O advogado pode acompanhar as diligências policiais, na rua ou na casa de seu cliente?

Imagine que a polícia chegue em uma residência para cumprir um mandado de busca e apreensão ou para realizar uma busca e apreensão sem mandado por haver fundadas razões ou que aborde um veículo ou uma pessoa na rua, ocasião em que o suspeito aciona o advogado que comparece ao local.

Poderá o advogado acompanhar as diligências policiais?

A Constituição Federal assegura que “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”. (art. 5º, LXIII).

O Estatuto da Ordem dos Advogados – Lei n. 8.906/94 – dispõe que é direito do advogado “comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo sem procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis.” (art. 7º, III) e ainda assegura que os advogados podem ingressar livremente “nas salas e dependências de audiências, secretarias, cartórios, ofícios de justiça, serviços notariais e de registro, e, no caso de delegacias e prisões, mesmo fora da hora de expediente e independentemente da presença de seus titulares”. (art. 7º, VI, “b”).

A Lei de Abuso de Autoridade – Lei n. 13.869/19 -, por sua vez, dispõe que é crime de abuso de autoridade “Impedir, sem justa causa, a entrevista pessoal e reservada do preso com seu advogado” (art. 20).

Não obstante a Constituição Federal e as leis mencionem “preso”, a interpretação que se deve dar, por se tratar de direito fundamental, é ampliativa, de forma que basta a mera suspeição de recair sobre o agente a prática de infração penal para que ele seja advertido, antes de ser ouvido, mesmo que não esteja preso, de seus direitos constitucionais, inclusive o de constituir advogado.

Essa intepretação também é possível de se extrair do art. 6º, V, do CPP quando afirma que a autoridade policial, logo que tiver conhecimento da infração penal ouvirá o agente, observando-se o direito ao silêncio.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal já decidiu em mais de uma ocasião que no momento da prisão em flagrante delito o agente deve ser informado de seu direito ao silêncio (STF – RHC: 170843; STF, HC 218.335; STF: HC 80.949/RJ; Rcl 33.711/SP).

Destaco que há decisão do STJ em sentido diverso, isto é, pela desnecessidade de informar o agente previamente de seu direito ao silêncio (AgRg no HC 674.893/SP, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, 5ª Turma, julgado em 14/09/2021, DJe 20/09/2021).

O tema será pacificado pelo STF (Tema 1185), mas ainda não há data prevista para o julgamento.

Feita essas explicações iniciais, vamos ao principal: poderá o advogado acompanhar as diligências policiais?

O ponto central gira em torno da SEGURANÇA.

Os policiais devem verificar se o local oferece segurança para todos os envolvidos.

Ao chegar para realizar uma busca e apreensão, se houver advogado querendo acompanhar, o ideal é que primeiro os policiais certifiquem-se de que o local é seguro, inclusive, para o advogado. Por exemplo, vai entrar na residência para cumprir mandado de busca e apreensão de armas ilegais e tráfico de drogas. A natureza dos crimes demonstra haver um maior risco de confronto, logo, o ideal é a polícia entrar sozinha, dar busca nos envolvidos e com o ambiente seguro, autorizar o advogado a acompanhar. Obviamente, o acompanhamento também depende de haver um número suficiente de policiais para garantir a segurança.

O advogado quer falar com o cliente que está sofrendo uma busca em seu veículo. Os policiais poderão autorizar o acesso, desde que haja condições de segurança.

O acesso ao suspeito deve ocorrer somente após os policiais terem realizado a busca pessoal e se as condições de segurança forem favoráveis. A guarnição está em um local violento? Explique para o advogado e ao saírem desse local autorize o acesso que poderá ocorrer nas proximidades, mas em local seguro, ou na Delegacia de Polícia.

 Por que é importante que o suspeito tenha acesso imediato ao advogado? A estratégia de defesa começa na rua, com orientações ao cliente, inclusive se deve responder ou não os policiais na rua.

Saliento que os policiais não são obrigados a esperarem que o advogado chegue no local para iniciarem as diligências, em razão do princípio da oportunidade e imediatismo da atuação policial. A postergação do início das diligências pode resultar em drogas irem embora pelo vaso sanitário e armas serem arremessadas na casa de vizinhos etc. Já vi essas duas hipóteses acontecerem.

Se não houver ninguém na casa é razoável esperar a chegada do advogado, por um curto tempo, se os envolvidos manifestarem esse interesse.

É sempre recomendável que a busca e apreensão na residência seja filmada pela polícia. Quanto mais transparência, melhor. Fica mais seguro para todos os envolvidos.

Constantemente vimos situações em que a polícia não filma e na justiça o acusado alega inocência e que eventuais drogas ou armas foram plantadas e o resultado acaba sendo a absolvição.

A diligência ser acompanhada por advogado reduz bem a chance de eventual alegação de nulidade ser acolhida posteriormente.

Caso um advogado ou a própria parte filme as diligências, o policial não pode mandar cessar a filmagem sob a alegação de direito de imagem. O fato de estar fardado, em serviço, sobretudo se o local for público ou a casa particular de quem sofre a intervenção estatal, cede espaço para o direito da parte ou advogado filmar a ação. Isso é pacífico na jurisprudência (STF, ADPF 130; STJ, STJ, RMS 38.010-RJ).

Entre os policiais e os advogados deve haver um ótimo relacionamento profissional, com tratamento urbano e cordial de ambos. Os advogados devem entender que a polícia está fazendo o trabalho dela e, realmente, que está em busca de provas que podem incriminar – ou até mesmo inocentar. Os policiais devem entender que os advogados estão fazendo o papel deles, de defenderem seus clientes e buscar erros para anular o processo ou argumentos para comprovar a inocência ou uma redução de pena.

Por fim, o Memorando nº 30.074.2/22 da PMMG versa sobre a conduta dos policiais em ocorrências que advogados participam e, em síntese, orienta que os policiais militares, em Minas Gerais, procedam dessa forma:

Civil pode ser julgado pela Justiça Militar Estadual?

Na hipótese em que o militar praticar um crime militar e exonerar (der “baixa”) ou for excluído, poderá, enquanto civil, ser processado e julgado perante a Justiça Militar Estadual, pois a qualidade de militar deve ser aferida quando da prática do fato delituoso (tempus delict).

Crime militar cometido por militar no exercício da função. Em homenagem à garantia do juízo natural, a competência deve ser fixada sempre em relação à qualidade que o recorrente apresentava no momento do cometimento do fato, não podendo ser alterada por conta de alteração fática posterior (exoneração).

RHC 20.348-SC, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 24/6/2008.

Não há falar em incompetência da Justiça Militar se, à época dos fatos, o paciente era soldado da Polícia Militar e, no momento da prática dos crimes, se identificou como tal, fazendo uso de arma da corporação e, embora não estivesse fardado, estava acompanhado de outros militares devidamente fardados e em situação que denotava estarem todos em atividade.

STJ – HC 80.461 – MS Relator: Ministro Arnaldo Esteves Lima. DJ 19/08/09.

A respeito da possibilidade de civis serem julgados perante a Justiça Militar Estadual ao praticarem fatos definidos como crime no Código Penal Militar, o tema é controverso, mas é pacífico que não praticam crime militar na esfera estadual.

1ª corrente (prevalece): a Constituição Federal define no art. 125, § 4º, que compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e como a Justiça Comum não julga crimes militares, pelo menos em primeira instância, pois em segunda instância nos estados em que não existe Tribunal de Justiça Militar, cabe ao Tribunal de Justiça comum julgar os crimes militares em grau de recurso, não há que se falar em crime militar praticado por civil no âmbito estadual por inexistir órgão competente para processar e julgar civis por crimes militares, o que implica dizer que, por opção política do legislador, civis não praticam crimes militares em nível estadual.

Renato Brasileiro de Lima[1] ensina que:

Como o civil não pode ser processado e julgado pela Justiça Militar Estadual, caso pratique determinado delito contra as instituições militares estaduais, será processado na Justiça comum se os fatos por ele praticados encontrarem definição na lei penal comum. É nesse sentido o teor da súmula nº 53 do STJ(“Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar civil acusado de prática de crime conta instituições militares estaduais”). Na mesma linha, eis o teor da súmula nº 30 do extinto Tribunal Federal de Recursos: “Conexos os crimes praticados por policial militar e por civil, ou acusados estes como coautores pela mesma infração, compete à Justiça Militar Estadual processar e julgar o policial militar pelo crime militar (CPM, art. 9º) e à Justiça Comum, o civil”. (destaque nosso)

A Súmula n. 53 do STJ diz que “Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar civil acusado de prática de crime contra instituições militares estaduais”, sendo extraída de sua interpretação que para os civis serem julgados por crimes contra as instituições militares estaduais deve haver correspondência do fato típico no Código Penal comum daquele previsto no Código Penal Militar ou que o fato deve ser previsto na legislação penal comum, ainda que não encontre correspondência no CPM. Isto é, o julgamento de civis por crime contra as instituições militares estaduais ocorre somente se houver crime previsto na legislação penal comum, pois não praticam os crimes previstos no Código Penal Militar, já que não são julgados pela Justiça Militar Estadual.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é pacífica no sentido do civil responder perante a Justiça Comum por crime que atenta contra as instituições militares estaduais, no entanto, deve haver previsão da conduta como infração penal na legislação penal comum.

Com efeito, a Justiça Militar Estadual é competente para julgar militares integrantes das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros, quando pratiquem crimes, na forma do art. 9º, do CPPM.

Não possui competência para julgar civil. Sua competência é mais restrita. Interpretação da Lei Maior. Incidência da Súmula 53 desta Corte Superior de Justiça, segundo a qual “compete à Justiça Comum estadual processar e julgar civil acusado de prática de crime contra instituições militares estaduais”.

Destarte, em se tratando de estelionato previdenciário que, em tese, atinge patrimônio da Polícia Militar de São Paulo, está afastada a competência da Justiça Militar da União, por ausência de violação de interesses das Forças Armadas. De outro lado, em se tratando de crime supostamente praticado por civil, também está afastada a competência da Justiça Militar do Estado de São Paulo, ainda que configurada prejuízo ao patrimônio da Polícia Militar daquele Estado, haja vista a redação restritiva do artigo 125, § 4º, da Constituição Federal.

Conflito conhecido para declarar competente o Juízo de Direito do Departamento de Inquéritos Policiais e Polícia Judiciária de São Paulo – DIPO 3, o suscitado.

(CC n. 170.531/SP, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Terceira Seção, julgado em 24/6/2020, DJe de 29/6/2020.) (destaque nosso)

2ª corrente (minoritária): essa corrente critica a primeira, pois sustenta que há uma confusão entre o conceito de competência e de crime, pois o órgão julgador não possui nenhuma relação ao se definir se uma conduta é criminosa ou não.

Adriano Alves-Marreiros, Guilherme Rocha e Ricardo Freitas[2] ensinam que:

Não se pode deixar de aplicar a lei por não gostar dela, por não conhecê-la ou por não entendê-la. Não pode deixar, portanto, de ser aplicado o Código Penal Militar, quando há ofensa às instituições militares estaduais, apenas porque a Justiça Militar Estadual não pode julgar civis. Muda a competência, mas não muda a lei, não muda a natureza de crime militar da conduta, como, aliás, ocorre com qualquer outra justiça. Ademais, este posicionamento é reconhecido na Súmula 53 do STJ (de 1992, posterior à Constituição atual), isto é, aquela regra de competência afasta, indiscutivelmente, a aplicação da Lei Adjetiva Castrense, já que esta é aplicável, apenas, nos seus estritos termos (em especial, seu art. 6.º), nos processos perante as Justiças Militares estaduais.

Aliás, a Constituição atribui competência ao STF para processar e julgar os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica nos crimes comuns. Em geral se entende que, neste dispositivo constitucional, crime comum é aquele que não se caracteriza como crime de responsabilidade, não excluindo, assim, os crimes militares (que, neste caso, fariam parte dos crimes comuns). Mas tal discussão não é relevante em obra que trata de direito penal, até porque o entendimento diverso – o de que, em crimes militares, os comandantes citados não seriam julgados pelo STF – também nos levaria a concluir que se trata de crime militar, só que julgado na própria Justiça Militar. A mesma Carta atribui ao STJ competência para processar e julgar desembargadores federais. Todas essas pessoas não podem, então, ser processadas por crimes militares? Parece ser óbvia a resposta negativa, caso contrário, todos aqueles que têm foro por prerrogativa de função estariam fora do alcance da Lei Penal Militar, podendo cometer condutas delituosas previstas no Código Penal Militar sem consequências penais, ferindo gravemente o princípio da igualdade. (destaque nosso)

Milton Morassi do Prado [3]escreve que: 

O ponto nevrálgico da discussão se consubstancia na possibilidade, ou não, do não-militar praticar ilícito tipificado como crime militar em desfavor de militar do Estado.

Entendemos pela ocorrência desta possibilidade, pelos motivos a seguir aduzidos: primeiro, e conforme já citado, em face da imperatividade da manutenção da regularidade das instituições militares estaduais. Segundo, pela indisponibilidade do Estado na tutela dos bens jurídicos penais militares que, pela natureza de sua constituição, não podem ser disponibilizados como alguns bens tutelados pelo direito penal comum.

Assim, por exemplo, uma facção criminosa que atente contra a vida de um militar do Estado, simplesmente pelo fato deste ser um integrante de uma Instituição Militar Regular, com o único intuito de ofendê-la, não está apenas ofendendo o bem jurídico da vida, mas também o bem jurídico penal militar regularidade das Instituições militares, ocorrendo, portanto o dever de tutela do Estado, preconizado no inciso III do artigo 9º do Código Penal Militar.

(…)

O fundamento de inexistência de prestação jurisdicional da matéria ora em testilha balda-se em deveras inconformidade com os ditames do Estado Democrático de Direito, mormente quanto à ofensa ao contido no artigo 2º da Lex Mater, uma vez que a ausência de tutela pelo Estado-juiz consubstancia em deveras insegurança jurídica ao deixar de providenciar a devida proteção dos bens jurídicos penais militares.

Pelo exposto, cumpre consignar que, em que pese a divisão jurisdicional, compete à justiça comum, comumente denominada de “justiça residual”, a prestação jurisdicional nos casos não amparados pelas Justiças Especializadas.

Por este turno, faz-se pertinente concluir que o foro competente para processar e julgar os civis pela prática de crime militar em desfavor dos militares do Estado é da Justiça Comum. (destaque nosso)

Os argumentos da corrente minoritária são relevantes e nos leva a refletir se não há um equívoco ao afastar a possibilidade de civis serem julgados perante a Justiça Comum pela prática de crime militar.

Ao estudar o histórico de julgados que justificou o Superior Tribunal de Justiça a editar a Súmula n. 53, que dispõe que “Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar civil acusado de prática de crime contra instituições militares estaduais”, o STJ apresentou três conflitos de competência com as seguintes ementas:

Competência – Crime militar praticado por civil – Art. 125, § 4º, Constituição Federal. Os crimes militares praticados por civil, são de competência da Justiça Comum, face à expressa determinação constitucional (art. 125, § 4°), que não permite à Justiça Militar Estadual processar e julgar partes estranhas à corporação militar. Conflito procedente. (CC 1.258-SP)

Constitucional. Competência. Civil. Prática de crime militar contra instituição militar estadual. 1. A Constituição – art. 125, § 4.0 – confere à Justiça Militar Estadual competência para julgar apenas os policiais militares e bombeiros militares nos crimes militares definidos em lei. 2. Assim, compete à Justiça Comum Estadual julgar civil acusado da prática de crime contra instituições militares estaduais. (CC 1.525-RS)

Constitucional. Crime militar praticado por civil contra policial militar. Competência. À Justiça Militar Estadual não cabe processar e julgar civil, ainda que pela prática de crime contra instituição policial militar – CF, art. 125, § 4!l. Precedentes do STJ. (CC 2.117-RS)

Ao estudar os votos das decisões nota-se claramente que o STJ não disse que civis não praticam crimes militares, pelo contrário, asseverou que civis praticam crimes militares, mas nestes casos devem ser julgados perante a Justiça Estadual.

Trecho do voto no CC 1.525-RS: “Os civis, como deflui da norma, devem ser julgados, mesmo quando acusados de praticarem crimes militares, pela Justiça Comum Estadual.”

A Justiça Comum pode possuir competência para julgar matéria afeta à outra justiça, desde que decorra de previsão constitucional, como ocorre quando a Constituição Federal possibilita que a Justiça Estadual julgue causas trabalhistas quando a comarca não for abrangida pela Justiça do Trabalho (art. 112) e que a lei autorize que causas de competência da Justiça Federal em que forem parte instituição de previdência social e segurado possam ser processadas e julgadas na justiça estadual quando a comarca do domicílio do segurado não for sede de vara federal (art. 109, § 3º).

Até o advento da Lei n. 13.043/2014 as execuções fiscais propostas pela União, que são de competência da Justiça Federal, eram propostas perante a Justiça Estadual nas cidades que não continham a Justiça Federal.

Destaca-se que a competência da Justiça Comum é residual, face à inexistência de vácuo de competência, logo, toda matéria que não esteja prevista para ser julgada por qualquer outro ramo da justiça, deve ser julgada pela Justiça Comum, como é o caso dos crimes militares praticados por civis. Assim, pode-se afirmar que implicitamente a Constituição Federal determinou que a Justiça Estadual comum julgue os crimes militares praticados por civis contra as instituições militares estaduais.

A aplicação da Súmula n. 53 do STJ como ocorre atualmente e há bastante tempo contradiz o próprio teor da súmula, o que fica comprovado ao se estudar as razões de sua origem, que deixou consignado de forma expressa que os civis que praticam crimes militares no âmbito estadual devem ser julgados pela Justiça Comum.


[1]  LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal: volume único. 8 ed. Salvador: Juspodivm, 2020. p. 439.

[2] ALVES-MARREIROS, Adriano; ROCHA, Guilherme; FREITAS, Ricardo. Direito Penal Militar: teoria crítica & prática. São Paulo: Método, 2015.

[3] Disponível em: < https://jusmilitaris.com.br/sistema/arquivos/doutrinas/crimemilitarcivilcontrapm.pdf>. Acesso em: 17/10/2022.

Os militares de folga podem comparecer às ruas e aos eventos decorrentes do dia 07 de setembro?

07 de setembro é um dia histórico e um dos mais marcantes para o Brasil em razão da independência proclamada por Dom Pedro às margens do Rio Ipiranga, ao gritar “Independência ou Morte”.

A pintura abaixo, de autoria de Pedro América, simboliza o grito do Ipiranga: “Independência ou Morte”.

Não há nenhuma vedação ou proibição para que militares, de folga e em trajes civis, saiam às ruas para assistir aos desfiles ou manifestar apreço à independência do Brasil. Ainda que houvesse seria inconstitucional.

A grande discussão consiste na participação de militares para protestar em atos políticos, o que encontra vedação em alguns regulamentos disciplinares.

O Estatuto dos Policiais Militares do Distrito Federal – Lei n. 7.289/84 – prevê no art. 45 que “São proibidas quaisquer manifestações coletivas, tanto sobre atos de superiores quanto as de caracter reivindicatório ou político.”

O Decreto Distrital nº 23.317/02 prevê que se aplica à Polícia Militar e Corpo de Bombeiros Militar o Regulamento Disciplinar do Exército – Decreto nº 4.346/02 -, que por sua vez prevê no Anexo I, item 57, como transgressão disciplinar “Manifestar-se, publicamente, o militar da ativa, sem que esteja autorizado, a respeito de assuntos de natureza político-partidária”.

No âmbito da Polícia Militar de Minas Gerais não há vedação semelhante, pelo contrário, o art. 14, XVI, do Código de Ética dos Militares do Estado de Minas Gerais considera transgressão disciplinar “comparecer fardado a manifestação ou reunião de caráter político-partidário, exceto a serviço” e o Estatuto dos Militares do Estado de Minas Gerais – Lei Complementar n. 5.301/69 – prevê no art. 30 que “É proibido o uso de uniforme em manifestações de caráter político-partidário, exceto em serviço.” Extrai-se, em uma leitura a contrario sensu que os militares estaduais em Minas Gerais podem participar de atos político-partidários, desde que não estejam fardados ou em serviço.

Veja que no âmbito da Polícia Militar do Distrito Federal, o que também pode ser aplicável a outras instituições militares estaduais, a depender do regulamento, veda-se a participação em manifestações coletivas de ato político.

O grande “X” da questão é definir o que é um “ato político”.

O ato político é todo ato que se relaciona à política, que, por sua vez, refere-se à capacidade e habilidade das pessoas se relacionarem e influenciar outras. No dia a dia é da natureza do ser humano praticar atos políticos. Como já dizia Aristóteles, o homem é um ser político por natureza. A política decorre do simples convívio em sociedade. Exemplificativamente, se um grupo de pessoas se reúne para pedir pela regulamentação do homeschooling pelo Congresso Nacional, esse grupo pratica um ato político.

Note que ao se proibir a prática de “ato político”, genericamente, sem delimitar, acaba por inviabilizar um direito sagrado de toda pessoa, independentemente, da profissão, de se manifestar e de influenciar terceiros, inclusive instituições, razão pela qual fere a liberdade de expressão e consiste em uma interpretação inconstitucional.

De mais a mais, em nada afeta, para os militares, a hierarquia e a disciplina o fato de se reunir para pedir pelo fim da corrupção, pela democracia,

pela redução da carga tributária, pela aprovação de um projeto de lei que entende ser interessante pelo país. Portanto, vedar a prática de “ato político” genericamente é manifestamente inconstitucional.

Sendo assim, é necessário interpretar que a vedação é para prática de ato político-partidário – o que possui previsão expressa em regulamentos militares -, o que também deve ser visto com cautela. Estariam os militares proibidos de participar de atos político-partidários em qualquer situação ou somente se estiverem fardados ou em serviço?

O ato político-partidário ocorre quando a política é voltada para fins eleitorais, de eleger políticos e de alcançar o poder.  

Precisas são as lições do cientista político Rogerio Dultra dos Santos ao explicar o que é atividade político-partidária no parecer “Conceito, natureza e extensão da atividade político-partidária, da dedicação à mesma e sua distinção de atividades políticas e político-sociais em geral”[1]

Assim, não basta a ligação ao partido político para que a “atividade político-partidária” se complete ou se caracterize de forma plena. Ela precisa consistir numa atividade cuja finalidade precípua seja alcançar a vitória eleitoral e ocupar cargos no Estado. A atividade político-partidária poderia, inclusive, se dar sem filiação formal ao partido. Mas a sua caracterização demanda, no entanto, a vinculação e o apoio regulares e específicos a um mandato, ou a grupo ou tendência interna, cujo objetivo é a vitória eleitoral nas disputas intra-partidarias ou eleitorais propriamente ditas. Neste caso, o militante não-filiado opera na prática como se fosse: ele cumpre tarefas regulares vinculadas a um mandato, a um candidato ou a uma fração do partido e pode receber salário para isto. Este militante pode esperar, assim, caso o partido seja vitorioso, espaço – em forma de cargos – no governo.

A atividade político-partidaria é, portanto, o sinônimo inafastável da atividade político-eleitoral. A finalidade da ação politica aqui não é a mesma dos grupos de pressão, dos movimentos sociais ou dos lobbies, mas sim a de alcançar o poder. A atuação recai diretamente sobre as ações capazes de garantir vitória política através do sufrágio. Nesses termos, a chamada militância político-partidária tem um claro caráter de profissionalização e de regularidade quase laboral. Requer assiduidade, compromisso e assunção de tarefas de natureza burocrática. A dedicação à atividade político-partidaria se insere no rol específico da atuação na estrutura do partido, seja na direção do pleito por mandato representativo, seja na dinâmica da atividade político-burocratica de apoio.

A simpatia ideológica, a militância eventual, a manifestação pública de apoio (a candidato, ideia ou programa) ou a participação eventual em atividades de partido ou manifestações de rua organizadas por redes de movimentos sociais não caracterizam necessariamente atividade político-partidária por conta da ausência da regularidade e do labor, da falta de objetivo eleitoral e vinculação a mandato, corrente ou mesmo a partido definido, e que implicariam na ideia de dedicação, conforme se exige no texto constitucional.

Nota-se que a participação em manifestações de rua organizadas por movimentos sociais não caracteriza, necessariamente, atividade político-partidária.

Ocorre que a restrição imposta por regulamentos militares é mais profunda e veda a participação em manifestações de caráter político-partidário, isto é, ainda que o militar não pratique ato que caracterize atividade político-partidário, é suficiente a sua participação em movimentos que sejam de caráter político-partidário.

Deve ser feita uma leitura constitucional da vedação da manifestação e participação do militar em movimentos de caráter político-partidário, pois a liberdade de expressão e de reunião constituem direito fundamental e os militares não são excluídos desses direitos, em que pese possuírem uma maior limitação.

A Constituição Federal, em diversas passagens, quando quis excluir os militares, o fez expressamente, como autorizar a prisão por transgressão disciplinar ou por crime propriamente militar, sem ordem judicial; ao vedar o habeas corpus para as punições disciplinares militares; ao proibir a sindicalização, a realização de greve e a filiação partidária.

A restrição aos direitos fundamentais deve ser interpretada restritivamente e o art. 5º, XVI, da Constituição Federal diz que todos – sem excluir os militares – podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização. Da mesma forma o art. 5º, IV, da CF assegura a liberdade de expressão sem excluir os militares.

A Constituição Federal quando quis excluir a possibilidade de determinadas categorias participarem de atividades político-partidárias foi expressa e somente previu para os juízes e membros do Ministério Público (art. 95, parágrafo único, III, e art. 128, II, “e”).

Isso não significa que leis não possam restringir a participação de outras categorias, como a dos militares, contudo, a interpretação deve ser restritiva e interpretar como proibição total é inconstitucional, por restringir, injustificadamente, direito fundamental que não fora restrito nem pela própria Constituição.

o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, promulgado no Brasil por intermédio do Decreto n. 592/1992, prevê que toda pessoa tem direito à liberdade de expressão e que ninguém poderá ser molestado por suas opiniões e permite que haja restrições, desde que previstas em lei e que sejam necessárias para a proteção da segurança nacional, ordem, saúde e moral públicas.

ARTIGO 19

1.     Ninguém poderá ser molestado por suas opiniões.

2.     Toda pessoa terá direito à liberdade de expressão; esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro meio de sua escolha.

3.     O exercício do direito previsto no parágrafo 2 do presente artigo implicará deveres e responsabilidades especiais. Conseqüentemente, poderá estar sujeito a certas restrições, que devem, entretanto, ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para:

a) assegurar o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas;

b) proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde ou a moral públicas.

A Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica – incorporada ao Brasil por intermédio do Decreto Federal nº 678/1992 – possui previsão semelhante.

Artigo 13.  Liberdade de pensamento e de expressão

1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão.  Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha.

2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei e ser necessárias para assegurar:

a. o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou

b.  a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.

Logo, não há nenhuma ilegalidade – inconvencionalidade – em restringir o direito à liberdade de expressão de determinadas categorias de profissionais em razão da função que exercem, desde que seja uma restrição justificada e legítima, na medida em que, em se tratando de militares, a ausência de restrição poderá comprometer a segurança nacional e a ordem pública.

Portanto, a melhor interpretação, a meu ver, consiste em permitir que militares da ativa participem de movimentos políticos, inclusive de natureza político-partidária, desde que observe os preceitos que regem as instituições militares – hierarquia e disciplina -, e tenha uma participação mais passiva, sem assumir a liderança do movimento, o que demonstra uma participação ativa e haverá uma linha tênue entre a o direito à liberdade de expressão e a quebra da hierarquia e disciplina, até porque militares não devem criticar publicamente atos de superiores ou do Governo, sob pena de incidir no crime militar de crítica indevida.

Maiores responsabilidades e restrições recaem sobre os comandantes, uma vez que a Polícia Militar, com frequência, será acionada para garantir a segurança de movimentos político-partidários ou para conter eventual desordem que envolva esses movimentos e deverá atuar de forma técnica e imparcial e a partir do momento que um comandante se envolve em movimentos político-partidários, ainda que em horário de folga e em trajes civis, poderá comprometer a imagem e a credibilidade institucional nas atuações em movimentos político-partidários da oposição e eventual uso da força poderá ser visto como um uso da força político, sob a alegação de que o comandante foi visto participando de movimento político-partidário do adversário ou de um partido que possui ideologia diversa.

Diante de todo o exposto podemos concluir, em uma leitura constitucional e convencional, que militares podem participar de manifestações político-partidárias, desde que:

a) A reunião seja pacífica, logo não deve haver nenhum ato que perturbe a ordem pública, como invasão de qualquer local, interrupção do trânsito, queima de objetos e congêneres.

b) O militar não esteja armado.

c) O militar não esteja fardado.

d) O militar não esteja em horário de serviço, salvo se for para trabalhar, ou seja, para participar enquanto protestante deve estar de folga, férias, licença.

e) Da manifestação não seja deflagrada greve, seja por qual for o motivo (art. 143, § 3º, IV c/c art. 42, § 1º, ambos da CF e STF – ARE 654.432).

f) Não haja por parte dos militares atos que possam configurar quebra da hierarquia e disciplina.

g) A participação seja passiva, como a mera presença física, sem assumir a liderança do movimento.

Não há crime militar pelo simples fato de militares participarem de movimentos político-partidários.

Por que não há crime de motim? A simples participação no protesto por vários militares é um direito, se observadas as condições acima, e não há crime de motim. Haverá crime de motim caso um superior determine que militares cumpram a escala de serviço, mas decidem descumprir e compareçam ao movimento (art. 149, I, do CPM).

Por que não há crime de reunião ilícita? No crime de reunião ilícita a finalidade é, originariamente, discutir ato de superior ou assunto atinente à disciplina militar, o que não está presente ao participar de um movimento político-partidário.

Por que não há o crime de crítica indevida? Para haver esse crime deve ocorrer crítica pública a ato de superior ou assunto atinente à disciplina militar ou a qualquer resolução do Governo. O superior indicado no tipo penal do art. 166 do CPM pode ser o Governador? O tema é divergente. Para parte da doutrina, somente os militares podem ser superiores (o que parece prevalecer). A outra corrente entende que como o Governador é a autoridade máxima, Chefe Supremo das Instituições Militares Estaduais, também pode ser superior. O movimento político-partidário busca fortalecer, dentre outros fatores, a ideologia do partido e não criticar atos de superior ou assuntos atinentes à disciplina militar. Se o movimento criticar resolução do Governo, os militares devem abster de participar. Saliento que a mera presença física do militar não é suficiente para atrair a incidência do crime de crítica indevida, o qual exige uma ação.  

De toda forma, entendo que a crítica respeitosa, ainda que por militares, com fins construtivos, decorre da liberdade de expressão mitigada que os militares possuem e não deve sofrer repressão penal.

Exposto todo esse contexto, voltamos à pergunta inicial, os militares de folga podem comparecer às ruas no dia 07 de setembro?

As comemorações decorrentes do dia 07 de setembro constituem um ato cívico, que é aquele que demonstra o valor do país e da sociedade, o respeito pela nação e a reafirmação da relevância do país ser independente.

O comparecimento aos eventos cívicos decorrentes do Dia da Independência não só é um direito dos militares, como é a demonstração de um sentimento de patriotismo, o qual é uma característica dos militares.

Não é possível impedir que militares de folga, sozinhos ou acompanhados de suas famílias, compareçam às ruas e assistam aos eventos cívicos, o que para os militares é um ato de orgulho e amor pela carreira que escolheu perfilhar.

Discussões podem surgir se o evento cívico, posteriormente, for transformado em um evento político-partidário. Nesta hipótese os militares podem participar? Observadas as restrições expostas acima, entendemos que sim.

Querer silenciar militares a todo custo é um ato antidemocrático e os relegam a cidadãos de segunda categoria. A liberdade de expressão deve ser exercida ainda que para ouvir o que não nos agrada e os militares podem exercê-la com responsabilidade, sem ferir a hierarquia e a disciplina.


[1] Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/parecer-rogerio-dultra-casara-cnj.pdf .

Lançamento do combo de ebooks de Direito Penal Militar para provas, concursos e consultas

Após anos de trabalho lancei o combo de ebooks de Direito Penal Militar.

Esse combo de 11 ebooks analisa brevemente todos os artigos do Código Penal Militar (Parte Geral e Especial) e os compara com os do Código Penal comum e legislação penal, mostra as semelhanças, diferenças e os apontamentos doutrinários, além de conter dois ebooks com centenas de dicas importantes para as provas.

Além disso você encontrará um compilado de julgados de Direito Penal Militar, separado por artigo, em que foram estudados milhares de julgados dos tribunais superiores e centenas deles organizados para você de forma didática. Abrange também súmulas comentadas.

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O militar brasileiro que se alistar na Legião Internacional de Defesa Territorial da Ucrânia e for para a guerra na Ucrânia lutar contra a Rússia pratica o crime militar previsto no art. 141 do Código Penal Militar (Entendimento para gerar conflito ou divergência com o Brasil)?

O art. 141 do Código Penal Militar prevê o crime de entendimento para gerar conflito ou divergência com o Brasil, a saber:

Art. 141. Entrar em entendimento com país estrangeiro, ou organização nêle existente, para gerar conflito ou divergência de caráter internacional entre o Brasil e qualquer outro país, ou para lhes perturbar as relações diplomáticas:

Pena – reclusão, de quatro a oito anos.

Diante do cenário atual de guerra, o brasileiro que se alistar na Legião Internacional de Defesa Territorial da Ucrânia e for para a guerra na Ucrânia lutar contra a Rússia pratica o crime militar previsto no art. 141 do Código Penal Militar?

O que é a Legião Internacional de Defesa Territorial da Ucrânia?

Trata-se de uma organização de natureza militar com o fim de recrutar voluntários de todo o mundo para lutarem na guerra entre Ucrânia e Rússia no momento.

Segundo o site O Globo, “O interessado deve seguir sete passos para ingressar na Legião Internacional de Defesa da Ucrânia, iniciando por buscar a Embaixada da Ucrânia no país de origem, o que pode ser feito fisicamente, por telefone ou e-mail. É preciso apresentar passaporte válido para viagens ao exterior e documentos que comprovem o registro de serviço militar e participação em combate. O consulado pode solicitar outro tipo de documentação.”[1]

O militar brasileiro pode se alistar e participar da guerra na Ucrânia?

Sim, desde que preencha os requisitos, como ter passaporte, falar inglês, realizar entrevista, dentre outros. Quem não é militar, mas possui treino militar também poderá se alistar e participar da guerra, desde que comprove já ter prestado serviço militar.

No site da CNN informa que “As embaixadas ucranianas têm ajudado a recrutar combatentes estrangeiros, alguns sem qualquer treinamento militar.”[2], contudo a Embaixada Ucraniana no Brasil emitiu nota em que afirma que “Para evitar mal-entendidos, consideramos importante informar ao público brasileiro que a Embaixada da Ucrânia no Brasil não está fazendo alistamento para a Legião Estrangeira Ucraniana, e não está fazendo campanha para adesão a esta formação militar”.

Feitas essas considerações analisamos agora se o militar brasileiro que for para a Ucrânia lutar contra a Rússia pratica o crime do art. 141 do Código Penal Militar.

O Código Penal Militar pode ser aplicado em qualquer lugar do mundo (extraterritorialidade incondicionada) e o crime de “entendimento para gerar conflito ou divergência com o Brasil” tutela a segurança externa e a soberania do país. O sujeito ativo pode ser civil ou militar

“Entrar em entendimento” é o mesmo que conversar, negociar ou ajustar, com país estrangeiro ou organização (pública ou privada que exista no país estrangeiro). Enio Luiz Rossetto[3] esclarece que a organização “deve ser relevante politicamente e militarmente idônea o suficiente para gerar um dos resultados descritos no tipo”.

O tipo penal apresenta três condutas:

(1) “entrar” em entendimento com país estrangeiro ou organização nele existente PARA GERAR conflito entre o Brasil e qualquer outro país: é divergente na doutrina se essa conduta foi revogada tacitamente pelo art. 8º da Lei de Segurança Nacional, que previa ser crime “Entrar em entendimento ou negociação com governo ou grupo estrangeiro, ou seus agentes, para provocar guerra ou atos de hostilidade contra o Brasil.”

(2) “entrar” em entendimento com país estrangeiro ou organização nele existente PARA GERAR divergência entre o Brasil e qualquer outro país.

(3) “entrar” em entendimento com país estrangeiro ou organização nele existente PARA perturbar as relações diplomáticas entre o Brasil e qualquer outro país.

Perceba que em todas as hipóteses o sujeito autor do crime deve agir PARA gerar conflito entre o Brasil e o país estrangeiro ou PARA perturbar as relações diplomáticas entre o Brasil e qualquer outro país. No caso, a participação do militar na guerra deve ter a finalidade de provocar conflito, guerra, divergência ou perturbar as relações diplomáticas entre o Brasil e a Rússia.

Nota-se ser necessária a presença do especial fim de agir (elemento subjetivo do tipo, que tradicionalmente é chamado de dolo específico). O militar que se inscreve vai participar da guerra não querendo envolver o Brasil em um conflito, guerra ou com o fim de comprometer as relações diplomáticas. O militar vai para defender a Ucrânia, seja por qual for o motivo.

O militar não deve ser liberado pelo Comando com o fim de participar da guerra, pois, a partir do momento em que o militar é liberado oficialmente para ir à guerra, pode ser interpretado como uma participação do Brasil na guerra contra a Rússia e, consequentemente, pode-se entender pela prática do crime previsto no art. 141 do CPM. Portanto, o militar que participar deve estar de licença por motivos de interesse particular. Quem não for militar, mas possuir experiência militar, fica mais fácil a participação, pois não dependerá de licença da instituição militar.

O brasileiro que participa da guerra deve ir por interesse particular, sem envolver o Brasil. Somente o Presidente da República pode envolver o Brasil no conflito entre Ucrânia e a Rússia.

Caso o brasileiro vá para a guerra na Ucrânia, com a falsa premissa de compor a Legião Internacional de Defesa Territorial da Ucrânia, e tenha por fim causar um conflito ou guerra entre o Brasil e a Rússia ou arrefecer as relações diplomáticas, haverá o crime militar do art. 141 do Código Penal Militar (para gerar conflito, quem entende que não foi revogado, mas ainda que se entenda que houve revogação dessa conduta enquadra-se na conduta “para gerar divergência” e “para perturbar as relações diplomáticas”. Na prática o especial fim de agir será de difícil comprovação. O crime é formal, pois permite a produção do resultado (conflito, divergência ou perturbação das relações diplomáticas), porém não exige que o resultado ocorra. Portanto, basta o brasileiro entrar em entendimento para uma das finalidades descritas. Na prática o especial fim de agir pode vir a ser comprovado após a ocorrência do resultado. Tome como exemplo um grupo de brasileiros na guerra que agem em desconformidade com as regras da guerra, se vestem com a bandeira do Brasil, querendo transparecer ser uma ação do Brasil, e se valem de uma situação em que os militares russos estão rendidos para explodir uma bomba e matar todos os militares russos.


[1] https://oglobo.globo.com/mundo/ucrania-cria-site-para-recrutar-soldados-estrangeiros-guerra-brasil-esta-incluido-1-25420663#:~:text=%C3%89%20preciso%20apresentar%20passaporte%20v%C3%A1lido,solicitar%20outro%20tipo%20de%20documenta%C3%A7%C3%A3o.

[2] https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/estrangeiros-que-lutarem-pela-ucrania-serao-elegiveis-para-cidadania-do-pais/

[3] ROSSETTO, Enio Luiz. Código Penal Militar Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.