Casas noturnas e de shows podem impedir que policiais entrem armados?

1ª corrente: Não, pois cabe à própria instituição policial definir as hipóteses de porte de arma de fogo por policiais em horário de folga. O Decreto n. 9.847/2019, que regulamenta o Estatuto do Desarmamento, em seu art. 26, § 2º, disciplina que cabe às instituições policiais definirem normas de porte de arma de fogo “fora do serviço, quando se tratar de locais onde haja aglomeração de pessoas, em decorrência de evento de qualquer natureza, tais como no interior de igrejas, escolas, estádios desportivos e clubes, públicos e privados.”

2ª corrente: As casas noturnas e de shows possuem o dever de garantir a segurança daqueles que a frequentam e proibir o acesso de qualquer pessoa armada, inclusive policiais, decorre do zelo e cautela do estabelecimento comercial. O Código de Defesa do Consumidor assegura o direito do consumidor a ter segurança na prestação de serviços e utilização de produtos.

A 2ª corrente prevalece nos tribunais.

FUNDAMENTOS

O porte de arma por policiais, em horário de folga, possui regramento próprio.

O Decreto n. 9.847, de 25 de junho de 2019, que regulamenta a Lei n. 10.826/2003, prevê que cabe às próprias instituições e corporações tratarem do porte de arma de fogo quando o policial estiver fora do horário de serviço em locais onde haja aglomeração de pessoas, em decorrência de evento de qualquer natureza, tais como no interior de igrejas, escolas, estádios desportivos e clubes, públicos e privados.

Art. 26. Os órgãos, as instituições e as corporações a que se referem os incisos I, II, III, V, VI, VII e X do caput do art. 6º da Lei nº 10.826, de 2003, estabelecerão, em normas próprias, os procedimentos relativos às condições para a utilização das armas de fogo de sua propriedade, ainda que fora de serviço.

§ 2º As instituições, os órgãos e as corporações, ao definir os procedimentos a que se refere o caput, disciplinarão as normas gerais de uso de arma de fogo de sua propriedade, fora do serviço, quando se tratar de locais onde haja aglomeração de pessoas, em decorrência de evento de qualquer natureza, tais como no interior de igrejas, escolas, estádios desportivos e clubes, públicos e privados.

Em Minas Gerais, a Resolução n. 5.135, de 08 de outubro de 2021 da Polícia Militar de Minas Gerais, permite o porte de arma por militares em casas noturnas.

Art. 18 – O porte de arma de fogo, com validade em âmbito nacional, é inerente à condição de militar, sendo deferido em razão do desempenho das suas funções institucionais.

§ 3º – Ao portar arma de fogo nos locais onde haja aglomeração de pessoas, em virtude de evento de qualquer natureza, público ou privado, tais como interior de igrejas, templos, escolas, clubes, eventos culturais e outros similares, o militar, não estando em serviço, deverá obedecer às seguintes normas gerais, além de outras previstas em normas específicas:

I – não conduzir a arma de fogo ostensivamente;

II – cientificar o policiamento no local, se houver, fornecendo nome, posto ou graduação, Unidade e a identificação da arma de fogo;

III – observar as determinações das autoridades competentes responsáveis pela segurança pública, quanto à restrição ao porte de arma de fogo no local do evento.

Cada policial deve observar as normas da própria instituição que, muitas vezes, possuem, regras semelhantes à da Polícia Militar mineira. A inobservância da norma institucional, como portar arma de fogo em desacordo com ato normativo do comando configura porte ilegal de arma de fogo, por estar em desacordo com determinação regulamentar.

Mesmo a regra sendo muito clara ao permitir que o policial pode entrar armado em casas noturnas, há entendimento que ainda assim as casas noturnas podem proibir, em razão do dever de segurança que o estabelecimento possui com os consumidores que estiverem na casa noturna (art. 6º, I, do CDC).

Nesse sentido há diversos julgados que entendem pela legalidade da proibição de que policiais entrem armados em casas noturnas, mesmo a norma sendo clara que é possível.

No julgado a seguir desconsiderou a autorização institucional.

A edição de portaria pelo Comandante-Geral da Polícia Militar autorizando policiais militares a portarem arma de fogo, fora do horário de serviço, é irrelevante e não gera a obrigação de aceitação pelo particular. Aliás, a proibição do ingresso de pessoas armadas em casa noturna constitui zelo e cautela adotada pelo proprietário do estabelecimento para resguardar a integridade física dos frequentadores.

(TJ-SP – APL: 00011636120138260001 SP 0001163-61.2013.8.26.0001, Relator: J.L. Mônaco da Silva, Data de Julgamento: 24/02/2016, 5ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 02/03/2016)

Na decisão abaixo considerou não haver dano moral no fato de policial ser impedido de entrar armado.

Autor que é policial militar e foi impedido de entrar em casa noturna armado, fora do horário de serviço. Prerrogativa de portar arma de fogo fora do serviço que é conferida aos policiais militares pelo estatuto do desarmamento. Ré que, apesar de ser local aberto ao público, pode instituir suas regras próprias de segurança. Ausência de tumulto ou atitude dos funcionários da requerida que colocasse o autor em situação vexatória. Autor que apenas foi orientado a deixar a arma para que pudesse adentrar o local. Falta de comprovação de conduta ilícita. Ausência de dever de indenizar.. Sentença mantida. Recurso não provido. (TJ-SP – APL: 00044312320098260597 SP 0004431-23.2009.8.26.0597, Relator: Fernanda Gomes Camacho, Data de Julgamento: 29/06/2016, 5ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 29/06/2016)

Em outra decisão considerou ser lícito que casas noturnas impeçam o ingresso de policiais armados, em razão da segurança de todos os frequentadores do local.

Em se tratando do desempenho de atividade meramente privada, no desenrolar da prestação de serviço de entretenimento, não se mostra desarrazoada a proibição de acesso de pessoas armadas, dentre elas policiais militares que não estejam em serviço, por óbvias razões voltadas à segurança de todos os consumidores presentes ao evento. (TJ-SC – RI: 00038179220158240005 Balneário Camboriú 0003817-92.2015.8.24.0005, Relator: Clarice Ana Lanzarini, Data de Julgamento: 25/06/2018, Sétima Turma de Recursos – Itajaí)

Veja na sentença a seguir os fundamentos para entender que a casa noturna pode proibir o ingresso de policiais armados:

Relativamente ao fato de o reclamante desempenhar a função de policial militar e possuir porte especial de armas, entendo que tal fato não constitui óbice à iniciativa da parte requerida em impedir a entrada de pessoas armadas em suas instalações.

A conduta de segurança da casa noturna, ainda que não respaldada em lei, é plenamente justificável, tendo em vista o potencial risco causado pela entrada de cidadão armado em suas instalações, invariavelmente repletas de pessoas, de madrugada, onde é normal o consumo de bebidas alcoólicas e confusões entre os frequentadores.

No mais, insta salientar que o fato de a demandada ter oferecido o cofre, ou não, a promovente, para depósito da arma, não tem o condão de alterar a realidade dos fatos.

(PROCESSO: 9042868.66.2016.813.0024 – Procedimento do Juizado Especial Cível de Belo Horizonte/MG, sentença de 18 de outubro de 2017)

Prevalece nos tribunais que as casas noturnas podem impedir que policiais entrem armados, em razão do dever de segurança, cautela e zelo que as casas noturnas possuem com os frequentadores. Nesses casos o policial deve deixar a arma no cofre e se não houver cofre não poderá entrar na casa noturna.

Em um caso concreto ocorrido em Fortaleza, consta no acórdão da 6ª Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do Estado do Ceará, (Autos n. 3000492-17.2020.8.06.0221) que um Delegado de Polícia tentou forçar a entrada “na ânsia de ingressar a todo custo na casa de show, e não aceitando os argumentos dos seguranças, procurou forçar a entrada utilizando-se do próprio pé para impedir o fechamento da porta que dava acesso ao interior da casa”, razão pela qual não seria devido o dano moral, pois a conduta foi provocada pelo próprio autor, em que pese a sentença ter reconhecido o dano moral. A sentença foi reformada. Na fundamentação do voto reconhece o direito ao porte de arma do policial e cita o art. 157 do Estatuto da Polícia Civil do Ceará (Ao policial civil é facultado o livre ingresso em todas as casas de diversões e lugares sujeitos à fiscalização da polícia, bem como portar arma para sua defesa pessoal e da comunidade.).

Muitos policiais perguntam sobre o que fazer se a casa noturna impedir o acesso de policiais armados, mesmo a norma sendo clara que é possível. Questionam se há crime de constrangimento ilegal ou de desobediência.

Não há constrangimento ilegal, pois nesses casos os seguranças da casa noturna não utilizam de violência, grave ameaça ou outro meio que reduza a capacidade do policial para impedir de fazer o que a lei permite. Além do mais, o principal argumento, é que prevalece na justiça que as casas noturnas podem barrar o ingresso de policiais armados.

Não há desobediência, pois o policial, nesses casos, atua como particular e não dá ordens para tutelar interesse privado.

Pode-se falar em desobediência se uma viatura policial de serviço se deslocar ao local e dar ordens para autorizar a entrada do policial armado, já que a norma é clara ao permitir o ingresso armado, contudo, como se viu, os julgados são em sentido diverso, logo, prender por desobediência, na justiça, pode ser interpretado como ilegal.

Não há abuso de autoridade se o policial insistir em entrar armado, pois a divergência na interpretação da lei não enseja abuso (art. 1º, § 1º, da Lei n. 13.869/2019). O policial não deve forçar o ingresso armado nem dar voz de prisão para o segurança da casa noturna, sob a alegação de desobediência, pois atua fora da função e por interesse particular, o que poderá ser interpretado como crime de abuso de autoridade previsto no art. 33, parágrafo único, da Lei n. 13.869/2019, por se valer de seu cargo, função para obter privilégio indevido, já que, como se viu, prevalece a possibilidade das casas noturnas impedirem o acesso de policiais armados.

Então, o que fazer nesses casos? Não sendo autorizado, não resta outra opção a não ser acatar, sem prejuízo de levar o caso ao Poder Judiciário com a expectativa de provocar a discussão e modificar os entendimentos até então expostos, o que acredito ser pouco provável.

De toda forma, após o triste episódio ocorrido em São Paulo, em que um tenente da PMESP matou um lutador de jiu-jítsu em uma casa noturna, mediante disparo de arma de fogo, certamente, os tribunais vão pacificar a discussão pela possibilidade das casas noturnas vetarem o acesso de pessoas armadas, ainda que sejam policiais.

Porte e posse de arma de fogo de fabricação caseira

A arma de fogo caseira/artesanal é aquela produzida de forma irregular por quem tem conhecimento técnico, como um armeiro ou um artesão. Fabricam a arma em casa ou no local de trabalho, o que não é autorizado pelo Estado.

Veja nas fotos a seguir algumas armas caseiras/artesanais.

Fonte: PMDF
Fonte: PMTO

Qual crime pratica o agente que porta ou possui essas armas?

Como essas armas não possuem sinal de identificação pode induzir a responder que pratica o crime previsto no art. 16, § 1º, IV, do Estatuto do Desarmamento.

Art. 16. Possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição de uso restrito, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar:      (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)

Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.

§ 1º Nas mesmas penas incorre quem:

IV – portar, possuir, adquirir, transportar ou fornecer arma de fogo com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado;

Ocorre que esse tipo penal abrange somente as armas que possuem numeração, marca ou sinal de identificação, que são as feitas legalmente, uma vez que as armas de fabricação caseira, desde quando são feitas, não possuem qualquer numeração ou controle.

Somente é possível raspar, suprimir ou adulterar numeração, marca ou sinal de identificação se forem existentes. A inexistência desses dados desde a origem da arma, como é o caso das armas de fabricação caseira, afasta a prática do art. 16, § º, IV, da Lei n. 10.826/03.

Dessa forma, o infrator que possui ou porta arma de fabricação caseira poderá praticar o crime de posse irregular de arma de fogo de uso permitido (art. 12), porte ilegal de arma de fogo de uso permitido (art. 14) ou posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito (art. 16), a depender do calibre da arma.

O agente estava com arma caseira dentro de casa? Sim. Qual era o calibre? Se for calibre de uso permitido, artigo 12 da Lei n. 10.826/03 (posse ilegal de arma de fogo de uso permitido). Se for calibre de uso restrito, artigo 16 da Lei n. 10.826/03 (posse ilegal de arma de fogo de uso restrito).

O agente estava com arma caseira na rua? Sim. Qual era o calibre? Se for calibre de uso permitido, artigo 14 da Lei n. 10.826/03 (porte ilegal de arma de fogo de uso permitido). Se for calibre de uso restrito, artigo 16 da Lei n. 10.826/03 (porte ilegal de arma de fogo de uso restrito).

JULGADOS

O crime do art. 16, parágrafo único, inc. IV, da Lei nº 10.826/03, deve ser desclassificado para o delito previsto no art. 12 da mesma lei, quando a arma apreendida for de fabricação caseira, porquanto não há número de série e marca a serem suprimidos ou adulterados.

TJ-MG – APR: 10720180075197001 Visconde do Rio Branco, Relator: Octavio Augusto De Nigris Boccalini, Data de Julgamento: 26/01/2021, Câmaras Criminais / 3ª CÂMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 05/02/2021.

Desclassificação para o delito do art. 14 da Lei n. 10.826/03. Se a arma é de fabricação caseira não possui, por óbvio, número de série e marca, não podendo, assim, a conduta ser enquadrada como posse ilegal de arma de numeração raspada, uma vez que não há numeração a ser adulterada. 2

TJ-MG – APR: 10567130029802001 Sabará, Relator: Denise Pinho da Costa Val, Data de Julgamento: 14/02/2017, Câmaras Criminais / 6ª CÂMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 03/03/2017.

Tratando-se de arma de fogo artesanal, não se espera que tenha a numeração de série impingida quando da fabricação industrial. No caso dos autos possuindo o recorrente em sua residência arma de fogo artesanal, responde pela figura delitiva contida no art. 12 da Lei n. 10.826/03. Recurso provido.

TJ-MT – APL: 00007729020148110033 MT, Relator: JUVENAL PEREIRA DA SILVA, Data de Julgamento: 05/09/2018, TERCEIRA CÂMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 14/09/2018.

Não se pode confundir o comportamento de portar arma artesanal que nunca teve sinal identificador com aquele de portar armamento cujo número de série ou marca foram posteriormente suprimidos exatamente para embaraçar o controle estatal. Se a falta de numeração característica das armas de fabricação caseira ou artesanal foi a única circunstância utilizada pelo Órgão a quo para efetuar a tipificação da conduta como porte de arma de fogo de uso restrito (art. 16, Parágrafo único, inc. IV, da Lei nº 10.826/03), impõe-se a reforma do decisum , com a subsequente desclassificação para o art. 14 do mesmo Diploma Legal (isto é, porte ilegal de arma de fogo de uso permitido).

TJ-ES – APL: 00219272620068080030, Relator: CATHARINA MARIA NOVAES BARCELLOS, Data de Julgamento: 17/07/2013, PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 25/07/2013.

A posse irregular de arma de fogo artesanal caracteriza o crime previsto no artigo 12, da Lei nº 10.826/03.

TJ-SP – APL: 00016045720128260654 SP 0001604-57.2012.8.26.0654, Relator: Laerte Marrone, Data de Julgamento: 09/10/2014, 9ª Câmara de Direito Criminal, Data de Publicação: 13/10/2014.