Como amplamente divulgado, a Polícia Federal apontou que o ex-Presidente da República, Jair Bolsonaro, pode ter cometido o crime de inserção de dados falsos em sistema de informações (art. 313-A do CP), crime este que é denominado de peculato eletrônico.
Art. 313-A. Inserir ou facilitar, o funcionário autorizado, a inserção de dados falsos, alterar ou excluir indevidamente dados corretos nos sistemas informatizados ou bancos de dados da Administração Pública com o fim de obter vantagem indevidapara si ou para outrem ou para causar dano: (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000))
Veja que para a prática desse crime, no contexto apresentado, é necessário que:
a) Tenha ocorrido a inserção de dados falsos;
b) O agente seja funcionário público autorizado a inserir os dados;
c) A inserção dos dados seja em sistema informatizado ou banco de dados da Administração Pública (seja federal, estadual ou municipal);
d) Haja a finalidade de obter vantagem indevida para o funcionário que inseriu a informação falsa ou para outra pessoa.
a) Tenha ocorrido a inserção de dados falsos.
Isso é muito fácil de comprovar. Basta verificar no sistema se houve a inserção de informações falsas, pois o Presidente da República publicamente disse, por várias vezes, que não vacinou. A não ser que tenha falado que não vacinou, mas tenha vacinado.
b) O agente seja funcionário público autorizado a inserir os dados.
Esse crime somente pode ser praticado por funcionário que possua autorização para inserir dados no sistema eletrônico. Caso o funcionário não possua autorização para inserir os dados no sistema, mas acesse e insira informações falsa praticará, segundo o STJ (HC 1000062/SP), o crime previsto no art. 299, parágrafo único, do Código Penal (falsidade ideológica).
Caso terceiros influenciem ou participem de qualquer moda para que o funcionário público autorizado insira informações falsas no ConecteSUS praticará também o crime previsto no art. 313-A do Código Penal. Inclusive, a qualidade de funcionário público do agente que pratica o crime se comunica a terceiros envolvidos no crime (arts. 29 e 30, ambos do Código Penal). Isto é, terceiros que não são funcionários públicos respondem como se funcionários públicos fossem.
Esse ponto é o mais difícil de ser comprovado, pois necessita demonstrar que a inserção de dados falsas era de conhecimento prévio ou concomitante do Presidente da República à época. Por isso o acesso ao celular do ex-presidente é importante para as investigações. Não se pode presumir que tinha conhecimento, pois cabe à acusação comprovar, assim como nos casos passados envolvendo o atual Presidente.
Tecnicamente, acredito que a defesa alegará três pontos importantes, dentre outros:
O ex-presidente não tinha conhecimento e quem inseriu o dado no sistema visou prejudicá-lo, pois era público e notório que ele não tinha vacinado;
A utilização do Certificado Nacional de Covid-19 pelo ex-presidente em qualquer local seria facilmente perceptível e questionado, já que publicamente diz não ter sido vacinado, mas apresenta certificado que afirma ter vacinado. Isto é, equivaleria a dizer publicamente que praticou crime ou, se tiver participado da inserção da informação falsa, a um crime impossível por ineficácia absoluta do meio.
Li em vários sites e isso certamente será alegado, que o Bolsonaro ingressou nos EUA utilizando-se do passaporte diplomático, que não exige comprovação de vacina pelo Covid-19.
c) A inserção dos dados seja em sistema informatizado ou banco de dados da Administração Pública (seja federal, estadual ou municipal);
Conforme informações extraídas do site do Governo Federal, o Conecte SUS Cidadão é o aplicativo oficial do Ministério da Saúde e a porta de acesso aos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) de forma digital. Ele permite que o cidadão acompanhe, na palma da mão, o seu histórico clínico. O aplicativo Conecte SUS mostra as informações gerais do cidadão, como Carteira Nacional de Vacinação, Certificado Nacional de Covid-19 (…).
Trata-se de um sistema informatizado e banco de dados da Administração Pública Federal.
d) Haja a finalidade de obter vantagem indevida para o funcionário que inseriu a informação falsa ou para outra pessoa.
Ao obter o Certificado Nacional de Covid-19 a pessoa não passa por restrições impostas pelo Governo ou em países ou locais que exigem a vacinação. Logo, é um dado importante, cuja falsificação possui a finalidade de obter vantagem indevida.
Para fechar, dois pontos importantes:
a) Caso um agente, em acordo com um profissional de saúde, simule ter vacinado e o profissional certifique isso e insira a informação falsa no sistema, haverá apenas o crime de peculato eletrônico, pois o documento que afirma ter vacinado foi crime-meio (falsidade ideológica, art. 299 do CP) para a prática do crime-fim (peculato eletrônico, art. 313-A do CP).
b) O Prof. Rodrigo Pardal apontou, precisamente, que para ser documento para fins penais deve-se ter no documento autoridade identificada, isto é, assinatura do responsável pelo preenchimento do documento. Se houver eventual cartão que identifique a vacinação pela Covid-19, mas não constar assinatura do responsável pelo preenchimento, não há crime de falsidade documental. Pode haver inserção de informações falsas no sistema informatizado caracteriza o crime do art. 313-A do CP.
O STJ já decidiu que não há crime na conduta de inserir informação falsa no currículo Lattes, pois não é considerado documento para fins penais, uma vez que não se trata de “documento eletrônico”, que é aquele que possa ter a sua autenticidade aferida por assinatura digital na forma da Medida Provisória n. 2.200-2/2001.
Imagine que a polícia chegue em uma residência para cumprir um mandado de busca e apreensão ou para realizar uma busca e apreensão sem mandado por haver fundadas razões ou que aborde um veículo ou uma pessoa na rua, ocasião em que o suspeito aciona o advogado que comparece ao local.
Poderá o advogado acompanhar as diligências policiais?
A Constituição Federal assegura que “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”. (art. 5º, LXIII).
O Estatuto da Ordem dos Advogados – Lei n. 8.906/94 – dispõe que é direito do advogado “comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo sem procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis.” (art. 7º, III) e ainda assegura que os advogados podem ingressar livremente “nas salas e dependências de audiências, secretarias, cartórios, ofícios de justiça, serviços notariais e de registro, e, no caso de delegacias e prisões, mesmo fora da hora de expediente e independentemente da presença de seus titulares”. (art. 7º, VI, “b”).
A Lei de Abuso de Autoridade – Lei n. 13.869/19 -, por sua vez, dispõe que é crime de abuso de autoridade “Impedir, sem justa causa, a entrevista pessoal e reservada do preso com seu advogado” (art. 20).
Não obstante a Constituição Federal e as leis mencionem “preso”, a interpretação que se deve dar, por se tratar de direito fundamental, é ampliativa, de forma que basta a mera suspeição de recair sobre o agente a prática de infração penal para que ele seja advertido, antes de ser ouvido, mesmo que não esteja preso, de seus direitos constitucionais, inclusive o de constituir advogado.
Essa intepretação também é possível de se extrair do art. 6º, V, do CPP quando afirma que a autoridade policial, logo que tiver conhecimento da infração penal ouvirá o agente, observando-se o direito ao silêncio.
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal já decidiu em mais de uma ocasião que no momento da prisão em flagrante delito o agente deve ser informado de seu direito ao silêncio (STF – RHC: 170843; STF, HC 218.335; STF: HC 80.949/RJ; Rcl 33.711/SP).
Destaco que há decisão do STJ em sentido diverso, isto é, pela desnecessidade de informar o agente previamente de seu direito ao silêncio (AgRg no HC 674.893/SP, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, 5ª Turma, julgado em 14/09/2021, DJe 20/09/2021).
O tema será pacificado pelo STF (Tema 1185), mas ainda não há data prevista para o julgamento.
Feita essas explicações iniciais, vamos ao principal: poderá o advogado acompanhar as diligências policiais?
O ponto central gira em torno da SEGURANÇA.
Os policiais devem verificar se o local oferece segurança para todos os envolvidos.
Ao chegar para realizar uma busca e apreensão, se houver advogado querendo acompanhar, o ideal é que primeiro os policiais certifiquem-se de que o local é seguro, inclusive, para o advogado. Por exemplo, vai entrar na residência para cumprir mandado de busca e apreensão de armas ilegais e tráfico de drogas. A natureza dos crimes demonstra haver um maior risco de confronto, logo, o ideal é a polícia entrar sozinha, dar busca nos envolvidos e com o ambiente seguro, autorizar o advogado a acompanhar. Obviamente, o acompanhamento também depende de haver um número suficiente de policiais para garantir a segurança.
O advogado quer falar com o cliente que está sofrendo uma busca em seu veículo. Os policiais poderão autorizar o acesso, desde que haja condições de segurança.
O acesso ao suspeito deve ocorrer somente após os policiais terem realizado a busca pessoal e se as condições de segurança forem favoráveis. A guarnição está em um local violento? Explique para o advogado e ao saírem desse local autorize o acesso que poderá ocorrer nas proximidades, mas em local seguro, ou na Delegacia de Polícia.
Por que é importante que o suspeito tenha acesso imediato ao advogado? A estratégia de defesa começa na rua, com orientações ao cliente, inclusive se deve responder ou não os policiais na rua.
Saliento que os policiais não são obrigados a esperarem que o advogado chegue no local para iniciarem as diligências, em razão do princípio da oportunidade e imediatismo da atuação policial. A postergação do início das diligências pode resultar em drogas irem embora pelo vaso sanitário e armas serem arremessadas na casa de vizinhos etc. Já vi essas duas hipóteses acontecerem.
Se não houver ninguém na casa é razoável esperar a chegada do advogado, por um curto tempo, se os envolvidos manifestarem esse interesse.
É sempre recomendável que a busca e apreensão na residência seja filmada pela polícia. Quanto mais transparência, melhor. Fica mais seguro para todos os envolvidos.
Constantemente vimos situações em que a polícia não filma e na justiça o acusado alega inocência e que eventuais drogas ou armas foram plantadas e o resultado acaba sendo a absolvição.
A diligência ser acompanhada por advogado reduz bem a chance de eventual alegação de nulidade ser acolhida posteriormente.
Caso um advogado ou a própria parte filme as diligências, o policial não pode mandar cessar a filmagem sob a alegação de direito de imagem. O fato de estar fardado, em serviço, sobretudo se o local for público ou a casa particular de quem sofre a intervenção estatal, cede espaço para o direito da parte ou advogado filmar a ação. Isso é pacífico na jurisprudência (STF, ADPF 130; STJ, STJ, RMS 38.010-RJ).
Entre os policiais e os advogados deve haver um ótimo relacionamento profissional, com tratamento urbano e cordial de ambos. Os advogados devem entender que a polícia está fazendo o trabalho dela e, realmente, que está em busca de provas que podem incriminar – ou até mesmo inocentar. Os policiais devem entender que os advogados estão fazendo o papel deles, de defenderem seus clientes e buscar erros para anular o processo ou argumentos para comprovar a inocência ou uma redução de pena.
Por fim, o Memorando nº 30.074.2/22 da PMMG versa sobre a conduta dos policiais em ocorrências que advogados participam e, em síntese, orienta que os policiais militares, em Minas Gerais, procedam dessa forma:
Na hipótese em que o militar praticar um crime militar e exonerar (der “baixa”) ou for excluído, poderá, enquanto civil, ser processado e julgado perante a Justiça Militar Estadual, pois a qualidade de militar deve ser aferida quando da prática do fato delituoso (tempus delict).
Crime militar cometido por militar no exercício da função. Em homenagem à garantia do juízo natural, a competência deve ser fixada sempre em relação à qualidade que o recorrente apresentava no momento do cometimento do fato, não podendo ser alterada por conta de alteração fática posterior (exoneração).
RHC 20.348-SC, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 24/6/2008.
Não há falar em incompetência da Justiça Militar se, à época dos fatos, o paciente era soldado da Polícia Militar e, no momento da prática dos crimes, se identificou como tal, fazendo uso de arma da corporação e, embora não estivesse fardado, estava acompanhado de outros militares devidamente fardados e em situação que denotava estarem todos em atividade.
STJ – HC 80.461 – MS Relator: Ministro Arnaldo Esteves Lima. DJ 19/08/09.
A respeito da possibilidade de civis serem julgados perante a Justiça Militar Estadual ao praticarem fatos definidos como crime no Código Penal Militar, o tema é controverso, mas é pacífico que não praticam crime militar na esfera estadual.
1ª corrente (prevalece): a Constituição Federal define no art. 125, § 4º, que compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e como a Justiça Comum não julga crimes militares, pelo menos em primeira instância, pois em segunda instância nos estados em que não existe Tribunal de Justiça Militar, cabe ao Tribunal de Justiça comum julgar os crimes militares em grau de recurso, não há que se falar em crime militar praticado por civil no âmbito estadual por inexistir órgão competente para processar e julgar civis por crimes militares, o que implica dizer que, por opção política do legislador, civis não praticam crimes militares em nível estadual.
Como o civil não pode ser processado e julgado pela Justiça Militar Estadual, caso pratique determinado delito contra as instituições militares estaduais, será processado na Justiça comum se os fatos por ele praticados encontrarem definição na lei penal comum. É nesse sentido o teor da súmula nº 53 do STJ(“Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar civil acusado de prática de crime conta instituições militares estaduais”). Na mesma linha, eis o teor da súmula nº 30 do extinto Tribunal Federal de Recursos: “Conexos os crimes praticados por policial militar e por civil, ou acusados estes como coautores pela mesma infração, compete à Justiça Militar Estadual processar e julgar o policial militar pelo crime militar (CPM, art. 9º) e à Justiça Comum, o civil”. (destaque nosso)
A Súmula n. 53 do STJ diz que “Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar civil acusado de prática de crime contra instituições militares estaduais”, sendo extraída de sua interpretação que para os civis serem julgados por crimes contra as instituições militares estaduais deve haver correspondência do fato típico no Código Penal comum daquele previsto no Código Penal Militar ou que o fato deve ser previsto na legislação penal comum, ainda que não encontre correspondência no CPM. Isto é, o julgamento de civis por crime contra as instituições militares estaduais ocorre somente se houver crime previsto na legislação penal comum, pois não praticam os crimes previstos no Código Penal Militar, já que não são julgados pela Justiça Militar Estadual.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é pacífica no sentido do civil responder perante a Justiça Comum por crime que atenta contra as instituições militares estaduais, no entanto, deve haver previsão da conduta como infração penal na legislação penal comum.
Com efeito, a Justiça Militar Estadual é competente para julgar militares integrantes das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros, quando pratiquem crimes, na forma do art. 9º, do CPPM.
Não possui competência para julgar civil. Sua competência é mais restrita. Interpretação da Lei Maior. Incidência da Súmula 53 desta Corte Superior de Justiça, segundo a qual “compete à Justiça Comum estadual processar e julgar civil acusado de prática de crime contra instituições militares estaduais”.
Destarte, em se tratando de estelionato previdenciário que, em tese, atinge patrimônio da Polícia Militar de São Paulo, está afastada a competência da Justiça Militar da União, por ausência de violação de interesses das Forças Armadas. De outro lado, em se tratando de crime supostamente praticado por civil, também está afastada a competência da Justiça Militar do Estado de São Paulo, ainda que configurada prejuízo ao patrimônio da Polícia Militar daquele Estado, haja vista a redação restritiva do artigo 125, § 4º, da Constituição Federal.
Conflito conhecido para declarar competente o Juízo de Direito do Departamento de Inquéritos Policiais e Polícia Judiciária de São Paulo – DIPO 3, o suscitado.
(CC n. 170.531/SP, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Terceira Seção, julgado em 24/6/2020, DJe de 29/6/2020.) (destaque nosso)
2ª corrente (minoritária): essa corrente critica a primeira, pois sustenta que há uma confusão entre o conceito de competência e de crime, pois o órgão julgador não possui nenhuma relação ao se definir se uma conduta é criminosa ou não.
Adriano Alves-Marreiros, Guilherme Rocha e Ricardo Freitas[2] ensinam que:
Não se pode deixar de aplicar a lei por não gostar dela, por não conhecê-la ou por não entendê-la. Não pode deixar, portanto, de ser aplicado o Código Penal Militar, quando há ofensa às instituições militares estaduais, apenas porque a Justiça Militar Estadual não pode julgar civis. Muda a competência, mas não muda a lei, não muda a natureza de crime militar da conduta, como, aliás, ocorre com qualquer outra justiça. Ademais, este posicionamento é reconhecido na Súmula 53 do STJ (de 1992, posterior à Constituição atual), isto é, aquela regra de competência afasta, indiscutivelmente, a aplicação da Lei Adjetiva Castrense, já que esta é aplicável, apenas, nos seus estritos termos (em especial, seu art. 6.º), nos processos perante as Justiças Militares estaduais.
Aliás, a Constituição atribui competência ao STF para processar e julgar os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica nos crimes comuns. Em geral se entende que, neste dispositivo constitucional, crime comum é aquele que não se caracteriza como crime de responsabilidade, não excluindo, assim, os crimes militares (que, neste caso, fariam parte dos crimes comuns). Mas tal discussão não é relevante em obra que trata de direito penal, até porque o entendimento diverso – o de que, em crimes militares, os comandantes citados não seriam julgados pelo STF – também nos levaria a concluir que se trata de crime militar, só que julgado na própria Justiça Militar. A mesma Carta atribui ao STJ competência para processar e julgar desembargadores federais. Todas essas pessoas não podem, então, ser processadas por crimes militares? Parece ser óbvia a resposta negativa, caso contrário, todos aqueles que têm foro por prerrogativa de função estariam fora do alcance da Lei Penal Militar, podendo cometer condutas delituosas previstas no Código Penal Militar sem consequências penais, ferindo gravemente o princípio da igualdade. (destaque nosso)
O ponto nevrálgico da discussão se consubstancia na possibilidade, ou não, do não-militar praticar ilícito tipificado como crime militar em desfavor de militar do Estado.
Entendemos pela ocorrência desta possibilidade, pelos motivos a seguir aduzidos: primeiro, e conforme já citado, em face da imperatividade da manutenção da regularidade das instituições militares estaduais. Segundo, pela indisponibilidade do Estado na tutela dos bens jurídicos penais militares que, pela natureza de sua constituição, não podem ser disponibilizados como alguns bens tutelados pelo direito penal comum.
Assim, por exemplo, uma facção criminosa que atente contra a vida de um militar do Estado, simplesmente pelo fato deste ser um integrante de uma Instituição Militar Regular, com o único intuito de ofendê-la, não está apenas ofendendo o bem jurídico da vida, mas também o bem jurídico penal militar regularidade das Instituições militares, ocorrendo, portanto o dever de tutela do Estado, preconizado no inciso III do artigo 9º do Código Penal Militar.
(…)
O fundamento de inexistência de prestação jurisdicional da matéria ora em testilha balda-se em deveras inconformidade com os ditames do Estado Democrático de Direito, mormente quanto à ofensa ao contido no artigo 2º da Lex Mater, uma vez que a ausência de tutela pelo Estado-juiz consubstancia em deveras insegurança jurídica ao deixar de providenciar a devida proteção dos bens jurídicos penais militares.
Pelo exposto, cumpre consignar que, em que pese a divisão jurisdicional, compete à justiça comum, comumente denominada de “justiça residual”, a prestação jurisdicional nos casos não amparados pelas Justiças Especializadas.
Por este turno, faz-se pertinente concluir que o foro competente para processar e julgar os civis pela prática de crime militar em desfavor dos militares do Estado é da Justiça Comum. (destaque nosso)
Os argumentos da corrente minoritária são relevantes e nos leva a refletir se não há um equívoco ao afastar a possibilidade de civis serem julgados perante a Justiça Comum pela prática de crime militar.
Ao estudar o histórico de julgados que justificou o Superior Tribunal de Justiça a editar a Súmula n. 53, que dispõe que “Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar civil acusado de prática de crime contra instituições militares estaduais”, o STJ apresentou três conflitos de competência com as seguintes ementas:
Competência – Crime militar praticado por civil – Art. 125, § 4º, Constituição Federal. Os crimes militares praticados por civil, são de competência da Justiça Comum, face à expressa determinação constitucional (art. 125, § 4°), que não permite à Justiça Militar Estadual processar e julgar partes estranhas à corporação militar. Conflito procedente. (CC 1.258-SP)
Constitucional. Competência. Civil. Prática de crime militar contra instituição militar estadual. 1. A Constituição – art. 125, § 4.0 – confere à Justiça Militar Estadual competência para julgar apenas os policiais militares e bombeiros militares nos crimes militares definidos em lei. 2. Assim, compete à Justiça Comum Estadual julgar civil acusado da prática de crime contra instituições militares estaduais. (CC 1.525-RS)
Constitucional. Crime militar praticado por civil contra policial militar. Competência. À Justiça Militar Estadual não cabe processar e julgar civil, ainda que pela prática de crime contra instituição policial militar – CF, art. 125, § 4!l. Precedentes do STJ. (CC 2.117-RS)
Ao estudar os votos das decisões nota-se claramente que o STJ não disse que civis não praticam crimes militares, pelo contrário, asseverou que civis praticam crimes militares, mas nestes casos devem ser julgados perante a Justiça Estadual.
Trecho do voto no CC 1.525-RS: “Os civis, como deflui da norma, devem ser julgados, mesmo quando acusados de praticarem crimes militares, pela Justiça Comum Estadual.”
A Justiça Comum pode possuir competência para julgar matéria afeta à outra justiça, desde que decorra de previsão constitucional, como ocorre quando a Constituição Federal possibilita que a Justiça Estadual julgue causas trabalhistas quando a comarca não for abrangida pela Justiça do Trabalho (art. 112) e que a lei autorize que causas de competência da Justiça Federal em que forem parte instituição de previdência social e segurado possam ser processadas e julgadas na justiça estadual quando a comarca do domicílio do segurado não for sede de vara federal (art. 109, § 3º).
Até o advento da Lei n. 13.043/2014 as execuções fiscais propostas pela União, que são de competência da Justiça Federal, eram propostas perante a Justiça Estadual nas cidades que não continham a Justiça Federal.
Destaca-se que a competência da Justiça Comum é residual, face à inexistência de vácuo de competência, logo, toda matéria que não esteja prevista para ser julgada por qualquer outro ramo da justiça, deve ser julgada pela Justiça Comum, como é o caso dos crimes militares praticados por civis. Assim, pode-se afirmar que implicitamente a Constituição Federal determinou que a Justiça Estadual comum julgue os crimes militares praticados por civis contra as instituições militares estaduais.
A aplicação da Súmula n. 53 do STJ como ocorre atualmente e há bastante tempo contradiz o próprio teor da súmula, o que fica comprovado ao se estudar as razões de sua origem, que deixou consignado de forma expressa que os civis que praticam crimes militares no âmbito estadual devem ser julgados pela Justiça Comum.
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1ª corrente) Há crime de dano qualificado (art. 163, parágrafo único, III, do CP).
A Constituição Federal dispõe que compete à União emitir moeda com exclusividade por intermédio do Banco Central e legislar sobre o sistema monetário (arts. 21, VII, 22, VI e 164). O art. 98 do Código Civil diz que são públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno
Diante desses artigos entende-se que o dinheiro é patrimônio da União, pois em que pese o valor correspondente ao dinheiro pertencer à pessoa, a cédula, o dinheiro em espécie, é da União. Isto é, o dinheiro em papel é da União, mas o valor do dinheiro é da pessoa.
Quem rasga dinheiro destrói bem da união, razão pela qual pratica o crime de dano qualificado, por ser contra o patrimônio público.
Se um número significativo de pessoas rasgasse dinheiro poderia causar deflação, o que gera prejuízos para a economia nacional e atrai o interesse da União e do Banco Central.
Essa corrente sustenta ainda que por pertencer a cédula à União, a competência para processar e julgar é da Justiça Federal.
2ª corrente) Não há crime na conduta de rasgar dinheiro.
Em que pese o dinheiro ser emitido pela União (Banco Central), a cédula passa a pertencer à pessoa, logo não há crime de dano em destruir coisa própria.
O patrimônio decorrente da cédula é particular, não público. Não há crime em rasgar o dinheiro, até porque não há prejuízo para a União.
Por fim, algumas ponderações:
A recuperação da nota configura arrependimento posterior? Destaco que o arrependimento posterior previsto no art. 16 do Código Penal aplica-se a todos os crimes, desde que haja compatibilidade. É possível aplicar não só nos crimes contra o patrimônio. Por exemplo, aplica-se nos crimes contra a administração pública.
E o princípio da insignificância? A regra é não aplicar o princípio da insignificância nos crimes contra a Administração Pública (Súmula n. 599 do STJ). Em se tratando de crime contra o patrimônio público, que é o caso de quem rasga nota, para quem adota a primeira corrente, há julgado admitindo a sua aplicação (STF – HC: 107370 SP, Relator: Min. Gilmar Mendes, Data de Julgamento: 26/04/2011, Segunda Turma).