em uma situação na qual um cidadão entre em uma casa desabitada ou terreno à venda, sem situação que caracterize crime, a Polícia Militar pode ser acionada para apoiar o desforço imediato, que deve ocorrer com a retirada do indivíduo que entrou indevidamente no imóvel, sem que, para isso, faça-se necessário autorização judicial.

    Tem-se, portanto, um exemplo de atuação da Polícia Militar em ocorrência de natureza cível.

    A imunidade parlamentar se estende ao militar que critica o Comando? O militar que curte ou compartilha post crítico ao Comandante pratica crime?

    Essas questões são importantes de serem esclarecidas, pois não é incomum que parlamentares postem vídeos nas redes sociais com críticas contundentes ao Comandante ou ao Governador, ocasião em que militares podem comentar, curtir ou compartilhar.

    Quando haverá crime militar nesses casos?

    O crime mais comum nesses casos, por parte de militares, é o crime militar de crítica indevida, que o STF já decidiu ser constitucional (ADPF 475).

    O senador, deputado, vereador que seja militar da reserva, a par das divergências, pode praticar o crime militar de crítica indevida (art. 166 do CPM), entretanto, se a crítica for realizada no exercício do mandato parlamentar, em conexão com as funções, haverá imunidade material. Nesse sentido já decidiu o STF (Inq. 2.295-1).

    O parlamentar, ainda que seja militar da reserva, que faz duras críticas ao Governador ou ao Comandante, desde que guardem pertinência com suas funções parlamentares, está amparado pela imunidade material (art. 53 e art. 27, § 1º, ambos da CF). Não há o crime militar de crítica indevida (art. 166 do CPM). Quem exerce cargo público, sobretudo de grande envergadura, está sujeito a sofrer críticas ácidas, duras… Faz parte do jogo democrático! Obviamente, não se admite discurso de ódio e ofensas!

    A natureza jurídica da excludente decorrente de imunidade material é controvertida. Há decisões do STF que afirmam excluir a tipicidade Inq 3677) e outras que afirmam excluir a ilicitude (Pet 7634). Na doutrina há várias outras correntes. Fato é que diante do entendimento do STF, seja pela exclusão da tipicidade ou da ilicitude, o partícipe não será punido. Isso porque prevalece no Brasil a adoção da teoria da acessoriedade limitada, segundo a qual a punição do partícipe exige que o fato seja típico e ilícito.

    Dessa forma, o parlamentar que faz severas críticas ao comando e conta com a participação de militares durante as críticas, em tese, neste caso, será extensível aos militares a imunidade material. A Súmula n. 245 do STF (A imunidade parlamentar não se estende ao corréu sem essa prerrogativa), segundo a doutrina majoritária, aplica-se à imunidade formal e não material, em razão de sua natureza jurídica. Esse é o raciocínio jurídico e doutrinário que prevalece!

    Diversa é a situação do militar que comenta vídeos nas redes sociais com críticas ao Governador ou Comandante, vindo a chancelar as críticas, apoiar, reforçar ou incentivá-las, pois não se trata de participação no ato do parlamentar, o que somente pode ocorrer antes ou durante o discurso parlamentar, mas nunca após, pois se trata de nova prática de ato sem estar acobertado pela imunidade material. Isto é, comentários críticos de militares posteriores à fala do parlamentar são novos comentários após cessada a imunidade e, portanto, pode configurar crime.

    É bom destacar que o parlamentar tem imunidade para realizar as críticas, desde que guarde conexão com a função, mas o militar que não estiver junto do parlamentar no momento das críticas, não terá a extensividade da imunidade. Logo, responderá normalmente pelo crime militar de crítica indevida.

    O parlamentar que provoca ou incentiva a tropa a praticar crimes (motim decorrente de greve, recusa de obediência, desrespeito a superior, crítica indevida etc.) não está acobertado pela imunidade material, como decidiu o STF no caso Daniel Silveira (AP 1044/DF. A liberdade de expressão não pode ser usada para a prática de atividades ilícitas ou para a prática de discursos de ódio, contra a democracia ou contra as instituições).

    O fato de o militar curtir e/ou compartilhar vídeos ou posts que criticam o comando, por si só, não é suficiente para caracterizar o crime militar de crítica indevida. Entretanto, poderá configurar transgressão disciplinar. Nesse sentido já decidiu o STJ, a saber:

    É possível inferir que, ao compartilhar a manifestação de outra pessoa em rede social, o texto passa a ser exibido na página pessoal daquele que compartilhou, tornando-a visível a seus amigos e, por vezes, a terceiros, o que claramente propaga a publicação inicial.

    Não é suficiente, no entanto, para fins de responsabilização penal, o mero ato de compartilhar dada notícia, sem que se aduza qualquer circunstância que possa identificar, no ato de compartilhar, o animus dirigido a reproduzir uma crítica ao “ato de seu superior ou ao assunto atinente à disciplinar militar” (CPM, art. 166).

    (RHC n. 75.125/PB, relator Ministro Nefi Cordeiro, relator para acórdão Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 25/10/2016, DJe de 18/11/2016.)

    Militar que compartilha imagem com texto crítico a superior em grupo de whatsapp, ainda que não seja o criador da imagem, pratica o crime militar de crítica indevida (art. 166 do CPM), pois o ato de compartilhamento já se configura como crítica.

    No caso o militar encaminhou para um grupo de whatsapp com 256 pessoas uma imagem contendo, dentre outras, foto do Governador e do Comandante-Geral com o seguinte conteúdo:

    “Não deram a data-base. Vão acabar com a Licença Especial. Querem ferrar com a PM na reforma da previdência (Carta de Vitória) e o Comando da PM concede a maior honraria da PMPR (Medalha Cel Sarmento) ao Governador e ao Chefe da Casa Civil. O que eles fizeram para merecer tal honra? Explique aí Cel. Péricles!!! [sic]”

    (TJ-PR – APL: 00286243820198160013 Curitiba 0028624-38.2019.8.16.0013 (Acórdão), Relator: substituto benjamim acacio de moura e costa, Data de Julgamento: 29/04/2023, 1ª Câmara Criminal, Data de Publicação: 08/05/2023)

    Não é possível afirmar com segurança que quem curte ou compartilha conteúdos críticos ao Comando, sem tecer comentários ou endossá-los, em que pese fazer a postagem ganhar mais engajamento, praticará o crime militar de crítica indevida. Não há julgados consolidados e foi possível encontrar julgado pela absolvição e condenação. Tudo vai depender da análise do caso concreto. Fato é que o militar fica sujeito a responder pelo crime militar de crítica indevida.

    Quem compartilha esses conteúdos em grupos grandes ou de pessoas desconhecidas, bem como nas redes sociais, assume um risco de ser interpretado como um apoio à crítica e fica vulnerável a sofrer ação penal por crítica indevida. Diversa é a situação de quem compartilha em um grupo restrito de amigos próximos ou para pessoas determinadas, em razão da proximidade.

    A análise será do elemento subjetivo de quem compartilha, se há apenas o ânimo de narrar, de divulgar ou se o dolo é de criticar.

    A nova regra do voto favorável em caso de empate decorrente da Lei n. 14.836/2024 pôs fim ao voto médio no Conselho de Justiça?

    Texto de autoria de Rodrigo Foureaux[1] e Luiz Paulo Spinola[2]

    O Código de Processo Penal Militar data de 21 de outubro de 1969 e sofreu apenas 07 (sete) alterações, enquanto o Código de Processo Penal Comum data de 03 de outubro de 1941 e passou 62 (sessenta e duas), o que demonstra o esquecimento, por parte do legislador, na legislação militar, sendo necessário aplicar institutos previstos para o processo penal comum no processo penal militar, até porque o CPPM autoriza no art. 3º, “a” a aplicação, nos casos omissos, da legislação processual penal comum.

    A Lei n. 14.836/2024 alterou o § 1º, do art. 615, do Código de Processo Penal para passar a prever o seguinte:

    Art. 615. O tribunal decidirá por maioria de votos.

    § 1º Em todos os julgamentos em matéria penal ou processual penal em órgãos colegiados, havendo empate, prevalecerá a decisão mais favorável ao indivíduo imputado, proclamando-se de imediato esse resultado, ainda que, nas hipóteses de vaga aberta a ser preenchida, de impedimento, de suspeição ou de ausência, tenha sido o julgamento tomado sem a totalidade dos integrantes do colegiado. (destaques nossos)

    Na primeira instância da Justiça Militar (Federal e Estadual) os Conselhos de Justiça, que são órgãos colegiados, são compostos pelo Juiz técnico-jurídico (Juiz Federal da Justiça Militar, na Justiça Militar da União, e Juiz de Direito do Juízo Militar, Justiça Militar Estadual ou de âmbito estadual) e mais quatros Juízes Militares que são por oficiais de carreira das instituições militares (forças armadas e polícia e corpos de bombeiros militares).

    O Conselhos de Justiça conhecido também como escabinado ou escabinato, é gênero, o qual tem como espécies o Conselho Especial de Justiça(CEJ) e o Conselho Permanente de Justiça (CPJ).

    A seguir as distinções entre o escabinato na Justiça Militar da União e Estadual

    Justiça Militar da UniãoJustiça Militar Estadual Exemplo: Justiça Militar Estadual de Minas Gerais[3]
    Conselho Especial de Justiça: Processar e julgar oficiais, exceto oficiais-generais[4], pela prática de crime militar (art. 27, I, da LOJMU) e praças se a acusação abrange-las junto aos oficiais (art. 23, §3º, da LOJMU)Caso a imputação envolva civis, tanto os oficiais quanto as praças, serão julgados monocraticamente pelo Juiz Federal da Justiça Militar (art. 30, I-B, da LOJMU).Conselho Especial de Justiça: Processar e julgar os oficiais militares estaduais de Minas Gerais, ressalvado a competência da singular do juízo singular do Juiz de Direito do Juízo Militar quando o crime é praticado contra civil ou dolosos contra a vida de civil que compete ao Tribunal do Júri, previsões legais no art. 125, §§ 4º e 5º, da CF/88; art. 111, da CEMG; art. 204-A, I, c.c art.213, I, ambos da LOJMG. Cícero Coimbra Neves ressalta que caso haja a imputação de oficiais e praças competirá o processo e julgado pelo Conselho Especial de Justiça em razão da conexão e continência conforme regramento do art. 101, I, do CPPM[5]. E na mesma linha Alexandre de Reis Carvalho e Amauri Fonseca da Costa defendem a aplicação do disposto do §3º, do art. 23 da LOJMU às Justiças Militares Estaduais[6].
    Conselho Permanente de Justiça: Processar e julgar as praças pela prática de crime militar (art. 27, II, da LOJMU).[7]Conselho Permanente de Justiça: Processar e julgar as praças militares estaduais de Minas Gerais, ressalvado a competência da singular do juízo singular do Juiz de Direito do Juízo Militar quando o crime é praticado contra civil ou dolosos contra a vida de civil que compete ao Tribunal do Júri, previsões legais no art. 125, §§ 4º e 5º, da CF/88; art. 111, da CEMG; art. 204-A, II, c.c art.213, I, ambos da LOJMG.

    Feitos esses apontamentos passamos a analisar a aplicação da lei processual penal comum na Justiça Militar; o voto médio e a (in)aplicabilidade da Lei n. 14.836/2024 na primeira instância da Justiça Militar.

    1. Aplicação da lei processual penal comum na Justiça Militar

    Ao se aplicar institutos previstos na legislação processual penal comum no rito processual penal militar deve-se analisar quatro vetores: a) ausência de previsão no Código de Processo Penal Militar; b) ausência de proibição legislativa; c) aplicação ao caso concreto e d) a aplicação não desvirtuar a índole do processo penal militar.

    Art. 3º Os casos omissos neste Código serão supridos:

    a) pela legislação de processo penal comum, quando aplicável ao caso concreto e sem prejuízo da índole do processo penal militar;

    Passamos a analisar cada um dos vetores.

    a) ausência de previsão no Código de Processo Penal Militar: o CPPM possui rito próprio que deve ser aplicado nos processos e julgamento dos crimes militares, sendo previsto no art. 3º do CPPM que nos casos omissos é possível suprir a lacuna pela legislação processual penal comum, razão pela qual a regra é que havendo previsão em ambos os diplomas legislativos (CPPM e CPP), aplica-se a legislação processual penal militar;

    b) ausência de proibição legislativa: se alguma lei criar um instituto processual benéfico e proibir a aplicação na Justiça Militar, não deve ser aplicada, em razão do princípio da legalidade. Nesse sentido, o art. 90-A da Lei 9.099/95 dispõe que “As disposições desta Lei não se aplicam no âmbito da Justiça Militar”, razão pela qual, ressalva a discussão acerca da constitucionalidade deste dispositivo, não deve ser aplicada à Justiça Militar os institutos despenalizadores previstos na Lei dos Juizados Especiais Criminais (composição civil dos danos; transação penal; suspensão condicional do processo e exigência de representação nas ações penais relativas aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas)[8];

    c) aplicação ao caso concreto: ao decidir pela aplicação de uma previsão legal contida somente na legislação processual penal comum deve-se analisar se se aplica ao caso concreto no processo penal militar, de forma que não faça uma combinação de leis (lex tertia), sob pena do juiz exercer o papel do legislador e criar um rito processual penal inexistente. A aplicação do diploma processual penal comum deve ser compatível com o caso concreto na Justiça Militar, como a hipótese em que o juiz ao revogar a prisão preventiva de um militar, aplica o art. 319 do CPP (medidas cautelares diversas da prisão). Note que as medidas cautelares diversas da prisão se aplicam ao caso concreto (revogação de prisão), na medida que o CPPM não prevê um rol de medidas cautelares diversas da prisão, limitando-se a prever prisão provisória (arts. 220 a 261); menagem (arts. 263 a 269); liberdade provisória sem fiança (arts. 270 e 271) e aplicação provisória de medidas de segurança (arts. 272 a 276).

    Um exemplo de inaplicabilidade ao caso concreto consiste na previsão contida no art. 38 do Código de Processo Penal do prazo de seis meses para que o ofendido exerça o direito de queixa ou de representação, contado do dia em que vier a saber quem é o autor do crime. Tal dispositivo não se aplica aos processos penais que tramitam na Justiça Militar, uma vez que os crimes militares são de ação penal pública incondicionada[9], como o crime militar de ameaça.

    d) aplicação não desvirtuar a índole do processo penal militar: o processo penal militar ter por finalidade servir de instrumento para a aplicação do Direito Penal Militar. Isto é, ao ser praticado um crime militar, o processo penal militar será o veículo utilizado para se chegar à aplicação justa do direito material. A aplicação da legislação processual penal comum não pode desvirtuar a essência e características inerentes do processo penal militar.

    A índole do processo penal militar refere-se à essência, às qualidades e características específicas do processo penal de natureza militar, que não pode ser alterada, deturpada, modificada em caso de aplicação das regras do processo penal de natureza comum.

    A índole refere-se à aplicação, no processo penal militar, das normas que visam a preservação de valores militares, como a hierarquia e disciplina (arts. 42 e 142, ambos da CF), como a constituição do Conselho de Justiça (Especial ou Permanente) para julgar os crimes militares (art. 27, I e II, da Lei n. 8.457/92 e art. 125, § 5º, da CF); a necessidade da reconstituição dos fatos não atentar contra a hierarquia e disciplina (art. 13, parágrafo único, do CPPM); a possibilidade de desaforamento por interesse da disciplina militar (art. 109, “a”, do CPPM); a possibilidade de decretação da prisão preventiva por exigência da manutenção das normas ou princípios da hierarquia e disciplina militares (art. 255, “e”, do CPPM); a necessidade de se ouvir o Comandante da Unidade para a concessão de menagem em lugar sujeito à administração militar (art. 264, § 2º, do CPPM); a inadmissibilidade de provas que atentem contra a hierarquia e disciplina (art. 295 do CPPM).

    Nesse sentido, Jorge César de Assis ensina que[10]:

    Deve ser considerado que a chamada índole do processo penal militar está diretamente ligada àqueles valores, prerrogativas, deveres e obrigações, que sendo inerente aos membros das Forças Armadas, devem ser observados no decorrer do processo, enquanto o acusado mantiver o posto ou graduação correspondente.

    Fazem parte da índole do processo penal militar as prerrogativas dos militares, constituídas pelas honras, dignidades e distinções devidas aos graus militares e cargos (Estatuto dos Militares, art. 73), e que se retratam já na definição do juízo natural do acusado militar (Conselho Especial ou Permanente); na obrigação do acusado militar prestar os sinais de respeito aos membros do Conselho de Justiça; a conservação, pelo militar da reserva ou reformado, das prerrogativas do posto ou graduação, quando pratica ou contra ele é praticado crime militar (CPM, art. 13); a presidência do Conselho pelo oficial general ou oficial superior (LOJMU, art. 16, letras a e b)[11]; a prestação do compromisso legal pelos juízes militares (CPPM, art. 400) etc.

    No entanto, razoável supor que não ofendem a índole do processo penal militar o fato das partes poderem pedir esclarecimentos ao réu quando do interrogatório; nem mesmo a inversão da ordem para a oitiva do réu; nem a utilização do sistema de videoconferência; até mesmo a utilização de embargos de declaração das decisões de primeiro grau (embarguinhos).

    Portanto, tem-se que a índole do processo penal militar é preservada quando valores inerentes às instituições militares, bem como as prerrogativas, direitos e deveres dos militares são observados ao se aplicar a legislação processual penal comum.

    Em nada afeta a índole do processo penal militar a aplicação do rito do processo penal comum à Justiça Militar, no tocante à ordem de audições, sendo o interrogatório o primeiro ato[12], sendo possível, até mesmo, que seja realizada audiência una de instrução e julgamento e que o interrogatório seja realizado por carta precatória, em que pese não haver previsão no CPPM, o que decorre de aplicação subsidiária do Código de Processo Penal[13]. Todavia, macula a índole do processo penal militar autorizar que um militar cumpra mandado de busca e apreensão na residência de um investigado que seja seu superior hierárquico, sob o argumento de que a legislação processual penal comum não veda esse cumprimento.

    Dessa forma, faz-se necessário analisar se a Lei n. 14.836, de 08 de abril de 2024 impacta no processo penal militar, em especial, no voto médio.

    2. A regra do voto médio aplicável na Justiça Militar

    No Código de Processo Penal Militar há o regramento do voto médio estipulado no art. 435:

    Art. 435. O presidente do Conselho de Justiça convidará os juízes a se pronunciarem sobre as questões preliminares e o mérito da causa, votando em primeiro lugar o auditor; depois, os juízes militares, por ordem inversa de hierarquia, e finalmente o presidente.

    Diversidade de votos

    Parágrafo único. Quando, pela diversidade de votos, não se puder constituir maioria para a aplicação da pena, entender-se-á que o juiz que tiver votado por pena maior, ou mais grave, terá virtualmente votado por pena imediatamente menor ou menos grave.

    O caput do art. 435 indica a ordem de votação dos membros do Conselho de Justiça:

    1º – o Presidente do Conselho (Juiz Federal da Justiça Militar ou Juiz de Direito do Juízo Militar);

    2º – juízes militares por ordem inversa de hierarquia, ou seja, do Oficial de menor posto ou mais moderno é o segundo a votar, após o Presidente do Conselho. A votação dos juízes militares se inicia pelo de menor posto ou mais moderno para evitar que os votos dos juízes militares superiores hierárquicos ou mais antigos influencie no voto dos demais juízes militares. De fato, as relações hierárquicas são tão intensas nas instituições militares que o voto do juiz militar que seja superior hierárquico pode influenciar direta ou indiretamente no voto dos demais juízes militares, o que compromete a independência funcional do juiz militar que deve estar livre para decidir sem qualquer tipo de pressão e não deve decidir para agradar superior hierárquico.

    O parágrafo único do art. 435 dispõe sobre o voto médio ou aplicação virtual da pena quando não for possível formar a maioria.

    Pelo fato de no parágrafo único constar a expressão “pena” se discute se a aplicação do voto médio somente se opera em votação sobre determinado crime ou se refere apenas à condição mais ou menos gravosa da pena aplicada ao réu.

    Essa tese foi levantada pelo Desembargador Vogal (Fernando Galvão) nos autos n. 0000664-46.2019.9.13.0001 julgado pela 1ª Câmara do TJM/MG[14].

    O réu foi denunciado pelo crime militar de falsidade ideológica (art. 312 do CPM), a denúncia foi recebida e após toda a instrução assim restou a votação dos membros do Conselho Permanente de Justiça[15]:

    • juiz togado e juiz militar 01 votaram pela condenação no crime militar de falsidade ideológica (art. 312 do CPM);
    • juízes militares 02 e 03 votaram pela absolvição;
    • juiz militar 04 votou pela desclassificação para o crime militar de inobservância de lei, regulamento ou instrução (art. 324 do CPM)

    O Conselho de Justiça considerou como voto médio o voto do juiz militar 04 para condenar o réu pelo crime militar de inobservância de lei, regulamento ou instrução (art. 324 do CPM) e condenou o réu nas penas do art. 324 do CPM.

    A defesa irresignada com a decisão interpôs apelação e dentre vários argumentos apontou que: três dos cinco membros do CPJ não vislumbraram a ocorrência do crime do art. 312 do CPM, o que ensejaria a absolvição do apelante e que somente um dos cinco membros identificou a prática do crime do art. 324 do CPM, voto minoritário que sustentou a condenação.

    O Relator entendeu pela absolvição do réu no sentido de que a sentença condenatória no art. 324 do CPM “não apontou qual lei, regulamento ou instrução o réu teria deixado de observar, no exercício da função, dando causa direta à prática de ato prejudicial à Administração Militar, o que é imprescindível, tendo em vista que esse delito se trata de norma penal em branco.” Esse entendimento foi seguido pelo Revisor.

    O vogal (Desembargador Fernando Galvão) fez declaração de voto pela absolvição, mas por motivo diverso ao do Relator.

    O entendimento do Desembargador Fernando Galvão é no sentido de que o parágrafo único do art. 435 do CPPM “não autoriza estabelecer ‘voto médio entre crimes diversos’.”. E finaliza comentando sobre a aplicação do parágrafo único do art. 435 do CPPM ao caso concreto:

    É fácil constatar que o dispositivo permite a apuração do voto prevalente quando houver maioria pela condenação e na aplicação da pena houver diversidade de penas impostas. A pena menos grave faz parte da condenação mais grave e, por isso, a divergência se resolve considerando a parte em que a maioria concorda.

    No caso, houve divergência na condenação por crimes diferentes, sendo que não houve maioria para a condenação pelo crime imputado na denúncia. Não poderia, neste contexto, haver prevalência da condenação isolada que desclassificou a imputação formulada pelo Ministério Público para outro crime não mencionado na denúncia. E tal condenação foi determinada por apenas um dos votos do Conselho Permanente de Justiça, o que expressa a minoria do entendimento do colegiado.

    Desta forma, resta concluir que o apelante deve ser absolvido da imputação formulada na denúncia e da inovação estabelecida no momento da decisão proferida pelo Conselho Permanente de Justiça.

    Diante desse entendimento, podemos extrair casos hipotéticos em que essa tese resultaria na absolvição na votação do escabinato:

    1º Caso: quatros juízes votam pela condenação em que cada um vota para condenar em crime diferente do outro juiz e um juiz vota de absolvição;

    2º Caso: os cinco juízes votam pela condenação em que cada um vota para condenar em crime diferente do outro juiz

    Nosso entendimento é, respeitosamente, diverso do sustentado pelo grande professor e doutrinador Fernando Galvão, pois quando o parágrafo único do art. 435 do CPPM utiliza as expressões “aplicação da pena”; “pena maior, ou mais grave” e “pena imediatamente menor ou menos grave” não está se referindo somente à votação dentro de um mesmo crime, mas sim situação mais ou menos gravosa ao réu.

    No caso concreto houve dois votos para situação mais gravosa: condenação pelo crime militar de falsidade ideológica do art. 312 do CPM com pena em abstrato de um (art. 58 do CPM) a cinco anos de reclusão em caso de documento público. E a situação menos gravosa subsequente foi o voto: pela condenação crime militar de inobservância de lei, regulamento ou instrução do art. 324 do CPM em que no caso concreto a sentença reconheceu a negligência, portanto pena em abstrato de suspensão da graduação de três meses a um ano. Dessa maneira os dois votos na situação mais gravosa, que não foi a maioria, virtualmente votaram pela situação menos gravosa, portanto, temos que tecnicamente a condenação deve ser pelo crime militar previsto no art. 324, pois houve a maioria de três votos.

    A tese suscitada pelo Desembargador Fernando Galvão, em que pese estar muito bem fundamentada, não parece ser o sentido buscado pela norma do parágrafo único do art. 435 do CPPM, pois é uma forma de apenas buscar o desempate mais benéfico ao réu, o que não parece ser a ideia buscada pelo legislador ao estipular a regra do voto médio.

    Dessa maneira, a diversidade de votos apontada pelo parágrafo único do art. 435 ocorre nos seguintes casos:

    (1) imputações típicas diversas, quem votou pelo crime mais grave virtualmente votou pelo crime menos grave;

    (2) quanto á natureza da pena, quem votou pela pena mais grave (reforma), vota, de forma virtual, pela pena menos grave (suspensão do exercício do posto);

    (3) quanto à quantidade da pena, quem votou pela maior pena (oito anos) votou pela pena menor (sete anos);

    (4) quanto ao regime inicial das penas, quem votou pelo regime inicial mais grave (fechado), votou pelo menos grave (semiaberto).

    Cláudio Amin e Nelson Coldibelli lecionam de forma muito didática com um exemplo: suponhamos que um juiz vote pela pena de 10 meses de detenção, outro por 9 meses, outro por 8 meses, outro por 7 meses e outro por 6 meses. O voto de 10 meses é considerado como de 9 meses que é o imediatamente menos grave, logo temos dois votos de 9 meses, o que não configura a maioria. Assim consideramos esses dois votos de nove meses como o de oito meses, então temos três votos de 8 meses, um de 7 meses e outro de 6 meses, assim está formada a maioria.[16]

    Citaremos dois casos concretos para melhor elucidar como se realiza o voto médio.

    O TJM/MG decidiu em um caso em que dois juízes militares votaram por uma pena de 03 anos; o juiz de direito e outro juiz militar, a uma pena de 02 anos e 06 meses e o outro juiz militar a uma pena de 2 (dois) anos, 4 (quatro) meses e 26 (vinte e seis) dias de reclusão, que em razão da diversidade de votos na fixação da pena, nos termos do art. 435, parágrafo único, do CPM, prevaleceu a pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de reclusão.[17]

    O TJM/SP[18], de forma elucidativa, explicou como encontrar o voto médio.

    Nesse sentido, o Exmo. Juiz Paulo Prazak explicou que:

    “Temos na sentença ora guerreada os votos de: 04 anos de detenção, 03 anos e 08 meses de detenção, 03 anos e 01 mês de detenção, 02 (dois) anos, 09 (nove) meses e 18 (dezoito) dias de detenção e 02 anos e 08 meses de detenção. Nos termos do parágrafo único do art. 435 do CPPM, o voto pela pena mais grave, ou seja, 04 anos, considera-se virtualmente, o voto da imediatamente menos grave, 03 anos e 08 meses, resultando um total de dois votos pela pena de 03 anos e 08 meses. Para alcançar a maioria do colegiado, devemos considerar esses dois votos pela pena de 03 anos e 08 meses, pela imediatamente menos grave, chegando a três votos pela pena de 03 (três) anos e 01 (um) mês de detenção .”

    Portanto, a pena de 3 anos e 1 mês de detenção é a que deve prevalecer, exatamente por refletir o voto médio.

    Oportuno frisar que voto médio não significa somar as cinco penas diferentes e dividir o total por cinco. Caso tal operação fosse feita in casu a pena ultrapassaria 3 anos e 2 meses. Como visto, a regra do parágrafo único do art. 435 do CPPM justifica a constituição da maioria pela técnica da aplicação virtual da pena ou do voto médio, que, reitere-se, não necessariamente reflete a média aritmética das penas distintas.

    Questão interessante surge se, dentre os cinco votos, dois forem absolutórios.

    Célio Lobão explica que:[19]

    Quando pela diversidade de votos, não se constituir maioria para a aplicação da pena, entender-se-á que o Juiz que tiver votado pena maior, ou mais grave, terá virtualmente votado por pena imediatamente menor ou menos grave (art. 435, p. ún., do CPPM). Temos, então, o voto médio (vide Célio Lobão, verbete: Voto médio, Enciclopédia Saraiva). Podemos formular a seguinte hipótese de diversidade de votos: o Juiz votou pela condenação do acusado a um ano; os quatro Juízes militares votaram condenando o réu a 2, 3, 4 e 5 anos, respectivamente. O resultado será a condenação a 3 anos, porque se entende que os militares que votaram 5 e 4 anos, virtualmente votaram a pena menor, imediata, isto é 3 anos que, juntando-se à outra de igual tempo, constitui a maioria de 3 votos. Fixou-se a pena em 3 anos, pelo voto médio. No mesmo exemplo, se o 3° e o 4° Juízes militares, em vez de condenar a 4 e 5 anos, votassem pela absolvição, a pena seria de um ano, pois se entende que os Juízes militares que votaram as penas de 2 e 3 anos, virtualmente votaram a pena menor imediata, ou seja, a pena de um ano. Ficção criada pela lei para, através do voto médio, alcançar a maioria de votos. (destaque nosso)

    No mesmo sentido Ronaldo João Roth:[20]

    Ademais, também tratando da divergência de votos na condenação e com aplicação de penas em quantum diversos, diante da norma do parágrafo único do art. 435 do CPPM, Célio Lobão leciona sobre o voto médio que “quando pela diversidade de votos, não se constituir maioria para aplicação da pena, entender-se-á que o Juiz que tiver votado pena maior, ou mais grave, terá virtualmente votado por pena imediatamente menor ou menos grave”[21] (art. 435, parágrafo único, do CPPM), ilustrando com a seguinte hipótese no julgamento:

    O Juiz votou pela condenação do acusado a um ano; os quatro Juízes Militares votaram condenando o réu a 2, 3, 4 e 5 anos, respectivamente. O resultado será a condenação a 3 anos, porque se entende que os militares que votaram 5 e 4 anos, virtualmente votaram a pena menor, imediata, isto é 3 anos que, juntando-se à outra de igual tempo, constitui a maioria de 3 votos. Fixou-se a pena em 3 anos, pelo voto médio. No mesmo exemplo, se o 3º e 4º Juízes militares, em vez de condenar a 4 e 5 anos, votassem pela absolvição, a pena seria de um ano, pois se entende que os Juízes militares que votaram as penas de 2 e 3 anos, virtualmente votaram a pena menor imediata, ou seja, a pena de um ano. Ficção criada pela lei para, através do voto médio, alcançar a maioria de votos.[22]

    3. No Conselho de Justiça aplica-se a regra do voto mais benéfico previsto no § 1º do art. 615 do CPP?

    Com o advento da Lei n. 14.836/2024 é possível afirmar que a nova regra do voto mais benéfico nos casos de empate em juízos colegiados aplica-se ao processo penal militar? Houve revogação tácita da regra do voto médio previsto no art. 435, parágrafo único, do CPPM?

    Na justiça castrense, antes da redação dada pela Lei n. 14.836/2024, a possibilidade de se acolher o voto mais benéfico no caso de empate já fora aventada na 2ª Câmara do TJM/MG nos autos da Apelação nº 0000690-41.2019.9.13.0002[23], o que foi rechaçado.

    No caso concreto a condenação pelo Conselho Permanente de Justiça foi assim definida:

    • Juiz de Direito do Juízo Militar: condenação pelo crime militar de apropriação de coisa havida acidentalmente (art. 249 do CPM);
    • Juiz Militar 04: condenação pelo crime militar de peculato-furto (art. 303, § 2º, do CPM), pena de três anos; sete meses e seis dias. 3a 7m 6d;
    • Juiz Militar 03: condenação pelo crime militar de peculato-furto (art. 303, § 2º, do CPM), pena de quatro anos e dois meses. 4a 2m;
    • Juiz Militar 02: condenação pelo crime militar de peculato-furto (art. 303, § 2º, do CPM), pena de três anos. 3a;
    • Juiz Militar 01: condenação pelo crime militar de peculato-furto (art. 303, § 2º, do CPM), pena de três anos; dez meses e vinte e quatro dias. 3a 10m 24d.

    O Conselho de Justiça, dentro dos votos condenatórios no peculato-furto, aplicou o quantum mais benéfico de três anos.

    O MPMG irresignado interpôs a apelação e requereu que fosse estabelecida a regra do parágrafo único do art. 435 do CPPM em que pena a ser estabelecida deve ser do Juiz Militar 04 que votou pelo quantum de três anos, sete meses e seis dias.

    A defesa, em contrarrazões, sustentou que a regra do parágrafo único do art. 435 do CPPM consiste em estabelecer a pena menor e menos grave no caso de diversidade de votos.

    O Relator acolheu o apelo do MPMG no seguinte sentido:

    Forçoso esclarecer que a redação do artigo em discussão não deixa dúvida de que a intenção do legislador, ao instituí-lo, foi a de simplesmente sanar o impasse relacionado à impossibilidade de se proferir uma decisão majoritária ante a diversidade dos votos.

    […]

    Oportuno frisar que o voto médio não significa somar as cinco penas diferentes e dividir o total por cinco. Como visto, a regra do parágrafo único do art. 435 do CPPM justifica a constituição da maioria pela técnica da aplicação virtual da pena ou do voto médio, que não necessariamente reflete a média aritmética das penas distintas.

    […]

    Isso passa a exigir nova aplicação da regra do artigo em questão até que haja maioria. Novamente, então, as penas estatuídas pelo Capitão Sérgio e pelo Major André seriam desconsideradas para virtualmente se equivalerem à pena imposta pelo Capitão Rafael (3 anos, 7 meses e 6 dias). (destaque nosso)

    Concordamos com a posição do julgado considerando que a regra do parágrafo único do art. 435 do CPPM não estabelece que o voto médio será o voto mais benéfico, mas sim o voto virtual em que quem votou na punição mais gravosa votou imediatamente na menos gravosa.

    Dessa maneira os juízes militares que votaram nas penas mais gravosas (4a 2m e 3a 10m 24d) votaram na pena menos grave que foi de três anos, sete meses e seis dias (3a 7m 6d).

    Ao comparar as disposições de ambos os códigos processuais penais tem-se o seguinte:

    CPPCPPM
    Art. 615. O tribunal decidirá por maioria de votos. § 1º Em todos os julgamentos em matéria penal ou processual penal em órgãos colegiados, havendo empate, prevalecerá a decisão mais favorável ao indivíduo imputado, proclamando-se de imediato esse resultado, ainda que, nas hipóteses de vaga aberta a ser preenchida, de impedimento, de suspeição ou de ausência, tenha sido o julgamento tomado sem a totalidade dos integrantes do colegiado. (Redação dada pela Lei nº 14.836, de 2024)Pronunciamento dos juízes Art. 435. O presidente do Conselho de Justiça convidará os juízes a se pronunciarem sôbre as questões preliminares e o mérito da causa, votando em primeiro lugar o auditor; depois, os juízes militares, por ordem inversa de hierarquia, e finalmente o presidente. Diversidade de votos Parágrafo único. Quando, pela diversidade de votos, não se puder constituir maioria para a aplicação da pena, entender-se-á que o juiz que tiver votado por pena maior, ou mais grave, terá virtualmente votado por pena imediatamente menor ou menos grave.

    Poderíamos sustentar que as disposições não têm relação uma com a outra porque o CPPM se refere a “diversidade de votos” ao passo que o CPP se refere a “havendo empate”.

    Entretanto, como consequência lógica, a diversidade de votos leva ao empate. Tomemos o seguinte exemplo hipotético de possível ocorrência em uma Câmara Criminal que reforma sentença absolutória do juízo da Vara Criminal para impor condenação. A seguir vejamos os votos de cada julgador com o quantum da pena e a solução jurídica:

    Câmara CriminalConselho de Justiça
    Desembargador Relator: 1 ano de reclusão; Desembargador Revisor: 2 anos de reclusão; Desembargador Vogal: 3 anos de reclusão.Juiz Togado (Juiz Federal da Justiça Militar ou Juiz de Direito da Justiça Militar): 1 ano de reclusão; Juiz Militar 04: 2 anos de reclusão; Juiz Militar 03: 3 anos de reclusão; Juiz Militar 02: 4 anos de reclusão; Juiz Militar 01: 5 anos de reclusão;
    Solução
    Cada quantum de pena corresponde a apenas um voto, ou seja, houve empate de 1-1-1. Isto é, um julgador votou pela pena de 1 ano; um julgador votou pela pena de 2 anos e um julgador votou pela pena de 3 anos. Logo, não houve maioria de votos em uma determinada pena, portanto, empate entre as penas. A diversidade de votos levou ao empate. Considerando que houve empate, ao aplicarmos a regra do § 1º do art. 615 do CPP, a pena final será de 1 ano de reclusão por ser a mais benéfica.Cada quantum de pena corresponde a apenas um voto, ou seja, houve empate de 1-1-1-1-1. A diversidade de votos levou ao empate. Considerando que houve empate em forma de diversidade de votos ao aplicarmos a regra do parágrafo único do art. 435 do CPPM a pena final seria de 3 anos reclusão, uma vez que quem votou nas penas mais graves (um voto em 4 e um voto em 5 anos) virtualmente votou na pena anterior menos grave que forma maioria que no caso é de 3 anos de reclusão.

    Diante de todas as considerações a previsão contida no § 1º do art. 615 do Código de Processo Penal, diante da alteração dada pela Lei n. 14.836/2024, não se aplica aos Conselhos de Justiça em razão da especificidade do parágrafo único do art. 423 do Código de Processo Penal Militar que não ofende ditames constitucionais e tem sua razão de existir em decorrência de princípio específico do Direito Processual Penal Militar consistente no juízo hierárquico[24], que conforme o caput do art. 435 do CPPM, depois do juiz togado vota o Juiz Militar[25], do mais moderno ao mais antigo.

    No regramento disposto no voto mais benéfico previsto no § 1º do art. 615 do Código de Processo Penal não há que se falar em juízo hierárquico em órgãos colegiados da Justiça Comum ou na Justiça Militar em órgão judiciário superior. Mesmo em matéria afeta ao direito castrense não há relação hierárquica entre ministros do Supremo Tribunal Federal; do Superior Tribunal Militar e Superior Tribunal de Justiça; assim como também não há relação hierárquica entre os desembargadores/juízes das Câmaras Criminais dos Tribunais de Justiça e Tribunais de Justiça Militar.

    De mais a mais, o Código de Processo Penal Militar não é omisso no tratamento dado à regra de desempate e possui norma própria que não contraria a Constituição e deve ser observada em razão do princípio da especialidade.

    Por todo o exposto, o disposto no § 1º do art. 615 do Código de Processo Penal, como decorrência da Lei n. 14.836/2024, somente se aplica no direito processual penal militar nos tribunais – que já conta com previsão semelhante de se aplicar a decisão mais favorável ao réu em caso de empate (art. 535, § 4º, do CPPM[26]) -, pois nos Conselhos de Justiça, primeira instância da Justiça Militar, aplica-se o regramento específico disposto no parágrafo único do art. 435 do Código de Processo Penal Militar.


    [1] Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás. Oficial da Reserva Não Remunerada da PMMG. Membro da Academia de Letras João Guimarães Rosa. Bacharel em Ciências Militares com Ênfase em Defesa Social pela Academia de Polícia Militar de Minas Gerais. Mestre em Direito, Justiça e Desenvolvimento pelo Instituto de Direito Público. Especialista em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes. Autor de livros jurídicos. Foi Professor na Academia de Polícia Militar de Minas Gerais. Palestrante. Fundador do site “Atividade Policial”.

    [2] Advogado. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Antônio Eufrásio de Toledo de Presidente Prudente/SP. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pelo Centro Universitário Antônio Eufrásio de Toledo de Presidente Prudente/SP.

    [3] Na Justiça Militar Estadual é possível o julgamento de civil quando esse civil é um ex-militar – agente comete o crime militar na condição de militar estadual e após o fato criminoso é desligado da corporação (demissão; expulsão, exoneração a pedido ou ex officio) – Jurisprudência castrense pacífica nesse sentido:

    STJ. 6ª Turma. RHC n. 90.815/DF, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, julgado em 18/9/2018, DJe de 26/9/2018.

    TJM/RS, ApCr nº 1000353-78.2017.9.21.0003, Rel. Des. Amilcar Macedo, Plenário, j. 07/12/2020. Unânime.

    TJM/SP. 1ªCâmara. RECURSO INOMINADO (CRIME) Nº 000006/2008. Processo nº 046663/2007. Relator: Clovis Santinon. j:03/06/2008. Unânime.

    TJM/MG. 1°Câmara. Apelação. Processo n. 0004149-95.2012.9.13.0002. Relator: Juiz Cel BM Osmar Duarte Marcelino. j: 09/09/2014. p: 12/09/2014. Decisão: Unânime.

    TJM/MG. 1°Câmara. Apelação. Processo n. 0001710-38.2017.9.13.0002. Relator: Des. Osmar Duarte Marcelino. Revisor: Des. Rúbio Paulino Coelho. j: 01/09/2020. p: 17/09/2020. Decisão: Unânime.

    [4] Compete ao STM, conforme art. 6º, I, a, da LOJMU.

    [5] NEVES, Cícero Robson Coimbra. Manual de Processo Penal Militar – Volume Único. 7.ed. Salvador: Juspodivm. 2023. p. 678.

    [6] COSTA, Amauri da Fonseca; Carvalho, Alexandre Reis Carvalho de. Direito Processual Penal Militar. 2.ed. Rio de Janeiro: Método. 2022. p.108.

    [7] Conforme entendimento do STM deve ser aferida a condição de militar (praça) seguindo a teoria da atividade em que a condição de militar se verifica na prática do crime militar, salvo nos casos de insubmissão que apesar da prática como civil o processo se verifica somente na condição de militar e compete o processo e julgado ao Conselho Permanente de Justiça.

    IRDR nº 7000425-51.2019.7.00.0000 e Súmula 17: “Compete aos Conselhos Especial e Permanente de Justiça processar e julgar acusados que, em tese, praticaram crimes militares na condição de militares das Forças Armadas”. (DJe nº 213, de 06.12.19, p. 1.)

    OBS: O próprio STM ressalva esse entendimento quando vai aplicar seu entendimento do IRDR e sumulado prevendo expressamente que “devendo-se, ainda, contextualizar eventuais delitos de insubmissão ou que envolvam o Oficialato”. Dessa forma podemos inferir que se o réu adquire a condição de oficial mesmo após a prática do crime militar a competência não será singular do Juiz Federal da Justiça Militar (caso tenha praticado o crime militar na condição de civil) ou do Conselho Permanente de Justiça (caso tenha praticado o crime militar na condição de praça), mas sim do Conselho Especial de Justiça. E no caso da insumbissão mesmo que o fato tenha sido praticado por civil ele só será processado quando adquire a condição de militar, portanto competência do Conselho Permanente de Justiça.

    STM. AGRAVO INTERNO nº 7000259-48.2021.7.00.0000. Relator(a): Ministro(a) MARCO ANTÔNIO DE FARIAS. Data de Julgamento: 10/06/2021, Data de Publicação: 30/06/2021.

    STM. APELAÇÃO nº 7001229-19.2019.7.00.0000. Relator(a): Ministro(a) MARCO ANTÔNIO DE FARIAS. Data de Julgamento: 15/10/2020, Data de Publicação: 07/12/2020.

    STM. APELAÇÃO nº 7000025-03.2020.7.00.0000. Relator(a) para o Acórdão: Ministro(a) MARCO ANTÔNIO DE FARIAS. Data de Julgamento: 15/10/2020, Data de Publicação: 28/10/2020.

    STM. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO nº 7000228-96.2019.7.00.0000. Relator(a) para o Acórdão: Ministro(a) ARTUR VIDIGAL DE OLIVEIRA. Data de Julgamento: 22/05/2019, Data de Publicação: 27/06/2019.

    [8] A vedação contida no art. 90-A da Lei nº 9.099/95, no que tange aos delitos praticados por militares, está em consonância com as peculiaridades da vida na caserna, pois não é possível vislumbrar proposta tendente a mitigar os princípios da hierarquia e da disciplina. (STF – AgR ARE: 1229712 RJ – RIO DE JANEIRO 7000146-02.2018.7.00.0000, Relator: Min. ALEXANDRE DE MORAES, Data de Julgamento: 05/11/2019, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-254 21-11-2019)

    [9]O art. 122 do Código Penal Militar prevê que os crimes conta a Segurança Externa do País previstos nos arts. 136 a 141 dependem de representação, nos seguintes termos: “Nos crimes previstos nos arts. 136 a 141, a ação penal, quando o agente for militar ou assemelhado, depende da requisição do Ministério Militar a que aquêle estiver subordinado; no caso do art. 141, quando o agente fôr civil e não houver co-autor militar, a requisição será do Ministério da Justiça.”

    [10] ASSIS, Jorge César de. Análise das Recentes Alterações do Código De Processo Penal Comum e a Possibilidade de Aplicação na Justiça Militar. Jusmilitaris. Disponível em: <http://jusmilitaris.com.br/sistema/arquivos/doutrinas/alteracoescppxcppm.pdf>. Acesso em 09. abr. 2024.

    [11] Corte feito por este autor, uma vez que com o advento da Lei n. 13.774, de 19 de dezembro de 2018, o art. 16, I e II, da Lei n. 8.457/92, passou a prever que o Juiz Federal da Justiça Militar será o Presidente do Conselho de Justiça.

    [12] 1. A norma contida no art. 400 do Código de Processo Penal comum aplica-se, a partir da publicação da ata do presente julgamento, aos processos penais militares, aos processos penais eleitorais e a todos os procedimentos penais regidos por legislação especial, incidindo somente nas ações penais cuja instrução não se tenha encerrado. 2. Orientação fixada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC n. 127.900/AM. 3. Interrogatório realizado antes da publicação do precedente. 4. Ordem denegada. (STF – HC: 132078 DF – DISTRITO FEDERAL 9037938-59.2015.1.00.0000, Relator: Min. CÁRMEN LÚCIA, Data de Julgamento: 06/09/2016, Segunda Turma, Data de Publicação: DJe-202 22-09-2016)

    [13] STF. HC 115189, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 03/05/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-198 DIVULG 15-09-2016 PUBLIC 16-09-2016.

    [14] TJM/MG. 1ªCâmara. Apelação. Processo eproc n. 0000664-46.2019.9.13.0001. Relator: Desembargador Fernando Armando Ribeiro. Revisor: Desembargador Osmar Duarte Marcelino. j: 14/03/2023. p: 27/03/2023. Decisão: Unânime.

    [15] As expressões Juiz Militar 04 a 01 representamos de forma impessoal a ordem de votação dos juízes militares do mais moderno (Juiz Militar 04) ao mais antigo (Juiz Militar 01).

    [16] MIGUEL, Claudio Amin; COLDIBELLI, Nelson. Elementos de direito processual penal militar. 4.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2020. p.160.

    [17] TJM/MG. 2ªCâmara. Apelação. Processo eproc n. 2000888-13.2020.9.13.0001. Relator: Desembargador Jadir Silva. Revisor: Desembargador Sócrates Edgard dos Anjos. j: 24/11/2022. p: 30/11/2022. Decisão: Unânime.

    [18]  TJM/SP. Pleno. EMBARGOS INFRINGENTES/NULIDADE CRIMINAL Nº 000183/2016. Processo nº 069270/2013. Relator: Orlando Eduardo Geraldi. j: 05/10/2016. Majoritária.

    [19] LOBÃO, Célio. Direito Processual Penal Militar. 2.ed. São Paulo: Método. 2010. p. 465.

    [20] ROTH, Ronaldo João. A atuação do Conselho de Justiça na Justiça Militar e as formalidades constitucionais e legais: formação, momento de atuação, validade de votação. Observatório da

    Justiça Militar Estadual. 16. nov. 2018. Disponível em: < https://www.observatoriodajusticamilitar.info/single-post/2018/11/16/a-atua%C3%A7%C3%A3o-do-conselho-de-justi%C3%A7a-na-justi%C3%A7a-militar-e-as-formalidades-constitucionais-e-l >. Acesso em 09. abr. 2024.

    [21] LOBÃO, Célio. Direito Processual Penal Militar. São Paulo: Método, 2009, p. 465.

    [22] Ib idem.

    [23] TJM/MG. 2ªCâmara. Apelação. Processo eproc n. 0000690-41.2019.9.13.0002. Relator: Desembargador James Ferreira Santos. Revisor: Desembargador Jadir Silva. j: 09/02/2023. p: 02/03/2023. Decisão: Unânime.

    [24] ASSIS, Jorge César de. Código de processo penal militar anotado – v.1(arts. 1° a 383). 5. ed. Curitiba: Jurua. 2020. p. 31.

    COSTA, Amauri da Fonseca; Carvalho, Alexandre Reis Carvalho de. Resumo de Direito Processual Penal Militar. 1.ed. Leme/SP: JH Mizuno. 2020. p.34-35.

    [25] Que vota primeiro porque não está atrelado à hierarquia e disciplina entre os demais juízes militares. E o juiz togado vota primeiro porque é ele que está mais bem preparado para o enfrentamento das questões jurídicas articuladas pelas partes que irradiará na decisão dos votos dos juízes militares.

    TJM/RS. APELAÇÃO CRIMINAL N.º 4.106/06. Relator: JUIZ-CEL. JOÃO VANDERLAN RODRIGUES VIEIRA. Revisor: JUIZ DR. GERALDO ANASTÁCIO BRANDEBURSKI. j: 28/03/2007. Unânime.

    TJM/RS. APELAÇÃO CRIMINAL N.º 4.071/06. Relator: JUIZ-CEL. SÉRGIO ANTONIO BERNI DE BRUM. Revisor: JUIZ-CEL. ANTONIO CODORNIZ DE OLIVEIRA FILHO. j: 12/09/2007. Unânime.

    TJM/RS. APELAÇÃO CRIMINAL N.º 3.989/06. Relator: JUIZ-CEL. ANTONIO CARLOS MACIEL RODRIGUES. Revisor: JUIZ-CEL. JOÃO VANDERLAN RODRIGUES VIEIRA. j: 04/04/2007. Unânime.

    TJM/SP. 2ªCâmara. APELAÇÃO CRIMINAL Nº 008145/2021. Processo nº 092809/2020. Relator: Enio Luiz Rosseto. j: 30/06/2022. Unânime.

    [26] Art. 535. Distribuída a apelação, irão os autos imediatamente com vista ao procurador-geral e, em seguida, passarão ao relator e ao revisor. (…)

    § 4º A decisão será tomada por maioria de votos; no caso de empate, prevalecerá a decisão mais favorável ao réu.

    A promoção a Coronel continua sendo de livre escolha do Governador após a Lei Orgânica Nacional das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares – Lei n. 14.751/2023?

    Com o advento da Lei n. 14.751/2023 – Lei Orgânica Nacional das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares dos Estados e do Distrito Federal – tem-se discutido se ainda é possível que o Governador do Estado escolha livremente os tenentes-coronéis que serão promovidos a Coronel, conforme ocorre atualmente nos estados diante de previsão em lei que a promoção a Coronel será de livre escolha do Governador.

    A Constituição Federal dispõe no art. 22, XXI, que cabe à União legislar sobre normas gerais de organização e efetivo das instituições militares estaduais, razão pela qual a Lei n. 14.751/2023 é constitucional ao traçar diretrizes gerais de promoção no âmbito das polícias militares e corpos de bombeiros militares e suspende legislação estadual no que contrariar a lei nacional (intepretação extensiva do art. 24, § 4º, da CF).

    O art. 14 da Lei n. 14.751/2023 disciplina que:

    Art. 14. A progressão do militar na hierarquia militar, pelos fundamentos das Forças Armadas, independentemente da sua lotação no quadro de organização, será fundamentada no valor moral e profissional, de forma seletiva, gradual e sucessiva, e será feita mediante promoções, pelos critérios de antiguidade e merecimento, este com parâmetros objetivos, em conformidade com a legislação e a regulamentação de promoções de oficiais e de praças do ente federado, de modo a garantir fluxo regular e equilibrado de carreira para os militares.

    Apresentaremos nesse texto três possíveis soluções fundamentadas que poderão ser escolhidas pelo comando, sem prejuízo de que haja outras interpretações.

    1ª solução: persiste a possibilidade de o Governador escolher livremente os tenentes-coronéis que serão promovidos

    Não obstante o art. 14 da Lei n. 14.751/2023 tenha definido que as promoções serão feitas por antiguidade e merecimento, sendo esta com parâmetros objetivos, a promoção a Coronel goza, ainda que minimamente, de uma valoração política de livre escolha do Governador, pois trata-se de promoção ao último posto da instituição com vinculação direta ao Comando da corporação, que por sua vez é escolhido pelo Governador, sendo possível, nesses casos, que a legislação local preveja exceção à regra contida no art. 14.

    O Governador e os entes federativos gozam de autonomia para definir as normas de promoção na carreira, sendo competência privativa do Governador, enquanto Chefe do Poder Executivo, tratar do regime jurídico e promoção dos militares (art. 61, § 1º, II, “f”, da CF)[1], razão pela qual lei editada pela União pode apenas apresentar regras gerais, o que não impede que o Estado, justificadamente, preveja exceções. Do contrário, haveria ruptura do Pacto Federativo em razão do excessivo intervencionismo da União na autonomia dos entes federativos.

    O art. 9º da Lei n. 14.751/2023 prevê que o Governador do Estado editará lei de iniciativa privativa sobre a organização das instituições militares estaduais, observadas as normas gerais previstas nesta Lei e os fundamentos de organização das Forças Armadas. Como a promoção a Coronel não observa as regras gerais da carreira, por se tratar do acesso ao último posto e das peculiaridades que regem o cargo de Coronel, e tendo como parâmetro os fundamentos de organização das Forças Armadas, que preveem a possibilidade de escolha para o último posto (oficial-general), na forma do art. 60 da Lei n. 5.821/1972, igual entendimento deve ser aplicado às forças reservas e auxiliares do Exército.

    Soma-se ainda o fato do art. 29, § 3º, da Lei n. 14.751/2023 prever que compete aos comandantes-gerais indicar os nomes para nomeação aos cargos que lhes são privativos, realizar a promoção das praças e apresentar ao governador a lista de promoção dos oficiais, nos termos da lei que estabelece as regras de promoção.

    Nota-se que a lei foi clara ao prever que o Comandante-Geral promove as praças, mas em relação aos oficiais apresenta a lista de promoção ao Governador. Portanto, qual é o sentido de a lei exigir a apresentação da lista ao Governador se este não puder modificá-la, incluir ou retirar nomes? Seria o Governador um mero chancelador da lista apresentada? As patentes dos oficiais são conferidas pelos respectivos governadores (art. 42, § 1º, da CF) que possui ampla discricionariedade para promover por merecimento, segundo critérios de conveniência e oportunidade. Do contrário, o ato de promoção seria, por vias indiretas, da própria corporação, de órgão que lhe é subordinado, e não do Governo. Portanto, o Governador do Estado pode escolher livremente os tenentes-coronéis que estão habilitados a serem promovidos a coronéis, mesmo após a Lei n. 14.751/2023.

    O Superior Tribunal de Justiça permite a livre escolha do Governador, conforme decisão abaixo que foi proferida antes da Lei Orgânica Nacional das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares dos Estados e do Distrito Federal, mas pelos fundamentos apresentados, a lógica continua sendo a mesma.

    Por força da legislação sul-matogrossense de regência (Lei Complementar 53/1990, Lei 61/1980 e Decreto 10.768/2002), é inegável o caráter discricionário que informa a promoção por merecimento, assim evidenciado pelo reiterado emprego da expressão ‘de livre escolha do Governador’, tal como utilizada nos aludidos textos legais (…) Como ato discricionário que é, sujeita-se à avaliação – até certo ponto subjetiva – da autoridade competente, que decidirá sobre a conveniência e oportunidade de sua efetivação. Se, por um lado, isto não significa que o Governador possa promover o militar a qualquer tempo, sem observância dos critérios e limites regulamentares (pois discricionariedade não se confunde com arbitrariedade), é igualmente certo, de outra mão, que o Tenente-Coronel constante da Lista de Escolha, que atenda às exigências para ser promovido, não tem, só por isso, direito líquido e certo à desejada promoção ao posto de Coronel (STJ, AgInt no RMS 57.200/MS, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, DJe de 23/08/2018). Esse precedente está em harmonia com precedentes do STJ, proferidos em casos semelhantes: STJ, RMS 27.600/DF, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, DJe de 19/04/2010; AgInt no RMS 62.035/MG, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, SEGUNDA TURMA, DJe de 30/09/2020; AgRg no RMS 45.170/PB, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, DJe de 24/02/2016.

    AgInt no RMS n. 67.511/MS, relatora Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, julgado em 21/8/2023, DJe de 29/8/2023. (destaquei)

    2ª solução: não é mais possível haver a livre escolha do Governador do Estado

    O art. 14 da Lei n. 14.751/2023 não previu exceções nos critérios de escolha para a promoção a Coronel, razão pela qual esta também deve observar parâmetros objetivos.

    Quando a lei diz “critérios de antiguidade e merecimento” significa que a instituição pode se utilizar dos dois critérios para promoção ao longo da carreira e não que ambos devam ser utilizados para o acesso a todos os postos, sendo possível que, por uma escolha política do legislador local, dada a envergadura e relevância do cargo, a promoção a Coronel seja possível apenas por merecimento.

    Na carreira da magistratura a Constituição Federal não deixa dúvidas que a situação é distinta, pois claramente prevê a promoção de entrância para entrância, alternadamente, por antigüidade e merecimento e que o acesso aos “tribunais de segundo grau far-se-á por antigüidade e merecimento, alternadamente, apurados na última ou única entrância” (art.  93, II e III). A alternância nos critérios para promoção não deixa dúvidas da obrigatoriedade de se observar tanto a antiguidade quanto o merecimento, ao passo que o art. 14 da Lei n. 14.751/2023 previu a promoção por antiguidade e merecimento, conforme a legislação local, o que permite ao estado a definição se a promoção a Coronel será por antiguidade e merecimento ou apenas por merecimento ou antiguidade.

    Quando a lei diz que a promoção por merecimento observará “parâmetros objetivos, em conformidade com a legislação e a regulamentação de promoções” significa que os critérios para promoção devem constar objetivamente na lei, como tempo de serviço e no posto/graduação; nota em avaliação de desempenho; cumprimento de metas estipuladas pelo comando; titulação acadêmica; conceito disciplinar; nota da comissão de promoção que pode aferir o relacionamento interpessoal, a capacidade de liderança, a habilidade para lidar com pressões e gerenciar a tropa, a representatividade institucional, a qualidade técnica das decisões tomadas enquanto tenente-coronel e ao longo da carreira etc.

    Nota-se que os parâmetros devem ser objetivamente previstos em lei e no regulamento de promoção, mas haverá uma carga de subjetivismo e discricionariedade fundamentada, até porque a promoção a Coronel, último posto da carreira, exige uma série de habilidades que não são aferíveis por critérios puramente objetivos, como tempo de serviço, titulação acadêmica e conceito disciplinar. A relevância e envergadura do cargo exige uma série de avaliações.

    Enquanto o art. 14 da Lei n. 14.751/2023 prevê que a promoção na carreira militar estadual será por antiguidade e merecimento, a Lei n. 6.880/1980 – Estatuto dos Militares das FFAA – prevê que as promoções serão efetuadas pelos critérios de antiguidade, merecimento ou escolha (art. 60) e a Lei n. 5.821/1972 prevê que as promoções para as vagas de oficiais-generais serão pelo critério de escolha do Presidente da República (arts. 11, “c” e 24), o que concede ao Presidente um alto grau de discricionariedade.

    Como a Lei Orgânica Nacional das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares dos Estados e do Distrito Federal não previu a promoção, para o posto de Coronel, por livre escolha do Governador do Estado, é certo que essa modalidade de promoção, ainda que prevista em lei estadual, não existe mais, pois não foi prevista pelo legislador competente (União) a possibilidade de promover por escolha, como ocorre nas Forças Armadas.

    A promoção por livre escolha do Chefe do Poder Executivo é constitucional, desde que haja previsão em lei, pois a Constituição Federal permite que alguns cargos, em razão da envergadura, responsabilidade e impacto político e social possa ser livremente escolhido, como ocorre com os Ministros do Supremo Tribunal Federal (art. 101, parágrafo único, da CF); Ministros do Tribunal Superior Eleitoral dentre os advogados indicados pelo STF (art. 119, II); Ministros Civis do STM (art. 123, parágrafo único), dentre outros. São atos de alto grau de discricionariedade do Presidente da República, desde que observado os requisitos previstos em lei, como notável saber jurídico e reputação ilibada para o cargo de Ministro do STF.

    Soma-se ainda ao fato de a Constituição Federal prever que na carreira militar federal e estadual (art. 42, § 1º) a lei disporá sobre as situações especiais dos militares, consideradas as peculiaridades de suas atividades, o que inclui a promoção (art. 142, § 3º, X).

    Na hipótese em que a lei estadual prever que a promoção será por merecimento, mediante livre escolha do Governador, ao fundo significa que o critério é escolha do Governador, que recebe o nome de merecimento, sem critério objetivo, o que contraria o que determina a Lei n. 14.751/2023, razão pela qual essa forma de escolher os coronéis que serão promovidos não é mais possível juridicamente.

    Diante desse cenário os estados devem adequar a legislação e o regulamento de promoção para prever critérios objetivos para o acesso ao posto de coronel não sendo mais possível que ao abrir vagas o comando envie para o Governador lista com os tenentes-coronéis selecionados sem que haja fundamentação.

    Assim como ocorre a Comissão de Promoção de Oficiais e de Praças é possível se criar a Comissão de Promoção de Coronéis – CPC. O Alto-Comando ou uma comissão de coronéis pode se reunir para debater e fundamentar, mediante critérios objetivos e impessoais previstos em lei e no regulamento de promoções, como os exemplos citados, quais tenentes-coronéis merecem ser promovidos e lançar as notas de forma fundamentada para, ao final, encaminhá-la para o Governador do Estado que poderá recusar algum nome, desde que haja previsão em lei ou no regulamento, por exemplo, por contrariar o interesse público, mediante justificativa baseada em fatos concretos.

    O Governador do Estado, enquanto Comandante-Supremo das Instituições Militares Estaduais continua livre para escolher, sem fundamentar, o Comandante-Geral, o Chefe do Estado-Maior e o Gabinete Militar, pois são cargos estratégicos e de escolha política do Chefe do Executivo que, inclusive, compõem o seu secretariado. Trata-se, na verdade, de uma promoção horizontal que não exige critério objetivo, apenas a livre escolha do Governador. Não obstante a escolha seja política o exercício do cargo é estritamente técnico.

    Assim é possível afirmar, para a 2ª solução, que:

    1. A promoção a Coronel pode ter como critério apenas o merecimento e depende de critérios objetivos previstos em lei e no regulamento de promoção, não sendo possível que o Governador escolha livremente os tenentes-coronéis que serão promovidos;
    2. Cabe à lei estadual e ao regulamento de promoções definir quais serão os critérios objetivos e dentre esses critérios pode haver uma avaliação subjetiva e discricionária fundamentada, pois é inerente à gestão pública a avaliação de aspectos humanos, como relacionamento interpessoal, liderança, capacidade de articulação estratégica e política, gestão de pessoas, representatividade institucional e o cargo ocupado por Coronel exige grandes habilidades em diversas áreas, o que não é possível de ser aferido matematicamente;
    3. O Governador do Estado pode escolher livremente, sem fundamentar, o Comandante-Geral, o Chefe do Estado-Maior e o Gabinete Militar, desde que já seja Coronel.

    3ª solução: a instituição seleciona os nomes de forma fundamentada e o Governador escolhe livremente dentre os nomes da lista (mescla da 1ª e 2ª soluções).

    Há a possibilidade de se sustentar que a decisão final dos tenentes-coronéis que serão promovidos cabe ao Governador do Estado, desde que siga a lista previamente selecionada de forma fundamentada pelo Comando da Instituição, pois ao mesmo tempo seguiria os critérios objetivos exigidos pelo art. 14 da Lei n. 14.751/2023, conforme exposto na 2ª solução, e ainda preservaria a autonomia do ente federativo e o poder de livre escolha do Governador do Estado, em que pese limitado à lista apresentada pelo comando.

    Essa solução mostra-se plausível por preservar, ao mesmo tempo, a autonomia do ente federativo e a impessoalidade ao restringir os nomes que possam ser escolhidos pelo Governador com fundamento no merecimento.

    A livre escolha do Governador para a ocupação de cargos públicos relevantes ocorre em outras instituições, como a escolha, em lista tríplice, de advogados e membros do Ministério Público para os tribunais de justiça (art. 94, parágrafo único, da CF).

    Nada impede que lei estadual, consoante a Constituição Federal (art. 42, § 1º c/c art. 142, § 3º, X) preveja a possibilidade de o Governador escolher livremente tenentes-coronéis para serem promovidos a Coronel, observada a lista apresentada pela instituição, após critérios objetivos de escolha (art. 14 da Lei n. 14.751/2023).

    A nosso ver a 3ª solução é a mais viável jurídica e politicamente, pois, ao mesmo tempo preserva a autonomia dos entes federativos, não coloca o Chefe do Poder Executivo (Governador do Estado, Comandante-Supremo da Instituição Militar Estadual) em situação subalterna ao comando da corporação e como mero chancelador da lista selecionada pelo comando, como se fosse um órgão meramente homologador e assegura a preservação, na lista encaminhada ao Governador, dos parâmetros objetivos exigidos pela Lei n. 14.751/2023, o que preserva a impessoalidade e os critérios republicanos, bem como a seleção dos tenentes-coronéis aptos a serem promovidos, o que é selecionado pelo comando que sabe quais são os oficiais prontos para serem coronéis, mediante a análise de parâmetros objetivos.

    Trata-se, portanto, de um ato administrativo complexo, que se inicia na instituição militar e é finalizado no Governo do Estado.

    Expostas as possíveis três soluções apresentadas, sem a pretensão de exaurir o assunto, passamos a analisar um ponto muito importante.

    As sessões das comissões de promoção de oficiais e de praças precisam ser abertas ao público ou podem ser sigilosas?

    As deliberações das comissões de promoções de oficiais e de praças, por atos normativos internos e na prática, como regra, são secretas. Essa prática é constitucional ou deveriam ser realizadas a portas abertas?

    No âmbito do Poder Judiciário (art. 93, X c/c art. art. 1º da Resolução n. 106/2010-CNJ) e do Ministério Público (art. 129, § 4º, da CF e art. 2º da Recomendação n. 108/2024-CNMP), as promoções de juízes e promotores devem ocorrer em sessão pública, cuja votação é aberta, nominal e fundamentada, o que atende ao princípio da transparência, publicidade e fundamentação dos atos administrativos.

    A Lei Complementar n. 80/1994 organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescreve normas gerais para sua organização nos Estados e dispõe que a promoção por merecimento dependerá de lista tríplice para cada vaga, organizada pelo Conselho Superior, em sessão secreta, com ocupantes da lista de antiguidade, em seu primeiro terço (art. 76, § 2º), o que é inconstitucional, pois a regra da publicidade aplicável à magistratura aplica-se também à Defensoria Pública (art. 134, § 4º, da CF).

    Nesse sentido, leis locais e atos internos preveem que a sessão da escolha dos membros que serão selecionados para serem promovidos deve ocorrer publicamente, como ocorre na Defensoria Pública de Minas Gerais (art. 64 da Lei Complementar n. 65/2003) e na Defensoria Pública do Rio Grande do Sul (art. 9º da Resolução n. 12/2014).

    Nas demais carreiras, como a de delegado, auditor e analista as promoções não ocorrem como nas instituições militares e da forma como é feita para membros do Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública, em que há uma limitação de vagas para determinados cargos e um número superior de candidatos. Geralmente, nas demais carreiras é necessário observar o tempo de serviço, além de ser aprovado na avaliação de desempenho e realizar determinados cursos.

    No caso das instituições militares há peculiaridades que precisam ser consideradas, pois é a única instituição que possui como pilares constitucionais a hierarquia e disciplina, sendo que para as demais instituições a previsão é legal. Isto é, nas instituições militares a hierarquia e disciplina são pontos fulcrais que não podem ser abalados e caso sejam o Código Penal Militar traz crimes próprios para atos insubordinados.

    A publicidade das deliberações das comissões de promoção pode comprometer a hierarquia e disciplina e abalar a autoridade dos militares em relação aos inferiores hierárquicos, pois um Comandante ou superior hierárquico em relação a outros militares, ao ser avaliado, terá exposta toda a sua carreira e pode haver apontamentos negativos, bem como eventuais infrações disciplinares expostas, o que comprometerá o regular funcionamento da instituição militar que precisa estar com a hierarquia e disciplina inabaladas e, inegavelmente, o efeito disso perante os militares será negativo e prejudicial para a instituição e a sociedade[2]. Dessa forma, há justificativa para que as sessões sejam sigilosas, até porque envolve uma série de avaliações de diversos militares, devendo, entretanto, os atos de promoção ou não serem previamente fundamentados com base em parâmetros objetivos, conforme exposto, e o militar terá acesso.

    Por fim, a Lei n. 14.751/2023 teve vigência imediata, isto é, está em vigor desde o dia 13/12/2023 e quanto aos critérios de promoção não houve vacatio legis.


    [1] STF. Plenário. ADI 3920/MT, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 5/2/2015.

    [2] O art. 23, III e o art. 24, ambos da Lei n. 12.527/2011 permitem o sigilo das informações quando for necessário para a segurança da sociedade e do Estado.