A busca pessoal aleatória em aeroportos e aviões

Recentemente, houve muita polêmica a respeito de um passageiro em um avião que foi abordado pela Polícia Federal, cujo fundamento foi a aleatoriedade, isto é, foi sorteado para passar por uma busca pessoal, conforme vídeo abaixo.

Essa conduta é permitida?

A Convenção sôbre Aviação Civil Internacional, concluída em Chicago a 7 de dezembro de 1944 e firmado pelo Brasil, em Washington, a 29 de maio de 1945 (Decreto n. 21.713/1946) prevê que “As leis e regulamentos de um Estado contratante, sôbre a entrada ou a saída de seu território de passageiros, tripulação, ou carga de aeronaves (tais como regulamentos de entrada, despacho, imigração, passaportes, alfândegas e quarentena) deverão ser cumpridas ou observadas pelos passageiros, tripulação ou carga, ou por seu representante, tanto por ocasião de entrada como de saída ou enquanto permanecer no território dêsse Estado.” (art. 13)

O Código Brasileiro de Aeronáutica – Lei n. 7.565/1986 – diz que “A pessoa transportada deve sujeitar-se às normas legais constantes do bilhete ou afixadas à vista dos usuários, abstendo-se de ato que cause incômodo ou prejuízo aos passageiros, danifique a aeronave, impeça ou dificulte a execução normal do serviço.” (art. 232)

O Decreto Federal n. 11.195/2022 trata do Programa Nacional de Segurança da Aviação Civil contra Atos de Interferência Ilícita – PNAVSEC – e prevê a possibilidade de busca aleatória: “Como medida dissuasória adicional de segurança, em razão do nível de ameaça e de fatores de risco, e em frequência compatível com os riscos envolvidos, poderá ser aplicada inspeção de segurança aleatória, incluídas a busca pessoal e a inspeção manual de bagagens, mesmo após a realização de inspeção de segurança da aviação civil por meio de equipamentos”. (art. 92).

A Lei n. 11.182/2005 prevê que cabe à ANAC expedir regras sobre segurança em área aeroportuária e a bordo de aeronaves civis, porte e transporte de cargas perigosas, inclusive o porte ou transporte de armamento, explosivos, material bélico ou de quaisquer outros produtos, substâncias ou objetos que possam pôr em risco os tripulantes ou passageiros, ou a própria aeronave ou, ainda, que sejam nocivos à saúde (art. 8º, XI).

A Agência Nacional de Aviação Civil é uma agência reguladora federal e possui poder normativo e, em cumprimento ao previsto em lei (art. 8º, XI, da Lei n. 11.182/2005) trata dos procedimentos de segurança de em aviação civil na Resolução n. 515/2019 que prevê a possibilidade de busca pessoal aleatória, a saber:

Art. 3º Os procedimentos a serem observados no canal de inspeção de segurança da aviação civil contra atos de interferência ilícita devem atender às seguintes disposições:

V – aleatoriamente e sempre que julgado necessário, os passageiros devem passar por medidas adicionais de segurança, que podem incluir busca pessoal, inspeção manual da bagagem de mão e a utilização de detectores de traços de explosivos – ETD e outros equipamentos de segurança;

Portanto, uma pessoa que passa pelo raio-X no aeroporto pode ser abordada, caso seja sorteada pelo sistema ou se for avaliado que é necessário abordar determinada pessoa.

A busca pessoal deverá ser realizada por APAC do mesmo sexo, devendo ser realizada em local público ou, a pedido do inspecionado, em sala reservada, com discrição e na presença de testemunha (art. 3º, XV, da Resolução n. 515/2019).

Para que o Agente de Proteção da Aviação Civil – APAC – realize a busca pessoal é necessário que haja consentimento do inspecionado (art. 3º, § 1º, da Resolução n. 515/2019).

O art. 232, § 1º, da Código Brasileiro de Aeronáutica prevê que “A autoridade de aviação civil regulamentará o tratamento a ser dispensado ao passageiro indisciplinado, inclusive em relação às providências cabíveis.”

Caso o passageiro recuse a submeter-se a busca pessoal, seu acesso à sala de embarque deverá ser negado e o APAC deverá acionar o órgão de segurança pública responsável pelas atividades de polícia no aeroporto para avaliar a situação (art. 3º, § 2º, da Resolução n. 515/2019).

A Polícia Federal ao ser acionada poderá impedir que o passageiro entre na sala de embarque e determinar que se retire sem realizar a busca pessoal; autorizar que prossiga para a sala de embarque após a busca pessoal ou até mesmo realizar busca pessoal contra a vontade do passageiro, se houver, neste caso, fundada suspeita (art. 244 do CPP).

A pessoa ao comprar passagem de avião sabe que ela poderá ser fiscalizada ao entrar no aeroporto e não poderá negar que sofra os procedimentos de segurança, como busca pessoal (art. 232 do CBA; art. 13 do Decreto n. 21.713/1946; art. 92 do Decreto Federal n. 11.195/2022; art. 3º, V, da Resolução n. 515/2019 da ANAC).

Diante de todo esse cenário, a respeito do caso ocorrido e que viralizou nas redes sociais, tenho que:

a) Se o passageiro tiver sido escolhido aleatoriamente para passar por uma busca pessoal, mas não aceitou ou não esperou, a conduta da Polícia Federal ao entrar na aeronave para revistá-lo foi correta;

b) Se o passageiro não tiver sido escolhido aleatoriamente, tendo a Polícia Federal o escolhido sem critérios, sem justificativa, sem fundamentar, a conduta da Polícia Federal foi errada;

Em se tratando de segurança de aviação civil é perfeitamente possível que ocorram buscas pessoais preventivas. É necessário um alto rigor na segurança de aviação civil, pois qualquer deslize ou falha pode acarretar em consequências catastróficas e quem vai viajar de avião já sabe de antemão que poderá sofrer buscas pessoais.

A busca pessoal prevista no art. 244 do Código de Processo Penal é apenas uma das buscas previstas no ordenamento jurídico, sendo perfeitamente possível a previsão de outras buscas. Alguns exemplos de buscas preventivas:

a) Busca antes de entrar no estádio de futebol ou recinto esportivo (Art. 13-A, III, da Lei n. 10.671/13).

b) Busca realizada por autoridade aduaneira em veículo do exterior com o fim de prevenir e reprimir tráfico e infrações à lei (Art. 37, § 4º, do Decreto-Lei n. 37/66).

c) Busca realizada por particular antes de adentrar em casa noturna. Esta possui natureza privada e decorre de um contrato (Art. 6º, I, do CDC – segurança do serviço prestado).

A polícia pode se utilizar da “cama de faquir” para forçar a parada de veículo em fuga?

O que é cama de faquir?

É um dispositivo contendo agulhas de aço que faz o papel de impedir que um veículo prossiga ao ter os pneus furados. Trata-se de um limitador de fuga. O vídeo a seguir demonstra bem o que é a “cama de faquir” em uma utilização real.

Quando um veículo está em fuga, a polícia tem o dever de perseguir o veículo com o fim de realizar a abordagem. Nestas situações a polícia pode lançar na via pública pregos com o fim de furar os pneus e o veículo parar? Sim!

Trata-se de uma atuação policial fundada no estrito cumprimento do dever legal, pois, por lei, a polícia deve abordar os autores de infração penal ou quando houver fundada suspeita de que o agente está a praticar ou que acabou de cometer infração penal (arts. 240, § 2º e 302, ambos do CPP).

Os agentes que estão em um veículo em fuga, claramente, estão em situação de fundada suspeita e devem ser abordados pela polícia que está autorizada a se utilizar dos meios necessários e proporcionais para parar o veículo.

Nesse sentido, a Polícia Rodoviária Federal prevê institucionalmente a utilização da “cama de faquir” e recomenda a sua utilização para furar os pneus de carros, ônibus e caminhões, mas não de motos, em razão do grande risco que se tem do piloto em alta velocidade se acidentar e morrer ou sofrer sérias lesões.

A Polícia Militar de Minas Gerais também prevê a utilização da “cama de faquir” no Manual Técnico-Profissional n. 3.04.04/2020-CG.

O emprego do dispositivo está associado à necessidade de fazer com que veículos em fuga no trânsito interrompam seu fluxo, por meio da dificuldade gerada para a manutenção da estabilidade veicular em razão da perfuração dos pneus do veículo, e com isso, permitir a abordagem dos ocupantes e sua consequente prisão. Na doutrina policial os empregos desses limitadores de fuga estão alinhados às atividades repressivas, especialmente durante perseguições policiais.

Em síntese, trata-se de um procedimento policial legal, proporcional e os policiais que utilizam estão no ESTRITO CUMPRIMENTO DO DEVER LEGAL.

O militar pode realizar busca pessoal no superior hierárquico?

O Código de Processo Penal Militar manda observar expressamente a hierarquia somente para as buscas pessoais que ocorrerem no decorrer do inquérito policial militar. Nada fala quanto à observância da hierarquia nas demais buscas pessoais, como as que ocorrem fora do inquérito, a exemplo da abordagem policial a uma pessoa em via pública que se encontra em situação de fundada suspeita. O Código de Processo Penal comum também silencia a respeito. Portanto, em razão da ausência de previsão legal não há óbices, em um primeiro momento, que militares realizem busca pessoal em superiores hierárquicos em razão de fundada suspeita.

Ocorre que a hierarquia e disciplina militares, são pilares institucionais previstos na Constituição Federal e se irradia para todas as relações entre os militares, seja nos horários de trabalho ou de folga, seja na vida profissional ou pessoal.

O subordinado hierárquico deve chamar o superior de “Senhor”, mesmo se encontrá-lo em ambiente privado (art. 9º do RCONT), salvo se nas relações da vida pessoal for dispensado pelo superior.

Quando um subordinado hierárquico se depara com um superior em uma solenidade ou reunião, ainda que particular, deve, obrigatoriamente, apresentar-se ao superior de maior hierarquia presente (art. 34, IX, do RCONT).

O superior hierárquico tem direito à continência, o que constitui um dever do subordinado hierárquico que estiver fardado, ainda que o superior esteja em trajes civis e fora do horário de serviço, desde que seja reconhecido e identificado (art. 16, X e XI, do RCONT). Em se tratando de superior que o militar deve obrigatoriamente reconhecê-lo, dispensa-se a identificação. Por exemplo, todos militares são obrigados a reconhecerem o seu próprio comandante e o Comandante-Geral da instituição a que pertence.

O Código de Processo Penal Militar, visando preservar a hierarquia, em diversos momentos assegura a preservação da hierarquia e disciplina, como prever que a prisão de militar deverá ser feita por outro militar de posto ou graduação superior; ou, se igual, mais antigo (art. 223) e que a busca domiciliar ou pessoal no curso do inquérito, será executada por oficial, designado pelo encarregado do inquérito, atendida a hierarquia do posto ou graduação de quem a sofrer, se militar (art. 184). Prevê ainda que o preso militar, ao ser apresentado em juízo, será acompanhado por militar de hierarquia superior (art. 73)

Dessa forma, tenho que a previsão contida no art. 184 do CPPM deve se irradiar para outros tipos de buscas pessoais, em razão de aplicação extensiva, pois visa preservar a hierarquia e disciplina ao se realizar busca pessoal em superior hierárquico, situação que também deve ser preservada nas buscas que ocorrem em razão de fundada suspeita na rua. 

Nesses casos de busca pessoal em superior hierárquico, dada a situação de busca que não pode esperar um tempo maior, pois exige atuação imediata, não havendo superior disponível para a sua realização, deve ser feita por subordinado hierárquico. Aplica-se, mutatis mutandis, a lógica do art. 249 do Código de Processo Penal que prevê que “A busca em mulher será feita por outra mulher, se não importar retardamento ou prejuízo da diligência.” Isto é, a busca em superior hierárquico do militar que realizou a abordagem deve ser feita por outro militar, superior hierárquico ao abordado ou se par, mais antigo, salvo se no momento da busca não houver superior disponível para a realização da busca e se este ao ser acionado for demorar para comparecer fisicamente ao local da abordagem.

Abordagem policial e busca pessoal

O artigo a seguir é de autoria do Rodrigo Foureaux e de Eduardo Godinho e foi publicado no livro “ABORDAGEM POLICIAL E DIREITOS HUMANOS”, organizado por Sérgio Carrera Neto e Frederico Afonso Izidoro.

Clique aqui para acessar o artigo ou se preferir leia abaixo.

Introdução

No dia a dia qualquer pessoa está sujeita a ser abordada na rua pela polícia. A abordagem policial é uma realidade na vida dos policiais e de um número significativo de pessoas.

A lei autoriza a realização da abordagem, conforme será visto, mas não disciplina como as abordagens devem ocorrer, o que coube às instituições policiais disciplinarem.

Abordar significa aproximar-se, verificar. Abordagem é o ato de aproximação, de verificação. Abordagem policial é aquela realizada por uma das instituições policiais previstas no art. 144 da Constituição Federal.

A abordagem policial é um instrumento operacional de trabalho utilizado pela polícia, o que inclui todos os órgãos policiais do art. 144 da Constituição Federal ou instituições com poder de polícia, dentro de suas atribuições, como a Polícia Legislativa, Polícia Judicial, Guarda Municipal, com o fim de fiscalizar e garantir a segurança pública, prevenir e reprimir o crime e pode ser efetuada em pessoas, bens e objetos e possui toda uma técnica, de acordo com as circunstâncias de cada caso. A entonação da voz, a postura, a manutenção da arma no coldre ou o saque e a direção da arma de fogo são alguns aspectos que devem ser avaliados no momento da abordagem policial.

O conceito de abordagem policial é mais amplo do que o de busca pessoal, pois aquele pode ocorrer em imóveis. Tome como exemplo uma denúncia de que foi instalada uma bomba em um edifício e a polícia necessitará realizar buscas no prédio. É uma forma de abordagem policial em edifício. Enquanto a busca pessoal refere-se à busca a pessoas e a seus pertences (roupas, veículos), a abordagem policial abrange a busca pessoal, domiciliar, a edifícios.

A busca pessoal é invasiva e impõe restrições a direitos individuais, como a liberdade de ir e vir sem sofrer ingerências estatais (art. 5º, XV, da CF) e o direito à intimidade e vida privada (art. 5º, X, da CF), devendo, portanto, ser realizada somente em casos justificáveis.

Conceito e classificação da busca pessoal

A busca pessoal é aquela realizada sobre o corpo do indivíduo e em seus pertences, como mochilas, bolsas, malas e veículos e tem por finalidade fiscalizar e garantir a segurança pública, prevenir e investigar o crime.

A busca pessoal se estende aos pertences pessoais do indivíduo e quando decorrer de mandado de prisão autoriza, inclusive, a apreensão do aparelho celular, ainda que não haja um mandado de busca e apreensão anterior que autorize a apreensão do celular, já que o cumprimento de mandado de prisão, por si só, na forma do art. 244 do Código de Processo Penal, autoriza a busca pessoal, a qual, por sua vez, abrange pertences pessoais, dentre os quais se incluem celulares que poderão ser apreendidos pelos policiais e, posteriormente, ser solicitada autorização judicial para acessar as informações contidas no aparelho celular. Como a busca pessoal significa a realização de busca não somente no corpo da pessoa, mas também em seus pertences, seria de toda inócua a busca no celular se não fosse possível apreendê-lo para posterior investigação. Essa possibilidade de apreensão do aparelho celular em razão de busca pessoal deve ocorrer somente quando houver mandado de prisão ou de busca domiciliar ou situação de flagrante delito, não sendo possível na hipótese de busca decorrente de fundada suspeita em que nada de ilícito é localizado com o agente.[1]

O art. 180 do Código de Processo Penal Militar preceitua que a busca pessoal consistirá na procura material feita nas vestes, pastas, malas e outros objetos que estejam com a pessoa revistada e, quando necessário, no próprio corpo.

A Resolução n. 515, de 08 de maio de 2019, da Agência Nacional de Aviação Civil, define, no art. 3º, § 1º, a busca pessoal como sendo a revista do corpo de uma pessoa, suas vestes e demais acessórios, realizada por autoridade policial ou por Agente de Proteção da Aviação Civil, neste caso com consentimento do inspecionado.

A busca pessoal subdivide-se da seguinte forma:

            a) Quanto à natureza jurídica: busca pessoal administrativa e processual;

            b) Quanto ao contato corporal: imediata e mediata;

            c) Quanto ao grau de invasividade: ligeira, minuciosa e completa;

            d) Quanto ao sujeito ativo da medida: estado ou particular;

            e) Quanto ao sujeito passivo da medida: individual ou coletivo;

            f) Quanto à decisão da execução da busca: com e sem autorização judicial.

            a) Quanto à natureza jurídica: busca pessoal preventiva e processual;

A busca pessoal preventiva ou administrativa, ao lado do policiamento ostensivo, é uma das formas de se preservar a incolumidade das pessoas e o patrimônio. Não está prevista no Código de Processo Penal e decorre do poder de polícia, da lei ou em razão de contrato.

O poder de polícia autoriza que a Administração Pública, amparada pelo ordenamento jurídico, utilize-se de mecanismos que restrinjam e limitem o exercício de direitos em busca da promoção do bem comum e do interesse social.

A realização de blitz de trânsito pela Polícia Militar decorre da lei (arts. 23, III e 269, § 1º, ambos do CTB) e do exercício do poder de polícia e as buscas realizadas durante essas blitze possuem natureza preventiva. Em que pese a realização de blitz possuir como finalidade principal a fiscalização do trânsito e da regularidade do motorista e do veículo, as buscas eventualmente realizadas, sobretudo quando se verifica, no corpo do motorista ou dentro do veículo, se há objetos que possam colocar a integridade física dos policiais, possuem natureza preventiva e como fundamento o poder de polícia, por uma questão de segurança, em razão dos riscos decorrentes de uma fiscalização policial, o que deve ser verificado pelos próprios policiais que realizam a blitz, sobretudo se a blitz ocorrer em local de rota de fuga ou de alta incidência criminal.

Deve-se levar em consideração, inclusive, a real possibilidade de o policial constatar ilegalidades e ter que adotar providências criminais ou administrativas e uma situação, aparentemente, tranquila, pode ganhar contornos trágicos. Eventual busca pessoal realizada por policiais em blitze, quando houver risco para a segurança dos policiais e de terceiros, são legais, pois decorre do poder de polícia e possui finalidade preventiva, assim como ocorrem nas buscas pessoais realizadas ao se dirigir ao aeroporto ou em veículos procedentes do exterior, pelas autoridades aduaneiras.

O art. 13-A, III, da Lei n. 10.671, de 15 de maio de 2013, que dispõe sobre o Estatuto do Torcedor, prevê como condição de acesso e permanência do torcedor no recinto esportivo o consentimento com a revista pessoal de prevenção e segurança. Dessa forma, aquele que se recusa a se submeter a revista pessoal para ingressar em recinto esportivo (estádio de futebol, de vôlei) pode ter a entrada impedida.  Trata-se de uma busca pessoal preventiva que decorre da lei.

O Decreto-Lei n. 37, de 18 de novembro de 1966, reorganiza os serviços aduaneiros, e prevê no art. 37, § 4º, que a autoridade aduaneira poderá proceder a buscas em veículos que forem necessárias para prevenir e reprimir a ocorrência de infração à legislação, sejam os veículos procedentes do exterior ou a ele destinado, o que cabe à Equipe de Vigilância e Repressão. Trata-se de uma busca pessoal preventiva de natureza administrativa que decorre do poder de polícia.

O Decreto Federal n. 7.168, de 5 de maio de 2010, dispõe sobre o “Programa Nacional de Segurança da Aviação Civil Contra Atos de Interferência Ilícita” e o art. 116 dispõe que a busca pessoal deve ser realizada com o propósito de identificar qualquer item de natureza suspeita em passageiros sobre os quais, após os procedimentos de inspeção de segurança, permaneça a suspeição, sendo disciplinado pelo art. 117 que poderá ocorrer a inspeção manual da bagagem para identificar qualquer item de natureza suspeita que seja detectado durante a inspeção de bagagem de mão por intermédio do raio-x ou detector de traços de explosivos.

A Resolução n. 515, de 08 de maio de 2019, da Agência Nacional de Aviação Civil, dispõe sobre os procedimentos de inspeção de segurança da aviação civil contra atos de interferência ilícita nos aeroportos e prevê a possibilidade de se realizar a busca pessoal nas seguintes hipóteses:

            a) caso o alarme sonoro do pórtico detector de metais seja disparado, o passageiro deverá observar as orientações do Agente de Proteção da Aviação Civil relacionadas aos procedimentos necessários para resolução do alarme, que poderão incluir nova passagem pelo pórtico, inspeção por meio de detector manual de metais, inspeção por meio de escâner corporal e busca pessoal (art. 3º, IV);

            b) aleatoriamente e sempre que julgado necessário, os passageiros devem passar por medidas adicionais de segurança, que podem incluir busca pessoal (art. 3º, V);

            c) o passageiro que, por motivo justificado, não puder ser inspecionado por meio de equipamento detector de metal, a exemplo de passageiro com material implantado, deverá submeter-se a busca pessoal (art. 3º, X);

            d) as mulheres grávidas, caso solicitem, podem ser inspecionadas por meio de detector manual de metais ou por meio de busca pessoal (art. 3º, XI).

Na hipótese em que houver suspeita de porte de o objeto ilícito ou tentativa de ocultá-los, sendo estes considerados aqueles cujo porte ou posse sejam proibidos por lei, o acesso à sala de embarque deverá ser negado e o órgão de segurança pública responsável pelas atividades de polícia no aeroporto deverá ser acionado (art. 3º, XIV, “b” e “c”).

As buscas pessoais realizadas no aeroporto também são, como regra, de natureza preventiva.

Há ainda as buscas ou revistas privadas, que ocorrem, comumente, no ingresso de boates e casas noturnas. Trata-se de uma busca de natureza preventiva e decorre de uma relação contratual. O ingresso da pessoa ao local do evento é condicionado, contratualmente, à autorização para que sofra uma revista privada. Caso não concorde não poderá entrar no local.

O art. 6º, I, do Código de Defesa do Consumidor prevê como direito básico do consumidor a segurança contra os riscos provocados no fornecimento de serviços, o que inclui a realização de serviços artísticos e shows. A segurança ora referida deve ser interpretada em sentido amplo, o que abrange a segurança física, patrimonial e da saúde.

Trata-se de uma espécie de busca pessoal preventiva, em que pese possuir natureza privada.          Uma característica comum às buscas pessoais preventivas ou administrativas é que não se faz necessária a presença da fundada suspeita exigida para a realização de buscas pessoais processuais, uma vez que as buscas pessoais preventivas decorrem diretamente da lei, sem que exija a fundada suspeita, somente a constatação de um fato objetivo – como a fiscalização aduaneira – do poder de polícia ou de uma relação contratual.

As buscas pessoais de natureza privada normalmente são feitas nos casos acima especificados, sendo possível de serem realizadas nas mercadorias com que as pessoas saem dos estabelecimentos comerciais após a consumação da venda, conforme já decidido pelo Superior Tribunal de Justiça, ao afirmar que a “prática da conferência indistinta de mercadorias pelos estabelecimentos comerciais, após a consumação da venda, é em princípio lícito e tem como base o exercício do direito de vigilância e proteção ao patrimônio, razão pela qual não constitui, por si só, prática abusiva. Se a revista dos bens adquiridos é realizada em observância aos limites da urbanidade e civilidade, constitui mero desconforto, a que atualmente a grande maioria dos consumidores se submete, em nome da segurança.”[2]

A busca pessoal de natureza processual possui previsão no art. 244 do Código de Processo Penal e arts. 180, 181 e 182, todos do Código de Processo Penal Militar. Essa busca independe de autorização judicial quando ocorrer em razão de prisão em flagrante ou cumprimento de mandado de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma ilegal ou de objetos que sirvam como elementos de prova ou sejam instrumentos ou produtos de crime ou quando ocorrer durante a realização de busca domiciliar, seja em decorrência de mandado de busca e apreensão ou em razão de flagrante delito.

            a) Prisão: com a prisão ocorre a restrição da liberdade da pessoa e esta deve, naturalmente, passar por uma busca pessoal antes mesmo de ser colocada na viatura policial, por uma questão de segurança dos policiais e de terceiros. O mesmo ocorre antes de ser encarcerado, com o fim de se evitar que objetos ilícitos (armas e drogas) ou proibidos (celulares) ingressem nos estabelecimentos penais.

            b) Fundada suspeita: o conceito de “fundada suspeita” será aprofundado no tópico 3 deste artigo. De qualquer forma, a fundada suspeita deve ser de que a pessoa esteja na posse de arma ilegal ou de objetos que sirvam como elementos de prova ou sejam instrumentos ou produtos de crime.

            c) Busca domiciliar: a busca domiciliar pode decorrer do cumprimento de mandado de busca e apreensão ou em situação de flagrante delito. Em ambos os casos os policiais estão autorizados a efetuarem a busca pessoal nas pessoas que estiverem dentro da casa, ainda que esta autorização não conste no mandado, pois podem esconder produtos criminosos ou objeto que a busca visa apreender no corpo ou em pertences pessoais.

Verifica-se que o policial pode realizar busca pessoal ainda que não decorra de fundada suspeita de que a pessoa porte objetos ilegais, como o caso de prisão ou de busca domiciliar. A partir do momento em que o policial dá “voz de prisão” está autorizada a busca pessoal, ainda que não haja fundada suspeita de que porte objetos ilegais, por questão de segurança, na medida em que uma pessoa presa deve ser revistada para assegurar que não possui nenhum objeto ilegal e para que não possa colocar em risco os policiais ou terceiros, até porque o agente adentrará à guarnição e depois poderá será colocado em uma cela. O mesmo ocorre na busca domiciliar, pelos fundamentos acima expostos.

O art. 182, “e”, do Código de Processo Penal Militar traz hipóteses que autorizam a busca pessoal sem autorização judicial, havendo uma previsão que não se encontra prevista no Código de Processo Penal, que consiste na busca pessoal feita na presença do juiz ou do presidente do inquérito.

O art. 240, § 2º, do Código de Processo Penal também trata da busca pessoal e dispõe que esta ocorrerá quando houver fundada suspeita de que alguém oculte consigo arma proibida ou com uma das seguintes finalidades: a) apreender coisas achadas ou obtidas por meios criminosos; b) apreender instrumentos de falsificação ou de contrafação e objetos falsificados ou contrafeitos; c) apreender armas e munições, instrumentos utilizados na prática de crime ou destinados a fim delituoso; d) descobrir objetos necessários à prova de infração ou à defesa do réu; e) apreender cartas, abertas ou não, destinadas ao acusado ou em seu poder, quando haja suspeita de que o conhecimento do seu conteúdo possa ser útil à elucidação do fato; f) colher qualquer elemento de convicção.

A seguir um quadro comparativo entre o art. 240, § 2º, e art. 244, ambos do Código de Processo Penal.

Art. 240, § 2º, do Código de Processo PenalArt. 244 do Código de Processo Penal
Art. 240. A busca será domiciliar ou pessoal. § 2o Proceder-se-á à busca pessoal quando houver fundada suspeita de que alguém oculte consigo arma proibida ou objetos mencionados nas letras b a f e letra h do parágrafo anterior.Art. 244. A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar.

Enquanto o art. 240, § 2º, do Código de Processo Penal detalha as hipóteses que autorizam a busca pessoal, o art. 244 do mesmo diploma processual é mais genérico, pois se limita a dizer que a busca pode ocorrer para verificar se a pessoa está sob a posse de “arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito”.

Corpo de delito significa o conjunto de vestígios e elementos deixados pela infração penal. Não tem relação com o corpo humano, mas sim ao conjunto de vestígios e elementos probatórios que constituem a materialidade delitiva.

“Papéis” deve ser interpretado em sentido amplo, e de forma progressiva, uma vez que este termo “papéis” está contido no Código de Processo Penal de 1941, devendo-se incluir hoje, como decidido pelo Superior Tribunal de Justiça[3], registros em agendas eletrônicas, telefones com conteúdo diverso, notas fiscais, encartes de propaganda e tabelas com informações variadas.

O art. 244 do Código de Processo Penal é mais amplo e genérico e abrange as hipóteses contidas no art. 240, § 2º, que são exemplificativas.

A busca pessoal de natureza processual em razão da prisão é de natureza investigativa e preventiva, pois visa averiguar se o agente possui algum objeto ilícito, bem como evitar que esteja com qualquer objeto que coloque em risco a integridade dos policiais, de terceiros e a própria integridade.

Quando decorre da fundada suspeita pode, igualmente, ser de natureza preventiva e investigativa, pois se o agente porta um objeto ilícito, como arma e drogas, a busca visará apreender esse objeto com fins investigativos, além de prevenir a ocorrência de crimes, como a prática de roubo ou homicídio que poderá estar em vias de ser praticado. O mesmo raciocínio se aplica às buscas domiciliares.

A seguir, quadro que permite a visualização das buscas pessoais de natureza administrativa e processual:

Busca pessoal administrativa ou preventivaCaracterísticasExemploPrevisão
Blitz– Fiscaliza o regular funcionamento do trânsito; – Fiscaliza o cumprimento das normas de trânsito.Guarnição policial realiza blitz em local que possui alto registro de acidentes decorrentes do uso de bebida alcoólica, ocasião em que o policial poderá abordar qualquer veículo.Arts. 23, III e 269, § 1º, ambos do CTB.
Recinto esportivo– Busca realizada no torcedor antes de ingressar no local de competição esportiva; – Geralmente, é realizada por seguranças contratados pela organização do evento; – A Polícia Militar pode realizá-la.Os policiais poderão realizar buscas quando o torcedor for ingressar no estádio.Art. 13-A, III, da Lei n. 10.671/13.
Serviços aduaneiros– Busca realizada por autoridade aduaneira; – É realizada em veículos procedentes do exterior ou a ele destinado, seja pela via marítima, aérea ou terrestre; – Visa prevenir e reprimir a ocorrência de infração à legislação.Autoridade aduaneira realiza buscas, em um veículo procedente do exterior quando este passa pelo local alfandegado (local de realização da fiscalização).Art. 37, § 4º, do Decreto-Lei n. 37/66.
Segurança da Aviação Civil– É realizada pelo Agente de Proteção da Aviação Civil; – Ocorre aleatoriamente ou quando for detectado qualquer objeto de natureza suspeita; – Passageiro que não possa, por motivo justificado, ser inspecionado por equipamento detector de metal.    Agente de Proteção da Aviação Civil visualiza objeto suspeito dentro da mala de mão de passageiro ao passar pelo raio-x, ocasião em que é selecionado para passar por uma busca pessoal. É possível também que qualquer passageiro seja escolhido, aleatoriamente, para passar por uma busca pessoal, sem que haja qualquer fundamento.Arts. 116 e 117 do Decreto Federal n. 7.168, de 5 de maio de 2010 e art. 3º da Resolução n. 515/19 da ANAC.
Contratual– Decorre de uma relação privada; – É uma condição para que a pessoa entre no local.  O frequentador de uma boate, ao nela ingressar sujeita-se a passar por uma revista privada.– Contrato; – Art. 6º, I, do CDC (segurança do serviço prestado).
Busca pessoal processualCaracterísticasExemploPrevisão
Prisão– Decorre da simples prisão, sem em razão de mandado ou em flagrante.Policial efetua a prisão de agente que acabara de praticar o crime de corrupção ativa que, comumente, não se utiliza arma.Art. 244 do CPP
Fundada suspeita– Ocorre nas hipóteses em que o agente esteja na posse de arma proibida ou objetos que constituam corpo de delito.Policial realiza abordagem de agente que possuía um volume na cintura semelhante a uma arma de fogo.Art. 244 do CPP
Domiciliar– Decorre da simples busca domiciliar, em razão de mandado ou em flagrante de crime permanente.Policial realiza busca domiciliar em razão do cumprimento de mandado de busca e apreensão. Poderá realizar busca pessoal em todos que estejam dentro da casa.Art. 244 do CPP

b) Quanto ao contato corporal: imediata e mediata

A busca pessoal pode ser realizada mediante contato físico direto do policial com a pessoa que a recebe (busca imediata ou direta) ou mediante a utilização de instrumentos que dispensam o contato físico, como um detector de metal portátil (busca mediata ou indireta).

Na prática os policiais não possuem nas ruas detectores de metais portáteis e realizam a busca mediante o contato físico com o corpo do abordado. De qualquer forma, ainda que houvesse detector de metal, o contato físico se faz necessário, pois outros objetos, como drogas, não são identificados por esses detectores.

A utilização de equipamentos que permitem detectar armas, sem que seja necessário o toque pessoal, é comum em alguns prédios públicos, como fóruns, bem como em casas noturnas, em razão da necessidade de se garantir uma maior segurança nesses ambientes.

O art. 3º da Lei n. 10.792/03 estabelece que “Os estabelecimentos penitenciários disporão de aparelho detector de metais, aos quais devem se submeter todos que queiram ter acesso ao referido estabelecimento, ainda que exerçam qualquer cargo ou função pública.”, o que demonstra a adoção pela lei, nos casos de ingresso em estabelecimentos penais, da busca pessoal mediata ou indireta, como regra, pois, como dito, essa busca não detecta todo e qualquer objeto ilícito ou proibido de ser levado aos presídios.

Em um cenário ideal a utilização nos presídios de body scanner (scanner corporal), como ocorre nos aeroportos, é a melhor solução, pois permite detectar a presença dos objetos que estão com a pessoa, como eventuais drogas, ainda que em tenham sido inseridas nas cavidades humanas, de forma que haja maior segurança e menos constrangimento para os visitantes dos presos, que não precisarão passar por outras revistas.

c) Quanto ao grau de invasividade: ligeira, minuciosa e completa

Toda busca pessoal, naturalmente, gera um desconforto em quem a sofre, o que aumenta de acordo com o grau de invasividade. O grau de rigor da busca é definido pelo policial de acordo com cada caso, sendo comuns as buscas ligeiras, minuciosas e completas.

A busca ligeira é uma busca rápida, realizada de forma superficial e ocorre, comumente, em entrada de shows, estádios, com o fim de constatar a presença de armas ou de objetos que possam ser utilizados como armas. Pode ser realizada mediante contato das mãos de quem a realiza com o corpo da pessoa ou mediante a utilização de um detector de metal. Normalmente, são verificadas a cintura, quadril, braços e entre as pernas. A pessoa que sofre a abordagem não é colocada em posição incômoda ou que cause desconforto. Geralmente, o tom de voz de quem realiza a busca ligeira não altera. Não é necessário que haja fundada suspeita para a realização da busca ligeira, já que é realizada como condição para o ingresso em um determinado local, de forma preventiva e por razões de segurança.

A busca minuciosa ocorre nos casos de fundada suspeita de que o abordado porte objetos ilegais, como drogas ou armas, sendo, normalmente, realizada pela polícia na rua. A pessoa que sofre a abordagem recebe ordens do policial para que se posicione de forma adequada para o início da busca, como “mãos na cabeça”, seguida da ordem para se virar de costas, ou “mão na parede”. O tom de voz do policial é firme. De acordo com cada caso e diante dos riscos o policial pode determinar que a pessoa se ajoelhe ou até se deite no chão antes de sofrer a abordagem. Há contato corporal com o abordado e o policial toca com as mãos em diversas partes do corpo (cintura, quadril, braços, entre as pernas), pode terminar que retire eventual calçado e meias.

A busca minuciosa pode apresentar diferentes graus de invasividade, a depender de cada caso, como fundada suspeita de porte de arma, de drogas e da colaboração do agente. Nesse tipo de busca, se houver detector de metal, o policial pode utilizá-lo e complementar a busca com as mãos, já que o detector não identifica drogas.

A busca completa, também denominada de revista íntima,é a busca mais invasiva e deve ocorrer em casos extremos, pois a pessoa que a sofre se despe e entrega suas roupas aos policiais que examinarão todo o corpo da pessoa. É uma busca, que pela própria natureza, é constrangedora. O fato de ser constrangedora não retira a sua legalidade quando houver justa causa para a sua realização. Após retirada a roupa a pessoa é observada enquanto é determinado que levante os braços, abra as pernas e realize agachamentos. Dada a exposição, essa busca deve ser realizada em local isolado, sem público.

Tome como exemplo uma denúncia de que uma pessoa transita na rua e leve drogas no orifício anal ou que uma mulher transporte drogas na vagina. Os policiais abordam a pessoa e durante a busca minuciosa encontram drogas dentro da cueca ou calcinha. Nesse caso há fundamento idôneo suficiente para a realização da busca completa.

Sempre que possível a busca completa deve ser substituída por scanner corporal que permita constatar a presença de objetos estranhos dentro do corpo humano, como ocorre em aeroportos, o que é possível de ser feito também em hospitais.

Em estabelecimentos penais não é incomum que sejam realizadas revistas íntimas nos presos após receberem visitas de familiares, com o fim de constatar se receberam objetos que não podem adentrar nos presídios, como celulares e drogas.

Seja qual for a busca, deve sempre ser realizada de forma razoável, proporcional e motivada.

d) Quanto ao sujeito ativo da medida: estado ou particulares

 A busca pessoal pode ser realizada pelo estado ou por particulares. Enquanto estado, somente as autoridades previstas em lei podem executá-la. Ao particular não há o direito ou faculdade de realizar busca pessoal em razão da fundada suspeita, devendo estas ocorrerem contratualmente, como nas casas de show, ou se houver previsão normativa que autorize a realização das buscas, como o caso dos aeroportos que são administrados pela iniciativa privada.

Os policiais previstos no art. 144 da Constituição Federal possuem, dentro de suas atribuições, legitimidade para realizarem buscas pessoais sempre que houver fundada suspeita, pois atuam em nome do estado que possui o poder de polícia.

No tocante aos guardas municipais, o tema é controverso, sendo decidido pelo Superior Tribunal de Justiça que é lícita a revista pessoal executada por guardas municipais, com a existência da necessária justa causa para a efetivação da medida invasiva, nos termos do art. § 2º do art. 240 do CPP, bem como a prova derivada da busca pessoal[4].

A Guarda Municipal é um órgão de segurança pública, atua nos casos de flagrante delito (art. 5º, XIV, da Lei n. 13.022/14) e sempre que houver fundada suspeita está autorizada a proceder à busca pessoal.

Em se tratando da contratação de seguranças privados, não há que se falar no surgimento do poder de polícia de “natureza privada”. O poder de polícia sempre pertencerá ao poder público.

O Superior Tribunal de Justiça decidiu ser ilícita a revista pessoal realizada por agente de segurança privada contratada pela Companhia Paulista de Trens Metropolitanos – CPTM, por não ser autorizada pela lei a realização de busca pessoal de natureza privada[5]. Em razão dessa ilegalidade as provas decorrentes da busca pessoal realizada por agentes de segurança privada são ilícitas.

O inteiro teor cita trecho do Tratado de Direito Administrativo 4, coordenado por Maria Sylvia Zanella di Pietro, Revista dos Tribunais, págs. 353/355, sendo importante destacar os seguintes trechos:

A contratação de segurança privada por particulares para a defesa pessoal e de seu patrimônio apenas pode envolver o manejo de poderes privados. Não implica a delegação de poderes públicos a particulares para o exercício de segurança privada.

As empresas de segurança privada atuam no âmbito do direito privado e exercem poderes privados. Daí que os poderes de defesa podem exercer são apenas aqueles tolerados pelo direito privado e que têm o seu uso da força no contexto de legítima defesa e de flagrante delito. (destaques nossos)

(…)

Em que pese ter sido reconhecida a ilicitude da busca pessoal realizada por agentes de segurança privada, alguns apontamentos se fazem relevantes. Com efeito, o particular não pode realizar buscas pessoais pelas vias públicas ou forçar que uma pessoa se submeta a buscas pessoais se não houver uma relação contratual prévia e aceitação por parte de quem sofrerá a busca. Ocorre que a busca pessoal feita por particulares se torna lícita quando houver um contrato que a preveja, como condição para o ingresso em casas noturnas e estádios de futebol, sendo possível aplicar o mesmo raciocínio às estações de trens e de metrôs.

A partir do momento em que uma pessoa adquire o bilhete para utilizar o transporte ferroviário é possível que conste expressamente que está sujeita a sofrer buscas pessoais, em caso de fundada suspeita de portar objetos ilícitos, e caso não concorde possui a opção de utilizar outros meios de transporte. Além do mais, a contratação de segurança privada para atuarem nas estações de trem e de metrô, ainda que venha a ter por finalidade precípua, a segurança patrimonial, por um dever de boa-fé e dever de segurança dos usuários das estações, deve assegurar também a incolumidade física das pessoas e seria de todo incongruente e completamente desrazoável impedir que os agentes de segurança privada atuem preventivamente quando constatarem a presença da fundada suspeita, como um volume na cintura semelhante a uma arma de fogo. Não é necessário que aguardem o agente roubar os usuários para, em seguida, efetuarem a prisão como qualquer um do povo.

Por fim, na rua, o particular, seja segurança ou não, como uma pessoa que transita em via pública, como qualquer outra, em que pese estar autorizado a efetuar prisão em flagrante (art. 301 do CPP, flagrante facultativo), não poderá realizar buscas pessoais, ainda que haja fundada suspeita. O procedimento correto, nesses casos, consiste no acionamento da Polícia Militar. Pode parecer um contrassenso a lei autorizar o particular a efetuar a prisão (o mais), mas não autorizar a busca pessoal (o menos), contudo não há previsão em lei para que o particular assim proceda e em se tratando de restrição de direitos (restrição da liberdade, ainda que por curto período, e contato corporal por terceiro) e de medidas invasivas – como são as buscas pessoais -, a interpretação não deve contemplar os particulares.

De qualquer forma, nos casos em que um particular efetuar a prisão em flagrante (facultatividade) poderá reter o agente até a chegada da polícia, e durante essa retenção poderá realizar busca pessoal no agente para retirar eventuais objetos ilícitos, como uma arma de fogo. Pense na hipótese em que o particular efetua a prisão de um agente que acabou de praticar o crime de roubo e está com uma arma na cintura. O particular, lutador de artes maciais e muito corajoso, imbuído pelo espírito de justiça e de ajuda ao próximo, consegue segurar o agente que está com a arma na cintura. Nesse caso a busca pessoal pelo particular será lícita, pois já não havia simples fundada suspeita, mas sim a prática de um crime e o agente estava em flagrante e a ausência de busca pessoal colocaria a vida do particular e de terceiros em risco, sendo uma medida completamente razoável, pois é de todo incabível interpretar que o preso poderia ficar com a arma em seu corpo até a chegada da polícia. Ao retirar a arma de fogo do agente preso o particular atua amparado pela excludente de ilicitude do estado de necessidade, razão pela qual não responde por porte ilegal de arma de fogo.

e) Quanto ao sujeito passivo da medida: individual ou coletivo.

A busca pessoal pode ser realizada em pessoas escolhidas de forma fundamentada (individual) ou em pessoas escolhidas indistintamente (coletiva). A distinção não reside no fato da busca ser executada, simultaneamente, em uma ou em várias pessoas, mas sim no critério de seleção de quem sofrerá a abordagem.

Durante o policiamento de rotina realizado pela Polícia Militar, ao se deparar com uma ou várias pessoas em atitude que caracterize a fundada suspeita, proceder-se-á à abordagem individual, ao passo que a abordagem realizada indistintamente em todas as pessoas que entram em um estádio de futebol ou uma casa de show, é coletiva.

f) Quanto à decisão da execução da busca: com e sem autorização judicial.

Como regra as buscas pessoais não necessitam de autorização judicial, desde que sejam feitas em uma das hipóteses autorizadas pelo art. 244 do Código de Processo Penal e arts. 180, 181 e 182, todos do Código de Processo Penal Militar. Isto é, não é necessária autorização judicial quando a abordagem policial decorrer de prisão em flagrante ou cumprimento de mandado de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma ilegal ou de objetos que sirvam como elementos de prova ou sejam instrumentos ou produtos de crime ou quando ocorrer durante a realização de busca domiciliar, seja em decorrência de mandado de busca e apreensão ou em razão de flagrante delito. O art. 182, “e”, do Código de Processo Penal Militar traz hipóteses que autorizam a busca pessoal sem autorização judicial, havendo uma previsão que não se encontra prevista no Código de Processo Penal, que consiste na busca pessoal feita na presença do juiz ou do presidente do inquérito.

Afora essas hipóteses, a busca pessoal necessita de autorização judicial, como o caso em que a polícia deseja abordar um agente que não esteja em fundada suspeita e costumeiramente seja visto andando pelas ruas, o que é de difícil acontecimento prático, mas é possível ocorrer, sobretudo se envolver autoridades com prerrogativa de foro.

Pode-se citar como exemplo um parlamentar com foro por prerrogativa de função no Supremo Tribunal Federal que esteja sendo investigado e a Polícia Federal requer mandado de busca e apreensão e de busca pessoal para que sofra abordagem onde quer que seja localizado.

Elementos para a caracterização da fundada suspeita e realização da busca pessoal

A lei não especifica os critérios e elementos necessários para caracterizar a fundada suspeita e, consequentemente, justificar a realização da abordagem policial, o que cabe à doutrina e jurisprudência.

Marcelo de Lima Lessa apresenta as distinções entre mera suspeita, suspeita e fundada suspeita, a saber: “Mera suspeita é o ‘talvez seja’; suspeita é o que ‘parece ser’ (ambas são frágeis, indicam suposições ou simples desconfianças); de outra banda, a fundada suspeita (exigida pela nossa lei) é o ‘tudo leva a crer’”.[6]

Guilherme de Souza Nucci[7] explica que:

Suspeita é uma desconfiança ou suposição, algo intuitivo e frágil, por natureza, razão pela qual a norma exige fundada suspeita, que é mais concreto e seguro. Assim, quando um policial desconfiar de alguém, não poderá valer-se, unicamente, de sua experiência ou pressentimento, necessitando, ainda, de algo mais palpável, como a denúncia feita por terceiro de que a pessoa porta o instrumento usado para o cometimento do delito, bem como pode ele mesmo visualizar uma saliência sob a blusa do sujeito, dando nítida impressão de se tratar de um revólver. Enfim, torna-se impossível e impróprio enumerar todas as possibilidades autorizadoras de uma busca, mas continua sendo curial destacar que a autoridade encarregada da investigação ou seus agentes podem – e devem – revistar pessoas em busca de armas, instrumentos do crime, objetos necessários à prova do fato delituoso, elementos de convicção, entre outros, agindo escrupulosa e fundamentadamente. (grifo nosso)

Aury Lopes Júnior[8] leciona que fundada suspeita é “Uma cláusula genérica, de conteúdo vago, impreciso e indeterminado, que remete à ampla e plena subjetividade (e arbitrariedade) do policial.” E que:

Trata-se de ranço autoritário de um Código de 1941. Assim, por mais que se tente definir a “fundada suspeita”, nada mais se faz que pura ilação teórica, pois os policiais continuarão abordando quem e quando eles quiserem. Elementar que os alvos são os clientes preferenciais do sistema, por sua já conhecida seletividade. Eventuais ruídos podem surgir quando se rompe a seletividade tradicional, mas dificilmente se vai além de mero ruído. Daí por que uma mudança legislativa é imprescindível para corrigir tais distorções.

Renato Brasileiro de Lima sustenta que para que haja fundada suspeita “não basta uma simples convicção subjetiva para que se proceda à busca pessoal em alguém. Para além disso, é necessário que haja algum dado objetivo que possa ampará-la.”[9].  Norberto Avena entende que funda suspeita é a “desconfiança ou suposição, algo intuitivo e frágil”[10].

Os tribunais pouco se debruçam a respeito do conceito de fundada suspeita, sendo encontrados poucos julgados, de forma que não é possível afirmar que há jurisprudência a respeito do tema, mas sim precedentes.

O Supremo Tribunal Federal[11] já decidiu que a “fundada suspeita”, prevista no art. 244 do CPP, não pode fundar-se em parâmetros unicamente subjetivos, exigindo elementos concretos que indiquem a necessidade da revista, em face do constrangimento que causa e que não se configura a fundada suspeita a alegação de que o indivíduo trajava um “blusão” suscetível de esconder uma arma, sob risco de se referendar condutas arbitrárias, ofensivas a direitos e garantias individuais e caracterizadoras de abuso de poder.

O Superior Tribunal de Justiça já decidiu pela possibilidade de se realizar a busca pessoal nas seguintes situações:

            a) O comportamento excessivamente nervoso do indivíduo e o fato de ser conhecido pelos policiais em razão do envolvimento com o tráfico de drogas na região, caracteriza fundada suspeita, o que autoriza a realização de busca pessoal[12];

            b) O veículo parado durante a madrugada, com quatro indivíduos em seu interior caracteriza a fundada suspeita e justifica a realização da abordagem policial[13];

            c) Indivíduo que deixa para trás uma sacola ao visualizar a polícia gera fundada suspeita de que estava na posse de objetos ilícitos, o que autoriza a busca pessoal[14];

            d) A interceptação telefônica escutada antes da busca pessoal, em que a polícia constata informações da existência de documentos com o investigado que poderiam elucidar o crime investigado, torna a busca lícita[15];

            e) A abordagem policial realizada em local conhecido como sendo de intensa criminalidade atrelado ao horário noturno justifica a busca pessoal[16].

Em caso concreto no qual um agente havia escondido drogas dentro de seu próprio corpo, foi conduzido a um hospital para realizar exame radioscópico, momento em que foi constatada a existência de cápsulas de drogas em seu estômago e intestino. O Superior Tribunal de Justiça decidiu que o referido exame não consiste em autoincriminação, por constituir uma extensão da busca pessoal, como já ocorre com detectores de metais. Ponderou que a busca pessoal teve por finalidade, inclusive, preservar a própria integridade física do agente, pois as cápsulas de cocaína poderiam se romper no interior do seu corpo, causando risco de morte e que em um juízo comparativo entre os interesses envolvidos, não se mostrou desarrazoada a busca pessoal realizada.[17]

Em outro caso, um agente passou por uma busca pessoal realizada pela Polícia Militar, sendo narrado pelos policiais que o prenderam que avistaram de longe, em via pública, um indivíduo de cor negra e que um veículo estava parado junto a ele como se estivesse vendendo/comprando algo e que o indivíduo ao perceber a aproximação da viatura policial mudou o semblante e saiu andando sorrateiramente jogando algo no chão. O Ministro Relator Sebastião Reis Júnior, do Superior Tribunal de Justiça, consignou em seu voto que “o que despertou a fundada suspeita do policial militar, a justificar a busca pessoal no agente, foi originariamente a cor da pele, uma vez que avistou, ao longe, um indivíduo de cor negra em pé, no meio-fio da via pública, parado junto a um veículo” e destacou que “a cor da pele foi o fator que primeiramente despertou a atenção do agente de segurança pública, o que não pode ser admitido”, e decretou a nulidade da busca pessoal e, consequentemente, absolveu o agente. No entanto, o voto do relator não prevaleceu, tendo a 6ª Turma do STJ decidido que o uso da expressão “cor negra” foi mera descrição da pessoa envolvida e foi reconhecida a legalidade da busca pessoal e das provas produzidas.[18]

Nos seguintes casos o Superior Tribunal de Justiça decidiu pela impossibilidade de se realizar a busca pessoal:

            a) A mera indicação de que o agente, primário e sem antecedentes, era conhecido da guarnição pela prática do crime de tráfico de drogas, tendo em vista que diversos usuários já assumiram ter comprado drogas do abordado, fatos estes que nunca foram oficializados porque referidas pessoas têm muito medo, já que se trata de traficante supostamente faccionado, bem como de haver notícias de que referido automóvel seria utilizado para a prática do crime de tráfico de drogas, não se revela suficiente para justificar a busca pessoal. Não tendo havido a indicação sobre a instauração de procedimento investigatório prévio ou de que, no momento da abordagem, havia dado concreto sobre a existência de fundada suspeita a autorizar a busca veicular, verifica-se a ocorrência de ilegalidade, estando ausente de razoabilidade considerar que, por si só, meros parâmetros subjetivos, embasados em presunções ou suposições, advindas de denúncias de usuários não oficializadas, enquadrem-se na excepcionalidade da revista pessoal[19];

            b) Indivíduo que apresenta o comportamento de alguém que está perdido ou a procura de informações, ou ainda assustado, não se enquadra no conceito de fundada suspeita, sendo a realização de busca pessoal ilícita[20];

            c) Indivíduo que procura ingressar em condomínio, mas morador recusa a recebê-lo, ocasião em que este demonstra inconformidade, não caracteriza fundada suspeita, razão pela qual a realização de busca pessoal é ilícita[21];

            d) Indivíduo que demonstra comportamento nervoso, sem nenhum indicativo concreto de possuir objetos ilícitos, não legitima a busca pessoal.[22]

            e) Denúncia anônima, intuição policial (tirocínio policial), busca de rotina com finalidade preventiva, nervosismo da pessoa e a ausência de descrição concreta de fatos que caracterizem a fundada suspeita tornam a busca pessoal ilegal.[23]

Como se pode notar a doutrina e a jurisprudência não apresentam um conceito fechado do que seja fundada suspeita, dependendo da análise de cada caso. O conceito de fundada suspeita na verdade é aberto, genérico, vago, impreciso, indeterminado. Não há parâmetros seguros que definem se uma pessoa se encontra em fundada suspeita, sendo o controle de legalidade realizado posteriormente à abordagem, pelo Poder Judiciário, caso seja encontrada alguma ilegalidade, como armas e drogas.

A constatação se o agente se encontra em situação que caracterize fundada suspeita deve ocorrer antes da realização da abordagem policial, sob pena da apreensão de eventuais provas (drogas e armas, por exemplo) serem consideradas ilícitas. Aplica-se aqui o mesmo entendimento que o Supremo Tribunal Federal aplicou às buscas domiciliares decorrentes das situações de crime permanente, ao fixar a tese de que “A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados.”

De fato, o conceito de fundada suspeita varia de acordo com o intérprete, o que causa insegurança jurídica, sendo necessário traçar balizas que possam contribuir com a identificação de uma pessoa em atitude que caracterize a fundada suspeita.

Dessa forma, o local, o contexto e o comportamento do indivíduo são critérios que podem ser analisados para fins de caracterização da fundada suspeita.

Local: os policiais que trabalham na rua conhecem, objetivamente, os locais de maior incidência criminal e que apresentam maiores riscos para os transeuntes, comércio, veículos em circulação, residências. Esse conhecimento do policial não pode ser desprezado, pois decorre de dados objetivos (índices de criminalidade) e da experiência profissional que é adquirida ao longo do tempo, o que se denomina “tirocínio”. Tome como exemplo uma busca pessoal realizada em um local conhecido como “ponto de tráfico” (boca de fumo). A presença de um indivíduo, por si só, nesse local, justifica a abordagem policial.

Contexto: o contexto refere-se a todas as circunstâncias do fato e conhecimento, por parte dos policiais, do que está ocorrendo na região no momento da abordagem. Cada contexto enseja uma fundada suspeita diversa. Se houve um roubo a mão armada sendo passadas as características de que houve a participação de dois agentes, um com camisa preta, de cor branca e o outro alto e magro, pessoas com características semelhantes poderão ser abordadas pelos policiais. Por outro lado, se não houve nenhuma notícia da prática de crime, mas moradores informam à polícia que há uma pessoa desconhecida no bairro, com um volume na cintura, há indicativos de fundada suspeita que legitima a busca pessoal. A depender da cidade e do bairro em que os policiais trabalham, estes conhecem todos os moradores, inclusive, pelo nome, sendo justificável a abordagem policial de desconhecidos em uma determinada rua pacata e frequentada somente por moradores locais.

Comportamento do indivíduo: o comportamento do indivíduo é, certamente, um dos principais fundamentos para se realizar a abordagem policial. O nervosismo, a mudança de trajeto e a dispensa de objetos ao visualizar a viatura policial, correr da polícia, o cheiro de droga, a alta velocidade no trânsito em via de baixa velocidade e o fato de possuir qualquer sinal de anormalidade no local em que está, como objetos volumosos em partes do corpo, são fundamentos que caracterizam a fundada suspeita e legitima a abordagem policial.

   Em que pese o nervosismo ser um importante indicador, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que a busca veicular lastreada apenas em supostos comportamento nervoso do agente, sem nenhum indicativo concreto da existência de substância ilícitas no interior do automóvel, é ilegal, ainda que se localize, posteriormente, expressiva quantidade de droga.[24]

Não é necessária a presença cumulativa desses critérios, sendo suficiente a presença de um deles.

Os treinos policiais, a vivência, experiência, lida diária com a criminalidade, o enfrentamento do crime, o conhecimento prático e teórico que os policiais possuem formam o seu tirocínio policial, o que, para o Código de Processo Penal, doutrina e jurisprudência, não legitima, por si só, a busca pessoal.

O tirocínio policial deve estar atrelado a outros elementos que permitam “objetivar” os fundamentos da busca pessoal, não sendo suficientes a presença somente de elementos subjetivos, que consistem na concepção estritamente subjetiva do policial de que determinada pessoa porte drogas ou armas.

Suspeita é uma suposição, uma imaginação, uma desconfiança. É um elemento frágil. Note que por ser a abordagem policial uma medida invasiva, não é suficiente a simples “suspeita”, sendo necessário que esta seja fundada, o que vai além da suposição, imaginação e da desconfiança, como um volume na cintura, uma denúncia anônima, uma ligação 190 com passagem de informações, dentre os fatores abordados acima ao tratarmos do local, contexto e comportamento do indivíduo. O tirocínio policial não é aceito pela doutrina e jurisprudência como “fundada suspeita” para legitimar a abordagem policial, mas do tirocínio policial é possível diligenciar e observar o indivíduo com o fim de possuir elementos objetivos que legitimarão a busca pessoal.

Por ser a busca pessoal, quando detectada a fundada suspeita, de natureza urgente, a própria lei dispensa a necessidade de autorização judicial.

Após a realização da busca pessoal na rua e nada sendo encontrado com o abordado é recomendável que os policiais expliquem os motivos da abordagem e o trabalho feito pela polícia no intuito de prevenir a ocorrência de crimes e que a abordagem é feita para a própria segurança da sociedade. Dizer que a abordagem é de rotina não é fundamento que justifique a sua realização, já que o art. 244 do Código de Processo Penal exige a presença de fundada suspeita e ao se limitar a explicar os fundamentos da abordagem como sendo de rotina possibilita que qualquer pessoa seja abordada sem que haja critérios justificáveis.

O Superior Tribunal de Justiça no RHC 158.580/BA, julgado em 19/04/2022, discorreu sobre diversos aspectos da busca pessoal que servem de paradigma para as instituições policiais em se tratando de abordagem policial, cujos apontamentos a seguir são relevantes, conforme se extrai da ementa e do interior teor do voto do relator, seguido por unanimidade.

            a) Exige-se, em termos de standard probatório para busca pessoal ou veicular sem mandado judicial, a existência de fundada suspeita (justa causa) – baseada em um juízo de probabilidade, descrita com a maior precisão possível, aferida de modo objetivo e devidamente justificada pelos indícios e circunstâncias do caso concreto – de que o indivíduo esteja na posse de drogas, armas ou de outros objetos ou papéis que constituam corpo de delito, evidenciando-se a urgência de se executar a diligência.

            b) A normativa constante do art. 244 do CPP não se limita a exigir que a suspeita seja fundada. É preciso, também, que esteja relacionada à “posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito”. Vale dizer, há uma necessária referibilidade da medida, vinculada à sua finalidade legal probatória, a fim de que não se converta em salvo-conduto para abordagens e revistas exploratórias (fishing expeditions), baseadas em suspeição genérica existente sobre indivíduos, atitudes ou situações, sem relação específica com a posse de arma proibida ou objeto (droga, por exemplo) que constitua corpo de delito de uma infração penal. O art. 244 do CPP não autoriza buscas pessoais praticadas como “rotina” ou “praxe” do policiamento ostensivo, com finalidade preventiva e motivação exploratória, mas apenas buscas pessoais com finalidade probatória e motivação correlata.

            c) Não satisfazem a exigência legal, por si sós, meras informações de fonte não identificada (e.g. denúncias anônimas) ou intuições e impressões subjetivas, intangíveis e não demonstráveis de maneira clara e concreta, apoiadas, por exemplo, exclusivamente, no tirocínio policial. Ante a ausência de descrição concreta e precisa, pautada em elementos objetivos, a classificação subjetiva de determinada atitude ou aparência como suspeita, ou de certa reação ou expressão corporal como nervosa, não preenche o standard probatório de “fundada suspeita” exigido pelo art. 244 do CPP.

            d) O fato de encontrar objetos ilícitos – independentemente da quantidade – após a revista não convalida a ilegalidade prévia, pois é necessário que o elemento “fundada suspeita de posse de corpo de delito” seja aferido com base no que se tinha antes da diligência. Se não havia fundada suspeita de que a pessoa estava na posse de arma proibida, droga ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, não há como se admitir que a mera descoberta casual de situação de flagrância, posterior à revista do indivíduo, justifique a medida.

            e) A violação dessas regras e condições legais para busca pessoal resulta na ilicitude das provas obtidas em decorrência da medida, bem como das demais provas que dela decorrerem em relação de causalidade, sem prejuízo de eventual responsabilização penal do(s) agente(s) público(s) que tenha(m) realizado a diligência.

            f) Há três razões principais para que se exijam elementos sólidos, objetivos e concretos para a realização de busca pessoal – vulgarmente conhecida como “dura”, “geral”, “revista”, “enquadro” ou “baculejo” –, além da intuição baseada no tirocínio policial:

                        1ª) evitar o uso excessivo desse expediente e, por consequência, a restrição desnecessária e abusiva dos direitos fundamentais à intimidade, à privacidade e à liberdade (art. 5º, caput, e X, da Constituição Federal), porquanto, além de se tratar de conduta invasiva e constrangedora – mesmo se realizada com urbanidade, o que infelizmente nem sempre ocorre –, também implica a detenção do indivíduo, ainda que por breves instantes;

                        2ª) garantir a sindicabilidade da abordagem, isto é, permitir que tanto possa ser contrastada e questionada pelas partes, quanto ter sua validade controlada a posteriori por um terceiro imparcial (Poder Judiciário), o que se inviabiliza quando a medida tem por base apenas aspectos subjetivos, intangíveis e não demonstráveis;

                        3ª) evitar a repetição – ainda que nem sempre consciente – de práticas que reproduzem preconceitos estruturais arraigados na sociedade, como é o caso do perfilamento racial, reflexo direto do racismo estrutural.

            g) Em um país marcado por alta desigualdade social e racial, o policiamento ostensivo tende a se concentrar em grupos marginalizados e considerados potenciais criminosos ou usuais suspeitos, assim definidos por fatores subjetivos, como idade, cor da pele, gênero, classe social, local da residência, vestimentas etc. Sob essa perspectiva, a ausência de justificativas e de elementos seguros a legitimar a ação dos agentes públicos –– diante da discricionariedade policial na identificação de suspeitos de práticas criminosas – pode fragilizar e tornar írritos os direitos à intimidade, à privacidade e à liberdade.

            h) “Os enquadros se dirigem desproporcionalmente aos rapazes negros moradores de favelas dos bairros pobres das periferias. Dados similares quanto à sobrerrepresentação desse perfil entre os suspeitos da polícia são apontados por diversas pesquisas desde os anos 1960 até hoje e em diferentes países do mundo. Trata-se de um padrão consideravelmente antigo e que ainda hoje se mantém, de modo que, ao menos entre os estudiosos da polícia, não existe mais dúvida de que o racismo é reproduzido e reforçado através da maior vigilância policial a que é submetida a população negra”. Mais do que isso, “os policiais tendem a enquadrar mais pessoas jovens, do sexo masculino e de cor negra não apenas como um fruto da dinâmica da criminalidade, como resposta a ações criminosas, mas como um enviesamento no exercício do seu poder contra esse grupo social, independentemente do seu efetivo engajamento com condutas ilegais, por um direcionamento prévio do controle social na sua direção” (DA MATA, Jéssica, A Política do Enquadro, São Paulo: RT, 2021, p. 150 e 156).

            i) A pretexto de transmitir uma sensação de segurança à população, as agências policiais – em verdadeiros “tribunais de rua” – cotidianamente constrangem os famigerados “elementos suspeitos” com base em preconceitos estruturais, restringem indevidamente seus direitos fundamentais, deixam-lhes graves traumas e, com isso, ainda prejudicam a imagem da própria instituição e aumentam a desconfiança da coletividade sobre ela.

            j) Daí a importância, como se tem insistido desde o julgamento do HC n. 598.051/SP (Rel. Ministro Rogerio Schietti, 6ª T., DJe 15/3/2021), do uso de câmeras pelos agentes de segurança, a fim de que se possa aprimorar o controle sobre a atividade policial, tanto para coibir práticas ilegais, quanto para preservar os bons policiais de injustas e levianas acusações de abuso. Sobre a gravação audiovisual, aliás, é pertinente destacar o recente julgamento pelo Supremo Tribunal Federal dos Embargos de Declaração na Medida Cautelar da ADPF n. 635 (“ADPF das Favelas”, finalizado em 3/2/2022), oportunidade na qual o Pretório Excelso – em sua composição plena e em consonância com o decidido por este Superior Tribunal no HC n. 598.051/SP – reconheceu a imprescindibilidade de tal forma de monitoração da atividade policial e determinou, entre outros pontos, que “o Estado do Rio de Janeiro, no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, instale equipamentos de GPS e sistemas de gravação de áudio e vídeo nas viaturas policiais e nas fardas dos agentes de segurança, com o posterior armazenamento digital dos respectivos arquivos”.

            k) Mesmo que se considere que todos os flagrantes decorrem de busca pessoal – o que por certo não é verdade –, as estatísticas oficiais das Secretarias de Segurança Pública apontam que o índice de eficiência no encontro de objetos ilícitos em abordagens policiais é de apenas 1%; isto é, de cada 100 pessoas revistadas pelas polícias brasileiras, apenas uma é autuada por alguma ilegalidade. É oportuno lembrar, nesse sentido, que, em Nova Iorque, o percentual de “eficiência” das stop and frisks era de 12%, isto é, 12 vezes a porcentagem de acerto da polícia brasileira, e, mesmo assim, foi considerado baixo e inconstitucional em 2013, no julgamento da class action Floyd, et al. v. City of New York, et al. pela juíza federal Shira Scheindlin.

            l) Conquanto as instituições policiais hajam figurado no centro das críticas, não são as únicas a merecê-las. É preciso que todos os integrantes do sistema de justiça criminal façam uma reflexão conjunta sobre o papel que ocupam na manutenção da seletividade racial. Por se tratar da “porta de entrada” no sistema, o padrão discriminatório salta aos olhos, à primeira vista, nas abordagens policiais, efetuadas principalmente pela Polícia Militar. No entanto,  essas práticas só se perpetuam porque, a pretexto de combater a criminalidade, encontram respaldo e chancela, tanto de delegados de polícia, quanto de representantes do Ministério Público – a quem compete, por excelência, o controle externo da atividade policial (art. 129, VII, da Constituição Federal) e o papel de custos iuris –, como também, em especial, de segmentos do Poder Judiciário, ao validarem medidas ilegais e abusivas perpetradas pelas agências de segurança.

            m) O Manual do Conselho Nacional de Justiça para Tomada de Decisão na Audiência de Custódia orienta a que: “Reconhecendo o perfilamento racial nas abordagens policiais e, consequentemente, nos flagrantes lavrados pela polícia, cabe então ao Poder Judiciário assumir um papel ativo para interromper e reverter esse quadro, diferenciando-se dos atores que o antecedem no fluxo do sistema de justiça criminal”

            n) Em paráfrase ao mote dos movimentos antirracistas, é preciso que sejamos mais efetivos ante as práticas autoritárias e violentas do Estado brasileiro, pois enquanto não houver um alinhamento pleno, por parte de todos nós, entre o discurso humanizante e ações verdadeiramente transformadoras de certas práticas institucionais e individuais, continuaremos a assistir, apenas com lamentos, a morte do presente e do futuro, de nosso país e de sua população mais invisível e vulnerável. E não realizaremos o programa anunciado logo no preâmbulo de nossa Constituição, de construção de um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.

Distinção entre fundada suspeita e fundadas razões

A fundada suspeita legitima a busca pessoal, na forma do art. 244 do Código de Processo Penal e possui um menor rigor do que as fundadas razões, tanto é que o Superior Tribunal de Justiça decidiu que a mera intuição acerca de eventual traficância praticada pelo agente autoriza a abordagem policial (busca pessoal) em via pública para averiguação, o que, no entanto, não autoriza o ingresso em domicílio.[25]

O art. 244 do Código de Processo Penal exige a presença de fundada suspeita para a realização de busca pessoal, enquanto o art. 240, § 1º, do CPP exige a presença de fundadas razões para a realização de busca domiciliar, termo este inclusive utilizado pelo Supremo Tribunal Federal no RE n. 603.616/RO, que fixou as balizas necessárias para legitimar o ingresso da polícia em residência nos casos de flagrante.

Art. 240. A busca será domiciliar ou pessoal. § 1o Proceder-se-á à busca domiciliar, quando fundadas razões a autorizarem, para:  Art. 244. A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar.

O conceito de fundada suspeita e de fundadas razões não se encontram definidos pela lei, sendo verdadeiros conceitos abertos e que depende do intérprete.             Guilherme de Souza Nucci explica que suspeita é uma desconfiança ou suposição, algo intuitivo e frágil, por natureza, razão pela qual a norma exige fundada suspeita, que é mais concreto e seguro. Em relação às fundadas razões, Nucci ensina que significa a existência de indícios razoáveis de materialidade e autoria.[26]

Norberto Avena[27] leciona que:

Por fundadas razõescompreende-se o conjunto de elementos objetivos que permitem ao juiz formar sua convicção quanto a possuir, efetivamente, o indivíduo, em seu domicílio, o material objeto da diligência. Já por fundadas suspeitasentende-se a desconfiança ou suposição, algo intuitivo e frágil, diferindo, pois, do conceito de fundadas razões, que requer uma maior concretude quanto à presença dos motivos que ensejam a busca domiciliar. A motivação, na busca pessoal, encontra-se no subjetivismo da autoridade que a determinar ou executar.

Em que pese a jurisprudência utilizar os termos “fundada suspeita” e “fundadas razões” sem o rigor técnico, pois esses conceitos acabam se confundindo nas fundamentações e são utilizados indistintamente, possuem importante distinção jurídica e prática, na medida em que o primeiro autoriza a busca pessoal sem mandado, mas não autoriza a busca domiciliar sem mandado, enquanto o segundo autoriza a busca pessoal e a busca domiciliar sem autorização judicial.

Para o Superior Tribunal de Justiça, a fuga para o interior de residência ao avistar o policial, que se encontra em diligência de trânsito de rotina, justifica a abordagem policial fora da residência. Nota-se haver um maior rigor na análise do ingresso em domicílio, pois a inviolabilidade domiciliar é um direito fundamental.

Esquematicamente, os conceitos ora estudados podem assim serem visualizados.

Fundada suspeitaFundadas razões
Arts. 240, § 2º, e 244, ambos do CPPArt. 240, § 1º, do CPP
Conceito vagoConceito vago
Desconfiança, suposição atrelada a algum elemento concreto[28], como um objeto na cintura por debaixo da blusa que pode ser uma arma.Indícios razoáveis de materialidade e autoria da prática de crime.
Autoriza a busca pessoalAutoriza a busca pessoal
Não autoriza a busca domiciliarAutoriza a busca domiciliar
Há um menor rigor para a exigência da fundada suspeitaHá um maior rigor para a exigência das fundadas razões
Exemplos: 1. Indivíduo que corre ao visualizar a polícia pode ser abordado na rua.   2. Indivíduo é visualizado com um objeto por debaixo da blusa, parecido com uma arma de fogo, em razão do volume, justifica a busca pessoal.   3. Indivíduo é visto em local conhecido como ponto de tráfico, o que caracteriza a fundada suspeita e justifica a busca pessoal.   4. Indivíduo é visto vendendo drogas em uma movimentação atípica na porta de sua residência, o que é constatado após a realização de campana e abordagem de usuários que compraram a droga. Quando o agente comparecer na porta de sua residência será possível realizar a busca pessoal.Exemplos: 1. Indivíduo que corre ao visualizar a polícia não pode ser abordado, caso entre em sua residência. 2. Indivíduo é visualizado com um objeto por debaixo da blusa, parecido com uma arma de fogo, em razão do volume, dentro de sua casa, que possui portão de grade, não justifica a busca domiciliar. 3. Indivíduo é visto em local conhecido como ponto de tráfico, o que, por si só, não justifica a busca domiciliar.   4. Indivíduo é visto vendendo drogas em uma movimentação atípica na porta de sua residência, o que é constatado após a realização de campana e abordagem de usuários que compraram a droga. A polícia poderá realizar busca domiciliar sem autorização judicial.  

Considerações finais

A abordagem policial é um dos principais instrumentos jurídicos de trabalho dos policiais, o que torna essencial, por parte dos policiais, o conhecimento da lei, da doutrina e da jurisprudência, que foi um dos propósitos deste artigo.

A discricionariedade na realização da busca pessoal reside na constatação dos elementos da fundada suspeita, na análise, pelo policial, se há fundada suspeita, a qual, após ser detectada, em tese, torna-se um ato vinculado, isto é, obriga o policial à sua realização, já que o art. 240, § 2º, do Código de Processo Penal é incisivo ao dizer que proceder-se-á – note a determinação legal ao usar o verbo “proceder” no futuro do presente do indicativo – à busca pessoal quando houver fundada suspeita e o art. 244, do mesmo diploma legal, preconiza que a busca pessoal independerá de mandado no caso de fundada suspeita, em razão da impossibilidade de se esperar uma decisão judicial, dada a urgência da medida e em observância ao princípio da oportunidade, além de ser obrigação do policial atuar na preservação da ordem pública (art. 144 da CF). Dessa forma, é possível falar que o policial, ao realizar a busca pessoal, atua no estrito cumprimento do dever legal.

O Superior Tribunal de Justiça já decidiu que “não se mostra razoável conferir a um servidor da segurança pública total discricionariedade para, a partir de mera suposição (algo intuitivo e frágil,), sair revistando as pessoas pela rua e seus pertences e, então, verificar se com elas há ou não alguma substância entorpecente. A ausência de justificativas e de elementos seguros a autorizar a busca pessoal pode acabar esvaziando o próprio direito à privacidade e à intimidade de sua condição fundamental.”[29]

A abordagem policial tem por dever prevenir delitos e condutas ofensivas à ordem pública e decorre do poder de polícia.[30]

Sempre que o policial realizar abordagens e registrar ocorrências é prudente que especifique no registro quais elementos o levaram a realizar a busca pessoal, com a finalidade de atender ao disposto no art. 244 do Código de Processo Penal, até porque quando for ser ouvido na justiça, caso seja questionado, dificilmente vai se lembrar de quais elementos, dados, circunstâncias foram utilizados para a realização da busca pessoal e não há nenhuma vedação à consulta a apontamentos por parte do policial durante a audiência (art. 204, parágrafo único, do CPP). Pode imprimir o Boletim de Ocorrência, ler antes da audiência e levar um pequeno papel com tópicos para se recordar.[31]

A busca pessoal que resulte na apreensão de objetos ilegais, como armas e drogas, sem que seja procedida de fundada suspeita acarreta ilegalidade da apreensão dos bens, razão pela qual é de fundamental importância que os policiais especifiquem as razões da busca pessoal. Isto é, a localização de objetos ilícitos “por sorte” não legitima a abordagem, já que a constatação da fundada suspeita deve ser prévia à sua realização, sob pena das provas serem consideradas ilícitas na forma do art. 157 do Código de Processo Penal.

A Lei n. 13.869/19 – Lei de Abuso de Autoridade – prevê no artigo 25 que constitui abuso de autoridade o ato de “Proceder à obtenção de prova, em procedimento de investigação ou fiscalização, por meio manifestamente ilícito”. Diante dessa previsão, o policial que realiza a abordagem, prende e, posteriormente, o judiciário reconhece a ilegalidade da abordagem, por ausência de fundada suspeita, incide nesse crime? Como os requisitos da fundada suspeita possuem um grau de subjetividade, não é possível se falar em “meio manifestamente ilícito”. Pode até ser ilícito na avaliação dos julgadores, mas a manifesta ilicitude é de difícil caracterização, em razão do subjetivismo na análise dos requisitos da fundada suspeita, que varia de intérprete para intérprete e a divergência na avaliação dos fatos não configura abuso de autoridade (art. 1º, § 2º). Além do mais, a abordagem policial realizada no dia a dia, durante o policiamento ostensivo, tem por fim prevenir a ocorrência de crimes e fiscalizar se os abordados portam objetos ilegais, o que afasta o dolo específico de abusar da autoridade (art. 1º, 1º).

O mesmo raciocínio se aplica ao art. 33 da Lei de Abuso de Autoridade, que prescreve ser crime “Exigir informação ou cumprimento de obrigação, inclusive o dever de fazer ou de não fazer, sem expresso amparo legal”. A partir do momento em que o policial, na rua, determina que uma pessoa coloque as mãos na cabeça e vire de costas para passar pela abordagem, impõe um dever de fazer, ainda que momentâneo e rápido. Caso não esteja presente a fundada suspeita, não há amparo legal para assim proceder. Contudo, a ausência de amparo legal não é expressa, pois a fundada suspeita encontra previsão em lei, sendo a divergência somente quanto aos requisitos da fundada suspeita – avaliação dos fatos -, o que impede a prática de abuso de autoridade (art. 1º, § 2º). De mais a mais, não se encontra presente, também, o dolo específico de abusar da autoridade (art. 1º, 1º).

Caso o policial realize a busca pessoal em uma pessoa que não gosta, por questões pessoais, e sempre que a visualiza na rua realiza abordagem policial, sem nenhum fundamento, com o intuito único e exclusivo de demonstrar poder e expor o abordado, praticará o crime de abuso de autoridade previsto no art. 33 da Lei n. 13.869/19.

REFERÊNCIAS

ANUNCIAÇÃO, Diana; TRAD, Leny Alves Bonfim; FERREIRA, Tiago. “Mão na cabeça!”: abordagem policial, racismo e violência estrutural entre jovens negros de três capitais do nordeste. Saúde e Sociedade, [S.L.], v. 29, n. 1, 2020. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/s0104-12902020190271. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-12902020000100305&tlng=pt. Acesso em: 14 fev. 2021.

AVENA, Norberto. Processo Penal. 10. ed. São Paulo: Editora Método, 2018.

HOFFMANN, Henrique. Além de investigativa, busca pessoal pode ser preventiva. Disponível em:<https://www.conjur.com.br/2017-set-05/academia-policia-alem-investigativa-busca-pessoal-preventiva>. Acesso em: 15 fev. 2021.

LESSA, Marcelo de Lima. Busca pessoal processual, busca pessoal preventiva e fiscalização policial: legalidade e diferenças. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5482, 5 jul. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/61753. Acesso em: 17 fev. 2021.

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NASSARO, Adilson Luís Franco. A busca pessoal e suas classificações. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1356, 19 mar. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9608. Acesso em: 18 fev. 2021.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 19ª. ed. ver., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2020.


[1]             Nesse sentido decidiu o Superior Tribunal de Justiça no que tange ao mandado de prisão:  RHC 118.451/PR, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, 6ª Turma, julgado em 04/08/2020, DJe 12/08/2020.

[2]             REsp 1.120.113/SP, Relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe de 10/10/2011 e STJ – REsp: 1685575 SP 2017/0157723-3, Relator: Ministro HERMAN BENJAMIN, Data de Julgamento: 03/10/2017, T2 – SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 16/10/2017.

[3]             APn 843/DF, Rel. Ministro Herman Benjamin, Corte Especial, j. em 06/12/2017, DJe 01/02/2018.

[4] AgRg no HC 597.923/SP, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 20/10/2020, DJe 26/10/2020.

[5]             HC 470.937/SP, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em 04/06/2019, DJe 17/06/2019.

[6]            LESSA, Marcelo de Lima. Busca pessoal processual, busca pessoal preventiva e fiscalização policial: legalidade e diferenças. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5482, 5 jul. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/61753. Acesso em: 17 fev. 2021.

[7] NUCCI, Guilherme de Souza.  Manual de processo penal e execução penal. 11. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014.  p. 473.

[8] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2020.

[9] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 7. ed. Salvador: Juspodivm, 2020.

[10] AVENA, Norberto. Processo Penal. 10. ed. São Paulo: Editora Método, 2018.

[11] STF – HC: 81305 GO, Relator: Ilmar Galvão, Data de Julgamento: 13/11/2001, Primeira Turma, Data de Publicação: DJ 22-02-2002.

[12]           HC 614.339/SP, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, j. 09/02/2021, DJe 11/02/2021.

[13]           AgRg no AREsp 1403409/RS, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, j. 26/03/2019, DJe 04/04/2019

[14]           HC 552.395/SP, Rel. Ministro Jorge Mussi, 5ª Turma, j. em 20/02/2020, DJe 05/03/2020.

[15]           HC 216.437/DF, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, 6ª Turma, j. em 20/09/2012, DJe 08/03/2013.

[16]           No caso o Superior Tribunal de Justiça não adentrou ao mérito, sob o argumento de que “Se o Tribunal de origem, mediante valoração do acervo probatório produzido nos autos, entendeu, de forma fundamentada, ser ‘legítima’ a abordagem policial questionada, tendo em vista o local e o horário em que o paciente foi abordado, não cabe a Esta Corte análise acerca da alegada ausência de ‘fundada suspeita’, na medida em que demandaria exame detido de provas, inviável em sede de writ.”, em que pese ter adentrado ao mérito em outros casos que envolviam. HC 385.110/SC, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, 5ª Turma, julgado em 06/06/2017, DJe 14/06/2017.

[17] STJ – HC 257.002/SP, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, 5ª Turma, julgado em 17/12/2013, DJe 19/12/2013.

[18] STJ – HC: 660930 SP 2021/0116975-6, Relator: Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Data de Publicação: DJ 26/04/2021

[19]           AgRg no AREsp 1689512/SC, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, 6ª Turma, j. em 18/08/2020, DJe 26/08/2020.

[20]           HC 529.554/SP, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, 6ª Turma, j. em 10/12/2019, DJe 13/12/2019.

[21]           REsp 1576623/RS, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, j. em 08/10/2019, DJe 14/10/2019.

[22] STJ – HC: 695815 SP 2021/0307186-5, Relator: Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Data de Publicação: DJ 09/11/2021.

[23]  RHC 158.580/BA, Rel. Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, j. 19/04/2022.

[24] STJ – HC: 695815 SP 2021/0307186-5, Relator: Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Data de Publicação: DJ 09/11/2021.

[25] STJ, HC 415332, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, j. em 16/08/2018.

[26] NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 19ª. ed. ver., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2020.

[27] AVENA, Norberto. Processo Penal. 10. ed. São Paulo: Editora Método, 2018.

[28]          “A ‘fundada suspeita’, prevista no art. 244 do CPPnão pode fundar-se em parâmetros unicamente subjetivosexigindo elementos concretos que indiquem a necessidade da revista, em face do constrangimento que causa. Ausência, no caso, de elementos dessa natureza, que não se pode ter por configurados na alegação de que trajava, o paciente, um” blusão “suscetível de esconder uma arma, sob risco de referendo a condutas arbitrárias ofensivas a direitos e garantias individuais e caracterizadoras de abuso de poder. Habeas corpus deferido para determinar-se o arquivamento do Termo. (HC 81305, Min. ILMAR GALVÃO, DJ 22-02-2002).

[29]           STJ – REsp: 1576623 RS 2016/0003404-9, Relator: Ministro Rogerio Schietti Cruz, Data de Julgamento: 08/10/2019, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 14/10/2019 .

[30]           HC 385.110/SC, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, 5ª Turma, julgado em 06/06/2017, DJe 14/06/2017.

[31]           Interpretação extraída do seguinte julgado: STJ – RHC 104.682/MG, j. 13/12/2018.

A inviolabilidade domiciliar, o acesso da polícia e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça

No texto “O direito fundamental à inviolabilidade de domicílio e os seus limites” publicado neste site “Atividade Policial”, é abordado com profundidade o direito fundamental à inviolabilidade domiciliar, além de diversos detalhes.

Neste texto, após estudar centenas de julgados dos tribunais superiores, separei os mais importantes para traçar diretrizes a respeito dos entendimentos dos tribunais superiores acerca do ingresso de policiais em domicílio.

O domicílio tem proteção constitucional.

Art. 5º (…)

XI – a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;

O Decreto 678/92 que promulgou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, também protege o domicílio.

Art. 11

2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação.

O art. 150, §4º, do Código Penal utiliza o termo “casa” e este engloba: I – qualquer compartimento habitado; II – aposento ocupado de habitação coletiva; III – compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade.

a) Qualquer compartimento habitado – o conceito abrange inclusive moradias transitórias. Logo, não se exige que seja afixada em determinado local, motivo pelo qual admite-se como casa o barco, trailer, motorhome, cabina de trem, vagão de metrô abandonado, quarto de hotel, de pensão, abrigo embaixo de ponte ou viaduto.

b) Aposento ocupado de habitação coletiva – o conceito abrange o cômodo (quarto ou sala etc) onde o indivíduo mora que constitui seu lar e, portanto, goza da proteção legal. Logo, os locais públicos do hotel, motel e pensão não são objeto da proteção legal, porém, o quarto com hóspede, o local da administração, a cozinha, a lavanderia gozam da proteção

c) Compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade – local onde o indivíduo desenvolve sua profissão, atividade ou negócios, como escritório do advogado, do engenheiro, gabinete do juiz, do promotor, do delegado, do Comandante etc. As dependências desses compartimentos, como salas de espera, que sejam abertas ao público não gozam da proteção. Desse modo, não se compreende dentro desse conceito os bares, teatros, cinemas, lojas etc. As dependências da casa que sejam cercadas abrangem o conceito e gozam da proteção legal, no entanto as áreas não cercadas não caracterizam dependência e por essa razão não gozam da proteção legal.

Observa-se que o próprio Código Penal cuidou de dizer o que não se considera como casa, consoante art. 150, § 5º: I – hospedaria, estalagem ou qualquer outra habitação coletiva, enquanto aberta, salvo a restrição do n.º II do parágrafo anterior; II – taverna, casa de jogo e outras do mesmo gênero.

a) Hospedaria, estalagem ou qualquer outra habitação coletiva, enquanto aberta – aqui não se considera casa os locais de acesso livre e uso comum, enquanto abertos ao público. Ex.: hall de entrada, área da piscina, sala de espera, etc.

b) Taverna, casa de jogo e outras do mesmo gênero – taverna consiste em bar, restaurante, botequim, vendinha, etc. Por sua vez, casa de jogo corresponde a locais onde se praticam jogos de azar (ex.: cassino) ou não, como um fliperama.

Muitas vezes o termo domicílio é empregado como sinônimo de casa.

A Constituição Federal autoriza o ingresso em domicílio, independentemente, do consentimento do morador, em quatro hipóteses: 1. Em caso de flagrante delito; 2. Em caso de desastre; 3. Para prestar socorro; 4. Durante o dia, por determinação judicial.

Extrai-se do texto constitucional que não se exige mandado judicial para entrada forçada em residência em caso de flagrante delito, de desastre e para prestar socorro, em qualquer período, de modo que a limitação temporal é aplicada apenas para as situações de cumprimento de mandado judicial, hipótese na qual só pode ser cumprido durante o dia.

A discussão quanto ao ingresso forçado em domicílio pelos policiais sempre foi questão de intenso debate na jurisprudência e na doutrina. Não é possível, dada a infinidade de situações possíveis, delimitar antecipadamente de forma objetiva e clara em quais casos a polícia pode ingressar em domicílio, devendo essa análise ser feita casuisticamente (caso a caso).

O Supremo Tribunal Federal, em 2015, no Recurso Extraordinário n. 603616 fixou balizas importantes para serem utilizadas quando da análise do ingresso em domicílio, por policiais, nas situações de flagrante delito, sendo fixada a seguinte tese:

A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados.

Caso concreto

A polícia estava monitorando o agente e seu comparsa. Em um dia em que o comparsa saiu da casa do recorrente dirigindo um caminhão, ao ser interceptado foram encontrados 23,421 kg de cocaína dentro do veículo. Ao ser preso o comparsa confirmou que recebeu a droga de outro agente. Na sequência os policiais dirigiram-se à casa deste agente e lá encontraram 8,542kg dentro de um veículo Ford Focus de sua propriedade, estacionado na garagem de sua residência.

Tratava-se de caso de crime permanente (tráfico de substância entorpecente), ou seja, cuja consumação se prolonga no tempo, admitindo o flagrante em qualquer momento, enquanto perdurar a ilicitude. Ex.: tráfico de drogas, sequestro, furto de energia elétrica, posse de arma de fogo.

A defesa sustentou a ilicitude das provas que fundamentaram a sentença condenatória, sob o argumento de que foram colhidas mediante invasão do domicílio sem ordem judicial que autorizasse a busca e apreensão.

Fundamentos do voto vencedor (Ministro Gilmar Mendes)

É necessário estabelecer uma interpretação que, ao mesmo tempo, confirme a garantia da inviolabilidade e, de outro lado, proteja os agentes estatais, oferecendo orientação quanto a sua forma de atuação.

O entendimento da Suprema Corte e do STJ é no sentido de que é viável o ingresso forçado pela polícia, independentemente de autorização judicial, se dentro da casa está ocorrendo um crime permanente.

A entrada forçada sem ordem judicial sofre controle judicial posterior, como forma de preservar a inviolabilidade domiciliar, protegendo o domicílio contra ingerências arbitrárias.

A entrada forçada é admissível pelo agente estatal desde que fique demonstrada a existência de fundadas razões que permitam concluir a situação e flagrância, de modo que a simples constatação da situação de flagrância realizada mediante posterior controle judicial não é suficiente.

A proteção contra a invasão arbitrária exige que a diligência seja avaliada em parâmetros anteriores à sua realização, de modo que o agente de segurança pública demonstre a existência de justa causa por meio de elementos que caracterizem a suspeita da ocorrência de uma situação que autoriza o ingresso forçado.

No caso, o ingresso forçado estava fundamentado no acompanhamento prévio e nas declarações do comparsa, o que constitui elementos suficientes para indicar fundadas razões de que o agente estivesse cometendo o delito.

Comentários

Nesse caso submetido ao crivo do STF, não há dúvidas de que o ingresso não foi realizado por circunstâncias desconhecidas, ou seja, os policiais não contaram com a sorte. Foi demonstrado que a probabilidade do agente ter em depósito substância entorpecente era muito alta, em razão do fato de seu comparsa ter sido preso pouco antes pela polícia após ser abordado e flagrado com grande quantidade de cocaína logo após sair da casa do agente.

Depreende-se do inteiro teor do julgado que os policiais monitoravam há algum tempo o agente e seu comparsa e que o ingresso na residência não se deu com base exclusivamente em denúncia anônima sem posterior investigação, mas em razão da prisão do comparsa e da sua confissão em afirmar que recebeu a substância entorpecente do agente.

Desse modo, o ingresso na casa foi realizado à luz da Constituição Federal, na medida em que os policiais apresentaram justa causa suficiente para a entrada forçada.

Exposta a teste fixada pelo Supremo Tribunal Federal que é utilizada pelo Superior Tribunal de Justiça decidir os mais diversos casos, a seguir são analisados os julgados do STJ.

Hipóteses nas quais o Superior Tribunal de Justiça entendeu pela licitude da entrada forçada no domicílio

1. É legítimo o ingresso forçado em imóvel não habitado após denúncia anônima e monitoração do local pela polícia para confirmar ausência de habitantes.

Sem desconsiderar a proteção constitucional de que goza a propriedade privada, ainda que desabitada, não se verifica nulidade na busca e apreensão efetuada por policiais, sem prévio mandado judicial, em apartamento que não revela sinais de habitação, nem mesmo de forma transitória ou eventual, se a aparente ausência de residentes no local se alia à fundada suspeita de que tal imóvel é utilizado para a prática de crime permanente (armazenamento de drogas e armas), o que afastaria a proteção constitucional concedida à residência/domicílio. Situação em que, após denúncia anônima detalhada de armazenamento de drogas e de armas, seguida de informações dos vizinhos de que não haveria residente no imóvel, de vistoria externa na qual não foram identificados indícios de ocupação da quitinete (imóvel contendo apenas um colchão, algumas malas, um fogão e janela quebrada, apenas encostada), mas foi visualizada parte do material ilícito, policiais adentraram o local e encontraram grande quantidade de drogas (7kg de maconha prensada, fracionadas em 34 porções; 2.097, 8kg de cocaína em pó, fracionada em 10 tabletes e 51 gramas de cocaína petrificada, vulgarmente conhecida como crack) e de armas (uma submetralhadora com carregador, armamento de uso proibido; 226 munições calibre .45; 16 munições calibre 12; 102 munições calibre 9mm; 53 munições calibre .22; 04 carregadores, 01 silenciador, 02 canos de arma curta, 03 coldres).

A transposição de portão em muro externo que cerca prédio de apartamentos, por si só, não implica, necessariamente, afronta à garantia de inviolabilidade do domicílio. Para tanto, seria necessário demonstrar que dito portão estava trancado, ou que havia interfone ou qualquer outro tipo de aparelho/mecanismo de segurança destinado a limitar a entrada de indivíduos que quisessem ter acesso ao prédio já no muro externo, o que não ocorre no caso concreto, em que há, inclusive, depoimento de policial afirmando que o portão estaria aberto.

STJ, HC 588445. Rel Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, j. 25/08/2020.

Caso concreto

Policiais, após denúncia anônima, ingressaram em apartamento que não tinha sinais de moradia habitual.

A defesa argumentou a ausência de fundadas razões para a entrada forçada pelos policiais e que a ausência de móvel e de cortinas não autorizariam o ingresso.

Fundamentos da decisão

  • O STF fixou entendimento no RE nº 603.616/RO que o ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial apenas se revela legítimo quando amparado em fundadas razões devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso concreto, que indiquem que naquele momento há situação de flagrante delito no interior da residência.
  • O crime de tráfico de entorpecentes é permanente, o que legitima a entrada de policiais em domicílio para cessar a prática delitiva, desde que existam elementos suficientes de probabilidade delitiva capazes de demonstrar a ocorrência de flagrância.
  • Para o STF o conceito de casa possui caráter amplo porque compreende (a) qualquer compartimento habitado; (b) qualquer aposento ocupado de habitação coletiva; (c) qualquer compartimento privado não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade.
  • Pelos depoimentos dos policiais foram realizadas diligências no local, através de conversa com moradores próximos para averiguar se o imóvel era ocupado por alguém, ocasião em que foi informado que não era ocupado.
  • A conjugação da denúncia anônima de que o local era utilizado para armazenamento de substâncias entorpecentes e armas de fogo, associada às informações prestadas pelos vizinhos de que não havia ninguém residindo no local, somado a vistoria externa efetuada pelos policiais que constataram a ausência de indícios de ocupação do imóvel, bem como a espera por algum habitante do recinto, afasta a garantia constitucional e legitima o ingresso sem ordem judicial.
  • O fato de o prédio ser cercado por muro com portão pelo qual entraram os policiais antes de adentrar na quitinete não conduz ao entendimento de que a transposição do portão já viola a garantia constitucional, especialmente diante das informações de que o portão estava aberto e não havia qualquer tipo de aparelho destinado a limitar a entrada de indivíduos.
  • O material ilícito era possível de ser visualizado pela janela conforme se extrai dos depoimentos dos policiais, fato que somado aos demais fatores, autorizariam o ingresso.

Comentários

Observa-se que, nesse caso, a denúncia anônima não era algo isolado, os policiais realizaram diligências prévias ao entrevistar vizinhos e, ainda, monitoraram o imóvel a fim de confirmar as informações obtidas.

Verifica-se o empenho dos policiais em confirmar primeiro as informações para depois agir, a fim de legitimar a sua conduta.

As diligências prévias realizadas em uma situação de flagrante delito não caracterizam atos de investigação, típicos do Delegado de Polícia, pois a Polícia Militar possui a obrigação de atuar nas situações de flagrante delito, imediatamente, podendo, para tanto, obter informações imediatas para então agir. Isso porque a Constituição Federal em seu art. 144, § 5º, preconiza ser atribuição da Polícia Militar a preservação da ordem pública, o que inclui a repressão imediata ao delito. Por uma questão lógica, de coerência e como decorrência da teoria dos poderes implícitos, está a Polícia Militar autorizada, nas situações de flagrante delito, a diligenciar na rua para obter maiores informações e, consequentemente, atuar. Ouvir pessoas na rua, buscar informantes e realizar campana nessas situações não caracterizam atribuições típicas da autoridade de polícia judiciária, até porque para realizar a prisão em flagrante é necessário buscar informações, até para que o flagrante fique caracterizado e comprovado.

2. É legítimo o ingresso no domicílio alheio em razão de denúncia de disparo de arma de fogo dentro da casa.

O delito imputado tem natureza permanente. Legítima, portanto, a entrada de policiais para fazer cessar a prática do delito, independentemente de mandado judicial, desde que existam elementos suficientes de probabilidade delitiva. No caso o ingresso dos policiais no imóvel ocorreu após informações dando conta de um disparo de arma de fogo, demonstrando que os agentes de segurança atuaram a partir de fundadas suspeitas da prática de crimes no interior da residência.
STJ, HC 595.700/MG, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, j. em 06/10/2020.

Caso concreto

Os policiais realizavam patrulhamento quando foram informados a respeito de um disparo de arma de fogo e de seu autor, motivo pelo qual se dirigiram ao imóvel e lá encontraram drogas, munições, balança de precisão e uma quantia em dinheiro.

Fundamentos da decisão

  • O STF fixou entendimento no RE nº 603.616/RO que o ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial apenas se revela legítimo quando amparado em fundadas razões devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso concreto, que indiquem que naquele momento há situação de flagrante delito no interior da residência.
  • O crime de tráfico de entorpecentes é permanente, o que legitima a entrada de policiais em domicílio para cessar a prática delitiva, desde que existam elementos suficientes de probabilidade delitiva capazes de demonstrar a ocorrência de flagrância.
  • Somente quando o contexto fático anterior ao ingresso autorizar a conclusão acerca da ocorrência de crime no interior da residência é que se mostra possível sacrificar a garantia constitucional.
  • O contexto fático que se deu o flagrante decorreu da informação de um disparo de arma de fogo e de seu autor, o que legitima o ingresso no domicílio.
  • Os policiais agiram após informações que resultaram em fundadas suspeitas da prática de crime no interior da residência.

Comentários

O disparo de arma de fogo, por si só, é crime previsto na Lei n. 10.826/03.

Art. 15. Disparar arma de fogo ou acionar munição em lugar habitado ou em suas adjacências, em via pública ou em direção a ela, desde que essa conduta não tenha como finalidade a prática de outro crime:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

O fato de se escutar um disparo de arma de fogo dentro de uma residência legitima o ingresso da polícia, pois é imprescindível que se verifique se há feridos e pessoas que precisam de socorro imediato. A não prestação de socorro imediato pode resultar na morte de eventual ferido.

O disparo da arma significa que o crime acabara de ser praticado e poderia ser tanto um homicídio, quanto apenas o disparo de arma de fogo, o que constitui justa causa suficiente para o ingresso e que será possível de ser verificado somente após o ingresso.

Nestes casos o policial ingressa na residência por estar autorizado constitucionalmente por haver flagrante delito e para verificar a necessidade de se prestar socorro (art. 5º, XI, da CF).

Em se tratando da prestação de socorro, a sua real necessidade somente se verifica após o ingresso na residência e um disparo de arma de fogo é motivo idôneo suficiente para legitimar o ingresso, dada a alta probabilidade de haver ferido.

3. Busca por arma de fogo utilizada em crime autoriza o ingresso forçado em domicílio, na hipótese em que o agente for reconhecido por foto e fugir ao avistar a aproximação da polícia, entrando em sua casa e se evadindo pela janela em direção à mata.

O entendimento do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que o crime de posse de arma é do tipo permanente, cuja consumação se protrai no tempo, o qual não se exige a apresentação de mandado de busca e apreensão para o ingresso na residência do agente, quando se tem por objetivo fazer cessar a atividade criminosa, dada a situação de flagrância, inclusive no período noturno, independente de mandado judicial, e desde que haja fundada razão da existência do crime.
Diante da fundada suspeita de que o paciente teria sido o autor de roubo armado ocorrido no dia anterior (16 horas antes), visto que identificado pela vítima em reconhecimento fotográfico, sua fuga, ao avistar a aproximação da autoridade policial, entrando em sua casa e se evadindo pela janela em direção à mata, gera legitimamente a presunção de que a arma utilizada no crime poderia se encontrar na residência, o que autoriza a busca domiciliar sem prévio mandado judicial.

O fato de não ter sido encontrada a arma, mas, sim, entorpecentes em quantidade significativa (100 microtubos plásticos com cocaína, totalizando 433,8g da substância) constitui descoberta fortuita que não retira a legitimidade da situação de flagrância que ensejou a entrada dos policiais na residência.

STJ, HC 614.078/SP, Rel. Ministro Reynaldo Soares Da Fonseca, 5ª Turma, j. em 03/11/2020.

Caso concreto

Após um roubo em uma lanchonete, o suposto autor do fato foi reconhecido pela vítima, mediante fotografia apresentada pela Polícia Militar. Cerca de dezesseis horas após o fato os policiais se dirigiram à residência do autor do fato, momento em que, ao avistar os policiais, empreendeu fuga por uma janela, razão pela qual os policiais ingressaram na residência para busca da arma de fogo, ocasião na qual encontraram substâncias ilícitas dentro de um armário na cozinha.

Fundamentos da decisão

  • O entendimento firmado pelo STF em sede de repercussão geral no RE nº 603.616/RO, no qual fixou a tese de que o ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial apenas se revela legítimo quando amparado em fundadas razões devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso concreto, que indiquem que naquele momento há situação de flagrante delito no interior da residência.
  • Somente quando o contexto fático anterior ao ingresso autorizar a conclusão acerca da ocorrência de crime no interior da residência é que se mostra possível sacrificar a garantia constitucional.
  • O crime de posse ilegal de arma de fogo de uso permitido ou restrito é crime permanente. De acordo com o art. 303 do CPP, entende-se que o agente está em flagrante delito enquanto não cessar a permanência da ação. Desse modo, é legítima a entrada de policiais para fazer cessar a prática do crime, independentemente de mandado judicial, desde que demonstrada existência de fundadas razões que sinalizem para a possibilidade de afastar a proteção constitucional.
  • A autoridade policial atuou com base na fundada suspeita de que o paciente era o autor do crime de roubo armado ocorrido dezesseis horas antes porque identificado pela vítima.
  • A suspeita de que o indivíduo era o autor do crime de roubo associada à fuga empreendida pelo agente ao avistar os policiais legitima a presunção de que a arma utilizada no crime poderia se encontrar na residência, o que autoriza a busca.
  • O encontro de substâncias entorpecentes, ainda que não encontrada a arma de fogo, configura descoberta fortuita que não retira a legitimidade da situação de flagrância que ensejou a entrada dos policiais na residência.

Comentários

No caso há informações suficientes da prática de crime pelo agente, diante do reconhecimento feito pela vítima e da possibilidade de o agente manter a posse de arma de fogo no seu domicílio. Importante ressaltar que não houve flagrante do crime de roubo, afinal, já tinham passado mais de dezesseis horas do fato e da narrativa se conclui que não existia guarnição policial à procura do agente. Em que pese a finalidade dos policiais ser a localização da arma, acabaram por encontrar drogas, o que constitui descoberta fortuita, razão pela qual a prova (droga apreendida) é legal.

A teoria do encontro fortuito ou casual de provas, também denominada serendipidade, consiste na obtenção casual, fortuita, de elementos probatórios de uma infração penal que não é objeto de investigação. Isto é, busca-se investigar um crime, mas durante a investigação deste crime aparecem outros que não possuem relação com a investigação originária.

Consiste numa limitação à teoria da prova ilícita por derivação (teoria dos frutos da árvore envenenada), segundo a qual uma prova é obtida em razão de uma diligência anterior autorizada que tinha por objetivo a investigação de outro crime.

Serendipidade advém do inglês “serendipity” e significa descobrir coisas por acaso. Isto é, a pessoa sai em busca de uma coisa, mas acaba por descobrir outra(s).

Os tribunais têm aplicado a teoria do encontro fortuito, devendo ser analisado se no caso concreto houve desvio de finalidade ou não na execução do meio de obtenção de prova, para a validade da prova obtida.

Nesse sentido:

1. Segundo a teoria do encontro fortuito ou casual de provas (serendipidade), independentemente da ocorrência da identidade de investigados ou réus, consideram-se válidas as provas encontradas casualmente pelos agentes da persecução penal, relativas à infração penal até então desconhecida, por ocasião do cumprimento de medidas de obtenção de prova de outro delito regularmente autorizadas, ainda que inexista conexão ou continência com o crime supervenientemente encontrado e este não cumpra os requisitos autorizadores da medida probatória, desde que não haja desvio de finalidade na execução do meio de obtenção de prova.

2. Assim, embora, em um primeiro momento, a investigação não tenha sido dirigida ao recorrente, o encontro fortuito de provas, ocorrido em procedimento efetuado com observância da legislação de regência (perícia no celular do corréu), é válido para comprovar seu envolvimento no tráfico de drogas.

STJ – RHC 117.113/MG, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 26/11/2019, DJe 05/12/2019. (Destaque nosso)

A infração descoberta é denominada de crime achado, sendo este o termo utilizado pelo Supremo Tribunal Federal.

O “crime achado”, ou seja, a infração penal desconhecida e, portanto, até aquele momento não investigada, sempre deve ser cuidadosamente analisada para que não se relativize em excesso o inciso XII do art. 5º da Constituição Federal. A prova obtida mediante interceptação telefônica, quando referente a infração penal diversa da investigada, deve ser considerada lícita se presentes os requisitos constitucionais e legais.

STF – HC 129678, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 13/06/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-182 DIVULG 17-08-2017 PUBLIC 18-08-2017.

A doutrina subdivide o encontro fortuito de provas em primeiro e segundo grau. Será de primeiro grau quando houver o encontro fortuito de fatos conexos, o que valerá como prova. Será de segundo grau quando não houver conexão no encontro fortuito de fatos, razão pela qual o elemento descoberto valerá como notitia criminis e não prova, o que autoriza o desencadeamento de uma nova investigação.1

Não obstante este entendimento doutrinário, o Superior Tribunal de Justiça decidiu ser possível considerar como prova a descoberta fortuita, ainda que não haja conexão, a saber: “Em princípio, havendo o encontro fortuito de notícia da prática futura de conduta delituosa, durante a realização de interceptação telefônica devidamente autorizada pela autoridade competente, não se deve exigir a demonstração da conexão entre o fato investigado e aquele descoberto, a uma, porque a própria Lei nº 9.296/96 não a exige, a duas, pois o Estado não pode se quedar inerte diante da ciência de que um crime vai ser praticado e, a três, tendo em vista que se por um lado o Estado, por seus órgãos investigatórios, violou a intimidade de alguém, o fez com respaldo constitucional e legal, motivo pelo qual a prova se consolidou lícita. A discussão a respeito da conexão entre o fato investigado e o fato encontrado fortuitamente só se coloca em se tratando de infração penal pretérita, porquanto no que concerne as infrações futuras o cerne da controvérsia se dará quanto a licitude ou não do meio de prova utilizado e a partir do qual se tomou conhecimento de tal conduta criminosa.”2

Eugênio Pacelli sustenta a desnecessidade de haver conexão para que a prova descoberta seja lícita, posicionamento com o qual concordamos.3

Não é a conexão que justifica a licitude da prova. O fato, de todo relevante, é que, uma vez franqueada a violação dos direitos à intimidade e à privacidade dos moradores da residência, não haveria razão alguma para a recusa de provas de quaisquer outros delitos, punidos ou não com reclusão. Isso porque uma coisa é a justificação para a autorização da quebra de sigilo; tratando-se de violação à intimidade, haveria mesmo de se acenar com a gravidade do crime. Entretanto, outra coisa é o aproveitamento do conteúdo da intervenção autorizada; tratando-se de material relativo à prova de crime (qualquer crime), não se pode mais argumentar com a justificação da medida (interceptação telefônica), mas, sim, com a aplicação da lei.

A serendipidade subdivide-se ainda em objetiva e subjetiva. Será objetiva quando o encontro fortuito for de fatos criminosos e será subjetiva quando o encontro fortuito relacionar-se ao envolvimento de outras pessoas que não estejam sendo investigadas.

Em qualquer caso deve ser analisado se houve desvio de finalidade na execução do meio de obtenção de prova. Eugênio Pacelli cita um exemplo interessante em que o desvio se caracteriza, razão pela qual as provas são ilícitas.

Quando, na investigação de um crime contra a fauna, por exemplo, agentes policiais, munidos de mandado judicial de busca e apreensão, adentram em determinada residência para o cumprimento da ordem, espera-se, e mesmo exige-se (art. 243, II, CPP), que a diligência se realize exclusivamente para a busca de animais silvestres. Assim, se os policiais passam a revirar as gavetas ou armários da residência, é de se ter por ilícitas as provas de infração penal que não estejam relacionadas com o mandado de busca e apreensão. Em semelhante situação, como é óbvio, o local revistado jamais abrigaria o objeto do mandado judicial.

A descoberta fortuita de provas não é incomum nas buscas e apreensões em domicílio, seja em razão de mandado ou de flagrante delito, e nas interceptações telefônicas.

No caso de cumprimento de mandado de busca e apreensão o art. 243, II, do Código de Processo Penal exige que no mandado conste o motivo e os fins da diligência, não devendo estes serem desvirtuados quando de seu cumprimento. Não deve haver desvio de finalidade na realização da diligência, sob pena dos elementos probatórios se tornarem ilícitos.

Em que pese a busca e apreensão decorrente de flagrante delito não ser precedida de mandado, aplica-se o mesmo raciocínio do cumprimento do mandado de busca e apreensão, pois o policial ao entrar em uma residência em razão de flagrante delito tem um fim específico que não pode ser desvirtuado, sob pena de incorrer em desvio de finalidade na execução do meio probatório e as provas, eventualmente, descobertas, se tornarem ilícitas. Além do mais, ao ingressar em residência em razão de flagrante delito, o policial tem por foco a localização de bens específicos, que é de conhecimento e investigação prévia à entrada, o que autoriza a busca domiciliar sem prévia autorização judicial. Do contrário, seria permitir uma busca completa na residência sem fundamento idôneo para tal.

Exemplo 01: A polícia ingressa legitimamente na residência, após denúncia de disparo de arma de fogo, sendo esta informação confirmada por vizinhos. Durante a busca realizada na residência a polícia poderá procurar somente pela arma de fogo. Como a arma de fogo pode estar guardada ou escondida em qualquer local da casa, será lícito abrir gavetas, armários e procurar por todos os cantos da casa, razão pela qual eventual droga localizada e apreendida, durante essas buscas, será considerada lícita, pois não houve deviso de finalidade na execução da diligência, já que a procura pela arma, logicamente, é o mesmo caminho pela procura de droga. Caso seja encontrada uma arma, é legítimo que os policiais continuem a procurar mais armas, pois não se sabe se o agente possui somente uma arma de fogo na residência ou se essa informação, eventualmente, recebida, é verdadeira. Com isso, é lícita a busca em toda a residência à procura de armas de fogo.

Exemplo 02: A polícia recebe denúncia via COPOM de um agente que está praticando tráfico de drogas em sua residência, momento em que a guarnição policial se desloca e visualiza à distância o agente vendendo drogas para usuários e uma movimentação incomum, sendo confirmado por vizinhos que o local é ponto de tráfico, o que é filmado pela polícia que decide ingressar na residência sem mandado. Como as drogas podem estar guardadas em qualquer local da casa, será legítima a busca em todos os cômodos e móveis e eventuais armas apreendidas serão lícitas, pois não haverá desvio de finalidade na realização da diligência.

Exemplo 03: Tendo como parâmetro o exemplo de Eugênio Pacelli, quando os policiais ao realizarem diligências obtêm um mandado de busca e apreensão para buscar e apreender, exclusivamente, animais silvestres e passam a, na execução do mandado, revirar as gavetas ou armários da residência, é de se ter por ilícitas as provas de infração penal que não estejam relacionadas com o mandado de busca e apreensão, pois houve desvio de finalidade no cumprimento do mandado, pois é óbvio que o local revistado jamais abrigaria o objeto do mandado judicial.

Exemplo 04: A polícia realiza diligência e obtém na justiça um mandado de busca e apreensão, especificamente, para apreender um determinado veículo ou um avião de pequeno porte em uma Fazenda. Durante o cumprimento do mandado os policiais decidem adentrar na residência e realizam buscas que resultam na localização de armas e drogas. Como houve desvio de finalidade por não ser o objeto do mandado, as buscas são ilícitas e as provas produzidas não possuem validade.

Exemplo 05: Policiais investigam agentes que pertence à organização criminosa de sequestro de crianças e consegue descobrir a residência em que encontra-se uma criança que fora sequestrada há poucos dias e está na iminência de ser enviada para o exterior. Visando prender em flagrante e cessar a conduta criminosa e salvar a criança, os policiais decidem, em razão do flagrante delito, ingressar na residência, sem mandado, e localizam a criança, até porque pedir um mandado, nessas circunstâncias, pode fulminar o princípio da oportunidade e a criança ser levada da casa e não mais encontrada. Em um primeiro momento pode-se pensar que a finalidade pretendida pelos policiais foi atingida, afinal de contas a criança já foi localizada e os agentes presos. Ocorre que nesses casos envolvendo organizações criminosas é comum que além do objeto principal do crime praticado pela organização haja diversos outros crimes, como tráfico de drogas, porte ilegal de arma de fogo e documentos falsos, razão pela qual é razoável entender que a busca domiciliar em toda a casa é lícita, pois não há desvio de finalidade, já que é inerente às organizações criminosas a prática de uma pluralidade de crimes.

Exemplo 06: A justiça autoriza a prisão de um agente, sendo este preso dentro da residência. Como no mandado não consta autorização para a realização de busca domiciliar, eventuais buscas serão consideradas ilícitas, pois o ingresso na residência legitima-se exclusivamente para efetuar a prisão do agente e eventuais buscas caracterizam desvio de finalidade. Por outro lado, caso os policiais possuam informações fidedignas e documentadas de que na casa há objetos ilícitos, como armas e drogas, será lícita a busca domiciliar.

Exemplo 07: A justiça autoriza o cumprimento de mandado de busca e apreensão para apreender, exclusivamente, documentos falsos. Como documento falso pode estar em qualquer local da residência, eventual apreensão de arma e droga durante a busca será lícita, pois não terá ocorrido desvio de finalidade.

Exemplo 08: A justiça autoriza o cumprimento de mandado de busca e apreensão para apreender gados que foram furtados de uma Fazenda. Durante a diligência os policiais decidem adentrar à residência e dar buscas em gavetas e armários, ocasião em que localizam drogas e armas. A busca foi ilícita, pois houve desvio de finalidade. Obviamente, gados não são encontrados dentro da casa, muito menos em gavetas e armários. Portanto, as drogas e armas apreendidas não possuem validade probatória.

Exemplo 09: É determinada a busca e apreensão de um quadro em uma determinada residência. Esse quadro foi objeto de furto e tem valor econômico, contudo a pessoa que sofre a diligência não o furtou, mas o adquiriu (receptação) por preço bem aquém do verdadeiro valor. A polícia, ao adentrar na residência, já se depara com o quadro pendurado na parede da sala, contudo, resolve abrir armários e gavetas em busca de outros crimes, ocasião em que é encontrada uma arma de fogo de uso restrito. A decisão de busca somente autorizou a apreensão do quadro, logo, a conduta consistente em abrir gavetas e armários não é lícita, pois houve desvio de finalidade. Desse modo, a descoberta da arma de fogo não pode servir como prova idônea aplicada para que o agente responda pelo crime do art. 16, da Lei nº 10.826/03, a não ser se provado que seria descoberto o crime de qualquer modo (Teoria da Descoberta Inevitável), como a hipótese em que retiram o quadro da parede a atrás deste estava a arma ilegal. O policial não deve fazer vista grossa. Se, dentro de seu campo de visão, ao entrar na residência visualizar qualquer ilegalidade, deverá atuar, como decorrência da teoria da descoberta inevitável. O policial possui a obrigação de atuar nos casos de flagrante delito e o ingresso na residência foi legítimo, razão pela qual, nestes casos, não há ilegalidade em apreender bens visualmente perceptíveis e que sejam produtos de crime, como armas e drogas. Não se pode é haver desvio de finalidade, o que ocorreria a partir do momento em que abrisse gavetas.

Exemplo 10: A justiça expede mandado de prisão de um traficante. A polícia chega à residência deste e efetua a prisão imediatamente. Como os policiais não possuem mandado de busca e apreensão, poderão realizar buscas por drogas ilícitas na residência? Certamente, haverá dois entendimentos. O primeiro sustentará pela impossibilidade, já que não havia mandado de busca e apreensão nem situação caracterizadora de flagrante delito que autorizasse a busca domiciliar. O segundo sustentará a possibilidade da realização de busca, em que pese não haver mandado de busca e apreensão, pois é da natureza desses crimes que haja drogas dentro da casa de traficantes. Na prática, com os grandes traficantes, geralmente, não são encontradas drogas. Gerenciam todo o comércio de tráfico a distância. O primeiro entendimento deve prevalecer, pois não é possível partir de suposições, sem elementos concretos, de que há situação de flagrante delito em razão da “fama”4 do agente ou da vida pregressa, como já decidido pelo Superior Tribunal de Justiça, além do STF exigir fundadas razões5 da ocorrência de flagrante delito para a realização de buscas domiciliar sem que haja prévia autorização judicial.

4. É legítima busca domiciliar forçada realizada por policiais militares que sentem cheiro de maconha. No caso concreto os policiais foram autorizados a entrar na casa pelo agente que buscava documento de identidade para apresentar aos policiais, momento em que foi sentido o forte cheiro de maconha, o que somado ao nervosismo do agente, legitimou o ingresso na residência.

Os policiais perceberam o nervosismo do paciente e ao chegarem à residência, já sentiram um forte odor de maconha, razão pela qual fizeram a busca dentro da residência. No caso concreto os policiais foram autorizados a entrar na casa pelo agente que buscava documento de identidade para apresentar aos policiais, momento em que foi sentido o forte cheiro de maconha, o que somado ao nervosismo do agente, legitimou o ingresso na residência. AgRg no HC 423.838/SP, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, j. 08/02/2018.

Caso concreto

O indivíduo foi abordado na rua, contudo, como não portava seus documentos pessoais, juntamente com os policiais, se dirigiu à sua residência. No local, a entrada foi franqueada aos policiais que sentiram forte cheiro de maconha e, somado ao nervosismo do agente, foi a razão pela qual realizaram a busca no imóvel, onde localizaram grande quantidade e variedade de substâncias entorpecentes.

Fundamentos da decisão

● Há situação de flagrante na medida em que o crime de tráfico de drogas é crime permanente, ou seja, que se prolonga no tempo, razão pela qual se dispensa o mandado judicial, sendo legítimo o ingresso por policiais militares em decorrência do estado de flagrância, que foi caracterizado pelo forte odor de maconha.

Comentários

A maconha armazenada, sobretudo se estiver em grande quantidade, possui um odor bem característico, sendo possível que o seu cheiro ultrapasse o ambiente. Nesse caso há um elemento concreto, na medida em que o cheiro da substância confirma a informação de que naquele local ela é armazenada.

Em que pese o cheiro característico da droga, em outro caso em que uma cadela constatou a presença de drogas, o que resultou no ingresso de policiais na residência, a apreensão das drogas foi considerada ilícita.6 Essa decisão será estudada adiante. Fato é que o cão possui uma capacidade de identificar drogas com muito mais precisão do que o ser humano, no entanto as provas foram invalidadas.

No dia a dia da atuação policial não é recomendável que os policiais ingressem na residência com fundamento, exclusivamente, no cheiro da droga. Apesar de haver essa decisão do Superior Tribunal de Justiça, as decisões mais recentes têm demonstrado cada vez mais que o STJ realiza uma interpretação bem restritiva das situações que permitem o ingresso da polícia em residência em situação de flagrante delito, sem autorização judicial, tanto é que após a decisão que chancelou como legal o ingresso de policiais com base no cheiro da maconha sentido por policiais, entendeu ser ilegal o ingresso com base no cheiro da droga sentido por um cão farejador.

De qualquer forma, sendo o cheiro bem forte e característico é prudente que os policiais, caso decidam entrar, procurem arrolar testemunhas não policiais para darem um maior respaldo probatório à atuação. Não que a palavra do policial não tenha validade, mas na justiça, certamente, haverá questionamentos e havendo testemunhas não policiais que confirmem o cheiro da droga, mais elementos haverá para comprovar as alegações.

Não obstante seja prudente arrolar testemunhas não policiais, é necessário esclarecer que testemunhas não policiais têm muito medo de deporem contra traficantes e podem não conhecer também o cheiro da maconha. Como não é possível registrar o cheiro da droga por qualquer meio que não seja por pessoas, um relato detalhado de todas circunstâncias (local, palavra dos vizinhos, acompanhamento da movimentação, denúncias etc.) colaborá para o êxito da ocorrência.

5. Denúncia de traficância via COPOM, associada a atitude suspeita e emprego de fuga do acusado autoriza o ingresso forçado em domicílio.

O agente teve o domicílio violado, porquanto teria enveredado, em fuga, para dentro do imóvel, sendo que os agentes policiais se encontravam em ronda de rotina em local conhecido pelo tráfico de drogas, quando viu o suposto agente em atitude suspeita. A entrada no domicílio do indivíduo ocorreu em seguida à fuga para dentro do imóvel. Ocorre que os agentes policiais não estavam lá por eventualidade, eis que teriam recebido denúncia via “COPOM” de que naquela residência acontecia tráfico de drogas, supostamente, realizado por pessoa conhecida no meio policial, havendo inclusive a preocupação em se determinar possíveis agentes envolvidos, tendo sido indicado o indivíduo de cognome “Porco”.

Verifica-se, assim, que a exceção ao postulado da inviabilidade do domicílio ocorreu em razão de denúncia via “COPOM”, acerca da ocorrência de tráfico, dando conta de que indivíduo de alcunha “Porco” se encontraria em residência determinada, em poder de substância entorpecente, o que motivou o deslocamento da força policial até o local, quando se deparou com o agente em atitude suspeita, que chegou a receber ordem de parada pelos policiais, contudo teria se deslocado em fuga, ou seja, a conjunção de fatores contribuíram a dar suporte as fundadas razões para entrada no domicílio.
STJ, AgRg no HC 607.601/SP, Rel. Ministro Felix Fischer, 5ª Turma, j. em 27/10/2020.

Caso concreto

A guarnição policial tomou conhecimento, via COPOM, de que um indivíduo se encontrava em residência, em poder de substância entorpecente, o que motivou o deslocamento da força policial até o local. A entrada no domicílio foi franqueada pela esposa do autor do fato.

Fundamentos da decisão

  • A entrada no domicílio se deu, após fuga do acusado para dentro da residência, em decorrência de denúncia via COPOM de que naquela residência acontecia tráfico de drogas, supostamente realizado por pessoa conhecida no meio policial, além da possibilidade de envolvimento de agentes estatais.

Comentários

Neste julgado o Superior Tribunal de Justiça fez uma distinção com o caso julgado no HC 585.150, pelo próprio STJ, para afastar o entendimento aplicado anteriormente.

No HC 585.150 o agente teve o domicílio violado, pois teria fugido para dentro de sua casa e os policiais se encontravam em ronda de rotina, em local conhecido pelo tráfico de drogas, momento em que visualizou o agente em atitude suspeita. No HC 607.601 o ingresso dos policiais na residência também ocorreu em seguida à fuga do agente para dentro do imóvel, ocorre que os agentes policiais não estavam lá por eventualidade, eis que teriam recebido denúncia via COPOM de que naquela residência acontecia tráfico de drogas, supostamente, realizado por pessoa conhecida no meio policial, havendo inclusive a preocupação em se determinar possíveis agentes envolvidos, tendo sido indicado o indivíduo de cognome “Porco”.

Verifica-se que o traço distintivo reside no fato dos policiais terem se deslocado em direção à residência do agente após receber um comunicado do Centro de Operações da Polícia Militar, portanto, não estavam ali eventualmente, já que tinham informações do COPOM que havia tráfico de drogas em determinada residência.

É importante destacar que as denúncias repassadas ao COPOM assemelham-se aos casos de denúncia anônima, pois não se tem como certificar quem é a pessoa que ligou 190 e realizou a denúncia. Em se tratando de denúncia anônima o STJ possui jurisprudência que não serve – se não houver investigação prévia – para legitimar o ingresso forçado em residência, ainda que em contexto de fuga do agente após visualizar os policiais. Nesse sentido:

A existência de denúncia anônima da prática de tráfico de drogas somada à fuga do acusado ao avistar a polícia, por si sós, não configuram fundadas razões a autorizar o ingresso policial no domicílio do acusado sem o seu consentimento ou sem determinação judicial.

RHC 89.853-SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, Quinta Turma, j. em 18/2/2020.

HC 610.403/MS, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, j. em 06/10/2020.

6. Investigação inicial de crimes de receptação e falsidade ideológica e posterior suspeita de prática de traficância confirmada por agentes da Divisão Estadual de Narcóticos, que foram visualizadas ao se deslocarem à residência, legitimam o ingresso forçado em domicílio.

No bojo de inquérito policial que apurava a prática dos delitos de receptação e falsidade ideológica, a equipe de investigação obteve a informação de que o agente também praticava o tráfico de drogas. A existência da suspeita foi confirmada por agentes da Divisão Estadual de Narcóticos, sendo informado, ainda que se dedicava, principalmente, à comercialização de maconha prensada. Posteriormente, colaboradores não orgânicos comunicaram à autoridade policial que teria alugado um apartamento apenas para o armazenamento de drogas. Na ocasião, também foi fornecida a localização do imóvel. Desse modo, ante a existência de informações sobre possível prática de crime de tráfico de drogas no referido apartamento, os policiais se dirigiram até o local, para averiguação. Embora não tenham sido atendidos ao baterem à porta do imóvel, os policiais perceberam que esta encontrava-se apenas encostada. Ao abri-la, visualizaram uma grande quantidade de fardos de maconha prensada. Somente então os policiais acessaram o interior da residência, na qual lograram encontrar além da elevada quantidade de drogas, balanças de precisão e caderno com anotações relativas à comercialização de drogas, o que corroborou as suspeitas e notícias dos ilícitos, justificando, assim, o ingresso no apartamento.

Quanto à tese de que o ingresso da autoridade policial no domicílio se deu mediante arrombamento, ficou demonstrado, pelas instâncias ordinárias, que, após se dirigirem ao apartamento e não serem atendidos, os policiais verificaram que a porta encontrava-se apenas encostada. Ao empurrá-la, visualizaram uma grande quantidade de drogas e, então, adentraram na residência, logrando encontrar os entorpecentes e os objetos já mencionados.

STJ, AgRg no HC 610.828/SE, Rel. Ministro Felix Fischer, 5ª Turma, j. em 27/10/2020.

Caso concreto

Determinado agente era investigado pelos crimes de tráfico de substância entorpecente e receptação. Durante as investigações, levantou-se a suspeita de que o agente exercia a traficância de substância entorpecente, fato que foi confirmado pela Divisão Estadual de Narcóticos que indicou, ainda, o local de atuação do agente, bem como ao tipo de maconha comercializada.

No local, os policiais não foram atendidos quando bateram na porta, contudo, percebendo que a porta estava apenas encostada a empurraram, ocasião em que visualizaram grande quantidade de fardos de maconha prensada.

Fundamentos da decisão

● As circunstâncias do caso concreto extraídas do relatório do inquérito policial legitimaram a entrada forçada no domicílio, configurando exceção à garantia constitucional.

● Consta do inquérito policial, que apurava a prática dos crimes de receptação e falsidade ideológica, que a equipe obteve informações da Divisão Estadual de Narcóticos de que o agente também era traficante de drogas, dedicando-se principalmente à comercialização de maconha prensada.

Comentários

Nota-se que a Polícia Civil lá tinha uma investigação sólida em andamento, de forma que enquanto os crimes de receptação e falsidade ideológica eram investigados, a Divisão de Narcóticos tinha conhecimento do exercício da traficância pelo agente, inclusive do tipo de droga que comercializada. Essa investigação por parte da autoridade de polícia judiciária atende à prévia investigação exigida pelo STJ com o fim de legitimar o ingresso de policiais em residências nas hipóteses de flagrante delito.

Além do mais, percebe-se que os policiais visualizaram a droga do lado de fora do apartamento, uma vez que a porta não estava trancada e ao a empurrarem foi possível perceber visualmente uma grande quantidade de droga.

Há dois fatores importantes nesse caso e que justificam o ingresso. 1º) Investigação em andamento com elementos probatórios que identificam ser o agente autor de tráfico de drogas e que estas encontram-se armazenadas na residência; 2º) Situação clara e comprovada de flagrante delito dentro da residência, a partir do momento em que os policiais, sem adentrar, visualizaram a droga dentro da casa. Isto é, não houve o fator “sorte”, mas intelectual, estratégico e investigativo decorrente do trabalho policial.

7. Agente encontrado no telhado se desfazendo das drogas autoriza o ingresso forçado em domicílio.

Não se verifica ilegalidade quanto à inviolabilidade de domicílio quando for constatado que os policiais, após o recebimento de denúncia anônima, realizaram diligências para a apuração dos fatos narrados, dirigindo-se ao endereço apontado, no qual, enquanto aguardavam autorização para a entrada no local, avistaram o agente em atitude suspeita, em cima do telhado tentando se desfazer das drogas, tendo os policiais somente ingressado no imóvel após haver fundadas suspeitas da prática do tráfico de drogas na residência.

STJ, EDcl no RHC 129.923/MG, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, 6ª Turma, j. em 06/10/2020.

Caso concreto

Após recebimento de denúncia anônima, os policiais realizaram diligências para a apuração dos fatos narrados, dirigindo-se ao endereço indicado, no qual, enquanto aguardavam autorização para entrada, avistaram o agente em atitude suspeita, em cima do telhado tentando se desfazer das drogas.

Fundamentos da decisão

  • Não se constata ilegalidade no ingresso em domicílio na hipótese em que a entrada só ocorreu após fundadas suspeitas da prática de tráfico de drogas na residência, demonstrada pelo fato do agente ser flagrado pelos policiais em cima do telhado se desfazendo das drogas.

Comentários

No caso a denúncia anônima não foi isolada, pois as informações foram confirmadas pelos policiais ao chegarem no local e avistarem o agente descartando a droga pelo telhado da residência. O descarte de droga é suficiente para indicar a traficância no local e a justa causa para o ingresso no domicílio. De igual modo, não se revela adequado exigir maiores investigações, na medida em que o agente estava descartando a droga e a ausência de ação imediata por parte da polícia inequivocamente frustraria a apreensão da droga e a prisão do agente, o que acabaria por fulminar o princípio da oportunidade na atividade policial. Além do mais, no crime de tráfico de drogas, a ausência da apreensão das drogas acaba por inviabilizar a persecução penal contra o agente.

8. Denúncia anônima associada à fuga de agentes, que portavam arma de fogo e rádios comunicadores, e relato de usuários que o local é ponto de venda e consumo de drogas, legitima ingresso forçado em domicílio.

A fuga de suspeitos em direção à residência, os quais possuíam arma de fogo e rádios comunicadores, bem como o relato de usuário de drogas, confirmando que ali funcionava um local de venda e consumo de drogas, legitimou a entrada dos policiais no domicílio, ainda que sem autorização judicial, pois devidamente justificada pelas fundadas razões referidas.

STJ, HC 500.101/RS, Rel. Ministro Reynaldo Soares Da Fonseca, 5ª Turma, j. em 11/06/2019.

Caso Concreto

Os policiais estavam em patrulhamento de rotina quando receberam a informação de ocorrência de tráfico no local, para onde se dirigiram e lá avistaram duas mulheres sentadas num banco, no lado oposto, estavam um homem no portão e um adolescente no pátio, o qual, ao visualizar a polícia, tentou empreender fuga para o interior da residência.

Realizada a abordagem nas mulheres, uma portava arma de fogo, ao passo que a outra portava um rádio comunicador. No mesmo instante foram abordados o homem e o adolescente infrator que também possuíam rádio comunicador e arma de fogo.

No interior do imóvel estavam outras mulheres em volta de uma mesa sobre a qual existia grande quantidade de drogas e artefatos bélicos. Nos demais cômodos da residência foram encontrados outros artefatos bélicos e mais substâncias entorpecentes.

Fundamentos da decisão

  • As circunstâncias do caso concreto consistente em (a) denúncia anônima sobre a traficância no local; (b) fuga de suspeitos em direção à residência, os quais possuíam arma de fogo e comunicadores e (c) relato de usuário de drogas, confirmando que no local funcionava boca de fumo, são suficientes para autorizar o ingresso forçado em domicílio.
  • O caráter permanente do crime de tráfico autoriza a prisão em flagrante, o que legitima o ingresso no domicílio ainda que sem autorização judicial.
  • A residência funcionava como boca de fumo, onde são armazenadas e vendidas substâncias entorpecentes, o que significa dizer que a todo momento o crime é praticado nas modalidades “ter em depósito” e “guardar”.

Comentários

Nesse caso existiam elementos suficientes para indicar a traficância. Os agentes foram abordados portando arma de fogo e rádios comunicadores, o que somado à denúncia anônima, ao local conhecido como boa de fumo e fuga de suspeitos em direção à residência, tornaram-se elementos suficientes para a abordagem e posterior ingresso forçado no domicílio.

Observa-se do julgado que havia certa estrutura na atividade desempenhada, afinal, portavam arma de fogo e rádios comunicadores.

Embora o STJ, na maioria dos julgados, sustente a exigência de investigação preliminar, essa não é imprescindível se há elementos concretos suficientes para indicar a guarda ou depósito da substância em residência, como aconteceu nesse caso concreto.

9. Denúncia anônima, associada à fuga e descarte de droga autorizam o ingresso forçado.

No caso em exame, a justa causa para a adoção da medida de busca e apreensão sem mandado judicial evidencia-se no fato de que os policiais militares, impulsionados por denúncia anônima sobre a ocorrência de comércio de drogas, foram até o local onde se encontrava o réu que, de pronto, tentou empreender fuga, lançando uma sacola de plástica sobre a laje da casa em que estava, na qual foram encontrados 26 microtubos de cocaína e 4 porções de maconha.

STJ, AgRg no HC 516.746/SP, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, 5ª Turma, j. em 15/08/2019.

Caso concreto

Após denúncia anônima de ocorrência de tráfico de drogas, os policiais se dirigiram ao local onde se encontrava um indivíduo que tentou empreender fuga e, no ato, descartou sacola plástica sobre a laje da casa, na qual continha substâncias entorpecentes.

Fundamentos da decisão

  • A justa causa para a adoção da medida de busca e apreensão sem mandado judicial evidencia-se no fato de que os policiais militares, após denúncia anônima sobre a ocorrência de comércio de drogas, foram até o local onde se encontrava o indivíduo que, de pronto, tentou empreender fuga, lançando uma sacola de plástica sobre a laje da casa em que estava, na qual foram encontrados 26 micro tubos de cocaína e 4 porções de maconha.
  • A natureza permanente do crime de tráfico, diante da justa causa apresentada não configurou ilegalidade no ingresso forçado.

Comentários

Essa hipótese diferencia-se das demais nas quais só temos a denúncia anônima associada à fuga. Neste caso há um fator relevante, consistente no fato de que, naquele momento, o agente estava na posse de drogas, pois as arremessou sobre a laje, o que concedeu maior segurança jurídica para a atuação policial, ainda que sem autorização judicial.

10. Bar não se enquadra no conceito de domicílio, ainda que por extensão.

As drogas encontradas pelos policiais militares no bar do Paciente (dentro de uma bolsa próxima ao balcão), ou seja, em local aparentemente aberto ao público, não se enquadra no conceito de domicílio, ainda que por extensão.

STJ, HC 468.968/PR, Rel. Ministra Laurita Vaz, 6ª Turma, j. em 07/05/2019.

Caso concreto

Os policiais avistaram o agente em atitude suspeita em frente a um bar junto a uma residência, o que motivou a entrada no local onde encontraram uma bolsa no balcão, a qual continha substâncias entorpecentes.

Fundamentos da decisão

  • As drogas foram encontradas pelos policiais militares no bar do agente dentro de uma bolsa que estava próxima ao balcão, ou seja, em local aparentemente aberto ao público que não se enquadra no conceito de domicílio.
  • De acordo com a doutrina do professor Guilherme de Souza Nucci, “as áreas abertas ao público podem ser objeto de busca e, porventura, de apreensão de algo interessante à investigação”.

Comentários

Nesse caso, interessante comentar aqui a tese da defesa de que o bar era a residência do paciente e que naquele momento estava tendo uma festa (chá de fraldas) do proprietário. O STJ não entrou nesse mérito, pois entendeu que isso exigiria o exame probatório, o que é incabível em sede de Habeas Corpus.

É importante esclarecer que, de acordo com o art. 150, §4º do Código Penal, casa compreende o compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade. Trata-se de hipótese que contempla o espaço de trabalho, com vista a assegurar a necessária tranquilidade para o desempenho das funções.

Nos locais de trabalho, seja público ou privado, pois a lei não distingue, o espaço fechado ao público é considerado “casa” e possui proteção constitucional. Dessa forma, considera-se “casa” a parte interna de um barzinho ou restaurante (dentro do balcão); o consultório médico na área que o médico atende (a sala de espera é aberta ao público); o escritório de advocacia; o gabinete de um juiz, promotor, delegado ou comandante; a parte interna dos cartórios judiciais e extrajudiciais; cozinhas de bares, restaurantes e hotéis, quando não houver o direito de visitar, o que decorre de previsão em lei; as lavanderias e quaisquer espaços fechados ao público em que as pessoas exerçam profissão ou atividade; o local onde as garotas de programa atendem seus clientes em uma casa da prostituição.

Desse modo, se no momento da festa o bar não estava aberto ao público externo, mas atendendo somente a amigos e familiares do proprietário que se encontrava em uma festa particular não seria possível o ingresso dos policiais sem autorização judicial se não houvesse elementos concretos que indicassem a ocorrência de flagrante delito. Isso porque o espaço fechado ao público é considerado “casa” e possui proteção constitucional. 

Diferente seria o caso se o bar estivesse aberto ao público e a bolsa fosse encontrada próxima ao balcão ou sobre ele, o que autorizaria o flagrante.

11. É lícito o ingresso em domicílio no caso em que policiais abordem indivíduo na via pública, em atividade duvidosa, sem documentos e que não saiba responder a perguntas básicas, e que aponte como lugar de moradia uma construção inacabada, sendo em seguida apontado o real endereço por vizinhos.

No caso, os policiais abordaram indivíduo na via pública em atividade duvidosa, sem documentos e que não sabia responder perguntas básicas, que apontou como lugar de moradia uma construção inacabada, o que gerou a fundada suspeita de um comportamento ilícito. Havendo informações de vizinhos do real endereço do abordado, o ingresso na residência estava motivado, independentemente de mandado judicial. No local, houve a prisão em flagrante do paciente e demais corréus com grande quantidade de drogas.

STJ, AgInt no HC 484.111/SP, Rel. Ministro Jorge Mussi, 5ª Turma, j. em 07/02/2019.

Caso concreto

O agente foi abordado pilotando moto com placa de outro estado da federação e não portava documentos, além de fornecer informações pessoais contraditórias que motivaram os agentes a se dirigir até a residência. No local nada foi encontrado. Contudo, na saída, um transeunte informou que o agente residia em outra casa, para onde se dirigiram os policiais que surpreenderam o agente e seu comparsa embalando e preparando cocaína para comercialização.

Fundamentos da decisão

  • Não há irregularidade no ingresso sem prévio mandado em razão da prática do crime de tráfico de entorpecentes que é infração permanente e admite prisão em flagrante a qualquer tempo.
  • O contexto fático da abordagem, conforme relatado no caso concreto, legitimou o ingresso na residência, em razão do flagrante delito.

Comentários

Verifica-se que, nesse caso, a princípio, não fosse pela ausência de documentos, talvez o resultado fosse diferente.

Depreende-se que o que motivou os policiais a se dirigirem à residência do agente foi a ausência de documento enquanto pilotava uma moto com placa de outro estado da federação.

O STJ entendeu suficiente as razões do ingresso, haja vista a informação prestada por transeunte que o agente residia em local diverso daquele apontado por ele. Neste local foi encontrada grande quantidade de entorpecente que indica a traficância.

O STJ no HC 609.982 entendeu ser ilegítimo o ingresso em residência com fundamento em denúncia anônima e em razão de confirmação de vizinho, o que se aproxima deste caso, mas possui como traço distintivo o fato do indivíduo não portar documentos enquanto pilotava a moto e não ter indicado o endereço correto quando solicitado pela polícia, o que, certamente, foi essencial para o STJ considerar o ingresso na residência lícito.

12. Box do tipo self storage não se enquadra no conceito de domicílio. Atenção: Em que pese não ser considerado domicílio, não significa que o ingresso é livre, devendo haver elementos que demonstrem a situação de flagrante delito, sobretudo diante do disposto no art. 22 da Lei n. 13.869/19.

O local onde foram apreendidos os entorpecentes não se enquadra no conceito de domicílio, ainda que por extensão, uma vez que se trata de box, do tipo self storage, locado para fins de guarda de bens ou mercadorias, não merecendo a proteção constitucional elencada no inciso XI da CF, por não configurar ambiente privado no qual haja exercício de profissão ou atividade.

STJ, RHC 86.561/SP, Rel. Ministro Antonio Saldanha Palheiro, 6ª Turma, j.em 21/08/2018.

Caso concreto

Auditores da receita federal se dirigiram a uma empresa de locação de boxes para fiscalização. Após ingresso no local, foi fornecido à auditora uma lista de locatários e, de imediato, passou a fiscalizar os boxes. A ação tinha por objetivo fiscalizar mercadorias e durante o ato observaram que três boxes estavam em nome de pessoa física, contudo, armazenavam mercadorias, o que levantou a suspeita da equipe face a proibição, já que mercadorias devem estar em nome de pessoas jurídicas. Após informações prestadas pela funcionária do estabelecimento, a equipe resolveu abrir um dos boxes ocasião em que encontraram em seu interior substâncias que aparentavam ser entorpecentes como ecstasy e lança-perfume, além de anabolizantes, medicamentos e suplementos alimentares.

Fundamentos da decisão

  • O crime de tráfico de entorpecentes é delito permanente que dispensa o mandado de busca e apreensão para ingresso forçado em domicílio.
  • O STF firmou entendimento, em sede de repercussão geral no RE nº 603.616/RO, de que o ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial apenas se revela legítimo quando amparado em fundadas razões devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso concreto, que indiquem que naquele momento há situação de flagrante delito no interior da residência.
  • O local da diligência era box utilizado para comércio ou guarda de objetos, que não se considera compartimento privado no qual alguém exerce profissão ou atividade.
  • A fiscalização era rotineira e a descoberta se deu fortuitamente em razão de suspeita levantada acerca do tipo de mercadoria guardada nos boxes alugados com imediata requisição de acompanhamento pela polícia militar e pelo DENARC.

Comentários

Box Self Storage consiste em um espaço, geralmente, alugado para a guarda de bens. Tome como exemplo uma pessoa que trabalha de casa, mas não tem onde guardar os produtos de seu comércio. Ela decide alugar um box self storage para guardar os bens, o que pode ocorrer quando uma pessoa se muda para uma casa menor, mas também não tem espaço para guardar alguns móveis. O mercado de self storage tem crescido no Brasil. Self Storage significa “armazenamento pessoal”.

O Superior Tribunal de Justiça decidiu que o box do tipo self storage não se enquadra no conceito de domicílio.

Fundamentou que “embora alegue a defesa a ilicitude dos elementos de prova colhidos, ao argumento de que houve violação à garantia da inviolabilidade de domicílio comercial do recorrente, não há que se falar em domicílio. Isso porque o local onde foram apreendidos os entorpecentes não se enquadra no conceito de domicílio, ainda que por extensão, uma vez que se trata de box, do tipo self storage, locado para fins de guarda de bens ou mercadorias, não merecendo a proteção constitucional elencada no inciso XI da CF, por não configurar ambiente privado no qual haja exercício de profissão ou atividade.”

No caso concreto auditores da Receita Federal durante a fiscalização localizaram entorpecentes como ecstasy e lança-perfume, além de anabolizantes, medicamentos e suplementos alimentares, sendo a Polícia Militar acionada.

Portanto, é possível que policiais realizem buscas em box self storage, ainda que não haja autorização judicial. De qualquer modo a busca indiscriminada, sem que haja um mínimo de elementos que justifique, não deve ocorrer. Em que pese não ser considerado “casa” para fins de proteção à inviolabilidade, como regra, qualquer medida invasiva, inclusive, abordagem policial, deve haver elementos mínimos (fundada suspeita). No caso pode-se falar em uma exigência inferior para ingressar em um box self storage, se comparado a uma residência.

Diante do conceito de casa como compartimento habitado ou não aberto ao público onde alguém exerce profissão ou atividade, depreende-se que o box “self storage” embora tenha por objetivo armazenar objetos pessoais ou inerentes à atividade empresarial não se inclui no conceito de casa, na medida em que não é extensão da residência, pois é locado para fins de guarda de bens ou mercadorias, não merecendo a proteção constitucional elencada no inciso XI da CF, por não configurar ambiente privado no qual haja exercício de profissão ou atividade.

A situação seria diversa se fosse um depósito localizado dentro do terreno onde também se situa a residência da pessoa, nesse caso, o depósito seria extensão da casa.

Desse modo, de fato, não houve ilegalidade, especialmente diante da suspeita levantada quanto ao tipo de material armazenado e pelo fato de pessoa física armazenar, em nome próprio, mercadoria, o que motivou os agentes federais a abrirem o box.

É importante consignar que o art. 22 da Lei n. 13.869/19 considera crime de abuso de autoridade o ato de invadir ou adentrar, sem os requisitos legais, imóvel alheio ou suas dependências.

Art. 22.  Invadir ou adentrar, clandestina ou astuciosamente, ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel alheio ou suas dependências, ou nele permanecer nas mesmas condições, sem determinação judicial ou fora das condições estabelecidas em lei:

Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. (destaque nosso)

O Box Self Storage encaixa-se no conceito de um imóvel alheio, ainda que não utilizado para fins residenciais. Por ser um imóvel com destinação social e utilizado por quem loca deve receber a proteção da inviolabilidade, dado o direito a privacidade (art. 5º, X, da CF). Por não ser considerado casa, certamente, haverá um menor rigor quanto às exigências para ingressar no box e realizar buscas. De qualquer forma, os ingressos devem ocorrer somente nas hipóteses em que houver fundamentos concretos, como o caso de flagrante delito.

Destaco que o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que a falta de autorização judicial não invalida busca em imóvel desabitado, pois “a proteção constitucional de que goza a propriedade privada, ainda que desabitada, não se verifica nulidade na busca e apreensão efetuada por policiais, sem prévio mandado judicial, em apartamento que não revela sinais de habitação, nem mesmo de forma transitória ou eventual, se a aparente ausência de residentes no local se alia à fundada suspeita de que tal imóvel é utilizado para a prática de crime permanente (armazenamento de drogas e armas), o que afastaria a proteção constitucional concedida à residência/domicílio.”7

Nota-se que a ocupação do imóvel e o grau de intimidade e privacidade afetados parecem ser sopesados pelo Superior Tribunal de Justiça ao analisar o rigor para o ingresso em imóveis sem mandado judicial.

A seguir analisaremos os julgados nos quais o Superior Tribunal de Justiça entendeu pela ilegalidade do ingresso.

1. Denúncia anônima confirmada por vizinho desacompanhada de investigação preliminar não legitima o ingresso em domicílio.

Denúncias de origem não identificada, que por si não servem de qualquer modo como prova, e o subsequente ingresso imediato no domicílio, sem quaisquer diligências investigatórias adicionais prévias, não cumprem ao requisito de fundamentos razoáveis da existência de crime permanente dentro do domicílio.

STJ, HC 609.982/RS, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, 6ª Turma, j. em 15/12/2020.

Caso Concreto

A polícia recebeu informações anônimas de que numa determinada residência existiam armas de fogo e drogas armazenadas, o que foi confirmado por uma vizinha próxima da residência. Os policiais cercaram o local e, sem mandado judicial, adentaram na residência, ocasião em que apreenderam entorpecentes e uma arma de fogo que foi descartada pela janela pelo flagrado.

Fundamentos da decisão

  • A jurisprudência do STJ é no sentido de que são exigíveis fundamentos razoáveis da existência de crime permanente para justificar o ingresso desautorizado na residência do agente.
  • O deslocamento da guarnição se deu em denúncias de origem não identificadas que, por si só, não servem como prova e, ato contínuo, adentraram na residência.
  • A invasão se deu em razão de informação anônima, desprovida de diligências investigatórias, que impede admitir a validade do ingresso.
  • A anterior denúncia anônima de existência de drogas e armas no imóvel, sem prévia realização de investigações preliminares e ausência de elementos concretos que confirmem a suspeita, não são suficientes para legitimar o ingresso, sendo ilícitas as provas obtidas com a invasão sem indicação de fundadas razões.

Comentários

No caso objeto deste julgado, restou apurado que o ingresso se deu exclusivamente com base em denúncia anônima, o que para o STJ não é suficiente para legitimar a invasão.

É certo que muitas investigações se iniciam com base em denúncias anônimas e a jurisprudência do STJ e do STF admitem que não há ilegalidade em iniciar investigações preliminares com base em denúncia anônima.

Da mesma forma que se exige investigações preliminares para fundamentar a instauração de inquérito policial, o policial deve levantar informações sólidas no sentido de que dentro da residência ocorre situação de flagrante delito. Para o STJ a simples confirmação da vizinha não foi suficiente para junto com a denúncia anônima autorizar o ingresso.

Logo, não houve fundadas razões para o ingresso do domicílio. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça cada vez mais tem se consolidado pela impossibilidade da polícia ingressar na residência se não houver investigação policial prévia que forneça elementos concretos da prática de crime dentro da residência, como filmagens e campanas de movimentação atípica na residência (venda de drogas), audição de testemunhas, abordagem de um usuário que confirme ter comprado drogas em determinada residência (o que é difícil de afirmar, em razão do medo do traficante), dentre outras. O STJ destaca que não se exige diligências profundas, mas sim breve averiguação, o que pode ocorrer com um dos exemplos acima citados.8

Diante desse contexto, é importante que quando a Polícia Militar receber denúncia anônima e não conseguir obter maiores informações que demonstrem concretamente haver a prática de crime dentro da residência, compartilhe a denúncia anônima com a Polícia Civil para que realize a investigação policial.

Por óbvio há casos e casos e se o flagrante dentro da residência estiver bem caracterizado a Polícia Militar deve atuar prontamente, sob pena de fulminar o princípio da oportunidade e todo objeto ilegal, como armas e drogas que seriam apreendidas, não serem mais encontrados.

A vibração policial em efetuar a prisão de criminosos perigosos para a sociedade em flagrante delito e apreender armas e drogas, em que pese ser um ponto positivo, por demonstrar compromisso e envolvimento com o trabalho e com a sociedade, pode acabar por resultar na perda da apreensão desses objetos ilícitos, como decorrência da ilegalidade no ingresso domiciliar e, consequentemente, na impunidade, em razão da absolvição do agente preso pela polícia.

Além do mais, um trabalho conjunto feito entre a Polícia Militar e a Polícia Civil somente gerará dividendos para a sociedade, na medida em que a PM repassará as informações e a Polícia Civil poderá investigar e decidir o melhor momento, sob o ponto de vista investigativo, da atuação policial, o que possibilitará ampliar o número de prisões de agentes envolvidos, bem como a localização de uma maior quantidade de drogas e armas, enquanto que a ausência de comunicação entre as instituições pode levar à frustração das diligências realizadas pela autoridade de polícia judiciária que poderá estar investigando um agente por tráfico de drogas e aguarda o melhor momento para atuar, na certeza do flagrante ou mediante pedido de autorização judicial, o que pode ser interrompido por uma ação antecipada da Polícia Militar, que atuou de boa-fé, com o intuito de somar, de combater e de prevenir o crime. Às vezes a autoridade de polícia judiciária possui informações da prática de um tráfico de drogas, está investigando o caso e planeja atuar em um determinado dia, pois sabe que neste dia planejado chegarão drogas e haverá uma possibilidade maior de efetuar a prisão de mais agentes do tráfico. A comunicação, cooperação e parceria entre as instituições é o melhor caminho para a repressão e prevenção.

2. Denúncia anônima seguida de fuga do acusado para dentro da residência não legitima o ingresso em domicílio.

Entende-se mais adequado com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal o entendimento que exige a prévia realização de diligências policiais para verificar a veracidade das informações recebidas (ex: “campana que ateste movimentação atípica na residência”). Não se está a exigir diligências profundas, mas sim breve averiguação, como, por exemplo, “campana” próxima à residência para verificar a movimentação na casa e outros elementos de informação que possam ratificar à notícia anônima.

STJ, RHC 89.853/SP, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, 5ª Turma, j. em 18/02/2020.

Caso Concreto

O ingresso no domicílio se deu, exclusivamente, em razão da existência de denúncia anônima e da fuga do agente.

Fundamentos da decisão

  • O entendimento da 6ª Turma do STJ é no sentido de que a tentativa de fuga do agente, por si só, não configura justa causa exigida para autorizar o ingresso forçado no domicílio.
  • A denúncia anônima, desacompanhada de outras circunstâncias indicativas da prática de crime não legitima o ingresso de policiais no domicílio.

Comentários

A jurisprudência do STJ tem se consolidado que a simples denúncia anônima da prática de tráfico de drogas, associada à fuga do acusado não configuravam fundadas razoes para o ingresso no domicílio.9

Em que pese sustentarmos que a fuga do acusado ao visualizar a polícia, sobretudo para dentro da residência, é motivo suficiente para realizar a abordagem policial com ingresso na residência, por configurar fundadas razões, este não é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça.

Não é uma conduta normal visualizar a polícia e sair correndo, em fuga. A presunção nestes casos é de que a pessoa que assim procedeu pode estar a praticar ilegalidades, seja portar armar ou drogas ou ter contra si um mandado de prisão, o que precisa ser verificado pela polícia. Ainda, o fato de correr para dentro da casa impedindo a ação policial, sendo que a polícia não pode entrar, para o STJ, acaba por fulminar o princípio da oportunidade e as provas, eventualmente, existentes contra o agente poderão ser perdidas. Os direitos fundamentais não devem ser utilizados para a salvaguarda de práticas ilícitas, conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal10. Isto é, a proteção do direito à inviolabilidade domiciliar não se sustenta quando houver indicativos de que o morador se utiliza de sua casa, tanto é que para dentro dela fugiu, com o fim de escapar da ação policial em situação de flagrante delito.

Caso a pessoa que correu tenha medo da polícia, por já ter sofrido alguma violência policial no passado, é normal que tenha receio de ser abordado novamente pela polícia, em razão de traumas do passado, contudo essa não é a regra. No dia a dia as pessoas não saem correndo pelas ruas ao visualizarem uma viatura polícia nem em comunidades mais simples, como favelas. A experiência policial demonstra o contrário, que quem corre da polícia certo não está.

Destaca-se ainda que a pessoa que desobedece à ordem legal da polícia, no contexto de abordagem policial, pratica o crime de desobediência (art. 330 do CP), o que, inclusive, legitima a condução do agente para a delegacia em flagrante delito.

3. Denúncia anônima isolada, desacompanhada de outros elementos indicativos da ocorrência de crime, não legitima o ingresso de policiais no domicílio.

A denúncia anônima, desacompanhada de outros elementos indicativos da ocorrência de crime, não legitima o ingresso de policiais no domicílio indicado, inexistindo, nessas situações, justa causa para a medida. A prova obtida com violação à norma constitucional é imprestável a legitimar os atos dela derivados.

STJ, REsp 1871856/SE, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, 6ª Turma, j. em 23/06/2020.

Caso Concreto

Policiais realizavam patrulhamento rotineiro e por meio de denúncias populares de que determinado indivíduo traficava drogas em sua residência, chegaram ao local e lá adentraram forçadamente, ocasião na qual foram apreendidos dois quilos de crack.

Fundamentos da decisão

  • O STJ possui entendimento pacífico no sentido de que nos crimes permanentes, como é o caso do tráfico de drogas, o estado de flagrância se protrai no tempo, o que não é suficiente para justificar busca domiciliar desprovida de mandado judicial.
  • Exige-se a demonstração de indícios mínimos de que dentro da residência, naquele exato momento, há situação de flagrância.
  • O fato de o acusado guardar em sua residência a droga apreendida não autoriza a conclusão da desnecessidade de mandado de busca e apreensão.
  • A realização de patrulhamento rotineiro na rua, associada à indicação do local por denúncias populares, não autoriza o ingresso na residência.
  • A denúncia anônima, desacompanhada de outros elementos indicativos da prática do crime, não legitima o ingresso dos agentes estatais no domicílio.

Comentários

Os policiais realizavam patrulhamento de rotina na região quando tomaram conhecimento da prática da atividade de traficância no domicílio, em razão de denúncia de populares, que foi considerada denúncia anônima, o que os conduziu ao ingresso na casa.

As denúncias não identificadas, seja via COPOM, pessoalmente por escrito ou por qualquer meio são denúncias anônimas.

É certo que muitas investigações se iniciam com base em denúncias anônimas e a jurisprudência do STJ e do STF admitem que não há ilegalidade em iniciar investigações preliminares com base em denúncia anônima.

Da mesma forma que se exige investigações preliminares para fundamentar a instauração de inquérito policial, o policial deve levantar informações sólidas no sentido de que dentro da residência ocorre situação de flagrante delito.

Logo, não houve fundadas razões para o ingresso do domicílio. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça cada vez mais tem se consolidado pela impossibilidade da polícia ingressar na residência se não houver investigação policial prévia que forneça elementos concretos da prática de crime dentro da residência, como filmagens e campanas de movimentação atípica na residência (venda de drogas), audição de testemunhas, abordagem de um usuário que confirme ter comprado drogas em determinada residência (o que é difícil de afirmar, em razão do medo do traficante), dentre outras. O STJ destaca que não se exige diligências profundas, mas sim breve averiguação, o que pode ocorrer com um dos exemplos acima citados.11

Diante desse contexto, é importante que quando a Polícia Militar receber denúncia anônima e não conseguir obter maiores informações que demonstrem concretamente haver a prática de crime dentro da residência, compartilhe a denúncia anônima com a Polícia Civil para que realize a investigação policial.

Por óbvio há casos e casos e se o flagrante dentro da residência estiver bem caracterizado a Polícia Militar deve atuar prontamente, sob pena de fulminar o princípio da oportunidade e todo objeto ilegal, como armas e drogas que seriam apreendidas, não serem mais encontrados.

A vibração policial em efetuar a prisão de criminosos perigosos para a sociedade em flagrante delito e apreender armas e drogas, em que pese ser um ponto positivo, por demonstrar compromisso e envolvimento com o trabalho e com a sociedade, pode acabar por resultar na perda da apreensão desses objetos ilícitos, como decorrência da ilegalidade no ingresso domiciliar e, consequentemente, na impunidade, em razão da absolvição do agente preso pela polícia.

Além do mais, um trabalho conjunto feito entre a Polícia Militar e a Polícia Civil somente gerará dividendos para a sociedade, na medida em que a PM repassará as informações e a Polícia Civil poderá investigar e decidir o melhor momento, sob o ponto de vista investigativo, da atuação policial, o que possibilitará ampliar o número de prisões de agentes envolvidos, bem como a localização de uma maior quantidade de drogas e armas, enquanto que a ausência de comunicação entre as instituições pode levar à frustração das diligências realizadas pela autoridade de polícia judiciária que poderá estar investigando um agente por tráfico de drogas e aguarda o melhor momento para atuar, na certeza do flagrante ou mediante pedido de autorização judicial, o que pode ser interrompido por uma ação antecipada da Polícia Militar, que atuou de boa-fé, com o intuito de somar, de combater e de prevenir o crime. Às vezes a autoridade de polícia judiciária possui informações da prática de um tráfico de drogas, está investigando o caso e planeja atuar em um determinado dia, pois sabe que neste dia planejado chegarão drogas e haverá uma possibilidade maior de efetuar a prisão de mais agentes do tráfico. A comunicação, cooperação e parceria entre as instituições é o melhor caminho para a repressão e prevenção.

4. A “fama” de traficante, por já ter se envolvido com tráfico de drogas, não justifica, por si só, o ingresso na casa sem mandado.

Somente a informação de que o agente tivera envolvimento anterior com tráfico de drogas não autoriza a autoridade policial a conduzi-lo até seu local de trabalho e sua residência, locais protegidos pela garantia constitucional do art. 5º, IX, da CF, para ali efetuar busca, sem prévia autorização judicial e sem seu consentimento, diante da inexistência de fundamento suficiente para levar à conclusão de que, naqueles locais, estava sendo cometido algum tipo de delito, permanente ou não.

STJ, RHC: 126092 SP 2020/0096758-5, Rel. Ministro Reynaldo Soares Da Fonseca, 5ª Turma, j. 23/06/2020.
No mesmo sentido: HC 527.161/RS, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, j. 26/11/2019.

Caso concreto

Determinado agente foi abordado na rua por policiais militares pelo fato de já ser conhecido entre os agentes de segurança pública como traficante. Após abordagem nada foi encontrado em sua posse, ocasião em que foi conduzido pelos policiais até sua barbearia, local onde foram encontradas 9,97 gramas de cocaína. Na sequência, os policiais dirigiram-se à residência dos pais do agente, local em que foi encontrada uma balança de precisão, dois comprimidos e saquinhos plásticos.

Fundamentos da decisão

  • O entendimento firmado pelo STF em sede de repercussão geral no RE nº 603.616/RO, no qual fixou a tese de que o ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial apenas se revela legítimo quando amparado em fundadas razões devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso concreto, que indiquem que naquele momento há situação de flagrante delito no interior da residência.
  • O STF, no HC 82.788/RJ, assentou o entendimento de que o conceito de casa possui caráter amplo, pois compreende (a) qualquer compartimento habitado; (b) qualquer aposento ocupado de habitação coletiva; (c) qualquer compartimento privado não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade.
  • A jurisprudência estende a garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar a estabelecimentos empresariais ou locais de trabalho.
  • O ingresso nos estabelecimentos protegidos pela garantia constitucional depende da existência de fundadas razões (justa causa) que sinalizem a possibilidade de mitigação do direito.
  • O crime de tráfico possui natureza permanente, o que autoriza o ingresso do policial sem mandado, porém, desde que existam elementos suficientes da probabilidade delitiva capaz de demonstrar a ocorrência do estado de flagrância.
  • A denúncia anônima desacompanhada de outros elementos indicados da prática do crime não legitima o ingresso se ausente justa causa para a medida, conforme o entendimento da corte exarado no HC 541.418/RJ.
  • O autor do fato foi conduzido sem qualquer indício ou investigação prévia sobre o local onde estaria a droga.
  • A informação isolada de que o agente tinha envolvimento anterior com o tráfico não autoriza o ingresso no local de trabalho e no domicílio, diante da inexistência de fundamento para concluir que naqueles locais o recorrente estava cometendo algum tipo de crime, seja ele permanente ou não.

Comentários

Depreende-se desse julgado a preocupação do STJ quanto à criminalização do agente e não da conduta, o que se denomina direito penal do autor, de modo que não é legítima a abordagem de um indivíduo, submetendo-lhe à revista pessoal e ingresso forçado em residência ou local de trabalho pelo simples fato de ter conhecimento de que ele possui registros por crimes ou antecedentes criminais.

A investigação deve se iniciar com base em elementos concretos, de modo que a ficha do acusado não seja o único fator pelo qual a polícia lhe investigue.

A justa causa deve corresponder a indicativos de autoria e de materialidade, não com o mesmo grau de rigor para o oferecimento de uma denúncia criminal. Caso os policiais tivessem obtido informações de que o agente tinha voltado à prática criminosa e guardava as substâncias no seu local de trabalho ou residência e, ainda, realizado monitoramento no local que pudesse conduzir ao entendimento da possibilidade de traficância, o ingresso seria legítimo.

Enfim, o fato do agente possuir histórico criminoso e ter fama de traficante no meio policial, por si só, não constitui justa causa suficiente para o ingresso em domicílio. Deve haver outros elementos concretos que demonstrem fatos atuais e não somente pretéritos.

5. A denúncia anônima, aliada à venda de drogas na porta da residência, não autorizam presumir armazenamento de substância ilícita no domicílio, razão pela qual o ingresso, sem mandado, é ilícito.

Não é necessária certeza quanto à ocorrência da prática delitiva para se admitir a entrada em domicílio, bastando que, em compasso com as provas produzidas, seja demonstrada a justa causa na adoção da medida, ante a existência de elementos concretos que apontem para o flagrante delito.

No caso inexistem elementos concretos que apontem para a situação de flagrante delito, de modo que a mera denúncia anônima, aliada à venda de drogas na porta da residência, não autorizam presumir armazenamento de substância ilícita no domicílio e assim legitimar o ingresso de policiais, inexistindo justa causa para a medida.

STJ, AgRg no REsp 1886985/RS, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, 6ª Turma, j. em 07/12/2020.

Caso concreto

Após abordar usuários, os policiais receberam a indicação de tráfico de entorpecentes em determinada casa, local para onde se dirigiram e o agente foi flagrado vendendo drogas em frente à sua residência, o que motivou o ingresso no local.

Fundamentos da decisão

  • O fato de o crime permanente prolongar-se no tempo não é suficiente para justificar a busca domiciliar desacompanhada de mandado judicial, exigindo-se demonstração de indícios de que naquele momento, há situação de flagrante delito na casa.
  • O entendimento do STF, firmado no RE 603.616/RO, é no sentido de que não se exige certeza quanto à prática do crime, bastando que fique demonstrada a justa causa, mediante a existência de elementos concretos que apontem o flagrante delito.
  • A venda de drogas em frente à residência não autoriza presumir o armazenamento de droga na residência.

Comentários

O fato de traficar em frente à residência, a nosso ver, consiste em justa causa suficiente para o ingresso domiciliar, sobretudo ao atrelar à informação prestada por usuário de droga de que no local era ponto de traficância, como ocorreu no caso.

Destaca-se que além da informação do usuário, os policiais encontraram o agente em frente à casa vendendo drogas, o que confirma ser o local ponto de venda de drogas, razão pela qual deveria justificar o ingresso domiciliar sem autorização judicial..

A prática e experiência policial demonstram que o agente que trafica em frente a própria residência armazena e guarda as drogas dentro da casa. A residência serve como um verdadeiro depósito de drogas para buscar e vender na porta da casa, até porque o traficante não vai montar uma mesa e colocar as drogas expostas à venda, em local de acesso público, para todos verem.

Não se pretende afirmar que todos que traficam na rua estão guardando drogas em casa, porém, se a análise do caso indicar essa possibilidade, como parece ter sido o caso, sobretudo por haver informações do tráfico por parte de usuários, há fundamentos para afastar a proteção constitucional da inviolabilidade domiciliar. Diferente seria a situação em que o agente é abordado na rua, distante de sua residência, vendendo drogas e a polícia resolve ingressar em seu domicílio por presumir o depósito da substância no local. Nesse caso o ingresso é ilegal, pois não houve busca de informações que pudessem sugerir que o agente estivesse guardando a substância em seu domicílio.

6. A descoberta de droga por cão farejador, por si só, não autoriza o ingresso no domicílio

Os policiais passaram pela rua quando uma cadela conduzida pela guarnição policial constatou a presença de drogas e sinalizou em frente à residência do agente. Portanto, não se tratou de algo que já estivesse sendo investigado pela polícia, no qual tenha ocorrido o flagrante delito, mas, sim, de apreensão de drogas feita de forma inesperada e sem o devido mandado judicial.

AgInt no HC 566.818/RJ, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, j. 16/06/2020.

Caso concreto

Os policiais passavam pela rua acompanhados de um cão farejador que constatou a presença de drogas e sinalizou uma residência determinada. Ato contínuo, os policiais ingressaram no domicílio sem mandado judicial, ocasião em que encontraram substâncias entorpecentes.

Fundamentos da decisão

  • Não houve investigação prévia que justificasse a entrada dos policiais na residência.
  • A apreensão foi inesperada e desacompanhada de mandado judicial.

Comentários

O olfato do cão é muito superior ao olfato humano. Reportagem da revista denominada “O duro trabalho de um cão farejador”12 relata que “Um cão bem treinado tem capacidade 44 vezes maior do que o ser humano de identificar odores diferentes, como o ‘cheiro’ de explosivo, drogas ou até mesmo pessoas em escombros.”

Em que pese o olfato do cão ser muito superior ao do ser humano e capaz de identificar o cheiro de droga a distância, o Superior Tribunal de Justiça já legitimou o ingresso em residência em razão do cheiro de droga sentido por policiais13, o que demonstra haver uma aparente mudança de entendimento, pois a indicação de droga por um cão farejador é muito mais precisa e certa, sendo possível identificar até mesmo drogas enterradas.14

Ronaldo João Roth, Ana Paula Farnesi e Eduardo Rodrigues Barcellos escreveram o excelente artigo “O olfato do cachorro permite ao policial militar ingressar no domicílio sem autorização judicial ou sem consentimento do morador?”15, sendo afirmado nas conclusões, com as quais concordamos, o seguinte:

Como acima concluímos é inegável que a manifestação do faro do cachorro, diante da sua estrutura biológica acima discorrida, demonstra sim que no local indicado pelo cão há fundada razão para concluir sobre o flagrante delito estar sendo praticado dentro de um domicílio, autorizando no caso de encontro de entorpecente o seu ingresso sem autorização judicial, uma vez que tal procedimento estará calcado no bem jurídico protegido e no perigo da demora, afastando a necessidade de mandado judicial de busca e apreensão ou mesmo exigir a presença do juiz natural da causa. De igual modo, no caso de extorsão mediante sequestro, que também é um crime permanente, caso o animal fareje a vítima e aponte determinado local como sua provável localização, deverá o policial militar ingressar na residência sem mandado judicial, eis que o bem jurídico tutelado e a urgência da situação permitem a violação desse direito fundamental, aplicando a fórmula da proporcionalidade.

No caso do cachorro farejar entorpecente na residência, situação essa que induz à prática do delito do art. 33 da Lei Antidrogas, configurada está a fundada razão para o flagrante delito e também está configurado o perigo da demora, de forma que, nessa hipótese, cabe ao policial, civil ou militar, decidir sobre a necessidade do ingresso no domicílio para fazer cessar o crime, permanente, prendendo o infrator, e apreendendo o entorpecente visto que, nesse caso, é dispensável o mandado judicial (art. 5º, inciso XI, da CF).

Assim, a urgência da medida policial, no caso concreto, é que vai determinar a medida a ser adotada, de forma que quando do encontro de entorpecente, por meio ou com o auxílio do cão farejador no interior de residência, diante da existência de crime permanente, haverá ensejo para o ingresso no domicílio sem o mandado judicial, seja para coibir esse tipo de crime – permanente -, seja para assegurar o encontro da materialidade daquele, bem como para reprimir a prática delituosa por meio da situação de flagrante delito, tudo em conformidade com a autorização constitucional (art. 5º, inciso XI) e a normatização processual que determina ao policial prender quem esteja na prática de crime (art. 301 do CPP e art. 243 do CPPM).

Assim, entre o direito fundamental de inviolabilidade de domicílio e o dever da segurança pública nas missões realizadas pela Polícia, há de se ter definido, com segurança, o procedimento da atuação policial sem incorrer em abuso, o que, do contrário, implicará responsabilização disciplinar, civil ou penal do agente público.

O emprego do cão farejador nas atividades policiais, além de um importante auxílio profissional, traz segurança no encontro de pessoas e materiais ilícitos como entorpecente, ou de outro objeto procurado (material bélico, celular etc), de forma que a indicação daquele, pelo faro, da descoberta do objeto procurado, constitui-se em fundada razão, autorizando o ingresso forçado no domicílio alheio, constituindo o entorpecente encontrado em prova lícita para a responsabilização criminal do infrator.

7. Perseguição a veículo em fuga não autoriza ingresso policial em domicílio.

Não houve uma investigação prévia para que os policiais entrassem na residência do paciente, mas, sim, um patrulhamento de rotina no qual os policiais seguiram o veículo, por não ter esse parado, e adentraram no condomínio, sem nenhuma ordem judicial. Não havia nenhum monitoramento prévio por parte dos policiais.

STJ, AgRg no HC: 561360 SP , Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, j. 09/06/2020.

Caso concreto

A polícia fez sinal de ordem de parada para determinado veículo, contudo, o agente não obedeceu, empreendendo fuga e sendo perseguido pelos policiais até um condomínio, onde a polícia adentrou, ocasião em que, após tomar conhecimento de que o indivíduo residia no local, realizaram a abordagem na residência.

Fundamentos da decisão

● Ainda que tenha ocorrido a perseguição policial não houve investigação prévia ou monitoramento anterior para que os policiais entrassem na residência.

Comentários

Em que pese sustentarmos que a fuga do acusado ao visualizar a polícia, sobretudo para dentro da residência, é motivo suficiente para realizar a abordagem policial com ingresso na casa, por configurar fundadas razões, este não é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça.

Não é uma conduta normal visualizar a polícia, acelerar o veículo e fugir. A presunção nestes casos é de que a pessoa que assim procedeu pode estar a praticar ilegalidades, seja portar armar ou drogas ou ter contra si um mandado de prisão, o que precisa ser verificado pela polícia. O fato de ingressar na própria casa durante a fuga não pode servir como fundamento para ficar imune à busca policial, pois os direitos fundamentais não devem ser utilizados para a salvaguarda de práticas ilícitas, conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal16. A proteção do direito à inviolabilidade domiciliar não se sustenta quando houver indicativos de que o morador se utiliza de sua casa, tanto é que para dentro dela fugiu, com o fim de escapar da ação policial em situação de flagrante delito. Vedar o ingresso da polícia nesses casos acaba por fulminar o princípio da oportunidade e as provas, eventualmente, existentes contra o agente poderão ser perdidas.

Caso a pessoa que fugiu tenha medo da polícia, por já ter sofrido alguma violência policial no passado, é normal que tenha receio de ser abordado novamente pela polícia, em razão de traumas do passado, contudo essa não é a regra. No dia a dia as pessoas não fogem, injustificadamente, da polícia em seus veículos em alta velocidade, o que gera, inclusive, riscos para a sociedade e a prática de outros crimes, como o do art. 311 do Código de Trânsito Brasileiro, além da possibilidade da prática do crime de desobediência (art. 330 do CP), caso a determinação para a realização da abordagem decorra do exercício da atividade de polícia preventiva e não como agente de trânsito, pois neste caso seria somente infração administrativa.

Art. 311. Trafegar em velocidade incompatível com a segurança nas proximidades de escolas, hospitais, estações de embarque e desembarque de passageiros, logradouros estreitos, ou onde haja grande movimentação ou concentração de pessoas, gerando perigo de dano:

Penas – detenção, de seis meses a um ano, ou multa.

(…)

II – Segundo jurisprudência deste Tribunal Superior, a desobediência de ordem de parada dada pela autoridade de trânsito ou por seus agentes, ou mesmo por policiais ou outros agentes públicos no exercício de atividades relacionadas ao trânsito, não constitui crime de desobediência, pois há previsão de sanção administrativa específica no art. 195 do Código de Trânsito Brasileiro, o qual não estabelece a possibilidade de cumulação de sanção penal. Assim, em razão dos princípios da subsidiariedade do Direito Penal e da intervenção mínima, inviável a responsabilização da conduta na esfera criminal.

III – No presente caso, contudo, a ordem de parada não foi dada pela autoridade de trânsito e nem por seus agentes, mas por policiais militares no exercício de atividade ostensiva, destinada à prevenção e à repressão de crimes, que foram acionados para fazer a abordagem do paciente, em razão de atividade suspeita por ela apresentada, conforme restou expressamente consignado no v. acórdão impugnado. Desta forma, não restou configurada a hipótese de incidência da regra contida no art. 195 do Código de Trânsito Brasileiro e, por conseguinte, do entendimento segundo o qual não seria possível a responsabilização criminal do paciente pelo delito de desobediência tipificado no art. 330 do Código Penal.

(STJ – HC: 369082 SC 2016/0226409-3, Relator: Ministro FELIX FISCHER, Data de Julgamento: 27/06/2017, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 01/08/2017)

8. A fuga para o interior de residência ao avistar o policial, que se encontra em diligência de trânsito de rotina, não autoriza o ingresso em domicílio.

A ausência de justificativas e de elementos seguros a legitimar a ação dos agentes públicos, diante da discricionariedade policial na identificação de situações suspeitas relativas à ocorrência de tráfico de drogas, pode fragilizar e tornar írrito o direito à intimidade e à inviolabilidade domiciliar.

Tal compreensão não se traduz, obviamente, em transformar a casa em salvaguarda de criminosos, tampouco um espaço de criminalidade. Há de se convir, no entanto, que só justifica o ingresso na moradia alheia a situação fática emergencial consubstanciadora de flagrante delito, incompatível com o aguardo do momento adequado para, mediante mandado judicial, legitimar a entrada na residência ou local de abrigo.

Na hipótese sob exame, verifica-se que: a) o acusado empreendeu fuga para o interior de sua residência ao avistar a autoridade policial, que realizava diligência de trânsito de rotina; b) após revista em seu domicílio, foram encontradas substâncias entorpecentes (69,33 g de maconha; 0,4 g de haxixe; 10,1 g de cocaína e 1,5 g de LSD).

Em nenhum momento foi explicitado, com dados objetivos do caso, em que consistiria eventual atitude suspeita por parte do acusado, externalizada em atos concretos. Não há referência a prévia investigação, monitoramento ou campanas no local. Também não se tratava de averiguação de denúncia robusta e atual acerca da existência de entorpecentes no interior da residência (aliás, não há sequer menção a informações anônimas sobre a possível prática do crime de tráfico de drogas pelo autuado).

A mera intuição acerca de eventual traficância praticada pelo agente, embora pudesse autorizar abordagem policial, em via pública, para averiguação, não configura, por si só, justa causa a permitir o ingresso em seu domicílio, sem seu consentimento – que deve ser mínima e seguramente comprovado – e sem determinação judicial.

Em que pese eventual boa-fé dos policiais militares, não havia elementos objetivos, seguros e racionais, que justificassem a invasão de domicílio. Assim, como decorrência da Doutrina dos Frutos da Árvore Envenenada (ou venenosa, visto que decorre da fruits of the poisonous tree doctrine, de origem norte-americana), consagrada no art. 5º, LVI, da nossa Constituição da República, é nula a prova derivada de conduta ilícita.

STJ, HC 415332, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, j. em 16/08/2018.

Caso concreto

Em abordagem de trânsito, determinado indivíduo não obedeceu à ordem de parada, e empreendeu fuga para o interior de sua residência que foi invadida pelos policiais.

Fundamentos da decisão

● O STF fixou entendimento no RE nº 603.616/RO que o ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial apenas se revela legítimo quando amparado em fundadas razões devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso concreto, que indiquem que naquele momento há situação de flagrante delito no interior da residência.

● No julgado do REsp nº 1.574.681/RS ficou estabelecido que se exige que a autoridade policial tenha fundadas razões para acreditar, diante de circunstâncias objetivas, em atual ou iminente cometimento de crime no local onde a diligência será cumprida e não simples desconfiança baseada na fuga de ronda policial.

  • Se o juiz só pode determinar a busca e apreensão durante o dia, e mesmo assim mediante decisão devidamente fundamentada, após prévia análise dos requisitos autorizadores da medida, não é razoável conferir a um agente de segurança pública total discricionariedade para, diante da mera intuição, entrar de maneira forçada na residência de alguém para verificar se há situação de flagrante delito.
  • O único motivo que levou ao ingresso no domicílio foi a evasão da abordagem policial e não houve dados objetivos no que consistiria a atitude suspeita externalizada em atos concretos. Não houve averiguação de denúncia acerca da existência de entorpecentes no interior da residência.
  • Embora a intuição autorize a abordagem policial em via pública, ela não é suficiente para o ingresso no domicílio diante da ausência de fundadas razões.

Comentários

A jurisprudência do STJ tem se consolidado que a simples denúncia anônima da prática de tráfico de drogas, associada à fuga do acusado não configuravam fundadas razoes para o ingresso no domicílio.17

Em que pese sustentarmos que a fuga do acusado ao visualizar a polícia, sobretudo para dentro da residência, é motivo suficiente para realizar a abordagem policial com ingresso na residência, por configurar fundadas razões, este não é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça.

Não é uma conduta normal visualizar a polícia e sair correndo, em fuga. A presunção nestes casos é de que a pessoa que assim procedeu pode estar a praticar ilegalidades, seja portar armar ou drogas ou ter contra si um mandado de prisão, o que precisa ser verificado pela polícia. Ainda, o fato de correr para dentro da casa impedindo a ação policial, sendo que a polícia não pode entrar, para o STJ, acaba por fulminar o princípio da oportunidade e as provas, eventualmente, existentes contra o agente poderão ser perdidas. Os direitos fundamentais não devem ser utilizados para a salvaguarda de práticas ilícitas, conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal18. Isto é, a proteção do direito à inviolabilidade domiciliar não se sustenta quando houver indicativos de que o morador se utiliza de sua casa, tanto é que para dentro dela fugiu, com o fim de escapar da ação policial em situação de flagrante delito.

Caso a pessoa que correu tenha medo da polícia, por já ter sofrido alguma violência policial no passado, é normal que tenha receio de ser abordado novamente pela polícia, em razão de traumas do passado, contudo essa não é a regra. No dia a dia as pessoas não saem correndo pelas ruas ao visualizarem uma viatura polícia nem em comunidades mais simples, como favelas. A experiência policial demonstra o contrário, que quem corre da polícia certo não está.

Destaca-se ainda que a pessoa que desobedece à ordem legal da polícia, no contexto de abordagem policial decorrente do exercício do policiamento ostensivo e não como agente de trânsito, pratica o crime de desobediência (art. 330 do CP), o que, inclusive, legitima a condução do agente para a delegacia em flagrante delito.

É necessária realizar uma distinção entre fundada suspeita e fundadas razões.

A fundada suspeita legitima a busca pessoal, na forma do art. 244 do Código de Processo Penal e possui um menor rigor do que as fundadas razões, tanto é que o Superior Tribunal de Justiça decidiu que a mera intuição acerca de eventual traficância praticada pelo agente autoriza a abordagem policial (busca pessoal) em via pública para averiguação, o que, no entanto, não autoriza o ingresso em domicílio.

O art. 244 do Código de Processo Penal exige a presença de fundada suspeita para a realização de busca pessoal, enquanto que o art. 240, § 1º, do CPP exige a presença de fundadas razões para a realização de busca domiciliar, termo este inclusive utilizado pelo Supremo Tribunal Federal no RE n. 603.616/RO, que fixou as balizas necessárias para legitimar o ingresso da polícia em residência nos casos de flagrante.

Art. 240. A busca será domiciliar ou pessoal. § 1oProceder-se-á à busca domiciliar, quando fundadas razões a autorizarem, para:
Art. 244. A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar.

O conceito de fundada suspeita e de fundadas razões não se encontram definidos pela lei, sendo verdadeiros conceitos abertos e que depende do intérprete.

Guilherme de Souza Nucci19 explica que:

(…) é requisito essencial e indispensável para a realização da busca pessoal, consistente na revista do indivíduo. Suspeita é uma desconfiança ou suposição, algo intuitivo e frágil, por natureza, razão pela qual a norma exige fundada suspeita, que é mais concreto e seguro. Assim, quando um policial desconfiar de alguém, não poderá valer-se, unicamente, de sua experiência ou pressentimento, necessitando, ainda, de algo mais palpável, como a denúncia feita por terceiro de que a pessoa porta o instrumento usado para o cometimento do delito, bem como pode ele mesmo visualizar uma saliência sob a blusa do sujeito, dando nítida impressão de se tratar de um revólver. Enfim, torna-se impossível e impróprio enumerar todas as possibilidades autorizadoras de uma busca, mas continua sendo curial destacar que a autoridade encarregada da investigação ou seus agentes podem – e devem – revistar pessoas em busca de armas, instrumentos do crime, objetos necessários à prova do fato delituoso, elementos de convicção, entre outros, agindo escrupulosa e fundamentadamente.”

Em relação às fundadas razões, Nucci ensina que significa a existência de indícios razoáveis de materialidade e autoria.

Em que pese a jurisprudência utilizar os termos “fundada suspeita” e “fundadas razões” sem o rigor técnico, pois esses conceitos acabam se confundindo nas fundamentações e são utilizados indistintamente, possuem importante distinção jurídica e prática, na medida em que o primeiro autoriza a busca pessoal sem mandado, mas não autoriza a busca domiciliar sem mandado, enquanto que o segundo autoriza a busca pessoal e a busca domiciliar sem autorização judicial.

Para o Superior Tribunal de Justiça, a fuga para o interior de residência ao avistar o policial, que se encontra em diligência de trânsito de rotina, justifica a abordagem policial fora da residência. Nota-se haver um maior rigor na análise do ingresso em domicílio, pois a inviolabilidade domiciliar é um direito fundamental.

Esquematicamente, os conceitos ora estudados podem assim serem visualizados.

Fundada suspeitaFundadas razões
Arts. 240, § 2º, e 244, ambos do CPPArt. 240, § 1º, do CPP
Conceito vagoConceito vago
Desconfiança, suposição atrelada a algum elemento concreto20, como um objeto na cintura por debaixo da blusa que pode ser uma arma.Indícios razoáveis de materialidade e autoria da prática de crime.
Autoriza a busca pessoalAutoriza a busca pessoal
Não autoriza a busca domiciliarAutoriza a busca domiciliar
Há um menor rigor para a exigência da fundada suspeitaHá um maior rigor para a exigência das fundadas razões
Exemplos:
1. Indivíduo que corre ao visualizar a polícia pode ser abordado na rua.
2. Indivíduo é visualizado com um objeto por debaixo da blusa, parecido com uma arma de fogo, em razão do volume, justifica a busca pessoal.
3. Indivíduo é visto em local conhecido como ponto de tráfico, o que caracteriza a fundada suspeita e justifica a busca pessoal.
4. Indivíduo é visto vendendo drogas em uma movimentação atípica na porta de sua residência, o que é constatado após a realização de campana e abordagem de usuários que compraram a droga. Quando o agente comparecer na porta de sua residência será possível realizar a busca pessoal.
Exemplos:
1. Indivíduo que corre ao visualizar a polícia não pode ser abordado, caso entre em sua residência.
2. Indivíduo é visualizado com um objeto por debaixo da blusa, parecido com uma arma de fogo, em razão do volume, dentro de sua casa, que possui portão de grade, não justifica a busca domiciliar.
3. Indivíduo é visto em local conhecido como ponto de tráfico, o que, por si só, não justifica a busca domiciliar.
4. Indivíduo é visto vendendo drogas em uma movimentação atípica na porta de sua residência, o que é constatado após a realização de campana e abordagem de usuários que compraram a droga. A polícia poderá realizar busca domiciliar sem autorização judicial.

Oportunamente, publicarei no site Atividade Policial um texto completo acerca dos conceitos e peculiaridades entre fundada suspeita e fundadas razões.

Em caso semelhante ao ora comentado os policiais adentraram à residência do agente sem sua prévia permissão e sem prévia autorização judicial, baseados apenas em conhecimento prévio de que o local seria ponto de drogas, desacompanhada tal informação de outros elementos preliminares indicativos de crime, e no fato de que, ao ver a viatura policial, o agente que estava em frente à residência correu para o pátio de sua casa. Foi reconhecida a ilegalidade da entrada do policial na residência do agente, pois não havia autorização judicial nem fundadas razões para ingressar em razão do flagrante delito.21

9. Não justifica o ingresso da polícia na residência na hipótese em que o agente encontra-se na porta de sua casa e adentra às pressas ao visualizar a viatura policial na rua.

O mero avistamento de um indivíduo de pé no portão de sua casa que, ao divisar uma viatura policial, se dirige para o quintal ou para o interior de sua residência, sem qualquer denúncia/informação ou investigação prévia, não constitui fundamento suficiente para autorizar a conclusão de que o cidadão trazia drogas consigo ou as armazenava em sua residência, e tampouco de que naquele momento e local estava sendo cometido algum tipo de delito, permanente ou não.
Situação em que, durante ronda noturna de rotina e sem nenhuma denúncia prévia, após verificar que o paciente, que se encontrava de pé no portão de sua residência, empreendeu fuga para dentro do imóvel ao avistar a viatura policial, policial militar transpôs o portão e seguiu o indivíduo até o quintal, quando, então, teria visto o agente jogando, na direção de sua casa, um pote plástico branco. Realizada busca pessoal no suspeito ainda no quintal da casa, foram encontrados dois pinos de cocaína em sua bermuda e, já dentro da residência, no interior do pote plástico, outros 32 (trinta e dois) pinos de cocaína. Muito embora, com efeito, a dispensa repentina e rápida do pote pudesse levantar suspeitas que autorizassem a busca pessoal, o fato é que a visão do ato suspeito somente foi possível porque o policial militar já havia adentrado o portão da casa do paciente e chegado até o quintal, em nítida violação à proteção constitucional garantida ao domicílio.

STJ, HC: 609072 SP 2020/0219742-5, Rel. Ministro Reynaldo Soares Da Fonseca, 5ª Turma, j. em 06/10/2020.

Caso concreto

Os policiais ingressaram no domicílio após o indivíduo ter adentrado às pressas para dentro de sua residência ao visualizar a viatura policial.

Fundamentos da decisão

● O STF fixou entendimento no RE nº 603.616/RO que o ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial apenas se revela legítimo quando amparado em fundadas razões devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso concreto, que indiquem que naquele momento há situação de flagrante delito no interior da residência.

  • O crime de tráfico de entorpecentes é permanente, o que legitima a entrada de policiais em domicílio para cessar a prática delitiva, desde que existam elementos suficientes de probabilidade delitiva capazes de demonstrar a ocorrência de flagrância.
  • A abordagem foi realizada sem qualquer informação prévia ou indício que pudesse indicar que o agente trazia consigo ou tinha em depósito entorpecentes.
  • Para o STF o conceito de casa possui caráter amplo porque compreende (a) qualquer compartimento habitado; (b) qualquer aposento ocupado de habitação coletiva; (c) qualquer compartimento privado não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade.
  • O espaço que circunda a residência do indivíduo e é delimitado por muros e contém portão configura extensão de sua casa e está abrangido pela garantia constitucional da inviolabilidade.
  • O argumento dos policiais para o ingresso não era suficiente para a violação a residência, na medida em que desprovidos de elementos concretos.
  • A dispensa repentina e rápida do pote com droga somente foi possível de ser visualizada em razão do ingresso ilegal dos policias na residência, razão pela qual a apreensão dessas drogas não possuem validade.

Comentários

As fundadas razões que justificam o ingresso em residência devem ser tomadas com base em elementos concretos e, para o STJ, a fuga do agente não configura elemento apto a ingressar na residência, razão pela qual eventual ingresso decorrente da fuga, por ser ilegal, invalida todas as provas da prática do crime que sejam encontradas na residência (teoria do fruto das árvores envenenadas).

Em que pese sustentarmos que a fuga do acusado ao visualizar a polícia, sobretudo para dentro da residência, é motivo suficiente para realizar a abordagem policial com ingresso na residência, por configurar fundadas razões, este não é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça.

Não é uma conduta normal visualizar a polícia e sair correndo, em fuga. A presunção nestes casos é de que a pessoa que assim procedeu pode estar a praticar ilegalidades, seja portar armar ou drogas ou ter contra si um mandado de prisão, o que precisa ser verificado pela polícia. Ainda, o fato de correr para dentro da casa impedindo a ação policial, sendo que a polícia não pode entrar, para o STJ, acaba por fulminar o princípio da oportunidade e as provas, eventualmente, existentes contra o agente poderão ser perdidas, como ocorreu neste caso julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, tanto é que o agente dispensou rapidamente as drogas que estavam sob a sua posse. Os direitos fundamentais não devem ser utilizados para a salvaguarda de práticas ilícitas, conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal22. Isto é, a proteção do direito à inviolabilidade domiciliar não se sustenta quando houver indicativos de que o morador se utiliza de sua casa, tanto é que para dentro dela fugiu, com o fim de escapar da ação policial em situação de flagrante delito.

Caso a pessoa que correu tenha medo da polícia, por já ter sofrido alguma violência policial no passado, é normal que tenha receio de ser abordado novamente pela polícia, em razão de traumas do passado, contudo essa não é a regra. No dia a dia as pessoas não saem correndo pelas ruas ao visualizarem uma viatura polícia nem em comunidades mais simples, como favelas. A experiência policial demonstra o contrário, que quem corre da polícia certo não está.

Determinados locais podem ser conhecidos pelos moradores como locais de “troca de tiro” entre a polícia e criminosos, o que justifica, como decorrência da natureza humana em se proteger, que moradores ao visualizarem a chegada da polícia adentre às pressas em suas residências e se abriguem, o que, realmente, não justificaria o ingresso da Polícia Militar na residência, mas não é essa a análise feita pelo Superior Tribunal de Justiça.

Destaca-se ainda que a pessoa que desobedece à ordem legal da polícia, no contexto de abordagem policial, pratica o crime de desobediência (art. 330 do CP), o que, inclusive, legitima a condução do agente para a delegacia em flagrante delito.

10. Abordagem em quintal da residência não legitima ingresso forçado, ainda que um dos abordados empreenda fuga para dentro da residência e com o outro agente sejam encontradas drogas.

A abordagem dos agentes no quintal de uma residência, em local conhecido como ponto de tráfico, sendo que um deles empreendeu fuga para dentro do imóvel e o outro permaneceu parado, sendo encontrado com ele uma certa quantidade de entorpecentes, não autoriza o ingresso na residência, por não demonstrar os fundamentos razoáveis da existência de crime permanente dentro do domicílio.

STJ, HC: 586474 SC 2020/0131639-8, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, 6ª Turma, j. em 18/08/2020.

Caso concreto

Durante abordagem no quintal de determinada residência, os policiais encontraram expressiva quantidade de droga, o que fez os policiais presumirem que havia mais droga na quitinete dividida por dois indivíduos, ocasião em que os agentes se dirigiram ao local com um cão farejador, onde localizaram mais onze buchas de cocaína e um caderno com anotações do tráfico.

Fundamentos da decisão

● O entendimento da Corte é no sentido de ser exigível fundamentos razoáveis da existência de crime permanente para justificar o ingresso forçado na residência do agente.

● Não foram realizadas investigações prévias nem indicados elementos concretos que confirmassem a suspeita levantada, não se revelando suficiente o encontro da droga com o indivíduo associada com a fuga de outro, o que conduz a ilicitude das provas obtidas com a invasão de domicílio sem fundadas razões.

Comentários

O inteiro teor e a ementa mencionam que o agente foi abordado no quintal da casa, momento em que foram apreendidas as drogas. Ocorre que o quintal da casa é parte integrante da residência, razão pela qual possui proteção constitucional da inviolabilidade domiciliar. Nesse contexto, a abordagem no quintal, sem fundadas razões, por si só, é ilegal.

No julgado não ficou claro se a abordagem ocorreu, efetivamente, na rua ou no quintal, pois a primeira e segunda instâncias mencionaram que a abordagem ocorreu na rua, sendo um agente flagrado com 60 pedras de crack dentro da cueca

Diz a sentença confirmada pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina que no caso, um dos agentes trazia consigo, dentro da cueca, 60 pedras de crack, quando foi abordado na rua pelos militares. Porém, o inteiro teor apresenta o depoimento de dois policiais e diz que estes afirmaram que a abordagem inicial teria ocorrido no quintal da residência, por ser local conhecido como ponto de tráfico.

O julgado não discutiu a proteção do quintal enquanto parte da casa, o que concede, portanto, proteção constitucional, tendo afirmado não ser possível ingressar dentro da residência, em razão dos policiais terem abordado um agente com drogas, enquanto o outro empreendeu fuga para dentro da casa.

Não está muito claro no inteiro teor como ocorreu a dinâmica dos fatos, mas ao se considerar a abordagem inicial no quintal da casa como lícita, há justa causa suficiente (fundadas razões) que legitimam o ingresso na casa, pois se um dos agentes abordados estava com 60 pedras de crack e o outro empreendeu fuga para dentro da residência, logicamente há indicativos de autoria e materialidade da prática de crime (droga com um indivíduo e fuga do outro).

Em que pese o Superior Tribunal de Justiça já ter decidido que “Não é necessária certeza quanto à ocorrência da prática delitiva para se admitir a entrada em domicílio, bastando que, em compasso com as provas produzidas, seja demonstrada a justa causa na adoção da medida, ante a existência de elementos concretos que apontem para o flagrante delito.”23, não foi o entendimento do STJ no caso em análise, em relação ao fatos pretéritos que legitimaram o ingresso na residência.

Não é uma conduta normal visualizar a polícia e sair correndo, em fuga. A presunção nestes casos é de que a pessoa que assim procedeu pode estar a praticar ilegalidades, seja portar armar ou drogas ou ter contra si um mandado de prisão, o que precisa ser verificado pela polícia. Ainda, o fato de correr para dentro da casa impedindo a ação policial, sendo que a polícia não pode entrar, para o STJ, acaba por fulminar o princípio da oportunidade e as provas, eventualmente, existentes contra o agente poderão ser perdidas, como ocorreu neste caso julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, tanto é que o agente dispensou rapidamente as drogas que estavam sob a sua posse. Os direitos fundamentais não devem ser utilizados para a salvaguarda de práticas ilícitas, conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal24. Isto é, a proteção do direito à inviolabilidade domiciliar não se sustenta quando houver indicativos de que o morador se utiliza de sua casa, tanto é que para dentro dela fugiu, com o fim de escapar da ação policial em situação de flagrante delito.

11. A abordagem do agente, em local conhecido como ponto de tráfico, ainda que com ele encontre drogas, não autoriza o ingresso na residência.

A abordagem do agente, em local conhecido como ponto de tráfico, sendo encontrado com ele drogas, não autoriza o ingresso na residência, por não demonstrar os fundamentos razoáveis da existência de crime permanente dentro do domicílio.

STJ, HC 611.918/SP, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, 6ª Turma, j. em 07/12/2020.

Caso concreto

Os policiais receberam a notícia de que um indivíduo estava traficando drogas em frente a um bar conhecido como “ponto de tráfico”, para onde se dirigiram quando avistaram o agente conversando com uma pessoa que estava dentro de um veículo. Ao avistarem o policial, a pessoa que estava no veículo evadiu-se. O agente foi abordado e revistado, sendo localizado em sua posse um pino de cocaína e a quantia de R$ 29,00 em dinheiro. Diante da notícia de que o agente buscava a droga na sua casa, que ficava próximo ao ponto de venda, os policiais se dirigiram até a residência e, com apoio de um cão farejador, encontraram substâncias entorpecentes.

Fundamentos da decisão

  • A Corte exige fundamentos razoáveis da existência do crime permanente para justificar o ingresso desautorizado na residência do agente.
  • A revista pessoal que localiza drogas com o agente, por si só, não autoriza o ingresso forçado na residência, sendo necessária investigação prévia.
  • Inexistência de elementos concretos que confirmassem a ocorrência do crime de tráfico de entorpecentes dentro da residência.

Comentários

O fato de um agente ser flagrado pela polícia em um ponto de tráfico e com drogas não legitima o ingresso na residência, ainda que o agente com drogas a trafique em frente a sua própria casa, conforme já decidiu o Superior Tribunal de Justiça25.

A prática e experiência policial demonstram que o agente que trafica em frente a própria residência armazena e guarda as drogas dentro da casa. A residência serve como um verdadeiro depósito de drogas para buscar e vender na porta da casa, até porque o traficante não vai montar uma mesa e colocar as drogas expostas à venda, em local de acesso público, para todos verem.

Não se pretende afirmar que todos que traficam na rua estão guardando drogas em casa, porém, se a análise do caso indicar essa possibilidade, sobretudo por haver informações do tráfico por parte de usuários, há fundamentos para afastar a proteção constitucional da inviolabilidade domiciliar. Diferente seria a situação em que o agente é abordado na rua, distante de sua residência, vendendo drogas e a polícia resolve ingressar em seu domicílio por presumir o depósito da substância no local. Nesse caso o ingresso é ilegal, pois não houve busca de informações que pudessem sugerir que o agente estivesse guardando a substância em seu domicílio.

De qualquer forma, é bom que fique registrado o julgado do Superior Tribunal de Justiça que não admite o ingresso da polícia na residência na hipótese em que o agente é abordado com drogas fora de sua residência, sendo possível afirmar que o fator distância da residência do local da abordagem é indiferente, pois o ingresso será ilícito de qualquer forma.

12. Proprietário de hostel não pode autorizar a polícia a ingressar em quarto alugado sem o consentimentos dos hóspedes

Não obstante o consentimento da proprietária do imóvel, trata-se de estabelecimento destinado à hospedagem (hostel), o qual, por conta de sua natureza de moradia, ainda que temporária, exige o consentimento dos hóspedes para a incursão policial, o que não ocorreu. Assim, impõe-se o reconhecimento da ilicitude das provas obtidas por meio da medida invasiva, bem como de todas as que delas decorreram. AgRg no HC 630.369/MG, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, j. em 02/02/2021.

Caso concreto: proprietária de um hostel autorizou que policiais realizassem buscas em um quarto alugado, ocasião em que foram apreendidas drogas. Os policiais haviam recebido denúncia anônima de que no local havia drogas. Diante da autorização da proprietária, os policiais ingressaram no quarto e efetuaram a apreensão das drogas e a prisão dos agentes.

Fundamentos da decisão

• O Supremo Tribunal Federal definiu, em repercussão geral, que o ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial apenas se revela legítimo – a qualquer hora do dia, inclusive durante o período noturno – quando amparado em fundadas razões, devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso concreto, que indiquem estar ocorrendo, no interior da casa, situação de flagrante delito;

• O Superior Tribunal de Justiça, em acréscimo, possui pacífica jurisprudência no sentido de que “a denúncia anônima, desacompanhada de outros elementos indicativos da ocorrência de crime, não legitima o ingresso de policiais no domicílio indicado, inexistindo, nessas situações, justa causa para a medida”;

• O art. 5º, XI, da Constituição Federal de 1988 consagrou o direito fundamental relativo à inviolabilidade domiciliar, ao dispor que: “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”;

• No sentido estrito, o conceito em tela comporta as moradias de todo gênero, incluindo as alugadas ou mesmo as sublocadas. O título da posse é, em princípio, irrelevante. Abrange as moradias provisórias, tais como quartos de hotel ou moradias móveis como o trailer ou o barco, a barraca e outros do gênero que sirvam de moradia. Determinante é o reconhecível propósito do possuidor de residir no local, estabelecendo-o como abrigo (“asilo”) espacial de sua esfera privada (Comentários à Constituição do Brasil / J. J. Gomes Canotilho…[et al.] ; outros autores e coordenadores Ingo Wolfgang Sarlet, Lenio Luiz Streck, Gilmar Ferreira Mendes. – 2. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2018, p. 305);

• A jurisprudência dos Tribunais pátrios é assente no sentido de que a autorização do morador da casa é suficiente para validar o ingresso dos policiais na residência, contudo, neste caso, apesar do consentimento da proprietária do imóvel, trata-se de estabelecimento destinado à hospedagem (hostel), o qual, por conta de sua natureza de moradia, ainda que temporária, exige o consentimento dos hóspedes para a incursão policial, o que não ocorreu. Dessa forma, as provas colhidas em razão do ingresso no quarto hospedado foram consideradas ilícitas, bem como todas as que delas decorreram.

Comentários

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é pacífica que a denúncia anônima não é fundamento idôneo para legitimar o ingresso de policiais em locais que possuem a proteção do direito fundamental à inviolabilidade domiciliar, o que não impede da autoridade policial realizar diligências com base na denúncia anônima, proceder à verificação da procedência das informações – VPI – e, fundamentadamente, instaurar inquérito policial ou arquivar a VPI.

Os locais destinados à hospedagem de qualquer pessoa, ainda que de forma rápida e temporária, seja por horas ou de um dia para o outro, como hotéis, motéis, hostels, possuem proteção da inviolabilidade domiciliar, na forma do art. 150, § 4º, II e § 5º, I, do Código Penal. A autorização do proprietário não é suficiente para autorizar o ingresso na residência, pois esta autorização cabe ao morador.

A Constituição Federal é clara ao dizer que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial” (art. 5º, XI). Note que não diz consentimento do proprietário.

O crime de abuso de autoridade de invasão de domicílio diz que este crime ocorre quando for praticado à revelia da vontade do ocupante, enquanto que o crime de violação de domicílio dispõe que este resta configurado quando for praticado contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito.

Crime de abuso de autoridade de invasão de domicílioCrime de violação de domicílio
Art. 22. Invadir ou adentrar, clandestina ou astuciosamente, ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel alheio ou suas dependências, ou nele permanecer nas mesmas condições, sem determinação judicial ou fora das condições estabelecidas em lei: Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.Art. 150 – Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências: Pena – detenção, de um a três meses, ou multa. § 4º – A expressão “casa” compreende: I – qualquer compartimento habitado; II – aposento ocupado de habitação coletiva; III – compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade.

Os tipos penais visam conceder proteção penal ao direito fundamental previsto no art. 5º, XI, da Constituição Federal. Trata-se de um mandamento de criminalização implícito, pois a Constituição, ao considerar a inviolabilidade domiciliar um direito fundamental e expressar as exceções, quis proteger com mais intensidade este direito fundamental, razão pela qual é digno de proteção penal, que é o ramo do direito que atinge de forma mais gravosa o ser humano, por possuir pena privativa de liberdade.

O titular do direito fundamental à inviolabilidade domiciliar é tratado nos tipos penais como “ocupante” do imóvel ou “quem de direito”.

O “ocupante do imóvel” ou “quem de direito” refere-se à pessoa que possui poder de autorizar ou retirar alguém de casa, seja o dono ou não. Nesse contexto, surgem dois regimes que devem ser analisados, o regime de subordinação e o de igualdade.

No regime de subordinação não são todos que moram na casa que podem autorizar a entrada e permanência de terceiros, mas somente aqueles que são responsáveis pela casa, como o pai e a mãe (arts. 5º, I e 226, § 5º, da CF) em relação aos filhos e o responsável pelo pensionato, escola, dentre outros. Caso haja conflito de vontades a respeito da autorização para que uma pessoa entre na casa, o que só pode ocorrer entre os responsáveis pela casa, prevalece a impossibilidade de ingresso, pois um dos moradores teria o seu direito fundamental violado. Portanto, no choque de interesses, preserva-se a vontade daquele que não autoriza a entrada ou caso já tenha entrado, a vontade daquele que não quer a permanência de terceiro na casa. Na hipótese em que a divergência de autorização para entrar na casa envolver quem na relação hierárquica esteja em grau inferior, como a relação pai-filho, prevalece a vontade do pai, desde que esteja em sua própria casa e não na casa de seu filho. Isso não quer dizer que os filhos não possam convidar pessoas para a sua casa, mas caso os pais vedem ou mandem sair, a vontade do pai deverá ser atendida, sob pena de violação de domicílio.

No regime de igualdade todos os moradores da casa possuem igual poder para aceitar ou expulsar alguém da casa, o que ocorre numa relação familiar composta por marido e esposa (arts. 5º, I e 226, § 5º, da CF); em uma república de estudantes; em condomínios. Caso haja discordância quanto à possibilidade de ingresso na casa, aplica-se o raciocínio acima exposto.

A vontade do morador da casa pode ser manifestada de forma expressa ou tácita. Será expressa quando disser expressamente ou manifestar-se por escrito, gestos ou qualquer outra forma que seja possível dizer claramente que o morador autoriza ou não o ingresso na casa. Será tácita quando puder constatar a manifestação de vontade do morador em razão das circunstâncias do caso concreto, como manter a porta fechada.

É suficiente que qualquer um dos moradores responsáveis pela casa, seja no regime de subordinação, seja no de igualdade, autorize o ingresso da polícia na residência para que este seja lícito, não sendo necessário que o policial aguarde a manifestação de vontade do outro morador que não estiver presente, pois a ausência de qualquer um dos moradores responsáveis pela casa implica em autorizar que somente o morador presente autorize o ingresso de terceiros. Deve-se presumir, inclusive, que o morador presente está a atuar de acordo com a vontade do outro morador, pois do contrário o morador presente relataria a impossibilidade de ingresso em razão da discordância do outro morador. Caso haja mais de um morador responsável pela casa e um deles esteja ausente no portão no momento da autorização, pois estava dentro de casa, a autorização, igualmente, é válida, em razão do mesmo raciocínio ora exposto.

Por fim, é importante destacar que o ingresso nesses locais sem que haja fundadas razões ou autorização dos ocupantes ou moradores caracteriza ingresso ilícito e as provas eventualmente colhidas são consideradas ilícitas.

Considerações finais

No RE 603616/RO o STF fixou o entendimento de que o parâmetro que autoriza o ingresso forçado consiste na existência de elementos mínimos da prática de crime a caracterizar fundadas razões (justa causa) para a medida.

O Superior Tribunal de Justiça utiliza a decisão do Supremo Tribunal Federal para balizar os seus julgados, contudo realiza uma interpretação bem restritiva.

Afinal de contas, o que são elementos mínimos da prática de crime a caracteriza fundadas razões (justa causa)?

Não existe um conceito fechado, pelo contrário, trata-se de um conceito vago e aberto, que deve ser analisado em cada caso, razão pela qual é importante conhecer os mais diversos julgados do Superior Tribunal de Justiça, conforme exposto.

Após análise dos julgados do STJ pode se afirmar que elementos mínimos correspondem à denúncia anônima associada a entrevistas com vizinhos e monitoração do local pelos policiais a fim de confirmar as alegações; comunicação de que houve disparo de arma de fogo dentro do imóvel; descoberta de droga por cão farejador, associada as informações obtidas na vizinhança de que no local é realizada traficância, somada a diligência policial de monitoração do local; visualização do agente descartando a droga para fora do domicílio; visualização do agente manuseando a droga do lado de fora do domicílio pela janela.

Os julgados do STJ apresentam um denominador comum: a realização de investigações prévias a fim de confirmar os indicativos mínimos da prática de crime no local. Depreende-se, ainda, dos julgados, que não se discute a legitimidade da conduta com base no resultado do ingresso, pois isso esvaziaria a garantia fundamental à inviolabilidade domiciliar, pois um direito fundamental ficaria à mercê da sorte.

Para o STJ, tornou-se recorrente o ingresso em domicílio alheio sem elementos concretos suficientes para autorizar o ingresso legítimo, o que viola a garantia constitucional, o que deve ser controlado pelo Poder Judiciário.

Atento a essa situação, no julgamento do HC 415332, o Ministro Rogério Schietti Cruz ressaltou que “se a lei exige do juiz que profira uma decisão fundamentada com elementos concretos para autorizar a busca e apreensão não se revela razoável conferir ao um agente de segurança pública total discricionariedade para, diante da mera intuição, adentrar de maneira forçada na residência de alguém para verificar se há situação de flagrante delito”.

Afirmou ainda que “Tal compreensão não se traduz, obviamente, em transformar a casa em salvaguarda de criminosos, tampouco um espaço de criminalidade. Há de se convir, no entanto, que só justifica o ingresso na moradia alheia a situação fática emergencial consubstanciadora de flagrante delito, incompatível com o aguardo do momento adequado para, mediante mandado judicial, legitimar a entrada na residência ou local de abrigo”.

No HC 611.918 o Ministro Antônio Saldanha afirmou que “Todas as vezes em que alguém é preso na comunidade, com determinada quantidade de entorpecente, alguns elementos se reiteram. Primeiro, que o local é conhecido ponto de venda de drogas. Que o preso é conhecido na localidade como traficante. E que ele autorizou o ingresso no domicílio, que é nas proximidades. Isso para mim não traz verossimilhança.” e que “Sempre a dinâmica é essa. Precisamos começar a mitigar esse tipo de arroubo policial”.

O Ministro Rogério Schietti Cruz, por sua vez, afirmou que “Temos que pensar quantos domicílios são invadidos neste país pela polícia sem que se encontre nada dentro. E fica por isso mesmo. Ninguém vai reportar isso. Não vai gerar nenhum tipo de responsabilização. Porque se alguém ingressa em um domicílio sem fundada suspeita, concreta, é abuso de autoridade. E isso está na lei. É preciso que realmente a polícia reveja sua rotina em relação a estes fatos e tenha mais cuidado, documentando o que justificou o ingresso e o próprio ingresso. E filmando a operação.”

Sempre que possível é prudente que a ação policial seja filmada, com o fim de resguardar a lisura e transparência da ação.

Cada caso é um caso, mas é possível ter os diversos julgados do STJ como parâmetro para a atuação policial, até porque, em termos proporcionais, são poucos os casos que chegam ao STJ mediante Habeas Corpus ou Recurso Especial, o que cria um tratamento diferenciado para casos iguais, em que os acusados com bons advogados teriam o entendimento do STJ aplicado e os demais não.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça cada vez mais tem se consolidado pela impossibilidade da polícia ingressar na residência se não houver investigação policial prévia que forneça elementos concretos da prática de crime dentro da residência, como filmagens e campanas de movimentação atípica na residência (venda de drogas), audição de testemunhas, abordagem de um usuário que confirme ter comprado drogas em determinada residência (o que é difícil de afirmar, em razão do medo do traficante), dentre outras. O STJ destaca que não se exige diligências profundas, mas sim breve averiguação, o que pode ocorrer com um dos exemplos acima citados.26

Diante desse contexto, é importante que quando a Polícia Militar receber denúncia anônima e não conseguir obter maiores informações que demonstrem concretamente haver a prática de crime dentro da residência, compartilhe a denúncia anônima com a Polícia Civil para que realize a investigação policial.

Por óbvio há casos e casos e se o flagrante dentro da residência estiver bem caracterizado a Polícia Militar deve atuar prontamente, sob pena de fulminar o princípio da oportunidade e todo objeto ilegal, como armas e drogas que seriam apreendidas, não serem mais encontrados.

A vibração policial em efetuar a prisão de criminosos perigosos para a sociedade em flagrante delito e apreender armas e drogas, em que pese ser um ponto positivo, por demonstrar compromisso e envolvimento com o trabalho e com a sociedade, pode acabar por resultar na perda da apreensão desses objetos ilícitos, como decorrência da ilegalidade no ingresso domiciliar e, consequentemente, na impunidade, em razão da absolvição do agente preso pela polícia.

Além do mais, um trabalho conjunto feito entre a Polícia Militar e a Polícia Civil somente gerará dividendos para a sociedade, na medida em que a PM repassará as informações e a Polícia Civil poderá investigar e decidir o melhor momento, sob o ponto de vista investigativo, da atuação policial, o que possibilitará ampliar o número de prisões de agentes envolvidos, bem como a localização de uma maior quantidade de drogas e armas, enquanto que a ausência de comunicação entre as instituições pode levar à frustração das diligências realizadas pela autoridade de polícia judiciária que poderá estar investigando um agente por tráfico de drogas e aguarda o melhor momento para atuar, na certeza do flagrante ou mediante pedido de autorização judicial, o que pode ser interrompido por uma ação antecipada da Polícia Militar, que atuou de boa-fé, com o intuito de somar, de combater e de prevenir o crime. Às vezes a autoridade de polícia judiciária possui informações da prática de um tráfico de drogas, está investigando o caso e planeja atuar em um determinado dia, pois sabe que neste dia planejado chegará maior quantidade de drogas e haverá uma possibilidade maior de efetuar a prisão de mais agentes do tráfico. A comunicação, cooperação e parceria entre as instituições é o melhor caminho para a repressão e prevenção.

A seguir, tabela esquematizada com a síntese dos entendimentos do Superior Tribunal de Justiça em diversos casos.

Ingresso lícito da polícia
DecisãoJulgado
É legítimo o ingresso forçado em imóvel não habitado após denúncia anônima e monitoração do local pela polícia para confirmar ausência de habitantes.HC: 588445 J.25/08/2020.
É legítimo o ingresso no domicílio alheio em razão de denúncia de disparo de arma de fogo dentro da casa.HC 595.700, J. 06/10/2020.
Busca por arma de fogo utilizada em crime autoriza o ingresso forçado em domicílio, na hipótese em que o agente for reconhecido por foto e fugir ao avistar a aproximação da polícia, entrando em sua casa e se evadindo pela janela em direção à mata.HC 614.078, J. 03/11/2020.
É legítima busca domiciliar forçada realizada por policiais militares que sentem cheiro de maconha. No caso concreto os policiais foram autorizados a entrar na casa pelo agente que buscava documento de identidade para apresentar aos policias, momento em que foi sentido o forte cheiro de maconha, o que somado ao nervosismo do agente, legitimou o ingresso na residência.HC 423838, J. 08/12/2018.
Denúncia de traficância via COPOM, associada a atitude suspeita e emprego de fuga do agente autoriza o ingresso forçado em domicílio.HC 607.601 J. 27/10/2020.
Investigação inicial de crimes de receptação e falsidade ideológica e posterior suspeita de prática de traficância confirmada por agentes da divisão estadual de narcóticos legitimam o ingresso forçado em domicílio.HC 610.828 J. 27/10/2020.
Agente encontrado no telhado se desfazendo das drogas autoriza o ingresso forçado em domicílio.RHC 129.923 J. 06/10/2020.
Denúncia anônima associada à fuga de agentes, que portavam arma de fogo e rádios comunicadores, e relato de usuários que o local é ponto de venda e consumo de drogas, legitima ingresso forçado em domicílioHC 500.101 J. 11/06/2019.
Denúncia anônima, associada à fuga e descarte de droga autorizam o ingresso forçado.HC 516.746 J. 15/08/2019.
É lícito o ingresso em domicílio no caso em que policiais abordarem indivíduo na via pública em atividade duvidosa, sem documentos e que não saiba responder a perguntas básicas, e que aponte como lugar de moradia uma construção inacabada, sendo em seguida apontado o real endereço é por vizinhos.HC 484.111 J. 07/02/2019.
Box do tipo self storage não se enquadra no conceito de domicílio. Atenção: Em que pese não ser considerado domicílio, não significa que o ingresso é livre, devendo haver elementos que demonstrem a situação de flagrante delito, sobretudo diante do disposto no art. 22 da Lei n. 13.869/19.RHC 86.561 J. 21/08/2018
Ingresso ilícito da polícia
DecisãoJulgado
Denúncia anônima confirmada por vizinho desacompanhada de investigação preliminar não legitima o ingresso em domicílio.HC 609.982 J. 15/12/2020.
Denúncia anônima seguida de fuga do agente para dentro da residência não legitima o ingresso em domicílio.RHC 89.853 J. 18/02/2020.
A denúncia anônima, desacompanhada de outros elementos indicativos da ocorrência de crime, não legitima o ingresso de policiais no domicílio.REsp 1871856 J. 23/06/2020.
A “fama” de traficante, por já ter se envolvido com tráfico de drogas, não justifica, por si só, o ingresso na casa sem mandado.RHC126092 J. 23/06/2020
A denúncia anônima, aliada à venda de drogas na porta da residência, não autorizam presumir armazenamento de substância ilícita no domicílio, razão pela qual o ingresso, sem mandado, é ilícito.REsp 1886985 J. 07/12/2020
A descoberta de droga por cão farejador, por si só, não autoriza o ingresso no domicílio.HC 566818 J. 16/06/2020.
Perseguição a veículo em fuga não autoriza ingresso policial em domicílio.HC 561360 J. 09/06/2020
A fuga para o interior de residência ao avistar o policial, que encontra-se em diligência de trânsito de rotina, não autoriza o ingresso em domicílio.HC 415332 J. 16/08/2018.
Não justifica o ingresso da polícia na residência na hipótese em que o agente encontra-se na porta de sua casa e adentra às pressas ao visualizar a viatura policial na rua.HC 609072 J. 06/10/2020.
Abordagem em quintal da residência não legitima ingresso forçado, ainda que um dos abordados empreenda fuga para dentro da residência e com o outro agente sejam encontradas drogas.HC 586474 J. 18/08/2020
A abordagem do agente, em local conhecido como ponto de tráfico, ainda que com ele encontre drogas, não autoriza o ingresso na residência.HC 611.918 J. 07/12/2020.

NOTAS

1LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 7. ed. Salvador: Juspodivm, 2020.p. 838.

2 STJ – HC: 69552 PR 2006/0241993-5, Relator: Ministro FELIX FISCHER, Data de Julgamento: 06/02/2007, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJ 14/05/2007 p. 347.

3OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de processo penal. 24ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2020.

4STJ, RHC: 126092 SP 2020/0096758-5, Rel. Ministro Reynaldo Soares Da Fonseca, 5ª Turma, j. 23/06/2020.

5 STF – RE nº 603.616/RO

6STJ, HC: 566818, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, decisão monocrática, Data de Publicação: DJ 29/04/2020.

7STJ – HC: 588445 SC 2020/0139280-1, Relator: Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, Data de Julgamento: 25/08/2020, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 31/08/2020

8STJ – RHC: 89853 SP 2017/0247930-4, Relator: Ministro RIBEIRO DANTAS, Data de Julgamento: 18/02/2020, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 02/03/2020.

9HC 364.359/SP, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 19/02/2019, DJe 12/03/2019.

10STF-RT, 709/418

11STJ – RHC: 89853 SP 2017/0247930-4, Relator: Ministro RIBEIRO DANTAS, Data de Julgamento: 18/02/2020, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 02/03/2020.

12 Disponível em: <https://veja.abril.com.br/brasil/o-duro-trabalho-de-um-cao-farejador/>. Acesso em: 04/02/2021.

13AgRg no HC 423.838/SP, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, j. 08/02/2018.

14 ROSA, L. E. (2009). O emprego de cães de faro nas operações de fiscalização de drogas ilícitas realizadas nos postos da Polícia Militar Rodoviária de Santa Catarina. Polícia Militar de Santa Catarina, 2009.

15 Disponível em: <https://aopp.org.br/pdf/O_olfato_do_cachorro_permite_ao_policial_militar_ingressar_no_domicilio_sem_autorizacao_%20judicial_ou_sem_consentimento_do_morador.pdf>. Acesso em: 04/02/2021.

16STF-RT, 709/418

17HC 364.359/SP, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 19/02/2019, DJe 12/03/2019.

18 STF-RT, 709/418.

19NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 19ª. ed. ver., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2020.

20“A ‘fundada suspeita’, prevista no art. 

244 do 

CPPnão pode fundar-se em parâmetros unicamente subjetivosexigindo elementos concretos que indiquem a necessidade da revista, em face do constrangimento que causa. Ausência, no caso, de elementos dessa natureza, que não se pode ter por configurados na alegação de que trajava, o paciente, um” blusão “suscetível de esconder uma arma, sob risco de referendo a condutas arbitrárias ofensivas a direitos e garantias individuais e caracterizadoras de abuso de poder. Habeas corpus deferido para determinar-se o arquivamento do Termo. (

HC 81305, Min. ILMAR GALVÃO, DJ 22-02-2002).

21 STJ – AgRg no HC: 585150 SC 2020/0126925-4, Relator: Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, Data de Julgamento: 04/08/2020, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 13/08/2020.

22STF-RT, 709/418

23STJ, AgRg no REsp 1886985/RS, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, 6ª Turma, j. em 07/12/2020.

24STF-RT, 709/418

25STJ, AgRg no REsp 1886985/RS, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, 6ª Turma, j. em 07/12/2020.

26STJ – RHC: 89853 SP 2017/0247930-4, Relator: Ministro RIBEIRO DANTAS, Data de Julgamento: 18/02/2020, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 02/03/2020.