Usar drogas não é crime!
SÍNTESE
Fundamentos • Art. 5º, XXXIX, da CF • Art. 1º do Código Penal • Arts. 28 e 33 da Lei n. 11.343/06 • Art. 167 do Código de Processo Penal • Art. 9º da Convenção Americana de Direitos Humanos • STF – Recurso Extraordinário n. 635.659 • STF – Recurso Extraordinário n. 430.105-9 Síntese: o ato de usar ou consumir drogas, por si só, não é crime. Como regra, a comprovação de que a substância apreendida com o usuário é droga deve se dar mediante a realização de perícia. O exame de sangue ou de urina que constate que uma pessoa usou drogas não é suficiente para responsabilizá-la pelo art. 28 da Lei n. 11.343/06, pois comprova-se somente o uso de droga, mas não a prática de nenhum dos verbos núcleos do tipo. Isto é, não comprova que a pessoa adquiriu, guardou, teve em depósito, transportou ou trouxe consigo droga para consumo pessoal, salvo se restar demonstrado por outros meios de prova que o agente possuía a droga antes de usá-la, como a prova testemunhal e filmagens, aliada à confissão do agente. Contudo, é importante destacar que a doutrina majoritária entende não ser possível a responsabilização do agente que é surpreendido pela polícia logo após ter utilizado droga, pois o risco à saúde pública não existe mais. |
A finalidade deste texto não é analisar o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do Recurso Extraordinário n. 635.659 que decidirá se o art. 28 da Lei n. 11.343/06 é constitucional, isto é, se as condutas previstas no crime de porte de drogas para consumo pessoal viola a Constituição Federal.
No Recurso Extraordinário n. 430.105-9 o Supremo Tribunal Federal decidiu que o art. 28 da Lei de Drogas continua sendo crime e que houve apenas despenalização, descarcerização, e não descriminalização.
O presente texto analisa se a conduta de usar ou consumir drogas, por si só, é considerada crime.
O art. 28 da Lei n. 11.343/06 dispõe o seguinte:
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I – advertência sobre os efeitos das drogas;
II – prestação de serviços à comunidade;
III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
Nota-se que o art. 28 da Lei n. 11.343/06 não utiliza o verbo usar ou consumir drogas, mas somente os verbos “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo“, o que impossibilita a abrangência do uso ou consumo de drogas, em face do princípio da taxatividade.
A taxatividade é uma das facetas do princípio da legalidade que dispõe não haver crime sem lei anterior que o defina (art. 5º, XXXIX, da CF e art. 1º do Código Penal).
A Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), incorporada ao Brasil mediante o Decreto n. 678/1992, possui status supralegal, e dispõe no art. 9º que ninguém pode ser condenado por ações ou omissões que não sejam previstas como delituosas no momento de sua prática.
Art. 9º Ninguém pode ser condenado por ações ou omissões que, no momento em que forem cometidas, não sejam delituosas, de acordo com o direito aplicável. Tampouco se pode impor pena mais grave que a aplicável no momento da perpetração do delito. Se depois da perpetração do delito a lei dispuser a imposição de pena mais leve, o delinqüente será por isso beneficiado.
A lei penal deve ser certa, expressa, clara, precisa quanto às condutas que são consideradas criminosas, de forma que não deixe dúvidas de que determinada conduta é criminosa, o que se denomina de princípio da taxatividade, isto é, a lei deve ser taxativa, o que é constatado diante dos verbos utilizados pelo tipo penal.
Não é possível aplicar a analogia, a interpretação analógica ou a interpretação extensiva para abranger os verbos “usar” ou consumir” como condutas definidoras do crime previsto no art. 28 da Lei de Drogas.
A analogia é uma técnica de integração do direito que visa suprir as lacunas existentes nas normas mediante a aplicação de normas para situações semelhantes, pois ao legislador não é possível editar leis que prevejam todas as hipóteses de ocorrência prática. Não existe norma para situação semelhante que permita a aplicação do verbo “usar” para o crime de porte de drogas para consumo pessoal. Além do mais, ainda que houvesse, no direito penal é vedada a analogia em prejuízo do réu (in malam partem), sendo possível somente a analogia em benefício do réu (in bonam partem).
A interpretação analógica no direito penal é possível, ainda que seja em prejuízo do réu, pois trata-se de uma cláusula genérica contida no texto da lei penal que permite uma ampliação da norma para inserir outros casos, além dos já mencionados pelo tipo penal, pois ao legislador não é possível imaginar todas as situações de possível ocorrência, razão pela qual permite ao intérprete que se realize essa adequação.
Um exemplo claro de interpretação analógica encontra-se no art. 121, § 2º, I, do Código Penal.
Art. 121. Matar alguém:
§ 2° Se o homicídio é cometido:
I – mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe;
Nota-se que a lei enumera hipóteses de motivos torpes (paga ou promessa de recompensa) e depois cita “ou por outro motivo torpe”, o que permite a interpretação analógica, ainda que em prejuízo do réu, pois ao se permitir a realização de interpretação analógica nesses casos autorizados pela lei, entender que é vedada a interpretação analógica em in malam partem,seria o mesmo que retirar da lei penal as previsões que autorizam outras hipóteses (“ou por outro motivo”; “ou qualquer outro”), pois essas outras hipóteses sempre serão prejudiciais ao réu, já que se trata de norma que amplia a possibilidade de enquadramento penal, o que não existe no crime previsto no art. 28 da Lei de Drogas.
A interpretação extensiva ocorre quando o intérprete concede um maior alcance à norma, por estar ter dito menos do que deveria. A doutrina diverge a respeito de sua aplicabilidade em prejuízo do réu.
A primeira corrente sustenta não ser possível, pois violaria a estrita legalidade e ampliaria as hipóteses de incriminação, o que não cabe ao intérprete e sim ao legislador. Aplica-se o mesmo raciocínio da analogia em prejuízo do réu.
A segunda corrente, com a qual concordamos, sustenta ser possível, pois não inova, mas somente interpreta e busca a finalidade do conceito legal empregado, razão pela qual não há óbices em se realizar uma interpretação extensiva em prejuízo do réu. Não se busca, com a interpretação extensiva, suprir a lacuna da lei ou utilizar um método de integração da norma, como ocorre com a analogia, mas sim buscar sentido à lei.
Cite-se como exemplo de interpretação extensiva em prejuízo do réu o conceito de “casa” previsto no art. 150, § 4º, do Código Penal, pois este é interpretado extensivamente, como forma de abranger diversos tipos de casa (casa sobre rodas, barracos debaixo da ponte, parte interna de restaurantes e bares, casas de praia etc.), portanto, se o agente invadir uma casa em sentido amplo, decorrente de interpretação extensiva, praticará o crime de violação de domicílio.
Em se tratando do crime de porte de drogas para consumo pessoal não é possível aplicar a interpretação extensiva, pois supriria a lacuna da lei e criaria um crime. Não se trata de mera interpretação, mas de uma autêntica criação de crime mediante interpretação, o que fere o princípio da legalidade na faceta da taxatividade e, portanto, deve ser rechaçado.
Analogia | Forma de integração da lei; Em razão da ausência de previsão em norma para um caso concreto, o intérprete utiliza norma prevista para casos semelhantes. Não se admite em prejuízo do réu Admite-se em benefício do réu. |
Interpretação analógica | Trata-se de uma cláusula genérica contida no texto da lei penal que permite uma ampliação da norma para inserir outros casos; Admite-se em prejuízo e em benefício do réu. |
Interpretação extensiva | Ocorre quando o intérprete concede um maior alcance à norma, por estar ter dito menos do que deveria; Há divergência se admite em prejuízo do réu. Sustentamos que sim. Admite-se em benefício do réu. |
A intenção do legislador ao prever o crime de porte de drogas para consumo pessoal foi dificultar a difusão de drogas, pois os usuários ao comprarem drogas fomentam o tráfico. A lei não combate o vício (saúde individual), mas sim o risco à saúde pública, que é criado ao se adquirir, guardar, ter em depósito, levar consigo ou transportar droga para consumo pessoal.
O relatório do projeto de lei aprovado que se tornou a atual Lei n. 11.343/06 e foi publicado no Diário da Câmara dos Deputados em 13 de fevereiro de 2004 afirma que:1
Ressalvamos que não estamos, de forma alguma, descriminalizando a conduta do usuário – o Brasil é, inclusive, signatário de convenções – internacionais que proíbem a eliminação desse delito. O que fazemos é apenas modificar os tipos de penas a serem aplicadas ao usuário, excluindo a privação da liberdade, como pena principal.
A Lei n. 11.343/06 em diversas passagens – ao todo 46 vezes – utiliza o termo “usuário”, como o art. 23-A que aborda o tratamento do usuário ou dependente de drogas, o que demonstra a preocupação do legislador em tratar o usuário como política de saúde pública, uma vez que sua conduta é reprovável por alimentar o tráfico de drogas.
Renato Brasileiro de Lima sustenta que “fosse o uso da droga considerado crime, não haveria necessidade de tipificação autônoma da conduta daquele que auxilia, instiga ou determina alguém a usar a droga (art. 33, § 2°), pois a norma de extensão do art. 29 do Código Penal seria suficiente para abranger o concurso de agentes para esse suposto “‘uso de droga'”2, o que não se pode concordar, na medida em que o referido crime consiste em induzir, instigar ou auxiliar ao uso indevido de droga e não em usar droga conjuntamente ou compartilhar o uso de droga, pois a partir do momento que terceiro utiliza droga com outro haverá o crime previsto no art. 33, § 3º, da Lei n. 11.343/06, caso um dos usuários tenha oferecido ao outro de forma eventual, sem objetivo de lucro e seja pessoa de seu convívio, ou então será o crime de tráfico de drogas previsto no art. 33, caso ausente qualquer uma das condicionantes mencionadas (oferecimento de droga de forma eventual, sem objetivo de lucro e pessoa do relacionamento).
A revogada Lei n. 6.368/76, da mesma forma que a Lei n. 11.343/06 não previa a conduta de usar drogas como criminosa.
Lei n. 11.343/06 (Atual Lei de Drogas) | Lei n. 6.368/76 (Revogada Lei de Drogas) |
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I – advertência sobre os efeitos das drogas; II – prestação de serviços à comunidade; III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. | Art. 16. Adquirir, guardar ou trazer consigo, para o uso próprio, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena – Detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e pagamento de (vinte) a 50 (cinqüenta) dias-multa. |
Nota-se que foram acrescentados ao crime de porte de drogas para uso próprio as condutas de ter em depósito e transportar.
Rogério Greco3 ensina que:
Foram acrescentados à nova figura típica os núcleos ter em depósito e transportar. Não foi inserido o núcleo usar, motivo de discussões anteriores. Havia posição no sentido de que a conduta de usar era atípica, pois não se amoldava aos núcleos adquirir, guardar e trazer consigo, previstos no revogado art. 16 da Lei n. 6.368/76. No entanto, a posição contrária dizia que quem usa, por questões óbvias, traz consigo. O exemplo que era motivo de discussão, principalmente, acadêmica, era aquele em que o cigarro de maconha era colocado, por uma terceira pessoa, na boca do sujeito, para que pudesse tragá-lo, ou, a hipótese mais acadêmica ainda, da situação daquele que tragava o mencionado cigarro, que se encontrava acondicionado sobre um objeto, sem que, para tanto, o agente tivesse que segurá-lo. Como não foi inserido o núcleo usar, a discussão ainda persiste.
Renato Brasileiro de Lima leciona que:4
Dentre os cinco verbos nucleares do art. 28, caput, da Lei nº 11.343/06, não consta a conduta de mero uso da droga. Aliás, não por outro motivo, grande parte da doutrina prefere se referir ao art. 28 com o nomen iuris de porte de drogas para consumo pessoal, e não simplesmente uso de drogas.
Pelo menos em regra, se o indivíduo é flagrado usando substância entorpecente, deverá responder pelo crime de porte de drogas para consumo pessoal, não por conta do “uso da droga”, que é uma conduta atípica, mas sim porque é muito provável que, antes do uso, já tenha praticado uma das condutas incriminadas pelo art. 28, como por exemplo, o adquirir ou trazer consigo. Nesse caso, a fim de se comprovar a materialidade delitiva por meio do exame toxicológico, é imprescindível que parte da substância entorpecente seja apreendida .
No entanto, o uso de drogas nem sempre será precedido das condutas de adquirir ou trazer consigo. Com efeito, é perfeitamente possível que determinado indivíduo, sem ter consciência de que uma pessoa de seu relacionamento havia adquirido determinada substância entorpecente, trazendo-a consigo, resolva simplesmente anuir ao uso da droga. Nesse caso, como o uso da droga não consta do art. 28 como uma das condutas típicas, o ideal é concluir pela atipicidade do fato, até mesmo porque o perigo à saúde pública consubstanciado pelo fato de o agente trazer a droga consigo teria desaparecido com o consumo da substância entorpecente. De mais a mais, fosse o uso da droga considerado crime, não haveria necessidade de tipificação autônoma da conduta daquele que auxilia, instiga ou determina alguém a usar a droga (art. 33, § 2°), pois a norma de extensão do art. 29 do Código Penal seria suficiente para abranger o concurso de agentes para esse suposto “uso de droga”.5
Na vigência da antiga Lei de Drogas, cujo art. 16 também não incriminava o uso de drogas, a matéria foi apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, in verbis: “( … ) É mais que razoável o entendimento dos que entendem não realizado o tipo do art. 16 da Lei de entorpecentes (L. 6.368/76) na conduta de quem, recebendo de terceiro a droga, para uso próprio, incontinenti, a consome: a incriminação do porte de tóxico para uso próprio só se pode explicar – segundo a doutrina subjacente à lei – como delito contra a saúde pública, que se insere entre os crimes contra a incolumidade pública, que só se configuram em fatos que “acarretam situação de perigo a indeterminado ou não individuado grupo de pessoas” (Hungria) . De qualquer sorte, conforme jurisprudência sedimentada, o exame toxicológico positivo da substância de porte vedado é elemento essencial à validade da condenação pelo crime cogitado, o que pressupõe sua apreensão na posse do agente e não de terceiro: impossível, assim, imputar a alguém a posse anterior do único cigarro de maconha que teria fumado em ocasião anterior, se só se pode apreender e submeter à perícia resíduos daquela encontrados com o outro acusado, em contexto diverso”.6
O uso de drogas não precede, necessariamente, de algum dos núcleos do tipo previstos no art. 28 da Lei n. 11.343/06 (adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo).
É perfeitamente possível que uma pessoa use, consuma droga sem ter adquirido, sem guardá-la, sem tê-la em depósito, sem transportá-la e sem levá-la consigo. Tome como exemplo uma festa em que o organizador coloque cocaína por cima da mesa para que os presentes que tiverem interesse se aproximem da mesa e comecem a aspirar cocaína com a utilização de um canudo de papel. Tal conduta, por si só, não configura a prática de crime para os usuários, pois somente consumiram, usaram a droga, e não existe os verbos usar e consumir no art. 28 da Lei n. 11.343/06.7
O mesmo ocorre quando uma pessoa que esteja fumando maconha ofereça e coloque o cigarro de maconha na boca de outra para que este use droga, sem que este obtenha a propriedade do cigarro de maconha, somente o “empréstimo de uso” (algumas tragadas). Tal conduta também será atípica para o usuário de droga.
Em ambos os casos o agente que forneceu a droga responderá pelo crime de tráfico de drogas (art. 33 da Lei n. 11.343/06), podendo responder pelo art. 33, § 3º, da Lei de Drogas, caso tenha oferecido droga, eventualmente, e sem objetivo de lucro, a pessoa de seu relacionamento, para juntos a consumirem:
Não será a hipótese de induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de droga (art. 33, § 3º, da Lei n. 11.343/06) pelo fato deste crime pressupor uma participação acessória e não o fornecimento diretamente da droga. Induzir significa fazer nascer a ideia de usar droga. Instigar consiste em incentivar a pessoa a usar drogas, sendo que esta já pensava em usar. Auxiliar, por sua vez, consiste em prestar um auxílio material, como emprestar o carro para que a pessoa vá buscar a droga ou emprestar dinheiro para que compre a droga.
Caso a pessoa aceite o cigarro de maconha e já comece a usá-lo, segurando-o com as mãos, terá adquirido o cigarro, ainda que não pague nada por isso e tenha recebido o cigarro de maconha “de graça”. Adquirir significa obter a propriedade, seja mediante pagamento ou gratuitamente. Adquirir é vir a ter, vir a possuir, independentemente, da forma como tenha obtido, seja ao pegar ou ao receber o cigarro de maconha. Portanto, ao aceitar segurar o cigarro para usá-lo terá adquirido, razão pela qual pratica o crime previsto no art. 28 da Lei de Drogas.
E caso o indivíduo não segure o cigarro com as mãos? Poderá ou não haver o crime previsto no art. 28 da Lei de Drogas. Na hipótese em que ficar demonstrado que o usuário adquiriu a droga por intermédio de terceiro e solicitou que esta pessoa colocasse a droga (cigarro de maconha) em sua boca, por ter adquirido a droga utilizando-se de outra pessoa, praticará o crime em tela em razão do verbo adquirir, sendo o terceiro responsabilizado por tráfico de drogas (art. 33 da Lei n. 11.343/06). O mesmo raciocínio se aplica à pessoa que esteja impossibilitada de movimentar os braços, por ter sofrido um acidente, por exemplo, e não consiga fumar maconha, sendo atendida por terceiro.
É possível que uma pessoa que não use drogas seja responsabilizada pelo crime previsto no art. 28 da Lei n. 11.343/06, pois trata-se de um tipo penal incongruente, assimétrico, isto é, os elementos objetivos e subjetivos do tipo penal não coincidem, pois o crime de porte de droga exige que a droga seja destinada para o consumo pessoal (especial fim de agir). Exige-se a presença do elemento subjetivo especial do tipo.
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
Quando o art. 28 menciona “para consumo pessoal” significa dizer que não basta o porte de drogas para a sua configuração, é necessário que este porte seja destinado ao consumo pessoal. Nota-se que além do dolo há a exigência de um fim especial (consumo pessoal), sem o qual o crime é diverso, o tráfico de drogas (art. 33 da Lei n. 11/343/06). Portanto, trata-se de um tipo pena incongruente, assimétrico, pois os elementos objetivos (os verbos núcleos do tipo) não coincidem com o elemento subjetivo (dolo acrescido do especial fim de agir). Diversa é a hipótese do tráfico de drogas, cujos elementos objetivos e subjetivos coincidem, pois não há nenhuma exigência no tipo penal além do porte de drogas. Trata-se, portanto, de tipo penal congruente ou simétrico.
Portanto, ao se dizer acima que é possível que uma pessoa que não consuma drogas seja responsabilizada pelo crime previsto no art. 28 da Lei de Drogas significa dizer que uma pessoa que ainda não possui coragem para usar drogas, pois sabe que faz mal para a saúde, mas tenha adquirido droga e a porte consigo pela rua, enquanto cria coragem para usá-la, ocasião em que é abordado pela polícia, responderá pelo crime de porte de drogas e não por tráfico, pois a finalidade do agente era utilizar a droga, mas ainda estava indeciso.
O agente que for flagrado com o cigarro de maconha sozinho, necessária e logicamente, trazia consigo a droga, razão pela qual deverá responder pelo crime de porte de drogas para consumo pessoal (art. 28 da Lei n. 11.343/06), o que não ocorre caso tenha sido flagrado com o cigarro de maconha na boca enquanto terceiro colocasse e tirasse o cigarro enquanto fumava (“empréstimo de uso”).
Outro exemplo pode ocorrer no local em que o traficante deixe pequenas amostras de cocaína sobre um murinho para que os usuários cheirem um pouco antes de adquirir a droga. Caso a polícia flagre os usuários cheirando a droga no murinho, antes de comprá-la, não haverá crime.
É importante mencionar julgado do Supremo Tribunal Federal que considerou não ser crime a conduta de quem recebe droga de terceiro para uso próprio e a consome imediatamente, pois não há que se falar em violação ao bem jurídico tutelado (saúde pública), que somente é ofendido se acarretar em situação de perigo a indeterminado ou não individualizado grupo de pessoas.8
É mais que razoável o entendimento dos que entendem não realizado o tipo do art. 16 da Lei de entorpecentes (L. 6.368/76) na conduta de quem, recebendo de terceiro a droga, para uso próprio, incontinenti, a consome: a incriminação do porte de tóxico para uso próprio só se pode explicar – segundo a doutrina subjacente à lei – como delito contra a saúde pública, que se insere entre os crimes contra a incolumidade pública, que só se configuram em fatos que “acarretam situação de perigo a indeterminado ou não individuado grupo de pessoas” (Hungria). (STF – HC: 79189 SP, Relator: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Data de Julgamento: 12/12/2000, Primeira Turma, Data de Publicação: DJ 09-03-2001)
Portanto, sob essa ótica, o exemplo acima citado, do indivíduo que recebe, adquire cigarro de maconha de terceiro e o fuma imediatamente, não é crime, o que não se pode concordar, já que praticou o verbo núcleo do tipo (adquirir) e, portanto, colaborou para a difusão da droga.
Na hipótese em que o agente for flagrado utilizando o restinho de maconha ou de cocaína, de forma que os policiais não consigam apreender a droga para a realização do exame pericial, o exame toxicológico positivo (sangue, urina) poderá servir para incriminá-lo? E se o agente sequer tiver sido flagrado usando droga, mas fizer o exame, posteriormente, por qualquer motivo, e for constatado que utilizou droga, poderá ser incriminado?
A Edição n. 131 da Jurisprudência em Teses traz enunciados referentes à Lei de Drogas o enunciado n. 12 dispõe que “A comprovação da materialidade do delito de posse de drogas para uso próprio (art. 28 da Lei n. 11.343/2006) exige a elaboração de laudo de constatação da substância entorpecente que evidencie a natureza e a quantidade da substância apreendida.”
A jurisprudência é pacífica nesse sentido, portanto, para que haja responsabilização do agente que possui drogas para uso próprio, a comprovação da droga deve ocorrer mediante a elaboração de laudo de constatação da substância entorpecente.
Excepcionalmente, caso a droga não seja apreendida, por ter sido destruída imediatamente pelo agente ao visualizar a polícia, que ao chegar ao local sentiu cheiro característico de maconha e o agente se dispôs a realizar, voluntariamente, exame de sangue e/ou de urina, em razão do nemo tenetur se detegere, sendo constatado que o agente utilizou droga, é possível a condenação pelo porte de droga para consumo pessoal, pois o Código de Processo Penal permite a utilização de outros meios de prova quando não for possível realizar o exame de corpo de delito (laudo de constatação da droga), em razão do desaparecimento dos vestígios.
Código de Processo Penal
Art. 167. Não sendo possível o exame de corpo de delito, por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta.
Em casos excepcionais a jurisprudência admite o reconhecimento da droga ilícita ainda que não haja apreensão, sobretudo se a droga houver desaparecido em decorrência de ação do agente com o fim de se beneficiar.
PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. MATERIALIDADE DELITIVA. DOSIMETRIA DA PENA. REGIME INICIAL. JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.
1. A falta de laudo pericial não conduz, necessariamente, à inexistência de prova da materialidade de crime que deixa vestígios, a qual pode ser demonstrada, em casos excepcionais, por outros elementos probatórios constante dos autos da ação penal (CPP, art. 167) (HC 130.265, Rel. Min. Teori Zavascki).
2. A natureza e a quantidade da droga apreendida justificam a fixação da pena-base em patamar acima do mínimo legal (HC s 122.299 e 126.055, Rel. Min. Dias Toffoli; HC 118.389, Rel. Min. Teori Zavascki).
3. A imposição do regime de cumprimento mais severo do que a pena aplicada permitir exige motivação idônea (Súmula 719/STF). Hipótese em que o regime inicial fechado foi fixado com apoio em dados empíricos idôneos, extraídos da prova judicialmente colhida. 4. Agravo regimental a que se nega provimento.
(STF – AgR HC: 181632 PR – PARANÁ 0086772-76.2020.1.00.0000, Relator: Min. ROBERTO BARROSO, Data de Julgamento: 29/05/2020, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-148 15-06-2020)
RECURSO ESPECIAL. TRÁFICO DE DROGAS. MATERIALIDADE. AUSÊNCIA DE APREENSÃO DE DROGAS. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA. MANUTENÇÃO. RECURSO IMPROVIDO.
1. A caracterização do crime de tráfico de drogas prescinde de apreensão de droga em poder de cada um dos acusados, podendo ser comprovada pela existência de estupefacientes com apenas parte deles.
2. A prova da materialidade também pode ser demonstrada por outros meios quando seja a apreensão impossibilitada por ação do criminoso – que não poderia de sua má-fé se beneficiar.
3. Deve ser mantida a rejeição da denúncia por ausência de lastro probatório mínimo, quando não houver a apreensão de substância entorpecente com nenhum dos acusados.
4. Recurso improvido.
(STJ – REsp: 1800660 MG 2019/0062176-6, Relator: Ministro NEFI CORDEIRO, Data de Julgamento: 11/02/2020, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 25/05/2020)9
HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DO RECURSO CABÍVEL. DESCABIMENTO. EXECUÇÃO PENAL. FALTA GRAVE. POSSE DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE NO ESTABELECIMENTO PRISIONAL. FALTA DE LAUDO TOXICOLÓGICO. IMPRESCINDIBILIDADE. CONFISSÃO INSUFICIENTE. AUSÊNCIA DE MATERIALIDADE. NULIDADE DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONFIGURADO. 1. Os Tribunais Superiores restringiram o uso do habeas corpus e não mais o admitem como substitutivo de recursos outros, nem sequer para as revisões criminais. 2. O laudo toxicológico é um exame pericial imprescindível para se aferir a materialidade delitiva, no que se refere às substâncias entorpecentes, para que seja demonstrada a sua toxicidade. 3. A falta do laudo toxicológico pode ser suprida com outros elementos que confirmem o fato, se e quando possível, para a comprovação da materialidade do delito, sendo insuficiente a confissão do acusado. 4. A ingestão de um grama de maconha, em tese, não inviabilizaria a realização do exame toxicológico, pois a substância seria naturalmente expelida pelo corpo humano, Assim, a ausência de materialidade evidencia o constrangimento ilegal. 5. Ordem concedida, de ofício, para cassar o acórdão vergastado e reconhecer a nulidade do procedimento administrativo disciplinar instaurado em desfavor do paciente, relativo à prática de falta grave. (STJ – HC: 273881 MG 2013/0231168-1, Relator: Ministro MOURA RIBEIRO, Data de Julgamento: 03/12/2013, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 06/12/2013)
De qualquer forma, deve-se destacar que o reconhecimento da droga depende de laudo pericial, sendo possível excepcioná-lo, na linha dos julgados acima citados, quando restar comprovada a impossibilidade de apreensão da droga por atuação do agente, como o exemplo do agente que a destrói com a chegada da polícia com o intuito de se esquivar da responsabilização criminal.
[…] TRÁFICO DE DROGAS. AUSÊNCIA DE APREENSÃO DE TÓXICOS COM O ACUSADO OU COM AS MENORES QUE COM ELE SE ENCONTRAVAM. INEXISTÊNCIA DE LAUDO QUE COMPROVE QUE A SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE SERIA APTA A CAUSAR DEPENDÊNCIA FÍSICA OU PSÍQUICA. IMPOSSIBILIDADE DE COMPROVAÇÃO DA MATERIALIDADE DO DELITO. COAÇÃO ILEGAL CONFIGURADA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. 1. Conquanto existam precedentes em que, na hipótese de inexistência de apreensão da droga, dispensam laudo para comprovar a materialidade do delito de tráfico de entorpecentes, a melhor compreensão é a que defende a indispensabilidade da perícia no crime em questão.2. A constatação da aptidão da substância entorpecente para produzir dependência, ou seja, para viciar alguém, só é possível mediante perícia, já que tal verificação depende de conhecimentos técnicos específicos. Doutrina. 3. O artigo 50, § 1º, da Lei 11.343/06 não admite a prisão em flagrante e o recebimento da denúncia sem que seja demonstrada, ao menos em juízo inicial, a materialidade da conduta por meio de laudo de constatação preliminar da substância entorpecente, que configura condição de procedibilidade para a apuração do ilícito de tráfico. Precedentes. 4. Na hipótese em exame, verifica-se que nenhuma droga foi encontrada em poder do acusado ou das menores que com ele se encontravam, e, por conseguinte, não foi efetivada qualquer perícia que ateste que ele teria fornecido às adolescentes substâncias entorpecentes, circunstância que impede que seja incriminado pelo ilícito tipificado no artigo 33 da Lei 11.343/2006, já que ausente a comprovação da materialidade delitiva. 5. Recurso parcialmente provido apenas para determinar o trancamento da ação penal no tocante ao crime de tráfico de drogas. (RHC 65.205/RN, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 12/04/2016, DJe 20/04/2016)
Destaca-se que para que o agente responda pelo crime previsto no art. 28 da Lei n. 11.343/06 deve ficar comprovada a prática de pelo menos um dos cinco verbos núcleos do tipo previsto no referido artigo (adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo), o que não é comprovado com a simples constatação mediante exame de sangue ou de urina que detecte o uso de droga ilícita, já que o agente pode ter usado a droga sem ter adquirido, guardado, tido em depósito, transportado ou levado consigo, conforme demonstrado. Em que pese na maioria absoluta das vezes o agente que usa droga, realmente, tê-la consigo, não é possível afirmar em uma sentença condenatória que o agente, por ter usado droga, incidiu em qualquer um dos cinco verbos núcleos do tipo, na medida em que existe a possibilidade fática de não ter incidido e, ainda que mínima, é suficiente para a absolvição, pois qualquer possibilidade, ainda que extremamente improvável, que seja suficiente para gerar dúvida, deve levar à absolvição. Isto é, a certeza do juízo condenatório deve ser 200%.
A Lei de Drogas não pune o vício – visa tratar o usuário -, não pune a pessoa que “usa drogas”, pune somente a pessoa que a porta com o fim de consumi-la (art. 28) ou de comercializá-la ou passá-la a terceiro ou de ficar com a droga para si mesmo, sem, contudo, possuir o intuito de usá-la (art. 33). Pelo fato do usuário de droga movimentar o tráfico de drogas, quando a adquire, guarda, tem em depósito, transporta ou a traz consigo para consumo pessoal, coloca a saúde pública em perigo, razão pela qual tal conduta é considerada criminosa e não o vício, pois a partir do momento em que o usuário de droga a utiliza, causa lesão a si mesmo, e o direito não pune a autolesão (princípio da lesividade).
Independentemente da quantidade de drogas apreendidas, não se aplica o princípio da insignificância aos delitos de porte de substância entorpecente para consumo próprio e de tráfico de drogas, sob pena de se ter a própria revogação, contra legem, da norma penal incriminadora. Precedentes. O objeto jurídico tutelado pela norma do artigo 28 da Lei n.11.343/2006 é a saúde pública, e não apenas a do usuário, visto que sua conduta atinge não somente a sua esfera pessoal, mas toda a coletividade, diante da potencialidade ofensiva do delito de porte de entorpecentes. Para a caracterização do delito descrito no artigo 28 da Lei n.11.343/2006, não se faz necessária a ocorrência de efetiva lesão ao bem jurídico protegido, bastando a realização da conduta proibida para que se presuma o perigo ao bem tutelado. Isso porque, ao adquirir droga para seu consumo, o usuário realimenta o comércio nefasto, pondo em risco a saúde pública e sendo fator decisivo na difusão dos tóxicos. A reduzida quantidade de drogas integra a própria essência do crime de porte de substância entorpecente para consumo próprio, visto que, do contrário, poder-se-ia estar diante da hipótese do delito de tráfico de drogas, previsto no artigo 33 da Lei n.11.343/2006. (STJ. RHC 35.920/DF, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 20/05/2014, DJe 29/05/2014)
Nesse sentido, o exame de sangue ou de urina que constate que uma pessoa usou drogas não é suficiente para responsabilizá-la pelo art. 28 da Lei n. 11.343/06, pois comprova-se somente o uso de droga, mas não a prática de nenhum dos verbos núcleos do tipo. Isto é, não comprova que a pessoa adquiriu, guardou, teve em depósito, transportou ou trouxe consigo droga para consumo pessoal, salvo se restar demonstrado por outros meios de prova que o agente possuía a droga antes de usá-la, como a prova testemunhal e filmagens, aliada à confissão do agente.
Destaco a existência de entendimento no sentido de que “o uso pretérito do entorpecente não é crime, pois se a droga não mais existe – eis que consumida – o risco de difusão e propagação do entorpecente deixa de existir”10, conforme ensinamentos de Cleber Couto e Túlio Leno Góes Silva, que cita Fernando Capez e julgado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
A lei em estudo não tipifica a ação de usar a droga, mas apenas o porte, pois o que a lei visa é coibir o perigo social representado pela detenção, evitando facilitar a circulação da droga pela sociedade, ainda que a finalidade do sujeito seja apenas a de consumo pessoal. Assim, existe transcendentalidade na conduta e perigo para a saúde da coletividade, bem jurídico tutelado pela norma do art. 28. […] é exatamente por isso que a lei não incrimina o uso pretérito (desaparecendo a droga, extingue-se a ameaça) (CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal – Legislação Penal Especial. 8ª ed. Saraiva. p. 686-687).
O uso pretérito de droga, ainda que recente e induvidoso, por afirmação testemunhal ou até mesmo policial, não integra o delito porque, desaparecida a droga pela consumação, deixa de haver o risco potencial da disseminação de seu uso, fator determinante da punibilidade (TJSP – AC 122.315-3 – Rel. Reynaldo Ayrosa – JTJ 143/301).
Rogério Greco leciona que o agente que é surpreendido pela polícia logo após ter feito uso da droga “Não responderá pelo delito em estudo, pois seu comportamento não se amolda a qualquer núcleo, tampouco poderá ser objeto de prova pericial residuográfica.”11
Cleber Masson e Vinícius Marçal escrevem que “É importante recordar que o uso pretérito de droga, por si só, não configura crime. De fato, em se tratando de delito contra a saúde pública, este bem jurídico não corre perigo se a substância já deixou de existir.”12
O Tribunal de Justiça de Minas Gerais já decidiu que se o agente for encontrado quando já tiver utilizado a droga, a conduta é atípica, uma vez que não se poderá falar em “trazer consigo” aquilo que não mais existe.
Entorpecente. Posse. Descaracterização. Acusado que, ao ser preso, já havia feito uso da droga. Conduta atípica, uma vez que não se poderá falar em “trazer consigo” aquilo que não mais existe. Inteligência do art. 16 da Lei 6.368/76 (TJMG, Ap. 23.802-2, RT 673/352).13
Tal entendimento, em que pese ser majoritário, não deve prosperar, na medida em que não é possível falar em “trazer consigo” no momento da abordagem policial, mas caso haja provas de que trazia consigo imediatamente antes de consumir a droga, o agente estará em flagrante delito, pois terá praticado um crime e terá sido flagrado pelos policiais logo após a prática. A questão é a ausência de materialidade para a adoção de providências policiais, o que é uma questão probatória e não de existência de crime. O fato da substância (droga) ter deixado de existir, realmente, não coloca mais em risco o bem jurídico tutelado (saúde pública), contudo, enquanto existia, houve risco para a saúde pública.
Salienta-se que o julgado acima exposto trata da prisão da pessoa que trazia consigo droga para uso próprio na vigência da Lei n. 6.368/76, quando o porte de droga para uso pessoal possuía pena privativa de liberdade, o que inexiste desde o advento da Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006.
O Código Penal Militar prevê o crime de tráfico, posse ou uso de entorpecentes ou substância de efeito similar (art. 290), contudo, da mesma forma que o art. 28 da Lei n. 11.343/06 não utiliza os verbos usar ou consumir, razão pela qual aplica-se o mesmo raciocínio exposto neste texto para o crime previsto no art. 290 do Código Penal Militar.
Uma constatação interessante é que o nome jurídico (nomen iuris) do art. 290 é “Tráfico, posse ou uso de entorpecente ou substância de efeito similar”, contudo não há o verbo usar no tipo penal, razão pela qual a conduta de usar droga, por si só, é atípica, ainda que praticada por militares em serviço ou em local sujeito à administração militar.
Tráfico, posse ou uso de entorpecente ou substância de efeito similar
Art. 290. Receber, preparar, produzir, vender, fornecer, ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, ainda que para uso próprio, guardar, ministrar ou entregar de qualquer forma a consumo substância entorpecente, ou que determine dependência física ou psíquica, em lugar sujeito à administração militar, sem autorização ou em desacôrdo com determinação legal ou regulamentar:
Pena – reclusão, até cinco anos.
Por fim, salienta-se que é um equívoco dizer crime de “uso de drogas”. O correto é utilizar a expressão “porte de drogas para consumo pessoal”.
NOTAS
1 Disponível em: <http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD13FEV2004.pdf#page>. Acesso em: 13/07/2020.
2 DE LIMA, Renato Brasileiro. Legislação Criminal Comentada. Volume Único. 8ª Edição. Editora JusPODIVM: Salvador. 2020. p. 1.029.
3 GRECO, Rogério. Atividade Policial. Aspectos penais, processuais penais, administrativos e constitucionais. 9ª Edição. Impetus: Niterói. 2018. p. 332.
4 DE LIMA, Renato Brasileiro. Legislação Criminal Comentada. Volume Único. 8ª Edição. Editora JusPODIVM: Salvador. 2020. p. 1.029.
5Nesse contexto: JESUS, Damásio Evangelista de. Lei Antitóxicos anotada. 3ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1997. p. 89. Na mesma linha, segundo Mendonça e Carvalho (op. cit . p. 60), “não poderia ser punido o atleta cujo exame antidoping demonstre o uso de droga , como ocorreu, há alguns anos, com um jogador de vôlei da seleção brasileira “.
6STF, 1ª Turma, HC 79.189/SP, Rei. Min . Sepúlveda Pertence, j. 12/12/2000, DJ 09/03/2001.
7 No mesmo sentido: SIMONASSI, Vanessa Perpetuo. Afinal, usar drogas é crime? O que diz a Lei:. Disponível em: <https://vanessaperpetuosilva.jusbrasil.com.br/artigos/534667208/afinal-usar-drogas-e-crime-o-que-diz-a-lei >. Acesso em: 13/07/2020.
8Entorpecentes: posse para uso próprio: inexistência do crime ou, de qualquer sorte, de prova indispensável à condenação: habeas corpus deferido por falta de justa causa.
1. É mais que razoável o entendimento dos que entendem não realizado o tipo do art. 16 da Lei de entorpecentes (L. 6.368/76) na conduta de quem, recebendo de terceiro a droga, para uso próprio, incontinenti, a consome: a incriminação do porte de tóxico para uso próprio só se pode explicar – segundo a doutrina subjacente à lei – como delito contra a saúde pública, que se insere entre os crimes contra a incolumidade pública, que só se configuram em fatos que “acarretam situação de perigo a indeterminado ou não individuado grupo de pessoas” (Hungria).
2. De qualquer sorte, conforme jurisprudência sedimentada, o exame toxicológico positivo da substância de porte vedado é elemento essencial à validade da condenação pelo crime cogitado, o que pressupõe sua apreensão na posse do agente e não de terceiro: impossível, assim, imputar a alguém a posse anterior do único cigarro de maconha que teria fumado em ocasião anterior, se só se pode apreender e submeter à perícia resíduos daquela encontrados com o outro acusado, em contexto diverso.
(STF – HC: 79189 SP, Relator: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Data de Julgamento: 12/12/2000, Primeira Turma, Data de Publicação: DJ 09-03-2001)
9AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL PENAL. TRÁFICO DE DROGAS. (…) ALEGADA AUSÊNCIA DE MATERIALIDADE POR NÃO EXISTIR LAUDO TOXICOLÓGICO. PRESCINDIBILIDADE. PLEITO DE ABSOLVIÇÃO POR FALTA DE PROVAS. IMPOSSIBILIDADE. ÓBICE DO VERBETE SUMULAR N.º 7/STJ. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. (…) 2. A despeito da pacífica orientação desta Corte no sentido da indispensabilidade do laudo toxicológico para se comprovar a materialidade do crime de tráfico ilícito de drogas, já se posicionou esta Col. Quinta Turma (HC 91.727/MS, 5.ª Turma, Rel. Min. ARNALDO ESTEVES LIMA, DJe de 19/12/2008) no sentido de que o referido entendimento só é aplicável nas hipóteses em que a substância entorpecente é apreendida, a fim que se confirme a sua natureza. 3. Dessa forma, é possível, nos casos de não apreensão da droga, que a condenação pela prática do delito tipificado no art. 33 da Lei n.º 11.343/2006 seja embasada em extensa prova documental e testemunhal produzida durante a instrução criminal que demonstrem o envolvimento com organização criminosa acusada do delito, o que, conforme se constata dos excertos transcritos, constitui a hipótese dos autos. (…) 5. Decisão agravada que se mantém pelos seus próprios fundamentos. 6. Agravo regimental desprovido. (AgRg no AREsp 293.492/MT, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 26/08/2014, DJe 02/09/2014)
10COUTO, Cleber; SILVA, Túlio Leno Góes Silva . A (in)constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4460, 17 set. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/42689. Acesso em: 14 jul. 2020.
11 GRECO, Rogério. Atividade Policial. Aspectos penais, processuais penais, administrativos e constitucionais. 9ª Edição. Impetus: Niterói. 2018. p. 336.
12MASSON, Cleber. MARÇAL, Vinícius. Lei de Drogas. Aspectos Penais e Processuais. Método: São Paulo. 2019.
13 Em sentido semelhante: “Mesmo admitindo-se que o acusado houvesse confessado ter feito uso de droga, mas não tendo sido encontrada qualquer substância em seu poder, e ainda assim não poderia prosperar a sua condenação tendo por base o art. 16 da Lei 6.368/76, por não estar portando a maconha, sendo clara a atipicidade da conduta.” (TJ-RN – APR: 30905 RN 2001.003090-5, Relator: Des. Vivaldo Otavio Pinheiro, Data de Julgamento: 19/04/2002, Câmara Criminal, Data de Publicação: 09/05/2002).