A inviolabilidade domiciliar, o acesso da polícia e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça

No texto “O direito fundamental à inviolabilidade de domicílio e os seus limites” publicado neste site “Atividade Policial”, é abordado com profundidade o direito fundamental à inviolabilidade domiciliar, além de diversos detalhes.

Neste texto, após estudar centenas de julgados dos tribunais superiores, separei os mais importantes para traçar diretrizes a respeito dos entendimentos dos tribunais superiores acerca do ingresso de policiais em domicílio.

O domicílio tem proteção constitucional.

Art. 5º (…)

XI – a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;

O Decreto 678/92 que promulgou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, também protege o domicílio.

Art. 11

2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação.

O art. 150, §4º, do Código Penal utiliza o termo “casa” e este engloba: I – qualquer compartimento habitado; II – aposento ocupado de habitação coletiva; III – compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade.

a) Qualquer compartimento habitado – o conceito abrange inclusive moradias transitórias. Logo, não se exige que seja afixada em determinado local, motivo pelo qual admite-se como casa o barco, trailer, motorhome, cabina de trem, vagão de metrô abandonado, quarto de hotel, de pensão, abrigo embaixo de ponte ou viaduto.

b) Aposento ocupado de habitação coletiva – o conceito abrange o cômodo (quarto ou sala etc) onde o indivíduo mora que constitui seu lar e, portanto, goza da proteção legal. Logo, os locais públicos do hotel, motel e pensão não são objeto da proteção legal, porém, o quarto com hóspede, o local da administração, a cozinha, a lavanderia gozam da proteção

c) Compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade – local onde o indivíduo desenvolve sua profissão, atividade ou negócios, como escritório do advogado, do engenheiro, gabinete do juiz, do promotor, do delegado, do Comandante etc. As dependências desses compartimentos, como salas de espera, que sejam abertas ao público não gozam da proteção. Desse modo, não se compreende dentro desse conceito os bares, teatros, cinemas, lojas etc. As dependências da casa que sejam cercadas abrangem o conceito e gozam da proteção legal, no entanto as áreas não cercadas não caracterizam dependência e por essa razão não gozam da proteção legal.

Observa-se que o próprio Código Penal cuidou de dizer o que não se considera como casa, consoante art. 150, § 5º: I – hospedaria, estalagem ou qualquer outra habitação coletiva, enquanto aberta, salvo a restrição do n.º II do parágrafo anterior; II – taverna, casa de jogo e outras do mesmo gênero.

a) Hospedaria, estalagem ou qualquer outra habitação coletiva, enquanto aberta – aqui não se considera casa os locais de acesso livre e uso comum, enquanto abertos ao público. Ex.: hall de entrada, área da piscina, sala de espera, etc.

b) Taverna, casa de jogo e outras do mesmo gênero – taverna consiste em bar, restaurante, botequim, vendinha, etc. Por sua vez, casa de jogo corresponde a locais onde se praticam jogos de azar (ex.: cassino) ou não, como um fliperama.

Muitas vezes o termo domicílio é empregado como sinônimo de casa.

A Constituição Federal autoriza o ingresso em domicílio, independentemente, do consentimento do morador, em quatro hipóteses: 1. Em caso de flagrante delito; 2. Em caso de desastre; 3. Para prestar socorro; 4. Durante o dia, por determinação judicial.

Extrai-se do texto constitucional que não se exige mandado judicial para entrada forçada em residência em caso de flagrante delito, de desastre e para prestar socorro, em qualquer período, de modo que a limitação temporal é aplicada apenas para as situações de cumprimento de mandado judicial, hipótese na qual só pode ser cumprido durante o dia.

A discussão quanto ao ingresso forçado em domicílio pelos policiais sempre foi questão de intenso debate na jurisprudência e na doutrina. Não é possível, dada a infinidade de situações possíveis, delimitar antecipadamente de forma objetiva e clara em quais casos a polícia pode ingressar em domicílio, devendo essa análise ser feita casuisticamente (caso a caso).

O Supremo Tribunal Federal, em 2015, no Recurso Extraordinário n. 603616 fixou balizas importantes para serem utilizadas quando da análise do ingresso em domicílio, por policiais, nas situações de flagrante delito, sendo fixada a seguinte tese:

A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados.

Caso concreto

A polícia estava monitorando o agente e seu comparsa. Em um dia em que o comparsa saiu da casa do recorrente dirigindo um caminhão, ao ser interceptado foram encontrados 23,421 kg de cocaína dentro do veículo. Ao ser preso o comparsa confirmou que recebeu a droga de outro agente. Na sequência os policiais dirigiram-se à casa deste agente e lá encontraram 8,542kg dentro de um veículo Ford Focus de sua propriedade, estacionado na garagem de sua residência.

Tratava-se de caso de crime permanente (tráfico de substância entorpecente), ou seja, cuja consumação se prolonga no tempo, admitindo o flagrante em qualquer momento, enquanto perdurar a ilicitude. Ex.: tráfico de drogas, sequestro, furto de energia elétrica, posse de arma de fogo.

A defesa sustentou a ilicitude das provas que fundamentaram a sentença condenatória, sob o argumento de que foram colhidas mediante invasão do domicílio sem ordem judicial que autorizasse a busca e apreensão.

Fundamentos do voto vencedor (Ministro Gilmar Mendes)

É necessário estabelecer uma interpretação que, ao mesmo tempo, confirme a garantia da inviolabilidade e, de outro lado, proteja os agentes estatais, oferecendo orientação quanto a sua forma de atuação.

O entendimento da Suprema Corte e do STJ é no sentido de que é viável o ingresso forçado pela polícia, independentemente de autorização judicial, se dentro da casa está ocorrendo um crime permanente.

A entrada forçada sem ordem judicial sofre controle judicial posterior, como forma de preservar a inviolabilidade domiciliar, protegendo o domicílio contra ingerências arbitrárias.

A entrada forçada é admissível pelo agente estatal desde que fique demonstrada a existência de fundadas razões que permitam concluir a situação e flagrância, de modo que a simples constatação da situação de flagrância realizada mediante posterior controle judicial não é suficiente.

A proteção contra a invasão arbitrária exige que a diligência seja avaliada em parâmetros anteriores à sua realização, de modo que o agente de segurança pública demonstre a existência de justa causa por meio de elementos que caracterizem a suspeita da ocorrência de uma situação que autoriza o ingresso forçado.

No caso, o ingresso forçado estava fundamentado no acompanhamento prévio e nas declarações do comparsa, o que constitui elementos suficientes para indicar fundadas razões de que o agente estivesse cometendo o delito.

Comentários

Nesse caso submetido ao crivo do STF, não há dúvidas de que o ingresso não foi realizado por circunstâncias desconhecidas, ou seja, os policiais não contaram com a sorte. Foi demonstrado que a probabilidade do agente ter em depósito substância entorpecente era muito alta, em razão do fato de seu comparsa ter sido preso pouco antes pela polícia após ser abordado e flagrado com grande quantidade de cocaína logo após sair da casa do agente.

Depreende-se do inteiro teor do julgado que os policiais monitoravam há algum tempo o agente e seu comparsa e que o ingresso na residência não se deu com base exclusivamente em denúncia anônima sem posterior investigação, mas em razão da prisão do comparsa e da sua confissão em afirmar que recebeu a substância entorpecente do agente.

Desse modo, o ingresso na casa foi realizado à luz da Constituição Federal, na medida em que os policiais apresentaram justa causa suficiente para a entrada forçada.

Exposta a teste fixada pelo Supremo Tribunal Federal que é utilizada pelo Superior Tribunal de Justiça decidir os mais diversos casos, a seguir são analisados os julgados do STJ.

Hipóteses nas quais o Superior Tribunal de Justiça entendeu pela licitude da entrada forçada no domicílio

1. É legítimo o ingresso forçado em imóvel não habitado após denúncia anônima e monitoração do local pela polícia para confirmar ausência de habitantes.

Sem desconsiderar a proteção constitucional de que goza a propriedade privada, ainda que desabitada, não se verifica nulidade na busca e apreensão efetuada por policiais, sem prévio mandado judicial, em apartamento que não revela sinais de habitação, nem mesmo de forma transitória ou eventual, se a aparente ausência de residentes no local se alia à fundada suspeita de que tal imóvel é utilizado para a prática de crime permanente (armazenamento de drogas e armas), o que afastaria a proteção constitucional concedida à residência/domicílio. Situação em que, após denúncia anônima detalhada de armazenamento de drogas e de armas, seguida de informações dos vizinhos de que não haveria residente no imóvel, de vistoria externa na qual não foram identificados indícios de ocupação da quitinete (imóvel contendo apenas um colchão, algumas malas, um fogão e janela quebrada, apenas encostada), mas foi visualizada parte do material ilícito, policiais adentraram o local e encontraram grande quantidade de drogas (7kg de maconha prensada, fracionadas em 34 porções; 2.097, 8kg de cocaína em pó, fracionada em 10 tabletes e 51 gramas de cocaína petrificada, vulgarmente conhecida como crack) e de armas (uma submetralhadora com carregador, armamento de uso proibido; 226 munições calibre .45; 16 munições calibre 12; 102 munições calibre 9mm; 53 munições calibre .22; 04 carregadores, 01 silenciador, 02 canos de arma curta, 03 coldres).

A transposição de portão em muro externo que cerca prédio de apartamentos, por si só, não implica, necessariamente, afronta à garantia de inviolabilidade do domicílio. Para tanto, seria necessário demonstrar que dito portão estava trancado, ou que havia interfone ou qualquer outro tipo de aparelho/mecanismo de segurança destinado a limitar a entrada de indivíduos que quisessem ter acesso ao prédio já no muro externo, o que não ocorre no caso concreto, em que há, inclusive, depoimento de policial afirmando que o portão estaria aberto.

STJ, HC 588445. Rel Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, j. 25/08/2020.

Caso concreto

Policiais, após denúncia anônima, ingressaram em apartamento que não tinha sinais de moradia habitual.

A defesa argumentou a ausência de fundadas razões para a entrada forçada pelos policiais e que a ausência de móvel e de cortinas não autorizariam o ingresso.

Fundamentos da decisão

  • O STF fixou entendimento no RE nº 603.616/RO que o ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial apenas se revela legítimo quando amparado em fundadas razões devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso concreto, que indiquem que naquele momento há situação de flagrante delito no interior da residência.
  • O crime de tráfico de entorpecentes é permanente, o que legitima a entrada de policiais em domicílio para cessar a prática delitiva, desde que existam elementos suficientes de probabilidade delitiva capazes de demonstrar a ocorrência de flagrância.
  • Para o STF o conceito de casa possui caráter amplo porque compreende (a) qualquer compartimento habitado; (b) qualquer aposento ocupado de habitação coletiva; (c) qualquer compartimento privado não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade.
  • Pelos depoimentos dos policiais foram realizadas diligências no local, através de conversa com moradores próximos para averiguar se o imóvel era ocupado por alguém, ocasião em que foi informado que não era ocupado.
  • A conjugação da denúncia anônima de que o local era utilizado para armazenamento de substâncias entorpecentes e armas de fogo, associada às informações prestadas pelos vizinhos de que não havia ninguém residindo no local, somado a vistoria externa efetuada pelos policiais que constataram a ausência de indícios de ocupação do imóvel, bem como a espera por algum habitante do recinto, afasta a garantia constitucional e legitima o ingresso sem ordem judicial.
  • O fato de o prédio ser cercado por muro com portão pelo qual entraram os policiais antes de adentrar na quitinete não conduz ao entendimento de que a transposição do portão já viola a garantia constitucional, especialmente diante das informações de que o portão estava aberto e não havia qualquer tipo de aparelho destinado a limitar a entrada de indivíduos.
  • O material ilícito era possível de ser visualizado pela janela conforme se extrai dos depoimentos dos policiais, fato que somado aos demais fatores, autorizariam o ingresso.

Comentários

Observa-se que, nesse caso, a denúncia anônima não era algo isolado, os policiais realizaram diligências prévias ao entrevistar vizinhos e, ainda, monitoraram o imóvel a fim de confirmar as informações obtidas.

Verifica-se o empenho dos policiais em confirmar primeiro as informações para depois agir, a fim de legitimar a sua conduta.

As diligências prévias realizadas em uma situação de flagrante delito não caracterizam atos de investigação, típicos do Delegado de Polícia, pois a Polícia Militar possui a obrigação de atuar nas situações de flagrante delito, imediatamente, podendo, para tanto, obter informações imediatas para então agir. Isso porque a Constituição Federal em seu art. 144, § 5º, preconiza ser atribuição da Polícia Militar a preservação da ordem pública, o que inclui a repressão imediata ao delito. Por uma questão lógica, de coerência e como decorrência da teoria dos poderes implícitos, está a Polícia Militar autorizada, nas situações de flagrante delito, a diligenciar na rua para obter maiores informações e, consequentemente, atuar. Ouvir pessoas na rua, buscar informantes e realizar campana nessas situações não caracterizam atribuições típicas da autoridade de polícia judiciária, até porque para realizar a prisão em flagrante é necessário buscar informações, até para que o flagrante fique caracterizado e comprovado.

2. É legítimo o ingresso no domicílio alheio em razão de denúncia de disparo de arma de fogo dentro da casa.

O delito imputado tem natureza permanente. Legítima, portanto, a entrada de policiais para fazer cessar a prática do delito, independentemente de mandado judicial, desde que existam elementos suficientes de probabilidade delitiva. No caso o ingresso dos policiais no imóvel ocorreu após informações dando conta de um disparo de arma de fogo, demonstrando que os agentes de segurança atuaram a partir de fundadas suspeitas da prática de crimes no interior da residência.
STJ, HC 595.700/MG, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, j. em 06/10/2020.

Caso concreto

Os policiais realizavam patrulhamento quando foram informados a respeito de um disparo de arma de fogo e de seu autor, motivo pelo qual se dirigiram ao imóvel e lá encontraram drogas, munições, balança de precisão e uma quantia em dinheiro.

Fundamentos da decisão

  • O STF fixou entendimento no RE nº 603.616/RO que o ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial apenas se revela legítimo quando amparado em fundadas razões devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso concreto, que indiquem que naquele momento há situação de flagrante delito no interior da residência.
  • O crime de tráfico de entorpecentes é permanente, o que legitima a entrada de policiais em domicílio para cessar a prática delitiva, desde que existam elementos suficientes de probabilidade delitiva capazes de demonstrar a ocorrência de flagrância.
  • Somente quando o contexto fático anterior ao ingresso autorizar a conclusão acerca da ocorrência de crime no interior da residência é que se mostra possível sacrificar a garantia constitucional.
  • O contexto fático que se deu o flagrante decorreu da informação de um disparo de arma de fogo e de seu autor, o que legitima o ingresso no domicílio.
  • Os policiais agiram após informações que resultaram em fundadas suspeitas da prática de crime no interior da residência.

Comentários

O disparo de arma de fogo, por si só, é crime previsto na Lei n. 10.826/03.

Art. 15. Disparar arma de fogo ou acionar munição em lugar habitado ou em suas adjacências, em via pública ou em direção a ela, desde que essa conduta não tenha como finalidade a prática de outro crime:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

O fato de se escutar um disparo de arma de fogo dentro de uma residência legitima o ingresso da polícia, pois é imprescindível que se verifique se há feridos e pessoas que precisam de socorro imediato. A não prestação de socorro imediato pode resultar na morte de eventual ferido.

O disparo da arma significa que o crime acabara de ser praticado e poderia ser tanto um homicídio, quanto apenas o disparo de arma de fogo, o que constitui justa causa suficiente para o ingresso e que será possível de ser verificado somente após o ingresso.

Nestes casos o policial ingressa na residência por estar autorizado constitucionalmente por haver flagrante delito e para verificar a necessidade de se prestar socorro (art. 5º, XI, da CF).

Em se tratando da prestação de socorro, a sua real necessidade somente se verifica após o ingresso na residência e um disparo de arma de fogo é motivo idôneo suficiente para legitimar o ingresso, dada a alta probabilidade de haver ferido.

3. Busca por arma de fogo utilizada em crime autoriza o ingresso forçado em domicílio, na hipótese em que o agente for reconhecido por foto e fugir ao avistar a aproximação da polícia, entrando em sua casa e se evadindo pela janela em direção à mata.

O entendimento do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que o crime de posse de arma é do tipo permanente, cuja consumação se protrai no tempo, o qual não se exige a apresentação de mandado de busca e apreensão para o ingresso na residência do agente, quando se tem por objetivo fazer cessar a atividade criminosa, dada a situação de flagrância, inclusive no período noturno, independente de mandado judicial, e desde que haja fundada razão da existência do crime.
Diante da fundada suspeita de que o paciente teria sido o autor de roubo armado ocorrido no dia anterior (16 horas antes), visto que identificado pela vítima em reconhecimento fotográfico, sua fuga, ao avistar a aproximação da autoridade policial, entrando em sua casa e se evadindo pela janela em direção à mata, gera legitimamente a presunção de que a arma utilizada no crime poderia se encontrar na residência, o que autoriza a busca domiciliar sem prévio mandado judicial.

O fato de não ter sido encontrada a arma, mas, sim, entorpecentes em quantidade significativa (100 microtubos plásticos com cocaína, totalizando 433,8g da substância) constitui descoberta fortuita que não retira a legitimidade da situação de flagrância que ensejou a entrada dos policiais na residência.

STJ, HC 614.078/SP, Rel. Ministro Reynaldo Soares Da Fonseca, 5ª Turma, j. em 03/11/2020.

Caso concreto

Após um roubo em uma lanchonete, o suposto autor do fato foi reconhecido pela vítima, mediante fotografia apresentada pela Polícia Militar. Cerca de dezesseis horas após o fato os policiais se dirigiram à residência do autor do fato, momento em que, ao avistar os policiais, empreendeu fuga por uma janela, razão pela qual os policiais ingressaram na residência para busca da arma de fogo, ocasião na qual encontraram substâncias ilícitas dentro de um armário na cozinha.

Fundamentos da decisão

  • O entendimento firmado pelo STF em sede de repercussão geral no RE nº 603.616/RO, no qual fixou a tese de que o ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial apenas se revela legítimo quando amparado em fundadas razões devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso concreto, que indiquem que naquele momento há situação de flagrante delito no interior da residência.
  • Somente quando o contexto fático anterior ao ingresso autorizar a conclusão acerca da ocorrência de crime no interior da residência é que se mostra possível sacrificar a garantia constitucional.
  • O crime de posse ilegal de arma de fogo de uso permitido ou restrito é crime permanente. De acordo com o art. 303 do CPP, entende-se que o agente está em flagrante delito enquanto não cessar a permanência da ação. Desse modo, é legítima a entrada de policiais para fazer cessar a prática do crime, independentemente de mandado judicial, desde que demonstrada existência de fundadas razões que sinalizem para a possibilidade de afastar a proteção constitucional.
  • A autoridade policial atuou com base na fundada suspeita de que o paciente era o autor do crime de roubo armado ocorrido dezesseis horas antes porque identificado pela vítima.
  • A suspeita de que o indivíduo era o autor do crime de roubo associada à fuga empreendida pelo agente ao avistar os policiais legitima a presunção de que a arma utilizada no crime poderia se encontrar na residência, o que autoriza a busca.
  • O encontro de substâncias entorpecentes, ainda que não encontrada a arma de fogo, configura descoberta fortuita que não retira a legitimidade da situação de flagrância que ensejou a entrada dos policiais na residência.

Comentários

No caso há informações suficientes da prática de crime pelo agente, diante do reconhecimento feito pela vítima e da possibilidade de o agente manter a posse de arma de fogo no seu domicílio. Importante ressaltar que não houve flagrante do crime de roubo, afinal, já tinham passado mais de dezesseis horas do fato e da narrativa se conclui que não existia guarnição policial à procura do agente. Em que pese a finalidade dos policiais ser a localização da arma, acabaram por encontrar drogas, o que constitui descoberta fortuita, razão pela qual a prova (droga apreendida) é legal.

A teoria do encontro fortuito ou casual de provas, também denominada serendipidade, consiste na obtenção casual, fortuita, de elementos probatórios de uma infração penal que não é objeto de investigação. Isto é, busca-se investigar um crime, mas durante a investigação deste crime aparecem outros que não possuem relação com a investigação originária.

Consiste numa limitação à teoria da prova ilícita por derivação (teoria dos frutos da árvore envenenada), segundo a qual uma prova é obtida em razão de uma diligência anterior autorizada que tinha por objetivo a investigação de outro crime.

Serendipidade advém do inglês “serendipity” e significa descobrir coisas por acaso. Isto é, a pessoa sai em busca de uma coisa, mas acaba por descobrir outra(s).

Os tribunais têm aplicado a teoria do encontro fortuito, devendo ser analisado se no caso concreto houve desvio de finalidade ou não na execução do meio de obtenção de prova, para a validade da prova obtida.

Nesse sentido:

1. Segundo a teoria do encontro fortuito ou casual de provas (serendipidade), independentemente da ocorrência da identidade de investigados ou réus, consideram-se válidas as provas encontradas casualmente pelos agentes da persecução penal, relativas à infração penal até então desconhecida, por ocasião do cumprimento de medidas de obtenção de prova de outro delito regularmente autorizadas, ainda que inexista conexão ou continência com o crime supervenientemente encontrado e este não cumpra os requisitos autorizadores da medida probatória, desde que não haja desvio de finalidade na execução do meio de obtenção de prova.

2. Assim, embora, em um primeiro momento, a investigação não tenha sido dirigida ao recorrente, o encontro fortuito de provas, ocorrido em procedimento efetuado com observância da legislação de regência (perícia no celular do corréu), é válido para comprovar seu envolvimento no tráfico de drogas.

STJ – RHC 117.113/MG, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 26/11/2019, DJe 05/12/2019. (Destaque nosso)

A infração descoberta é denominada de crime achado, sendo este o termo utilizado pelo Supremo Tribunal Federal.

O “crime achado”, ou seja, a infração penal desconhecida e, portanto, até aquele momento não investigada, sempre deve ser cuidadosamente analisada para que não se relativize em excesso o inciso XII do art. 5º da Constituição Federal. A prova obtida mediante interceptação telefônica, quando referente a infração penal diversa da investigada, deve ser considerada lícita se presentes os requisitos constitucionais e legais.

STF – HC 129678, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 13/06/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-182 DIVULG 17-08-2017 PUBLIC 18-08-2017.

A doutrina subdivide o encontro fortuito de provas em primeiro e segundo grau. Será de primeiro grau quando houver o encontro fortuito de fatos conexos, o que valerá como prova. Será de segundo grau quando não houver conexão no encontro fortuito de fatos, razão pela qual o elemento descoberto valerá como notitia criminis e não prova, o que autoriza o desencadeamento de uma nova investigação.1

Não obstante este entendimento doutrinário, o Superior Tribunal de Justiça decidiu ser possível considerar como prova a descoberta fortuita, ainda que não haja conexão, a saber: “Em princípio, havendo o encontro fortuito de notícia da prática futura de conduta delituosa, durante a realização de interceptação telefônica devidamente autorizada pela autoridade competente, não se deve exigir a demonstração da conexão entre o fato investigado e aquele descoberto, a uma, porque a própria Lei nº 9.296/96 não a exige, a duas, pois o Estado não pode se quedar inerte diante da ciência de que um crime vai ser praticado e, a três, tendo em vista que se por um lado o Estado, por seus órgãos investigatórios, violou a intimidade de alguém, o fez com respaldo constitucional e legal, motivo pelo qual a prova se consolidou lícita. A discussão a respeito da conexão entre o fato investigado e o fato encontrado fortuitamente só se coloca em se tratando de infração penal pretérita, porquanto no que concerne as infrações futuras o cerne da controvérsia se dará quanto a licitude ou não do meio de prova utilizado e a partir do qual se tomou conhecimento de tal conduta criminosa.”2

Eugênio Pacelli sustenta a desnecessidade de haver conexão para que a prova descoberta seja lícita, posicionamento com o qual concordamos.3

Não é a conexão que justifica a licitude da prova. O fato, de todo relevante, é que, uma vez franqueada a violação dos direitos à intimidade e à privacidade dos moradores da residência, não haveria razão alguma para a recusa de provas de quaisquer outros delitos, punidos ou não com reclusão. Isso porque uma coisa é a justificação para a autorização da quebra de sigilo; tratando-se de violação à intimidade, haveria mesmo de se acenar com a gravidade do crime. Entretanto, outra coisa é o aproveitamento do conteúdo da intervenção autorizada; tratando-se de material relativo à prova de crime (qualquer crime), não se pode mais argumentar com a justificação da medida (interceptação telefônica), mas, sim, com a aplicação da lei.

A serendipidade subdivide-se ainda em objetiva e subjetiva. Será objetiva quando o encontro fortuito for de fatos criminosos e será subjetiva quando o encontro fortuito relacionar-se ao envolvimento de outras pessoas que não estejam sendo investigadas.

Em qualquer caso deve ser analisado se houve desvio de finalidade na execução do meio de obtenção de prova. Eugênio Pacelli cita um exemplo interessante em que o desvio se caracteriza, razão pela qual as provas são ilícitas.

Quando, na investigação de um crime contra a fauna, por exemplo, agentes policiais, munidos de mandado judicial de busca e apreensão, adentram em determinada residência para o cumprimento da ordem, espera-se, e mesmo exige-se (art. 243, II, CPP), que a diligência se realize exclusivamente para a busca de animais silvestres. Assim, se os policiais passam a revirar as gavetas ou armários da residência, é de se ter por ilícitas as provas de infração penal que não estejam relacionadas com o mandado de busca e apreensão. Em semelhante situação, como é óbvio, o local revistado jamais abrigaria o objeto do mandado judicial.

A descoberta fortuita de provas não é incomum nas buscas e apreensões em domicílio, seja em razão de mandado ou de flagrante delito, e nas interceptações telefônicas.

No caso de cumprimento de mandado de busca e apreensão o art. 243, II, do Código de Processo Penal exige que no mandado conste o motivo e os fins da diligência, não devendo estes serem desvirtuados quando de seu cumprimento. Não deve haver desvio de finalidade na realização da diligência, sob pena dos elementos probatórios se tornarem ilícitos.

Em que pese a busca e apreensão decorrente de flagrante delito não ser precedida de mandado, aplica-se o mesmo raciocínio do cumprimento do mandado de busca e apreensão, pois o policial ao entrar em uma residência em razão de flagrante delito tem um fim específico que não pode ser desvirtuado, sob pena de incorrer em desvio de finalidade na execução do meio probatório e as provas, eventualmente, descobertas, se tornarem ilícitas. Além do mais, ao ingressar em residência em razão de flagrante delito, o policial tem por foco a localização de bens específicos, que é de conhecimento e investigação prévia à entrada, o que autoriza a busca domiciliar sem prévia autorização judicial. Do contrário, seria permitir uma busca completa na residência sem fundamento idôneo para tal.

Exemplo 01: A polícia ingressa legitimamente na residência, após denúncia de disparo de arma de fogo, sendo esta informação confirmada por vizinhos. Durante a busca realizada na residência a polícia poderá procurar somente pela arma de fogo. Como a arma de fogo pode estar guardada ou escondida em qualquer local da casa, será lícito abrir gavetas, armários e procurar por todos os cantos da casa, razão pela qual eventual droga localizada e apreendida, durante essas buscas, será considerada lícita, pois não houve deviso de finalidade na execução da diligência, já que a procura pela arma, logicamente, é o mesmo caminho pela procura de droga. Caso seja encontrada uma arma, é legítimo que os policiais continuem a procurar mais armas, pois não se sabe se o agente possui somente uma arma de fogo na residência ou se essa informação, eventualmente, recebida, é verdadeira. Com isso, é lícita a busca em toda a residência à procura de armas de fogo.

Exemplo 02: A polícia recebe denúncia via COPOM de um agente que está praticando tráfico de drogas em sua residência, momento em que a guarnição policial se desloca e visualiza à distância o agente vendendo drogas para usuários e uma movimentação incomum, sendo confirmado por vizinhos que o local é ponto de tráfico, o que é filmado pela polícia que decide ingressar na residência sem mandado. Como as drogas podem estar guardadas em qualquer local da casa, será legítima a busca em todos os cômodos e móveis e eventuais armas apreendidas serão lícitas, pois não haverá desvio de finalidade na realização da diligência.

Exemplo 03: Tendo como parâmetro o exemplo de Eugênio Pacelli, quando os policiais ao realizarem diligências obtêm um mandado de busca e apreensão para buscar e apreender, exclusivamente, animais silvestres e passam a, na execução do mandado, revirar as gavetas ou armários da residência, é de se ter por ilícitas as provas de infração penal que não estejam relacionadas com o mandado de busca e apreensão, pois houve desvio de finalidade no cumprimento do mandado, pois é óbvio que o local revistado jamais abrigaria o objeto do mandado judicial.

Exemplo 04: A polícia realiza diligência e obtém na justiça um mandado de busca e apreensão, especificamente, para apreender um determinado veículo ou um avião de pequeno porte em uma Fazenda. Durante o cumprimento do mandado os policiais decidem adentrar na residência e realizam buscas que resultam na localização de armas e drogas. Como houve desvio de finalidade por não ser o objeto do mandado, as buscas são ilícitas e as provas produzidas não possuem validade.

Exemplo 05: Policiais investigam agentes que pertence à organização criminosa de sequestro de crianças e consegue descobrir a residência em que encontra-se uma criança que fora sequestrada há poucos dias e está na iminência de ser enviada para o exterior. Visando prender em flagrante e cessar a conduta criminosa e salvar a criança, os policiais decidem, em razão do flagrante delito, ingressar na residência, sem mandado, e localizam a criança, até porque pedir um mandado, nessas circunstâncias, pode fulminar o princípio da oportunidade e a criança ser levada da casa e não mais encontrada. Em um primeiro momento pode-se pensar que a finalidade pretendida pelos policiais foi atingida, afinal de contas a criança já foi localizada e os agentes presos. Ocorre que nesses casos envolvendo organizações criminosas é comum que além do objeto principal do crime praticado pela organização haja diversos outros crimes, como tráfico de drogas, porte ilegal de arma de fogo e documentos falsos, razão pela qual é razoável entender que a busca domiciliar em toda a casa é lícita, pois não há desvio de finalidade, já que é inerente às organizações criminosas a prática de uma pluralidade de crimes.

Exemplo 06: A justiça autoriza a prisão de um agente, sendo este preso dentro da residência. Como no mandado não consta autorização para a realização de busca domiciliar, eventuais buscas serão consideradas ilícitas, pois o ingresso na residência legitima-se exclusivamente para efetuar a prisão do agente e eventuais buscas caracterizam desvio de finalidade. Por outro lado, caso os policiais possuam informações fidedignas e documentadas de que na casa há objetos ilícitos, como armas e drogas, será lícita a busca domiciliar.

Exemplo 07: A justiça autoriza o cumprimento de mandado de busca e apreensão para apreender, exclusivamente, documentos falsos. Como documento falso pode estar em qualquer local da residência, eventual apreensão de arma e droga durante a busca será lícita, pois não terá ocorrido desvio de finalidade.

Exemplo 08: A justiça autoriza o cumprimento de mandado de busca e apreensão para apreender gados que foram furtados de uma Fazenda. Durante a diligência os policiais decidem adentrar à residência e dar buscas em gavetas e armários, ocasião em que localizam drogas e armas. A busca foi ilícita, pois houve desvio de finalidade. Obviamente, gados não são encontrados dentro da casa, muito menos em gavetas e armários. Portanto, as drogas e armas apreendidas não possuem validade probatória.

Exemplo 09: É determinada a busca e apreensão de um quadro em uma determinada residência. Esse quadro foi objeto de furto e tem valor econômico, contudo a pessoa que sofre a diligência não o furtou, mas o adquiriu (receptação) por preço bem aquém do verdadeiro valor. A polícia, ao adentrar na residência, já se depara com o quadro pendurado na parede da sala, contudo, resolve abrir armários e gavetas em busca de outros crimes, ocasião em que é encontrada uma arma de fogo de uso restrito. A decisão de busca somente autorizou a apreensão do quadro, logo, a conduta consistente em abrir gavetas e armários não é lícita, pois houve desvio de finalidade. Desse modo, a descoberta da arma de fogo não pode servir como prova idônea aplicada para que o agente responda pelo crime do art. 16, da Lei nº 10.826/03, a não ser se provado que seria descoberto o crime de qualquer modo (Teoria da Descoberta Inevitável), como a hipótese em que retiram o quadro da parede a atrás deste estava a arma ilegal. O policial não deve fazer vista grossa. Se, dentro de seu campo de visão, ao entrar na residência visualizar qualquer ilegalidade, deverá atuar, como decorrência da teoria da descoberta inevitável. O policial possui a obrigação de atuar nos casos de flagrante delito e o ingresso na residência foi legítimo, razão pela qual, nestes casos, não há ilegalidade em apreender bens visualmente perceptíveis e que sejam produtos de crime, como armas e drogas. Não se pode é haver desvio de finalidade, o que ocorreria a partir do momento em que abrisse gavetas.

Exemplo 10: A justiça expede mandado de prisão de um traficante. A polícia chega à residência deste e efetua a prisão imediatamente. Como os policiais não possuem mandado de busca e apreensão, poderão realizar buscas por drogas ilícitas na residência? Certamente, haverá dois entendimentos. O primeiro sustentará pela impossibilidade, já que não havia mandado de busca e apreensão nem situação caracterizadora de flagrante delito que autorizasse a busca domiciliar. O segundo sustentará a possibilidade da realização de busca, em que pese não haver mandado de busca e apreensão, pois é da natureza desses crimes que haja drogas dentro da casa de traficantes. Na prática, com os grandes traficantes, geralmente, não são encontradas drogas. Gerenciam todo o comércio de tráfico a distância. O primeiro entendimento deve prevalecer, pois não é possível partir de suposições, sem elementos concretos, de que há situação de flagrante delito em razão da “fama”4 do agente ou da vida pregressa, como já decidido pelo Superior Tribunal de Justiça, além do STF exigir fundadas razões5 da ocorrência de flagrante delito para a realização de buscas domiciliar sem que haja prévia autorização judicial.

4. É legítima busca domiciliar forçada realizada por policiais militares que sentem cheiro de maconha. No caso concreto os policiais foram autorizados a entrar na casa pelo agente que buscava documento de identidade para apresentar aos policiais, momento em que foi sentido o forte cheiro de maconha, o que somado ao nervosismo do agente, legitimou o ingresso na residência.

Os policiais perceberam o nervosismo do paciente e ao chegarem à residência, já sentiram um forte odor de maconha, razão pela qual fizeram a busca dentro da residência. No caso concreto os policiais foram autorizados a entrar na casa pelo agente que buscava documento de identidade para apresentar aos policiais, momento em que foi sentido o forte cheiro de maconha, o que somado ao nervosismo do agente, legitimou o ingresso na residência. AgRg no HC 423.838/SP, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, j. 08/02/2018.

Caso concreto

O indivíduo foi abordado na rua, contudo, como não portava seus documentos pessoais, juntamente com os policiais, se dirigiu à sua residência. No local, a entrada foi franqueada aos policiais que sentiram forte cheiro de maconha e, somado ao nervosismo do agente, foi a razão pela qual realizaram a busca no imóvel, onde localizaram grande quantidade e variedade de substâncias entorpecentes.

Fundamentos da decisão

● Há situação de flagrante na medida em que o crime de tráfico de drogas é crime permanente, ou seja, que se prolonga no tempo, razão pela qual se dispensa o mandado judicial, sendo legítimo o ingresso por policiais militares em decorrência do estado de flagrância, que foi caracterizado pelo forte odor de maconha.

Comentários

A maconha armazenada, sobretudo se estiver em grande quantidade, possui um odor bem característico, sendo possível que o seu cheiro ultrapasse o ambiente. Nesse caso há um elemento concreto, na medida em que o cheiro da substância confirma a informação de que naquele local ela é armazenada.

Em que pese o cheiro característico da droga, em outro caso em que uma cadela constatou a presença de drogas, o que resultou no ingresso de policiais na residência, a apreensão das drogas foi considerada ilícita.6 Essa decisão será estudada adiante. Fato é que o cão possui uma capacidade de identificar drogas com muito mais precisão do que o ser humano, no entanto as provas foram invalidadas.

No dia a dia da atuação policial não é recomendável que os policiais ingressem na residência com fundamento, exclusivamente, no cheiro da droga. Apesar de haver essa decisão do Superior Tribunal de Justiça, as decisões mais recentes têm demonstrado cada vez mais que o STJ realiza uma interpretação bem restritiva das situações que permitem o ingresso da polícia em residência em situação de flagrante delito, sem autorização judicial, tanto é que após a decisão que chancelou como legal o ingresso de policiais com base no cheiro da maconha sentido por policiais, entendeu ser ilegal o ingresso com base no cheiro da droga sentido por um cão farejador.

De qualquer forma, sendo o cheiro bem forte e característico é prudente que os policiais, caso decidam entrar, procurem arrolar testemunhas não policiais para darem um maior respaldo probatório à atuação. Não que a palavra do policial não tenha validade, mas na justiça, certamente, haverá questionamentos e havendo testemunhas não policiais que confirmem o cheiro da droga, mais elementos haverá para comprovar as alegações.

Não obstante seja prudente arrolar testemunhas não policiais, é necessário esclarecer que testemunhas não policiais têm muito medo de deporem contra traficantes e podem não conhecer também o cheiro da maconha. Como não é possível registrar o cheiro da droga por qualquer meio que não seja por pessoas, um relato detalhado de todas circunstâncias (local, palavra dos vizinhos, acompanhamento da movimentação, denúncias etc.) colaborá para o êxito da ocorrência.

5. Denúncia de traficância via COPOM, associada a atitude suspeita e emprego de fuga do acusado autoriza o ingresso forçado em domicílio.

O agente teve o domicílio violado, porquanto teria enveredado, em fuga, para dentro do imóvel, sendo que os agentes policiais se encontravam em ronda de rotina em local conhecido pelo tráfico de drogas, quando viu o suposto agente em atitude suspeita. A entrada no domicílio do indivíduo ocorreu em seguida à fuga para dentro do imóvel. Ocorre que os agentes policiais não estavam lá por eventualidade, eis que teriam recebido denúncia via “COPOM” de que naquela residência acontecia tráfico de drogas, supostamente, realizado por pessoa conhecida no meio policial, havendo inclusive a preocupação em se determinar possíveis agentes envolvidos, tendo sido indicado o indivíduo de cognome “Porco”.

Verifica-se, assim, que a exceção ao postulado da inviabilidade do domicílio ocorreu em razão de denúncia via “COPOM”, acerca da ocorrência de tráfico, dando conta de que indivíduo de alcunha “Porco” se encontraria em residência determinada, em poder de substância entorpecente, o que motivou o deslocamento da força policial até o local, quando se deparou com o agente em atitude suspeita, que chegou a receber ordem de parada pelos policiais, contudo teria se deslocado em fuga, ou seja, a conjunção de fatores contribuíram a dar suporte as fundadas razões para entrada no domicílio.
STJ, AgRg no HC 607.601/SP, Rel. Ministro Felix Fischer, 5ª Turma, j. em 27/10/2020.

Caso concreto

A guarnição policial tomou conhecimento, via COPOM, de que um indivíduo se encontrava em residência, em poder de substância entorpecente, o que motivou o deslocamento da força policial até o local. A entrada no domicílio foi franqueada pela esposa do autor do fato.

Fundamentos da decisão

  • A entrada no domicílio se deu, após fuga do acusado para dentro da residência, em decorrência de denúncia via COPOM de que naquela residência acontecia tráfico de drogas, supostamente realizado por pessoa conhecida no meio policial, além da possibilidade de envolvimento de agentes estatais.

Comentários

Neste julgado o Superior Tribunal de Justiça fez uma distinção com o caso julgado no HC 585.150, pelo próprio STJ, para afastar o entendimento aplicado anteriormente.

No HC 585.150 o agente teve o domicílio violado, pois teria fugido para dentro de sua casa e os policiais se encontravam em ronda de rotina, em local conhecido pelo tráfico de drogas, momento em que visualizou o agente em atitude suspeita. No HC 607.601 o ingresso dos policiais na residência também ocorreu em seguida à fuga do agente para dentro do imóvel, ocorre que os agentes policiais não estavam lá por eventualidade, eis que teriam recebido denúncia via COPOM de que naquela residência acontecia tráfico de drogas, supostamente, realizado por pessoa conhecida no meio policial, havendo inclusive a preocupação em se determinar possíveis agentes envolvidos, tendo sido indicado o indivíduo de cognome “Porco”.

Verifica-se que o traço distintivo reside no fato dos policiais terem se deslocado em direção à residência do agente após receber um comunicado do Centro de Operações da Polícia Militar, portanto, não estavam ali eventualmente, já que tinham informações do COPOM que havia tráfico de drogas em determinada residência.

É importante destacar que as denúncias repassadas ao COPOM assemelham-se aos casos de denúncia anônima, pois não se tem como certificar quem é a pessoa que ligou 190 e realizou a denúncia. Em se tratando de denúncia anônima o STJ possui jurisprudência que não serve – se não houver investigação prévia – para legitimar o ingresso forçado em residência, ainda que em contexto de fuga do agente após visualizar os policiais. Nesse sentido:

A existência de denúncia anônima da prática de tráfico de drogas somada à fuga do acusado ao avistar a polícia, por si sós, não configuram fundadas razões a autorizar o ingresso policial no domicílio do acusado sem o seu consentimento ou sem determinação judicial.

RHC 89.853-SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, Quinta Turma, j. em 18/2/2020.

HC 610.403/MS, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, j. em 06/10/2020.

6. Investigação inicial de crimes de receptação e falsidade ideológica e posterior suspeita de prática de traficância confirmada por agentes da Divisão Estadual de Narcóticos, que foram visualizadas ao se deslocarem à residência, legitimam o ingresso forçado em domicílio.

No bojo de inquérito policial que apurava a prática dos delitos de receptação e falsidade ideológica, a equipe de investigação obteve a informação de que o agente também praticava o tráfico de drogas. A existência da suspeita foi confirmada por agentes da Divisão Estadual de Narcóticos, sendo informado, ainda que se dedicava, principalmente, à comercialização de maconha prensada. Posteriormente, colaboradores não orgânicos comunicaram à autoridade policial que teria alugado um apartamento apenas para o armazenamento de drogas. Na ocasião, também foi fornecida a localização do imóvel. Desse modo, ante a existência de informações sobre possível prática de crime de tráfico de drogas no referido apartamento, os policiais se dirigiram até o local, para averiguação. Embora não tenham sido atendidos ao baterem à porta do imóvel, os policiais perceberam que esta encontrava-se apenas encostada. Ao abri-la, visualizaram uma grande quantidade de fardos de maconha prensada. Somente então os policiais acessaram o interior da residência, na qual lograram encontrar além da elevada quantidade de drogas, balanças de precisão e caderno com anotações relativas à comercialização de drogas, o que corroborou as suspeitas e notícias dos ilícitos, justificando, assim, o ingresso no apartamento.

Quanto à tese de que o ingresso da autoridade policial no domicílio se deu mediante arrombamento, ficou demonstrado, pelas instâncias ordinárias, que, após se dirigirem ao apartamento e não serem atendidos, os policiais verificaram que a porta encontrava-se apenas encostada. Ao empurrá-la, visualizaram uma grande quantidade de drogas e, então, adentraram na residência, logrando encontrar os entorpecentes e os objetos já mencionados.

STJ, AgRg no HC 610.828/SE, Rel. Ministro Felix Fischer, 5ª Turma, j. em 27/10/2020.

Caso concreto

Determinado agente era investigado pelos crimes de tráfico de substância entorpecente e receptação. Durante as investigações, levantou-se a suspeita de que o agente exercia a traficância de substância entorpecente, fato que foi confirmado pela Divisão Estadual de Narcóticos que indicou, ainda, o local de atuação do agente, bem como ao tipo de maconha comercializada.

No local, os policiais não foram atendidos quando bateram na porta, contudo, percebendo que a porta estava apenas encostada a empurraram, ocasião em que visualizaram grande quantidade de fardos de maconha prensada.

Fundamentos da decisão

● As circunstâncias do caso concreto extraídas do relatório do inquérito policial legitimaram a entrada forçada no domicílio, configurando exceção à garantia constitucional.

● Consta do inquérito policial, que apurava a prática dos crimes de receptação e falsidade ideológica, que a equipe obteve informações da Divisão Estadual de Narcóticos de que o agente também era traficante de drogas, dedicando-se principalmente à comercialização de maconha prensada.

Comentários

Nota-se que a Polícia Civil lá tinha uma investigação sólida em andamento, de forma que enquanto os crimes de receptação e falsidade ideológica eram investigados, a Divisão de Narcóticos tinha conhecimento do exercício da traficância pelo agente, inclusive do tipo de droga que comercializada. Essa investigação por parte da autoridade de polícia judiciária atende à prévia investigação exigida pelo STJ com o fim de legitimar o ingresso de policiais em residências nas hipóteses de flagrante delito.

Além do mais, percebe-se que os policiais visualizaram a droga do lado de fora do apartamento, uma vez que a porta não estava trancada e ao a empurrarem foi possível perceber visualmente uma grande quantidade de droga.

Há dois fatores importantes nesse caso e que justificam o ingresso. 1º) Investigação em andamento com elementos probatórios que identificam ser o agente autor de tráfico de drogas e que estas encontram-se armazenadas na residência; 2º) Situação clara e comprovada de flagrante delito dentro da residência, a partir do momento em que os policiais, sem adentrar, visualizaram a droga dentro da casa. Isto é, não houve o fator “sorte”, mas intelectual, estratégico e investigativo decorrente do trabalho policial.

7. Agente encontrado no telhado se desfazendo das drogas autoriza o ingresso forçado em domicílio.

Não se verifica ilegalidade quanto à inviolabilidade de domicílio quando for constatado que os policiais, após o recebimento de denúncia anônima, realizaram diligências para a apuração dos fatos narrados, dirigindo-se ao endereço apontado, no qual, enquanto aguardavam autorização para a entrada no local, avistaram o agente em atitude suspeita, em cima do telhado tentando se desfazer das drogas, tendo os policiais somente ingressado no imóvel após haver fundadas suspeitas da prática do tráfico de drogas na residência.

STJ, EDcl no RHC 129.923/MG, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, 6ª Turma, j. em 06/10/2020.

Caso concreto

Após recebimento de denúncia anônima, os policiais realizaram diligências para a apuração dos fatos narrados, dirigindo-se ao endereço indicado, no qual, enquanto aguardavam autorização para entrada, avistaram o agente em atitude suspeita, em cima do telhado tentando se desfazer das drogas.

Fundamentos da decisão

  • Não se constata ilegalidade no ingresso em domicílio na hipótese em que a entrada só ocorreu após fundadas suspeitas da prática de tráfico de drogas na residência, demonstrada pelo fato do agente ser flagrado pelos policiais em cima do telhado se desfazendo das drogas.

Comentários

No caso a denúncia anônima não foi isolada, pois as informações foram confirmadas pelos policiais ao chegarem no local e avistarem o agente descartando a droga pelo telhado da residência. O descarte de droga é suficiente para indicar a traficância no local e a justa causa para o ingresso no domicílio. De igual modo, não se revela adequado exigir maiores investigações, na medida em que o agente estava descartando a droga e a ausência de ação imediata por parte da polícia inequivocamente frustraria a apreensão da droga e a prisão do agente, o que acabaria por fulminar o princípio da oportunidade na atividade policial. Além do mais, no crime de tráfico de drogas, a ausência da apreensão das drogas acaba por inviabilizar a persecução penal contra o agente.

8. Denúncia anônima associada à fuga de agentes, que portavam arma de fogo e rádios comunicadores, e relato de usuários que o local é ponto de venda e consumo de drogas, legitima ingresso forçado em domicílio.

A fuga de suspeitos em direção à residência, os quais possuíam arma de fogo e rádios comunicadores, bem como o relato de usuário de drogas, confirmando que ali funcionava um local de venda e consumo de drogas, legitimou a entrada dos policiais no domicílio, ainda que sem autorização judicial, pois devidamente justificada pelas fundadas razões referidas.

STJ, HC 500.101/RS, Rel. Ministro Reynaldo Soares Da Fonseca, 5ª Turma, j. em 11/06/2019.

Caso Concreto

Os policiais estavam em patrulhamento de rotina quando receberam a informação de ocorrência de tráfico no local, para onde se dirigiram e lá avistaram duas mulheres sentadas num banco, no lado oposto, estavam um homem no portão e um adolescente no pátio, o qual, ao visualizar a polícia, tentou empreender fuga para o interior da residência.

Realizada a abordagem nas mulheres, uma portava arma de fogo, ao passo que a outra portava um rádio comunicador. No mesmo instante foram abordados o homem e o adolescente infrator que também possuíam rádio comunicador e arma de fogo.

No interior do imóvel estavam outras mulheres em volta de uma mesa sobre a qual existia grande quantidade de drogas e artefatos bélicos. Nos demais cômodos da residência foram encontrados outros artefatos bélicos e mais substâncias entorpecentes.

Fundamentos da decisão

  • As circunstâncias do caso concreto consistente em (a) denúncia anônima sobre a traficância no local; (b) fuga de suspeitos em direção à residência, os quais possuíam arma de fogo e comunicadores e (c) relato de usuário de drogas, confirmando que no local funcionava boca de fumo, são suficientes para autorizar o ingresso forçado em domicílio.
  • O caráter permanente do crime de tráfico autoriza a prisão em flagrante, o que legitima o ingresso no domicílio ainda que sem autorização judicial.
  • A residência funcionava como boca de fumo, onde são armazenadas e vendidas substâncias entorpecentes, o que significa dizer que a todo momento o crime é praticado nas modalidades “ter em depósito” e “guardar”.

Comentários

Nesse caso existiam elementos suficientes para indicar a traficância. Os agentes foram abordados portando arma de fogo e rádios comunicadores, o que somado à denúncia anônima, ao local conhecido como boa de fumo e fuga de suspeitos em direção à residência, tornaram-se elementos suficientes para a abordagem e posterior ingresso forçado no domicílio.

Observa-se do julgado que havia certa estrutura na atividade desempenhada, afinal, portavam arma de fogo e rádios comunicadores.

Embora o STJ, na maioria dos julgados, sustente a exigência de investigação preliminar, essa não é imprescindível se há elementos concretos suficientes para indicar a guarda ou depósito da substância em residência, como aconteceu nesse caso concreto.

9. Denúncia anônima, associada à fuga e descarte de droga autorizam o ingresso forçado.

No caso em exame, a justa causa para a adoção da medida de busca e apreensão sem mandado judicial evidencia-se no fato de que os policiais militares, impulsionados por denúncia anônima sobre a ocorrência de comércio de drogas, foram até o local onde se encontrava o réu que, de pronto, tentou empreender fuga, lançando uma sacola de plástica sobre a laje da casa em que estava, na qual foram encontrados 26 microtubos de cocaína e 4 porções de maconha.

STJ, AgRg no HC 516.746/SP, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, 5ª Turma, j. em 15/08/2019.

Caso concreto

Após denúncia anônima de ocorrência de tráfico de drogas, os policiais se dirigiram ao local onde se encontrava um indivíduo que tentou empreender fuga e, no ato, descartou sacola plástica sobre a laje da casa, na qual continha substâncias entorpecentes.

Fundamentos da decisão

  • A justa causa para a adoção da medida de busca e apreensão sem mandado judicial evidencia-se no fato de que os policiais militares, após denúncia anônima sobre a ocorrência de comércio de drogas, foram até o local onde se encontrava o indivíduo que, de pronto, tentou empreender fuga, lançando uma sacola de plástica sobre a laje da casa em que estava, na qual foram encontrados 26 micro tubos de cocaína e 4 porções de maconha.
  • A natureza permanente do crime de tráfico, diante da justa causa apresentada não configurou ilegalidade no ingresso forçado.

Comentários

Essa hipótese diferencia-se das demais nas quais só temos a denúncia anônima associada à fuga. Neste caso há um fator relevante, consistente no fato de que, naquele momento, o agente estava na posse de drogas, pois as arremessou sobre a laje, o que concedeu maior segurança jurídica para a atuação policial, ainda que sem autorização judicial.

10. Bar não se enquadra no conceito de domicílio, ainda que por extensão.

As drogas encontradas pelos policiais militares no bar do Paciente (dentro de uma bolsa próxima ao balcão), ou seja, em local aparentemente aberto ao público, não se enquadra no conceito de domicílio, ainda que por extensão.

STJ, HC 468.968/PR, Rel. Ministra Laurita Vaz, 6ª Turma, j. em 07/05/2019.

Caso concreto

Os policiais avistaram o agente em atitude suspeita em frente a um bar junto a uma residência, o que motivou a entrada no local onde encontraram uma bolsa no balcão, a qual continha substâncias entorpecentes.

Fundamentos da decisão

  • As drogas foram encontradas pelos policiais militares no bar do agente dentro de uma bolsa que estava próxima ao balcão, ou seja, em local aparentemente aberto ao público que não se enquadra no conceito de domicílio.
  • De acordo com a doutrina do professor Guilherme de Souza Nucci, “as áreas abertas ao público podem ser objeto de busca e, porventura, de apreensão de algo interessante à investigação”.

Comentários

Nesse caso, interessante comentar aqui a tese da defesa de que o bar era a residência do paciente e que naquele momento estava tendo uma festa (chá de fraldas) do proprietário. O STJ não entrou nesse mérito, pois entendeu que isso exigiria o exame probatório, o que é incabível em sede de Habeas Corpus.

É importante esclarecer que, de acordo com o art. 150, §4º do Código Penal, casa compreende o compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade. Trata-se de hipótese que contempla o espaço de trabalho, com vista a assegurar a necessária tranquilidade para o desempenho das funções.

Nos locais de trabalho, seja público ou privado, pois a lei não distingue, o espaço fechado ao público é considerado “casa” e possui proteção constitucional. Dessa forma, considera-se “casa” a parte interna de um barzinho ou restaurante (dentro do balcão); o consultório médico na área que o médico atende (a sala de espera é aberta ao público); o escritório de advocacia; o gabinete de um juiz, promotor, delegado ou comandante; a parte interna dos cartórios judiciais e extrajudiciais; cozinhas de bares, restaurantes e hotéis, quando não houver o direito de visitar, o que decorre de previsão em lei; as lavanderias e quaisquer espaços fechados ao público em que as pessoas exerçam profissão ou atividade; o local onde as garotas de programa atendem seus clientes em uma casa da prostituição.

Desse modo, se no momento da festa o bar não estava aberto ao público externo, mas atendendo somente a amigos e familiares do proprietário que se encontrava em uma festa particular não seria possível o ingresso dos policiais sem autorização judicial se não houvesse elementos concretos que indicassem a ocorrência de flagrante delito. Isso porque o espaço fechado ao público é considerado “casa” e possui proteção constitucional. 

Diferente seria o caso se o bar estivesse aberto ao público e a bolsa fosse encontrada próxima ao balcão ou sobre ele, o que autorizaria o flagrante.

11. É lícito o ingresso em domicílio no caso em que policiais abordem indivíduo na via pública, em atividade duvidosa, sem documentos e que não saiba responder a perguntas básicas, e que aponte como lugar de moradia uma construção inacabada, sendo em seguida apontado o real endereço por vizinhos.

No caso, os policiais abordaram indivíduo na via pública em atividade duvidosa, sem documentos e que não sabia responder perguntas básicas, que apontou como lugar de moradia uma construção inacabada, o que gerou a fundada suspeita de um comportamento ilícito. Havendo informações de vizinhos do real endereço do abordado, o ingresso na residência estava motivado, independentemente de mandado judicial. No local, houve a prisão em flagrante do paciente e demais corréus com grande quantidade de drogas.

STJ, AgInt no HC 484.111/SP, Rel. Ministro Jorge Mussi, 5ª Turma, j. em 07/02/2019.

Caso concreto

O agente foi abordado pilotando moto com placa de outro estado da federação e não portava documentos, além de fornecer informações pessoais contraditórias que motivaram os agentes a se dirigir até a residência. No local nada foi encontrado. Contudo, na saída, um transeunte informou que o agente residia em outra casa, para onde se dirigiram os policiais que surpreenderam o agente e seu comparsa embalando e preparando cocaína para comercialização.

Fundamentos da decisão

  • Não há irregularidade no ingresso sem prévio mandado em razão da prática do crime de tráfico de entorpecentes que é infração permanente e admite prisão em flagrante a qualquer tempo.
  • O contexto fático da abordagem, conforme relatado no caso concreto, legitimou o ingresso na residência, em razão do flagrante delito.

Comentários

Verifica-se que, nesse caso, a princípio, não fosse pela ausência de documentos, talvez o resultado fosse diferente.

Depreende-se que o que motivou os policiais a se dirigirem à residência do agente foi a ausência de documento enquanto pilotava uma moto com placa de outro estado da federação.

O STJ entendeu suficiente as razões do ingresso, haja vista a informação prestada por transeunte que o agente residia em local diverso daquele apontado por ele. Neste local foi encontrada grande quantidade de entorpecente que indica a traficância.

O STJ no HC 609.982 entendeu ser ilegítimo o ingresso em residência com fundamento em denúncia anônima e em razão de confirmação de vizinho, o que se aproxima deste caso, mas possui como traço distintivo o fato do indivíduo não portar documentos enquanto pilotava a moto e não ter indicado o endereço correto quando solicitado pela polícia, o que, certamente, foi essencial para o STJ considerar o ingresso na residência lícito.

12. Box do tipo self storage não se enquadra no conceito de domicílio. Atenção: Em que pese não ser considerado domicílio, não significa que o ingresso é livre, devendo haver elementos que demonstrem a situação de flagrante delito, sobretudo diante do disposto no art. 22 da Lei n. 13.869/19.

O local onde foram apreendidos os entorpecentes não se enquadra no conceito de domicílio, ainda que por extensão, uma vez que se trata de box, do tipo self storage, locado para fins de guarda de bens ou mercadorias, não merecendo a proteção constitucional elencada no inciso XI da CF, por não configurar ambiente privado no qual haja exercício de profissão ou atividade.

STJ, RHC 86.561/SP, Rel. Ministro Antonio Saldanha Palheiro, 6ª Turma, j.em 21/08/2018.

Caso concreto

Auditores da receita federal se dirigiram a uma empresa de locação de boxes para fiscalização. Após ingresso no local, foi fornecido à auditora uma lista de locatários e, de imediato, passou a fiscalizar os boxes. A ação tinha por objetivo fiscalizar mercadorias e durante o ato observaram que três boxes estavam em nome de pessoa física, contudo, armazenavam mercadorias, o que levantou a suspeita da equipe face a proibição, já que mercadorias devem estar em nome de pessoas jurídicas. Após informações prestadas pela funcionária do estabelecimento, a equipe resolveu abrir um dos boxes ocasião em que encontraram em seu interior substâncias que aparentavam ser entorpecentes como ecstasy e lança-perfume, além de anabolizantes, medicamentos e suplementos alimentares.

Fundamentos da decisão

  • O crime de tráfico de entorpecentes é delito permanente que dispensa o mandado de busca e apreensão para ingresso forçado em domicílio.
  • O STF firmou entendimento, em sede de repercussão geral no RE nº 603.616/RO, de que o ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial apenas se revela legítimo quando amparado em fundadas razões devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso concreto, que indiquem que naquele momento há situação de flagrante delito no interior da residência.
  • O local da diligência era box utilizado para comércio ou guarda de objetos, que não se considera compartimento privado no qual alguém exerce profissão ou atividade.
  • A fiscalização era rotineira e a descoberta se deu fortuitamente em razão de suspeita levantada acerca do tipo de mercadoria guardada nos boxes alugados com imediata requisição de acompanhamento pela polícia militar e pelo DENARC.

Comentários

Box Self Storage consiste em um espaço, geralmente, alugado para a guarda de bens. Tome como exemplo uma pessoa que trabalha de casa, mas não tem onde guardar os produtos de seu comércio. Ela decide alugar um box self storage para guardar os bens, o que pode ocorrer quando uma pessoa se muda para uma casa menor, mas também não tem espaço para guardar alguns móveis. O mercado de self storage tem crescido no Brasil. Self Storage significa “armazenamento pessoal”.

O Superior Tribunal de Justiça decidiu que o box do tipo self storage não se enquadra no conceito de domicílio.

Fundamentou que “embora alegue a defesa a ilicitude dos elementos de prova colhidos, ao argumento de que houve violação à garantia da inviolabilidade de domicílio comercial do recorrente, não há que se falar em domicílio. Isso porque o local onde foram apreendidos os entorpecentes não se enquadra no conceito de domicílio, ainda que por extensão, uma vez que se trata de box, do tipo self storage, locado para fins de guarda de bens ou mercadorias, não merecendo a proteção constitucional elencada no inciso XI da CF, por não configurar ambiente privado no qual haja exercício de profissão ou atividade.”

No caso concreto auditores da Receita Federal durante a fiscalização localizaram entorpecentes como ecstasy e lança-perfume, além de anabolizantes, medicamentos e suplementos alimentares, sendo a Polícia Militar acionada.

Portanto, é possível que policiais realizem buscas em box self storage, ainda que não haja autorização judicial. De qualquer modo a busca indiscriminada, sem que haja um mínimo de elementos que justifique, não deve ocorrer. Em que pese não ser considerado “casa” para fins de proteção à inviolabilidade, como regra, qualquer medida invasiva, inclusive, abordagem policial, deve haver elementos mínimos (fundada suspeita). No caso pode-se falar em uma exigência inferior para ingressar em um box self storage, se comparado a uma residência.

Diante do conceito de casa como compartimento habitado ou não aberto ao público onde alguém exerce profissão ou atividade, depreende-se que o box “self storage” embora tenha por objetivo armazenar objetos pessoais ou inerentes à atividade empresarial não se inclui no conceito de casa, na medida em que não é extensão da residência, pois é locado para fins de guarda de bens ou mercadorias, não merecendo a proteção constitucional elencada no inciso XI da CF, por não configurar ambiente privado no qual haja exercício de profissão ou atividade.

A situação seria diversa se fosse um depósito localizado dentro do terreno onde também se situa a residência da pessoa, nesse caso, o depósito seria extensão da casa.

Desse modo, de fato, não houve ilegalidade, especialmente diante da suspeita levantada quanto ao tipo de material armazenado e pelo fato de pessoa física armazenar, em nome próprio, mercadoria, o que motivou os agentes federais a abrirem o box.

É importante consignar que o art. 22 da Lei n. 13.869/19 considera crime de abuso de autoridade o ato de invadir ou adentrar, sem os requisitos legais, imóvel alheio ou suas dependências.

Art. 22.  Invadir ou adentrar, clandestina ou astuciosamente, ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel alheio ou suas dependências, ou nele permanecer nas mesmas condições, sem determinação judicial ou fora das condições estabelecidas em lei:

Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. (destaque nosso)

O Box Self Storage encaixa-se no conceito de um imóvel alheio, ainda que não utilizado para fins residenciais. Por ser um imóvel com destinação social e utilizado por quem loca deve receber a proteção da inviolabilidade, dado o direito a privacidade (art. 5º, X, da CF). Por não ser considerado casa, certamente, haverá um menor rigor quanto às exigências para ingressar no box e realizar buscas. De qualquer forma, os ingressos devem ocorrer somente nas hipóteses em que houver fundamentos concretos, como o caso de flagrante delito.

Destaco que o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que a falta de autorização judicial não invalida busca em imóvel desabitado, pois “a proteção constitucional de que goza a propriedade privada, ainda que desabitada, não se verifica nulidade na busca e apreensão efetuada por policiais, sem prévio mandado judicial, em apartamento que não revela sinais de habitação, nem mesmo de forma transitória ou eventual, se a aparente ausência de residentes no local se alia à fundada suspeita de que tal imóvel é utilizado para a prática de crime permanente (armazenamento de drogas e armas), o que afastaria a proteção constitucional concedida à residência/domicílio.”7

Nota-se que a ocupação do imóvel e o grau de intimidade e privacidade afetados parecem ser sopesados pelo Superior Tribunal de Justiça ao analisar o rigor para o ingresso em imóveis sem mandado judicial.

A seguir analisaremos os julgados nos quais o Superior Tribunal de Justiça entendeu pela ilegalidade do ingresso.

1. Denúncia anônima confirmada por vizinho desacompanhada de investigação preliminar não legitima o ingresso em domicílio.

Denúncias de origem não identificada, que por si não servem de qualquer modo como prova, e o subsequente ingresso imediato no domicílio, sem quaisquer diligências investigatórias adicionais prévias, não cumprem ao requisito de fundamentos razoáveis da existência de crime permanente dentro do domicílio.

STJ, HC 609.982/RS, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, 6ª Turma, j. em 15/12/2020.

Caso Concreto

A polícia recebeu informações anônimas de que numa determinada residência existiam armas de fogo e drogas armazenadas, o que foi confirmado por uma vizinha próxima da residência. Os policiais cercaram o local e, sem mandado judicial, adentaram na residência, ocasião em que apreenderam entorpecentes e uma arma de fogo que foi descartada pela janela pelo flagrado.

Fundamentos da decisão

  • A jurisprudência do STJ é no sentido de que são exigíveis fundamentos razoáveis da existência de crime permanente para justificar o ingresso desautorizado na residência do agente.
  • O deslocamento da guarnição se deu em denúncias de origem não identificadas que, por si só, não servem como prova e, ato contínuo, adentraram na residência.
  • A invasão se deu em razão de informação anônima, desprovida de diligências investigatórias, que impede admitir a validade do ingresso.
  • A anterior denúncia anônima de existência de drogas e armas no imóvel, sem prévia realização de investigações preliminares e ausência de elementos concretos que confirmem a suspeita, não são suficientes para legitimar o ingresso, sendo ilícitas as provas obtidas com a invasão sem indicação de fundadas razões.

Comentários

No caso objeto deste julgado, restou apurado que o ingresso se deu exclusivamente com base em denúncia anônima, o que para o STJ não é suficiente para legitimar a invasão.

É certo que muitas investigações se iniciam com base em denúncias anônimas e a jurisprudência do STJ e do STF admitem que não há ilegalidade em iniciar investigações preliminares com base em denúncia anônima.

Da mesma forma que se exige investigações preliminares para fundamentar a instauração de inquérito policial, o policial deve levantar informações sólidas no sentido de que dentro da residência ocorre situação de flagrante delito. Para o STJ a simples confirmação da vizinha não foi suficiente para junto com a denúncia anônima autorizar o ingresso.

Logo, não houve fundadas razões para o ingresso do domicílio. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça cada vez mais tem se consolidado pela impossibilidade da polícia ingressar na residência se não houver investigação policial prévia que forneça elementos concretos da prática de crime dentro da residência, como filmagens e campanas de movimentação atípica na residência (venda de drogas), audição de testemunhas, abordagem de um usuário que confirme ter comprado drogas em determinada residência (o que é difícil de afirmar, em razão do medo do traficante), dentre outras. O STJ destaca que não se exige diligências profundas, mas sim breve averiguação, o que pode ocorrer com um dos exemplos acima citados.8

Diante desse contexto, é importante que quando a Polícia Militar receber denúncia anônima e não conseguir obter maiores informações que demonstrem concretamente haver a prática de crime dentro da residência, compartilhe a denúncia anônima com a Polícia Civil para que realize a investigação policial.

Por óbvio há casos e casos e se o flagrante dentro da residência estiver bem caracterizado a Polícia Militar deve atuar prontamente, sob pena de fulminar o princípio da oportunidade e todo objeto ilegal, como armas e drogas que seriam apreendidas, não serem mais encontrados.

A vibração policial em efetuar a prisão de criminosos perigosos para a sociedade em flagrante delito e apreender armas e drogas, em que pese ser um ponto positivo, por demonstrar compromisso e envolvimento com o trabalho e com a sociedade, pode acabar por resultar na perda da apreensão desses objetos ilícitos, como decorrência da ilegalidade no ingresso domiciliar e, consequentemente, na impunidade, em razão da absolvição do agente preso pela polícia.

Além do mais, um trabalho conjunto feito entre a Polícia Militar e a Polícia Civil somente gerará dividendos para a sociedade, na medida em que a PM repassará as informações e a Polícia Civil poderá investigar e decidir o melhor momento, sob o ponto de vista investigativo, da atuação policial, o que possibilitará ampliar o número de prisões de agentes envolvidos, bem como a localização de uma maior quantidade de drogas e armas, enquanto que a ausência de comunicação entre as instituições pode levar à frustração das diligências realizadas pela autoridade de polícia judiciária que poderá estar investigando um agente por tráfico de drogas e aguarda o melhor momento para atuar, na certeza do flagrante ou mediante pedido de autorização judicial, o que pode ser interrompido por uma ação antecipada da Polícia Militar, que atuou de boa-fé, com o intuito de somar, de combater e de prevenir o crime. Às vezes a autoridade de polícia judiciária possui informações da prática de um tráfico de drogas, está investigando o caso e planeja atuar em um determinado dia, pois sabe que neste dia planejado chegarão drogas e haverá uma possibilidade maior de efetuar a prisão de mais agentes do tráfico. A comunicação, cooperação e parceria entre as instituições é o melhor caminho para a repressão e prevenção.

2. Denúncia anônima seguida de fuga do acusado para dentro da residência não legitima o ingresso em domicílio.

Entende-se mais adequado com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal o entendimento que exige a prévia realização de diligências policiais para verificar a veracidade das informações recebidas (ex: “campana que ateste movimentação atípica na residência”). Não se está a exigir diligências profundas, mas sim breve averiguação, como, por exemplo, “campana” próxima à residência para verificar a movimentação na casa e outros elementos de informação que possam ratificar à notícia anônima.

STJ, RHC 89.853/SP, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, 5ª Turma, j. em 18/02/2020.

Caso Concreto

O ingresso no domicílio se deu, exclusivamente, em razão da existência de denúncia anônima e da fuga do agente.

Fundamentos da decisão

  • O entendimento da 6ª Turma do STJ é no sentido de que a tentativa de fuga do agente, por si só, não configura justa causa exigida para autorizar o ingresso forçado no domicílio.
  • A denúncia anônima, desacompanhada de outras circunstâncias indicativas da prática de crime não legitima o ingresso de policiais no domicílio.

Comentários

A jurisprudência do STJ tem se consolidado que a simples denúncia anônima da prática de tráfico de drogas, associada à fuga do acusado não configuravam fundadas razoes para o ingresso no domicílio.9

Em que pese sustentarmos que a fuga do acusado ao visualizar a polícia, sobretudo para dentro da residência, é motivo suficiente para realizar a abordagem policial com ingresso na residência, por configurar fundadas razões, este não é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça.

Não é uma conduta normal visualizar a polícia e sair correndo, em fuga. A presunção nestes casos é de que a pessoa que assim procedeu pode estar a praticar ilegalidades, seja portar armar ou drogas ou ter contra si um mandado de prisão, o que precisa ser verificado pela polícia. Ainda, o fato de correr para dentro da casa impedindo a ação policial, sendo que a polícia não pode entrar, para o STJ, acaba por fulminar o princípio da oportunidade e as provas, eventualmente, existentes contra o agente poderão ser perdidas. Os direitos fundamentais não devem ser utilizados para a salvaguarda de práticas ilícitas, conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal10. Isto é, a proteção do direito à inviolabilidade domiciliar não se sustenta quando houver indicativos de que o morador se utiliza de sua casa, tanto é que para dentro dela fugiu, com o fim de escapar da ação policial em situação de flagrante delito.

Caso a pessoa que correu tenha medo da polícia, por já ter sofrido alguma violência policial no passado, é normal que tenha receio de ser abordado novamente pela polícia, em razão de traumas do passado, contudo essa não é a regra. No dia a dia as pessoas não saem correndo pelas ruas ao visualizarem uma viatura polícia nem em comunidades mais simples, como favelas. A experiência policial demonstra o contrário, que quem corre da polícia certo não está.

Destaca-se ainda que a pessoa que desobedece à ordem legal da polícia, no contexto de abordagem policial, pratica o crime de desobediência (art. 330 do CP), o que, inclusive, legitima a condução do agente para a delegacia em flagrante delito.

3. Denúncia anônima isolada, desacompanhada de outros elementos indicativos da ocorrência de crime, não legitima o ingresso de policiais no domicílio.

A denúncia anônima, desacompanhada de outros elementos indicativos da ocorrência de crime, não legitima o ingresso de policiais no domicílio indicado, inexistindo, nessas situações, justa causa para a medida. A prova obtida com violação à norma constitucional é imprestável a legitimar os atos dela derivados.

STJ, REsp 1871856/SE, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, 6ª Turma, j. em 23/06/2020.

Caso Concreto

Policiais realizavam patrulhamento rotineiro e por meio de denúncias populares de que determinado indivíduo traficava drogas em sua residência, chegaram ao local e lá adentraram forçadamente, ocasião na qual foram apreendidos dois quilos de crack.

Fundamentos da decisão

  • O STJ possui entendimento pacífico no sentido de que nos crimes permanentes, como é o caso do tráfico de drogas, o estado de flagrância se protrai no tempo, o que não é suficiente para justificar busca domiciliar desprovida de mandado judicial.
  • Exige-se a demonstração de indícios mínimos de que dentro da residência, naquele exato momento, há situação de flagrância.
  • O fato de o acusado guardar em sua residência a droga apreendida não autoriza a conclusão da desnecessidade de mandado de busca e apreensão.
  • A realização de patrulhamento rotineiro na rua, associada à indicação do local por denúncias populares, não autoriza o ingresso na residência.
  • A denúncia anônima, desacompanhada de outros elementos indicativos da prática do crime, não legitima o ingresso dos agentes estatais no domicílio.

Comentários

Os policiais realizavam patrulhamento de rotina na região quando tomaram conhecimento da prática da atividade de traficância no domicílio, em razão de denúncia de populares, que foi considerada denúncia anônima, o que os conduziu ao ingresso na casa.

As denúncias não identificadas, seja via COPOM, pessoalmente por escrito ou por qualquer meio são denúncias anônimas.

É certo que muitas investigações se iniciam com base em denúncias anônimas e a jurisprudência do STJ e do STF admitem que não há ilegalidade em iniciar investigações preliminares com base em denúncia anônima.

Da mesma forma que se exige investigações preliminares para fundamentar a instauração de inquérito policial, o policial deve levantar informações sólidas no sentido de que dentro da residência ocorre situação de flagrante delito.

Logo, não houve fundadas razões para o ingresso do domicílio. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça cada vez mais tem se consolidado pela impossibilidade da polícia ingressar na residência se não houver investigação policial prévia que forneça elementos concretos da prática de crime dentro da residência, como filmagens e campanas de movimentação atípica na residência (venda de drogas), audição de testemunhas, abordagem de um usuário que confirme ter comprado drogas em determinada residência (o que é difícil de afirmar, em razão do medo do traficante), dentre outras. O STJ destaca que não se exige diligências profundas, mas sim breve averiguação, o que pode ocorrer com um dos exemplos acima citados.11

Diante desse contexto, é importante que quando a Polícia Militar receber denúncia anônima e não conseguir obter maiores informações que demonstrem concretamente haver a prática de crime dentro da residência, compartilhe a denúncia anônima com a Polícia Civil para que realize a investigação policial.

Por óbvio há casos e casos e se o flagrante dentro da residência estiver bem caracterizado a Polícia Militar deve atuar prontamente, sob pena de fulminar o princípio da oportunidade e todo objeto ilegal, como armas e drogas que seriam apreendidas, não serem mais encontrados.

A vibração policial em efetuar a prisão de criminosos perigosos para a sociedade em flagrante delito e apreender armas e drogas, em que pese ser um ponto positivo, por demonstrar compromisso e envolvimento com o trabalho e com a sociedade, pode acabar por resultar na perda da apreensão desses objetos ilícitos, como decorrência da ilegalidade no ingresso domiciliar e, consequentemente, na impunidade, em razão da absolvição do agente preso pela polícia.

Além do mais, um trabalho conjunto feito entre a Polícia Militar e a Polícia Civil somente gerará dividendos para a sociedade, na medida em que a PM repassará as informações e a Polícia Civil poderá investigar e decidir o melhor momento, sob o ponto de vista investigativo, da atuação policial, o que possibilitará ampliar o número de prisões de agentes envolvidos, bem como a localização de uma maior quantidade de drogas e armas, enquanto que a ausência de comunicação entre as instituições pode levar à frustração das diligências realizadas pela autoridade de polícia judiciária que poderá estar investigando um agente por tráfico de drogas e aguarda o melhor momento para atuar, na certeza do flagrante ou mediante pedido de autorização judicial, o que pode ser interrompido por uma ação antecipada da Polícia Militar, que atuou de boa-fé, com o intuito de somar, de combater e de prevenir o crime. Às vezes a autoridade de polícia judiciária possui informações da prática de um tráfico de drogas, está investigando o caso e planeja atuar em um determinado dia, pois sabe que neste dia planejado chegarão drogas e haverá uma possibilidade maior de efetuar a prisão de mais agentes do tráfico. A comunicação, cooperação e parceria entre as instituições é o melhor caminho para a repressão e prevenção.

4. A “fama” de traficante, por já ter se envolvido com tráfico de drogas, não justifica, por si só, o ingresso na casa sem mandado.

Somente a informação de que o agente tivera envolvimento anterior com tráfico de drogas não autoriza a autoridade policial a conduzi-lo até seu local de trabalho e sua residência, locais protegidos pela garantia constitucional do art. 5º, IX, da CF, para ali efetuar busca, sem prévia autorização judicial e sem seu consentimento, diante da inexistência de fundamento suficiente para levar à conclusão de que, naqueles locais, estava sendo cometido algum tipo de delito, permanente ou não.

STJ, RHC: 126092 SP 2020/0096758-5, Rel. Ministro Reynaldo Soares Da Fonseca, 5ª Turma, j. 23/06/2020.
No mesmo sentido: HC 527.161/RS, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, j. 26/11/2019.

Caso concreto

Determinado agente foi abordado na rua por policiais militares pelo fato de já ser conhecido entre os agentes de segurança pública como traficante. Após abordagem nada foi encontrado em sua posse, ocasião em que foi conduzido pelos policiais até sua barbearia, local onde foram encontradas 9,97 gramas de cocaína. Na sequência, os policiais dirigiram-se à residência dos pais do agente, local em que foi encontrada uma balança de precisão, dois comprimidos e saquinhos plásticos.

Fundamentos da decisão

  • O entendimento firmado pelo STF em sede de repercussão geral no RE nº 603.616/RO, no qual fixou a tese de que o ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial apenas se revela legítimo quando amparado em fundadas razões devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso concreto, que indiquem que naquele momento há situação de flagrante delito no interior da residência.
  • O STF, no HC 82.788/RJ, assentou o entendimento de que o conceito de casa possui caráter amplo, pois compreende (a) qualquer compartimento habitado; (b) qualquer aposento ocupado de habitação coletiva; (c) qualquer compartimento privado não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade.
  • A jurisprudência estende a garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar a estabelecimentos empresariais ou locais de trabalho.
  • O ingresso nos estabelecimentos protegidos pela garantia constitucional depende da existência de fundadas razões (justa causa) que sinalizem a possibilidade de mitigação do direito.
  • O crime de tráfico possui natureza permanente, o que autoriza o ingresso do policial sem mandado, porém, desde que existam elementos suficientes da probabilidade delitiva capaz de demonstrar a ocorrência do estado de flagrância.
  • A denúncia anônima desacompanhada de outros elementos indicados da prática do crime não legitima o ingresso se ausente justa causa para a medida, conforme o entendimento da corte exarado no HC 541.418/RJ.
  • O autor do fato foi conduzido sem qualquer indício ou investigação prévia sobre o local onde estaria a droga.
  • A informação isolada de que o agente tinha envolvimento anterior com o tráfico não autoriza o ingresso no local de trabalho e no domicílio, diante da inexistência de fundamento para concluir que naqueles locais o recorrente estava cometendo algum tipo de crime, seja ele permanente ou não.

Comentários

Depreende-se desse julgado a preocupação do STJ quanto à criminalização do agente e não da conduta, o que se denomina direito penal do autor, de modo que não é legítima a abordagem de um indivíduo, submetendo-lhe à revista pessoal e ingresso forçado em residência ou local de trabalho pelo simples fato de ter conhecimento de que ele possui registros por crimes ou antecedentes criminais.

A investigação deve se iniciar com base em elementos concretos, de modo que a ficha do acusado não seja o único fator pelo qual a polícia lhe investigue.

A justa causa deve corresponder a indicativos de autoria e de materialidade, não com o mesmo grau de rigor para o oferecimento de uma denúncia criminal. Caso os policiais tivessem obtido informações de que o agente tinha voltado à prática criminosa e guardava as substâncias no seu local de trabalho ou residência e, ainda, realizado monitoramento no local que pudesse conduzir ao entendimento da possibilidade de traficância, o ingresso seria legítimo.

Enfim, o fato do agente possuir histórico criminoso e ter fama de traficante no meio policial, por si só, não constitui justa causa suficiente para o ingresso em domicílio. Deve haver outros elementos concretos que demonstrem fatos atuais e não somente pretéritos.

5. A denúncia anônima, aliada à venda de drogas na porta da residência, não autorizam presumir armazenamento de substância ilícita no domicílio, razão pela qual o ingresso, sem mandado, é ilícito.

Não é necessária certeza quanto à ocorrência da prática delitiva para se admitir a entrada em domicílio, bastando que, em compasso com as provas produzidas, seja demonstrada a justa causa na adoção da medida, ante a existência de elementos concretos que apontem para o flagrante delito.

No caso inexistem elementos concretos que apontem para a situação de flagrante delito, de modo que a mera denúncia anônima, aliada à venda de drogas na porta da residência, não autorizam presumir armazenamento de substância ilícita no domicílio e assim legitimar o ingresso de policiais, inexistindo justa causa para a medida.

STJ, AgRg no REsp 1886985/RS, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, 6ª Turma, j. em 07/12/2020.

Caso concreto

Após abordar usuários, os policiais receberam a indicação de tráfico de entorpecentes em determinada casa, local para onde se dirigiram e o agente foi flagrado vendendo drogas em frente à sua residência, o que motivou o ingresso no local.

Fundamentos da decisão

  • O fato de o crime permanente prolongar-se no tempo não é suficiente para justificar a busca domiciliar desacompanhada de mandado judicial, exigindo-se demonstração de indícios de que naquele momento, há situação de flagrante delito na casa.
  • O entendimento do STF, firmado no RE 603.616/RO, é no sentido de que não se exige certeza quanto à prática do crime, bastando que fique demonstrada a justa causa, mediante a existência de elementos concretos que apontem o flagrante delito.
  • A venda de drogas em frente à residência não autoriza presumir o armazenamento de droga na residência.

Comentários

O fato de traficar em frente à residência, a nosso ver, consiste em justa causa suficiente para o ingresso domiciliar, sobretudo ao atrelar à informação prestada por usuário de droga de que no local era ponto de traficância, como ocorreu no caso.

Destaca-se que além da informação do usuário, os policiais encontraram o agente em frente à casa vendendo drogas, o que confirma ser o local ponto de venda de drogas, razão pela qual deveria justificar o ingresso domiciliar sem autorização judicial..

A prática e experiência policial demonstram que o agente que trafica em frente a própria residência armazena e guarda as drogas dentro da casa. A residência serve como um verdadeiro depósito de drogas para buscar e vender na porta da casa, até porque o traficante não vai montar uma mesa e colocar as drogas expostas à venda, em local de acesso público, para todos verem.

Não se pretende afirmar que todos que traficam na rua estão guardando drogas em casa, porém, se a análise do caso indicar essa possibilidade, como parece ter sido o caso, sobretudo por haver informações do tráfico por parte de usuários, há fundamentos para afastar a proteção constitucional da inviolabilidade domiciliar. Diferente seria a situação em que o agente é abordado na rua, distante de sua residência, vendendo drogas e a polícia resolve ingressar em seu domicílio por presumir o depósito da substância no local. Nesse caso o ingresso é ilegal, pois não houve busca de informações que pudessem sugerir que o agente estivesse guardando a substância em seu domicílio.

6. A descoberta de droga por cão farejador, por si só, não autoriza o ingresso no domicílio

Os policiais passaram pela rua quando uma cadela conduzida pela guarnição policial constatou a presença de drogas e sinalizou em frente à residência do agente. Portanto, não se tratou de algo que já estivesse sendo investigado pela polícia, no qual tenha ocorrido o flagrante delito, mas, sim, de apreensão de drogas feita de forma inesperada e sem o devido mandado judicial.

AgInt no HC 566.818/RJ, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, j. 16/06/2020.

Caso concreto

Os policiais passavam pela rua acompanhados de um cão farejador que constatou a presença de drogas e sinalizou uma residência determinada. Ato contínuo, os policiais ingressaram no domicílio sem mandado judicial, ocasião em que encontraram substâncias entorpecentes.

Fundamentos da decisão

  • Não houve investigação prévia que justificasse a entrada dos policiais na residência.
  • A apreensão foi inesperada e desacompanhada de mandado judicial.

Comentários

O olfato do cão é muito superior ao olfato humano. Reportagem da revista denominada “O duro trabalho de um cão farejador”12 relata que “Um cão bem treinado tem capacidade 44 vezes maior do que o ser humano de identificar odores diferentes, como o ‘cheiro’ de explosivo, drogas ou até mesmo pessoas em escombros.”

Em que pese o olfato do cão ser muito superior ao do ser humano e capaz de identificar o cheiro de droga a distância, o Superior Tribunal de Justiça já legitimou o ingresso em residência em razão do cheiro de droga sentido por policiais13, o que demonstra haver uma aparente mudança de entendimento, pois a indicação de droga por um cão farejador é muito mais precisa e certa, sendo possível identificar até mesmo drogas enterradas.14

Ronaldo João Roth, Ana Paula Farnesi e Eduardo Rodrigues Barcellos escreveram o excelente artigo “O olfato do cachorro permite ao policial militar ingressar no domicílio sem autorização judicial ou sem consentimento do morador?”15, sendo afirmado nas conclusões, com as quais concordamos, o seguinte:

Como acima concluímos é inegável que a manifestação do faro do cachorro, diante da sua estrutura biológica acima discorrida, demonstra sim que no local indicado pelo cão há fundada razão para concluir sobre o flagrante delito estar sendo praticado dentro de um domicílio, autorizando no caso de encontro de entorpecente o seu ingresso sem autorização judicial, uma vez que tal procedimento estará calcado no bem jurídico protegido e no perigo da demora, afastando a necessidade de mandado judicial de busca e apreensão ou mesmo exigir a presença do juiz natural da causa. De igual modo, no caso de extorsão mediante sequestro, que também é um crime permanente, caso o animal fareje a vítima e aponte determinado local como sua provável localização, deverá o policial militar ingressar na residência sem mandado judicial, eis que o bem jurídico tutelado e a urgência da situação permitem a violação desse direito fundamental, aplicando a fórmula da proporcionalidade.

No caso do cachorro farejar entorpecente na residência, situação essa que induz à prática do delito do art. 33 da Lei Antidrogas, configurada está a fundada razão para o flagrante delito e também está configurado o perigo da demora, de forma que, nessa hipótese, cabe ao policial, civil ou militar, decidir sobre a necessidade do ingresso no domicílio para fazer cessar o crime, permanente, prendendo o infrator, e apreendendo o entorpecente visto que, nesse caso, é dispensável o mandado judicial (art. 5º, inciso XI, da CF).

Assim, a urgência da medida policial, no caso concreto, é que vai determinar a medida a ser adotada, de forma que quando do encontro de entorpecente, por meio ou com o auxílio do cão farejador no interior de residência, diante da existência de crime permanente, haverá ensejo para o ingresso no domicílio sem o mandado judicial, seja para coibir esse tipo de crime – permanente -, seja para assegurar o encontro da materialidade daquele, bem como para reprimir a prática delituosa por meio da situação de flagrante delito, tudo em conformidade com a autorização constitucional (art. 5º, inciso XI) e a normatização processual que determina ao policial prender quem esteja na prática de crime (art. 301 do CPP e art. 243 do CPPM).

Assim, entre o direito fundamental de inviolabilidade de domicílio e o dever da segurança pública nas missões realizadas pela Polícia, há de se ter definido, com segurança, o procedimento da atuação policial sem incorrer em abuso, o que, do contrário, implicará responsabilização disciplinar, civil ou penal do agente público.

O emprego do cão farejador nas atividades policiais, além de um importante auxílio profissional, traz segurança no encontro de pessoas e materiais ilícitos como entorpecente, ou de outro objeto procurado (material bélico, celular etc), de forma que a indicação daquele, pelo faro, da descoberta do objeto procurado, constitui-se em fundada razão, autorizando o ingresso forçado no domicílio alheio, constituindo o entorpecente encontrado em prova lícita para a responsabilização criminal do infrator.

7. Perseguição a veículo em fuga não autoriza ingresso policial em domicílio.

Não houve uma investigação prévia para que os policiais entrassem na residência do paciente, mas, sim, um patrulhamento de rotina no qual os policiais seguiram o veículo, por não ter esse parado, e adentraram no condomínio, sem nenhuma ordem judicial. Não havia nenhum monitoramento prévio por parte dos policiais.

STJ, AgRg no HC: 561360 SP , Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, j. 09/06/2020.

Caso concreto

A polícia fez sinal de ordem de parada para determinado veículo, contudo, o agente não obedeceu, empreendendo fuga e sendo perseguido pelos policiais até um condomínio, onde a polícia adentrou, ocasião em que, após tomar conhecimento de que o indivíduo residia no local, realizaram a abordagem na residência.

Fundamentos da decisão

● Ainda que tenha ocorrido a perseguição policial não houve investigação prévia ou monitoramento anterior para que os policiais entrassem na residência.

Comentários

Em que pese sustentarmos que a fuga do acusado ao visualizar a polícia, sobretudo para dentro da residência, é motivo suficiente para realizar a abordagem policial com ingresso na casa, por configurar fundadas razões, este não é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça.

Não é uma conduta normal visualizar a polícia, acelerar o veículo e fugir. A presunção nestes casos é de que a pessoa que assim procedeu pode estar a praticar ilegalidades, seja portar armar ou drogas ou ter contra si um mandado de prisão, o que precisa ser verificado pela polícia. O fato de ingressar na própria casa durante a fuga não pode servir como fundamento para ficar imune à busca policial, pois os direitos fundamentais não devem ser utilizados para a salvaguarda de práticas ilícitas, conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal16. A proteção do direito à inviolabilidade domiciliar não se sustenta quando houver indicativos de que o morador se utiliza de sua casa, tanto é que para dentro dela fugiu, com o fim de escapar da ação policial em situação de flagrante delito. Vedar o ingresso da polícia nesses casos acaba por fulminar o princípio da oportunidade e as provas, eventualmente, existentes contra o agente poderão ser perdidas.

Caso a pessoa que fugiu tenha medo da polícia, por já ter sofrido alguma violência policial no passado, é normal que tenha receio de ser abordado novamente pela polícia, em razão de traumas do passado, contudo essa não é a regra. No dia a dia as pessoas não fogem, injustificadamente, da polícia em seus veículos em alta velocidade, o que gera, inclusive, riscos para a sociedade e a prática de outros crimes, como o do art. 311 do Código de Trânsito Brasileiro, além da possibilidade da prática do crime de desobediência (art. 330 do CP), caso a determinação para a realização da abordagem decorra do exercício da atividade de polícia preventiva e não como agente de trânsito, pois neste caso seria somente infração administrativa.

Art. 311. Trafegar em velocidade incompatível com a segurança nas proximidades de escolas, hospitais, estações de embarque e desembarque de passageiros, logradouros estreitos, ou onde haja grande movimentação ou concentração de pessoas, gerando perigo de dano:

Penas – detenção, de seis meses a um ano, ou multa.

(…)

II – Segundo jurisprudência deste Tribunal Superior, a desobediência de ordem de parada dada pela autoridade de trânsito ou por seus agentes, ou mesmo por policiais ou outros agentes públicos no exercício de atividades relacionadas ao trânsito, não constitui crime de desobediência, pois há previsão de sanção administrativa específica no art. 195 do Código de Trânsito Brasileiro, o qual não estabelece a possibilidade de cumulação de sanção penal. Assim, em razão dos princípios da subsidiariedade do Direito Penal e da intervenção mínima, inviável a responsabilização da conduta na esfera criminal.

III – No presente caso, contudo, a ordem de parada não foi dada pela autoridade de trânsito e nem por seus agentes, mas por policiais militares no exercício de atividade ostensiva, destinada à prevenção e à repressão de crimes, que foram acionados para fazer a abordagem do paciente, em razão de atividade suspeita por ela apresentada, conforme restou expressamente consignado no v. acórdão impugnado. Desta forma, não restou configurada a hipótese de incidência da regra contida no art. 195 do Código de Trânsito Brasileiro e, por conseguinte, do entendimento segundo o qual não seria possível a responsabilização criminal do paciente pelo delito de desobediência tipificado no art. 330 do Código Penal.

(STJ – HC: 369082 SC 2016/0226409-3, Relator: Ministro FELIX FISCHER, Data de Julgamento: 27/06/2017, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 01/08/2017)

8. A fuga para o interior de residência ao avistar o policial, que se encontra em diligência de trânsito de rotina, não autoriza o ingresso em domicílio.

A ausência de justificativas e de elementos seguros a legitimar a ação dos agentes públicos, diante da discricionariedade policial na identificação de situações suspeitas relativas à ocorrência de tráfico de drogas, pode fragilizar e tornar írrito o direito à intimidade e à inviolabilidade domiciliar.

Tal compreensão não se traduz, obviamente, em transformar a casa em salvaguarda de criminosos, tampouco um espaço de criminalidade. Há de se convir, no entanto, que só justifica o ingresso na moradia alheia a situação fática emergencial consubstanciadora de flagrante delito, incompatível com o aguardo do momento adequado para, mediante mandado judicial, legitimar a entrada na residência ou local de abrigo.

Na hipótese sob exame, verifica-se que: a) o acusado empreendeu fuga para o interior de sua residência ao avistar a autoridade policial, que realizava diligência de trânsito de rotina; b) após revista em seu domicílio, foram encontradas substâncias entorpecentes (69,33 g de maconha; 0,4 g de haxixe; 10,1 g de cocaína e 1,5 g de LSD).

Em nenhum momento foi explicitado, com dados objetivos do caso, em que consistiria eventual atitude suspeita por parte do acusado, externalizada em atos concretos. Não há referência a prévia investigação, monitoramento ou campanas no local. Também não se tratava de averiguação de denúncia robusta e atual acerca da existência de entorpecentes no interior da residência (aliás, não há sequer menção a informações anônimas sobre a possível prática do crime de tráfico de drogas pelo autuado).

A mera intuição acerca de eventual traficância praticada pelo agente, embora pudesse autorizar abordagem policial, em via pública, para averiguação, não configura, por si só, justa causa a permitir o ingresso em seu domicílio, sem seu consentimento – que deve ser mínima e seguramente comprovado – e sem determinação judicial.

Em que pese eventual boa-fé dos policiais militares, não havia elementos objetivos, seguros e racionais, que justificassem a invasão de domicílio. Assim, como decorrência da Doutrina dos Frutos da Árvore Envenenada (ou venenosa, visto que decorre da fruits of the poisonous tree doctrine, de origem norte-americana), consagrada no art. 5º, LVI, da nossa Constituição da República, é nula a prova derivada de conduta ilícita.

STJ, HC 415332, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, j. em 16/08/2018.

Caso concreto

Em abordagem de trânsito, determinado indivíduo não obedeceu à ordem de parada, e empreendeu fuga para o interior de sua residência que foi invadida pelos policiais.

Fundamentos da decisão

● O STF fixou entendimento no RE nº 603.616/RO que o ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial apenas se revela legítimo quando amparado em fundadas razões devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso concreto, que indiquem que naquele momento há situação de flagrante delito no interior da residência.

● No julgado do REsp nº 1.574.681/RS ficou estabelecido que se exige que a autoridade policial tenha fundadas razões para acreditar, diante de circunstâncias objetivas, em atual ou iminente cometimento de crime no local onde a diligência será cumprida e não simples desconfiança baseada na fuga de ronda policial.

  • Se o juiz só pode determinar a busca e apreensão durante o dia, e mesmo assim mediante decisão devidamente fundamentada, após prévia análise dos requisitos autorizadores da medida, não é razoável conferir a um agente de segurança pública total discricionariedade para, diante da mera intuição, entrar de maneira forçada na residência de alguém para verificar se há situação de flagrante delito.
  • O único motivo que levou ao ingresso no domicílio foi a evasão da abordagem policial e não houve dados objetivos no que consistiria a atitude suspeita externalizada em atos concretos. Não houve averiguação de denúncia acerca da existência de entorpecentes no interior da residência.
  • Embora a intuição autorize a abordagem policial em via pública, ela não é suficiente para o ingresso no domicílio diante da ausência de fundadas razões.

Comentários

A jurisprudência do STJ tem se consolidado que a simples denúncia anônima da prática de tráfico de drogas, associada à fuga do acusado não configuravam fundadas razoes para o ingresso no domicílio.17

Em que pese sustentarmos que a fuga do acusado ao visualizar a polícia, sobretudo para dentro da residência, é motivo suficiente para realizar a abordagem policial com ingresso na residência, por configurar fundadas razões, este não é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça.

Não é uma conduta normal visualizar a polícia e sair correndo, em fuga. A presunção nestes casos é de que a pessoa que assim procedeu pode estar a praticar ilegalidades, seja portar armar ou drogas ou ter contra si um mandado de prisão, o que precisa ser verificado pela polícia. Ainda, o fato de correr para dentro da casa impedindo a ação policial, sendo que a polícia não pode entrar, para o STJ, acaba por fulminar o princípio da oportunidade e as provas, eventualmente, existentes contra o agente poderão ser perdidas. Os direitos fundamentais não devem ser utilizados para a salvaguarda de práticas ilícitas, conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal18. Isto é, a proteção do direito à inviolabilidade domiciliar não se sustenta quando houver indicativos de que o morador se utiliza de sua casa, tanto é que para dentro dela fugiu, com o fim de escapar da ação policial em situação de flagrante delito.

Caso a pessoa que correu tenha medo da polícia, por já ter sofrido alguma violência policial no passado, é normal que tenha receio de ser abordado novamente pela polícia, em razão de traumas do passado, contudo essa não é a regra. No dia a dia as pessoas não saem correndo pelas ruas ao visualizarem uma viatura polícia nem em comunidades mais simples, como favelas. A experiência policial demonstra o contrário, que quem corre da polícia certo não está.

Destaca-se ainda que a pessoa que desobedece à ordem legal da polícia, no contexto de abordagem policial decorrente do exercício do policiamento ostensivo e não como agente de trânsito, pratica o crime de desobediência (art. 330 do CP), o que, inclusive, legitima a condução do agente para a delegacia em flagrante delito.

É necessária realizar uma distinção entre fundada suspeita e fundadas razões.

A fundada suspeita legitima a busca pessoal, na forma do art. 244 do Código de Processo Penal e possui um menor rigor do que as fundadas razões, tanto é que o Superior Tribunal de Justiça decidiu que a mera intuição acerca de eventual traficância praticada pelo agente autoriza a abordagem policial (busca pessoal) em via pública para averiguação, o que, no entanto, não autoriza o ingresso em domicílio.

O art. 244 do Código de Processo Penal exige a presença de fundada suspeita para a realização de busca pessoal, enquanto que o art. 240, § 1º, do CPP exige a presença de fundadas razões para a realização de busca domiciliar, termo este inclusive utilizado pelo Supremo Tribunal Federal no RE n. 603.616/RO, que fixou as balizas necessárias para legitimar o ingresso da polícia em residência nos casos de flagrante.

Art. 240. A busca será domiciliar ou pessoal. § 1oProceder-se-á à busca domiciliar, quando fundadas razões a autorizarem, para:
Art. 244. A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar.

O conceito de fundada suspeita e de fundadas razões não se encontram definidos pela lei, sendo verdadeiros conceitos abertos e que depende do intérprete.

Guilherme de Souza Nucci19 explica que:

(…) é requisito essencial e indispensável para a realização da busca pessoal, consistente na revista do indivíduo. Suspeita é uma desconfiança ou suposição, algo intuitivo e frágil, por natureza, razão pela qual a norma exige fundada suspeita, que é mais concreto e seguro. Assim, quando um policial desconfiar de alguém, não poderá valer-se, unicamente, de sua experiência ou pressentimento, necessitando, ainda, de algo mais palpável, como a denúncia feita por terceiro de que a pessoa porta o instrumento usado para o cometimento do delito, bem como pode ele mesmo visualizar uma saliência sob a blusa do sujeito, dando nítida impressão de se tratar de um revólver. Enfim, torna-se impossível e impróprio enumerar todas as possibilidades autorizadoras de uma busca, mas continua sendo curial destacar que a autoridade encarregada da investigação ou seus agentes podem – e devem – revistar pessoas em busca de armas, instrumentos do crime, objetos necessários à prova do fato delituoso, elementos de convicção, entre outros, agindo escrupulosa e fundamentadamente.”

Em relação às fundadas razões, Nucci ensina que significa a existência de indícios razoáveis de materialidade e autoria.

Em que pese a jurisprudência utilizar os termos “fundada suspeita” e “fundadas razões” sem o rigor técnico, pois esses conceitos acabam se confundindo nas fundamentações e são utilizados indistintamente, possuem importante distinção jurídica e prática, na medida em que o primeiro autoriza a busca pessoal sem mandado, mas não autoriza a busca domiciliar sem mandado, enquanto que o segundo autoriza a busca pessoal e a busca domiciliar sem autorização judicial.

Para o Superior Tribunal de Justiça, a fuga para o interior de residência ao avistar o policial, que se encontra em diligência de trânsito de rotina, justifica a abordagem policial fora da residência. Nota-se haver um maior rigor na análise do ingresso em domicílio, pois a inviolabilidade domiciliar é um direito fundamental.

Esquematicamente, os conceitos ora estudados podem assim serem visualizados.

Fundada suspeitaFundadas razões
Arts. 240, § 2º, e 244, ambos do CPPArt. 240, § 1º, do CPP
Conceito vagoConceito vago
Desconfiança, suposição atrelada a algum elemento concreto20, como um objeto na cintura por debaixo da blusa que pode ser uma arma.Indícios razoáveis de materialidade e autoria da prática de crime.
Autoriza a busca pessoalAutoriza a busca pessoal
Não autoriza a busca domiciliarAutoriza a busca domiciliar
Há um menor rigor para a exigência da fundada suspeitaHá um maior rigor para a exigência das fundadas razões
Exemplos:
1. Indivíduo que corre ao visualizar a polícia pode ser abordado na rua.
2. Indivíduo é visualizado com um objeto por debaixo da blusa, parecido com uma arma de fogo, em razão do volume, justifica a busca pessoal.
3. Indivíduo é visto em local conhecido como ponto de tráfico, o que caracteriza a fundada suspeita e justifica a busca pessoal.
4. Indivíduo é visto vendendo drogas em uma movimentação atípica na porta de sua residência, o que é constatado após a realização de campana e abordagem de usuários que compraram a droga. Quando o agente comparecer na porta de sua residência será possível realizar a busca pessoal.
Exemplos:
1. Indivíduo que corre ao visualizar a polícia não pode ser abordado, caso entre em sua residência.
2. Indivíduo é visualizado com um objeto por debaixo da blusa, parecido com uma arma de fogo, em razão do volume, dentro de sua casa, que possui portão de grade, não justifica a busca domiciliar.
3. Indivíduo é visto em local conhecido como ponto de tráfico, o que, por si só, não justifica a busca domiciliar.
4. Indivíduo é visto vendendo drogas em uma movimentação atípica na porta de sua residência, o que é constatado após a realização de campana e abordagem de usuários que compraram a droga. A polícia poderá realizar busca domiciliar sem autorização judicial.

Oportunamente, publicarei no site Atividade Policial um texto completo acerca dos conceitos e peculiaridades entre fundada suspeita e fundadas razões.

Em caso semelhante ao ora comentado os policiais adentraram à residência do agente sem sua prévia permissão e sem prévia autorização judicial, baseados apenas em conhecimento prévio de que o local seria ponto de drogas, desacompanhada tal informação de outros elementos preliminares indicativos de crime, e no fato de que, ao ver a viatura policial, o agente que estava em frente à residência correu para o pátio de sua casa. Foi reconhecida a ilegalidade da entrada do policial na residência do agente, pois não havia autorização judicial nem fundadas razões para ingressar em razão do flagrante delito.21

9. Não justifica o ingresso da polícia na residência na hipótese em que o agente encontra-se na porta de sua casa e adentra às pressas ao visualizar a viatura policial na rua.

O mero avistamento de um indivíduo de pé no portão de sua casa que, ao divisar uma viatura policial, se dirige para o quintal ou para o interior de sua residência, sem qualquer denúncia/informação ou investigação prévia, não constitui fundamento suficiente para autorizar a conclusão de que o cidadão trazia drogas consigo ou as armazenava em sua residência, e tampouco de que naquele momento e local estava sendo cometido algum tipo de delito, permanente ou não.
Situação em que, durante ronda noturna de rotina e sem nenhuma denúncia prévia, após verificar que o paciente, que se encontrava de pé no portão de sua residência, empreendeu fuga para dentro do imóvel ao avistar a viatura policial, policial militar transpôs o portão e seguiu o indivíduo até o quintal, quando, então, teria visto o agente jogando, na direção de sua casa, um pote plástico branco. Realizada busca pessoal no suspeito ainda no quintal da casa, foram encontrados dois pinos de cocaína em sua bermuda e, já dentro da residência, no interior do pote plástico, outros 32 (trinta e dois) pinos de cocaína. Muito embora, com efeito, a dispensa repentina e rápida do pote pudesse levantar suspeitas que autorizassem a busca pessoal, o fato é que a visão do ato suspeito somente foi possível porque o policial militar já havia adentrado o portão da casa do paciente e chegado até o quintal, em nítida violação à proteção constitucional garantida ao domicílio.

STJ, HC: 609072 SP 2020/0219742-5, Rel. Ministro Reynaldo Soares Da Fonseca, 5ª Turma, j. em 06/10/2020.

Caso concreto

Os policiais ingressaram no domicílio após o indivíduo ter adentrado às pressas para dentro de sua residência ao visualizar a viatura policial.

Fundamentos da decisão

● O STF fixou entendimento no RE nº 603.616/RO que o ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial apenas se revela legítimo quando amparado em fundadas razões devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso concreto, que indiquem que naquele momento há situação de flagrante delito no interior da residência.

  • O crime de tráfico de entorpecentes é permanente, o que legitima a entrada de policiais em domicílio para cessar a prática delitiva, desde que existam elementos suficientes de probabilidade delitiva capazes de demonstrar a ocorrência de flagrância.
  • A abordagem foi realizada sem qualquer informação prévia ou indício que pudesse indicar que o agente trazia consigo ou tinha em depósito entorpecentes.
  • Para o STF o conceito de casa possui caráter amplo porque compreende (a) qualquer compartimento habitado; (b) qualquer aposento ocupado de habitação coletiva; (c) qualquer compartimento privado não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade.
  • O espaço que circunda a residência do indivíduo e é delimitado por muros e contém portão configura extensão de sua casa e está abrangido pela garantia constitucional da inviolabilidade.
  • O argumento dos policiais para o ingresso não era suficiente para a violação a residência, na medida em que desprovidos de elementos concretos.
  • A dispensa repentina e rápida do pote com droga somente foi possível de ser visualizada em razão do ingresso ilegal dos policias na residência, razão pela qual a apreensão dessas drogas não possuem validade.

Comentários

As fundadas razões que justificam o ingresso em residência devem ser tomadas com base em elementos concretos e, para o STJ, a fuga do agente não configura elemento apto a ingressar na residência, razão pela qual eventual ingresso decorrente da fuga, por ser ilegal, invalida todas as provas da prática do crime que sejam encontradas na residência (teoria do fruto das árvores envenenadas).

Em que pese sustentarmos que a fuga do acusado ao visualizar a polícia, sobretudo para dentro da residência, é motivo suficiente para realizar a abordagem policial com ingresso na residência, por configurar fundadas razões, este não é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça.

Não é uma conduta normal visualizar a polícia e sair correndo, em fuga. A presunção nestes casos é de que a pessoa que assim procedeu pode estar a praticar ilegalidades, seja portar armar ou drogas ou ter contra si um mandado de prisão, o que precisa ser verificado pela polícia. Ainda, o fato de correr para dentro da casa impedindo a ação policial, sendo que a polícia não pode entrar, para o STJ, acaba por fulminar o princípio da oportunidade e as provas, eventualmente, existentes contra o agente poderão ser perdidas, como ocorreu neste caso julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, tanto é que o agente dispensou rapidamente as drogas que estavam sob a sua posse. Os direitos fundamentais não devem ser utilizados para a salvaguarda de práticas ilícitas, conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal22. Isto é, a proteção do direito à inviolabilidade domiciliar não se sustenta quando houver indicativos de que o morador se utiliza de sua casa, tanto é que para dentro dela fugiu, com o fim de escapar da ação policial em situação de flagrante delito.

Caso a pessoa que correu tenha medo da polícia, por já ter sofrido alguma violência policial no passado, é normal que tenha receio de ser abordado novamente pela polícia, em razão de traumas do passado, contudo essa não é a regra. No dia a dia as pessoas não saem correndo pelas ruas ao visualizarem uma viatura polícia nem em comunidades mais simples, como favelas. A experiência policial demonstra o contrário, que quem corre da polícia certo não está.

Determinados locais podem ser conhecidos pelos moradores como locais de “troca de tiro” entre a polícia e criminosos, o que justifica, como decorrência da natureza humana em se proteger, que moradores ao visualizarem a chegada da polícia adentre às pressas em suas residências e se abriguem, o que, realmente, não justificaria o ingresso da Polícia Militar na residência, mas não é essa a análise feita pelo Superior Tribunal de Justiça.

Destaca-se ainda que a pessoa que desobedece à ordem legal da polícia, no contexto de abordagem policial, pratica o crime de desobediência (art. 330 do CP), o que, inclusive, legitima a condução do agente para a delegacia em flagrante delito.

10. Abordagem em quintal da residência não legitima ingresso forçado, ainda que um dos abordados empreenda fuga para dentro da residência e com o outro agente sejam encontradas drogas.

A abordagem dos agentes no quintal de uma residência, em local conhecido como ponto de tráfico, sendo que um deles empreendeu fuga para dentro do imóvel e o outro permaneceu parado, sendo encontrado com ele uma certa quantidade de entorpecentes, não autoriza o ingresso na residência, por não demonstrar os fundamentos razoáveis da existência de crime permanente dentro do domicílio.

STJ, HC: 586474 SC 2020/0131639-8, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, 6ª Turma, j. em 18/08/2020.

Caso concreto

Durante abordagem no quintal de determinada residência, os policiais encontraram expressiva quantidade de droga, o que fez os policiais presumirem que havia mais droga na quitinete dividida por dois indivíduos, ocasião em que os agentes se dirigiram ao local com um cão farejador, onde localizaram mais onze buchas de cocaína e um caderno com anotações do tráfico.

Fundamentos da decisão

● O entendimento da Corte é no sentido de ser exigível fundamentos razoáveis da existência de crime permanente para justificar o ingresso forçado na residência do agente.

● Não foram realizadas investigações prévias nem indicados elementos concretos que confirmassem a suspeita levantada, não se revelando suficiente o encontro da droga com o indivíduo associada com a fuga de outro, o que conduz a ilicitude das provas obtidas com a invasão de domicílio sem fundadas razões.

Comentários

O inteiro teor e a ementa mencionam que o agente foi abordado no quintal da casa, momento em que foram apreendidas as drogas. Ocorre que o quintal da casa é parte integrante da residência, razão pela qual possui proteção constitucional da inviolabilidade domiciliar. Nesse contexto, a abordagem no quintal, sem fundadas razões, por si só, é ilegal.

No julgado não ficou claro se a abordagem ocorreu, efetivamente, na rua ou no quintal, pois a primeira e segunda instâncias mencionaram que a abordagem ocorreu na rua, sendo um agente flagrado com 60 pedras de crack dentro da cueca

Diz a sentença confirmada pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina que no caso, um dos agentes trazia consigo, dentro da cueca, 60 pedras de crack, quando foi abordado na rua pelos militares. Porém, o inteiro teor apresenta o depoimento de dois policiais e diz que estes afirmaram que a abordagem inicial teria ocorrido no quintal da residência, por ser local conhecido como ponto de tráfico.

O julgado não discutiu a proteção do quintal enquanto parte da casa, o que concede, portanto, proteção constitucional, tendo afirmado não ser possível ingressar dentro da residência, em razão dos policiais terem abordado um agente com drogas, enquanto o outro empreendeu fuga para dentro da casa.

Não está muito claro no inteiro teor como ocorreu a dinâmica dos fatos, mas ao se considerar a abordagem inicial no quintal da casa como lícita, há justa causa suficiente (fundadas razões) que legitimam o ingresso na casa, pois se um dos agentes abordados estava com 60 pedras de crack e o outro empreendeu fuga para dentro da residência, logicamente há indicativos de autoria e materialidade da prática de crime (droga com um indivíduo e fuga do outro).

Em que pese o Superior Tribunal de Justiça já ter decidido que “Não é necessária certeza quanto à ocorrência da prática delitiva para se admitir a entrada em domicílio, bastando que, em compasso com as provas produzidas, seja demonstrada a justa causa na adoção da medida, ante a existência de elementos concretos que apontem para o flagrante delito.”23, não foi o entendimento do STJ no caso em análise, em relação ao fatos pretéritos que legitimaram o ingresso na residência.

Não é uma conduta normal visualizar a polícia e sair correndo, em fuga. A presunção nestes casos é de que a pessoa que assim procedeu pode estar a praticar ilegalidades, seja portar armar ou drogas ou ter contra si um mandado de prisão, o que precisa ser verificado pela polícia. Ainda, o fato de correr para dentro da casa impedindo a ação policial, sendo que a polícia não pode entrar, para o STJ, acaba por fulminar o princípio da oportunidade e as provas, eventualmente, existentes contra o agente poderão ser perdidas, como ocorreu neste caso julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, tanto é que o agente dispensou rapidamente as drogas que estavam sob a sua posse. Os direitos fundamentais não devem ser utilizados para a salvaguarda de práticas ilícitas, conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal24. Isto é, a proteção do direito à inviolabilidade domiciliar não se sustenta quando houver indicativos de que o morador se utiliza de sua casa, tanto é que para dentro dela fugiu, com o fim de escapar da ação policial em situação de flagrante delito.

11. A abordagem do agente, em local conhecido como ponto de tráfico, ainda que com ele encontre drogas, não autoriza o ingresso na residência.

A abordagem do agente, em local conhecido como ponto de tráfico, sendo encontrado com ele drogas, não autoriza o ingresso na residência, por não demonstrar os fundamentos razoáveis da existência de crime permanente dentro do domicílio.

STJ, HC 611.918/SP, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, 6ª Turma, j. em 07/12/2020.

Caso concreto

Os policiais receberam a notícia de que um indivíduo estava traficando drogas em frente a um bar conhecido como “ponto de tráfico”, para onde se dirigiram quando avistaram o agente conversando com uma pessoa que estava dentro de um veículo. Ao avistarem o policial, a pessoa que estava no veículo evadiu-se. O agente foi abordado e revistado, sendo localizado em sua posse um pino de cocaína e a quantia de R$ 29,00 em dinheiro. Diante da notícia de que o agente buscava a droga na sua casa, que ficava próximo ao ponto de venda, os policiais se dirigiram até a residência e, com apoio de um cão farejador, encontraram substâncias entorpecentes.

Fundamentos da decisão

  • A Corte exige fundamentos razoáveis da existência do crime permanente para justificar o ingresso desautorizado na residência do agente.
  • A revista pessoal que localiza drogas com o agente, por si só, não autoriza o ingresso forçado na residência, sendo necessária investigação prévia.
  • Inexistência de elementos concretos que confirmassem a ocorrência do crime de tráfico de entorpecentes dentro da residência.

Comentários

O fato de um agente ser flagrado pela polícia em um ponto de tráfico e com drogas não legitima o ingresso na residência, ainda que o agente com drogas a trafique em frente a sua própria casa, conforme já decidiu o Superior Tribunal de Justiça25.

A prática e experiência policial demonstram que o agente que trafica em frente a própria residência armazena e guarda as drogas dentro da casa. A residência serve como um verdadeiro depósito de drogas para buscar e vender na porta da casa, até porque o traficante não vai montar uma mesa e colocar as drogas expostas à venda, em local de acesso público, para todos verem.

Não se pretende afirmar que todos que traficam na rua estão guardando drogas em casa, porém, se a análise do caso indicar essa possibilidade, sobretudo por haver informações do tráfico por parte de usuários, há fundamentos para afastar a proteção constitucional da inviolabilidade domiciliar. Diferente seria a situação em que o agente é abordado na rua, distante de sua residência, vendendo drogas e a polícia resolve ingressar em seu domicílio por presumir o depósito da substância no local. Nesse caso o ingresso é ilegal, pois não houve busca de informações que pudessem sugerir que o agente estivesse guardando a substância em seu domicílio.

De qualquer forma, é bom que fique registrado o julgado do Superior Tribunal de Justiça que não admite o ingresso da polícia na residência na hipótese em que o agente é abordado com drogas fora de sua residência, sendo possível afirmar que o fator distância da residência do local da abordagem é indiferente, pois o ingresso será ilícito de qualquer forma.

12. Proprietário de hostel não pode autorizar a polícia a ingressar em quarto alugado sem o consentimentos dos hóspedes

Não obstante o consentimento da proprietária do imóvel, trata-se de estabelecimento destinado à hospedagem (hostel), o qual, por conta de sua natureza de moradia, ainda que temporária, exige o consentimento dos hóspedes para a incursão policial, o que não ocorreu. Assim, impõe-se o reconhecimento da ilicitude das provas obtidas por meio da medida invasiva, bem como de todas as que delas decorreram. AgRg no HC 630.369/MG, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, j. em 02/02/2021.

Caso concreto: proprietária de um hostel autorizou que policiais realizassem buscas em um quarto alugado, ocasião em que foram apreendidas drogas. Os policiais haviam recebido denúncia anônima de que no local havia drogas. Diante da autorização da proprietária, os policiais ingressaram no quarto e efetuaram a apreensão das drogas e a prisão dos agentes.

Fundamentos da decisão

• O Supremo Tribunal Federal definiu, em repercussão geral, que o ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial apenas se revela legítimo – a qualquer hora do dia, inclusive durante o período noturno – quando amparado em fundadas razões, devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso concreto, que indiquem estar ocorrendo, no interior da casa, situação de flagrante delito;

• O Superior Tribunal de Justiça, em acréscimo, possui pacífica jurisprudência no sentido de que “a denúncia anônima, desacompanhada de outros elementos indicativos da ocorrência de crime, não legitima o ingresso de policiais no domicílio indicado, inexistindo, nessas situações, justa causa para a medida”;

• O art. 5º, XI, da Constituição Federal de 1988 consagrou o direito fundamental relativo à inviolabilidade domiciliar, ao dispor que: “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”;

• No sentido estrito, o conceito em tela comporta as moradias de todo gênero, incluindo as alugadas ou mesmo as sublocadas. O título da posse é, em princípio, irrelevante. Abrange as moradias provisórias, tais como quartos de hotel ou moradias móveis como o trailer ou o barco, a barraca e outros do gênero que sirvam de moradia. Determinante é o reconhecível propósito do possuidor de residir no local, estabelecendo-o como abrigo (“asilo”) espacial de sua esfera privada (Comentários à Constituição do Brasil / J. J. Gomes Canotilho…[et al.] ; outros autores e coordenadores Ingo Wolfgang Sarlet, Lenio Luiz Streck, Gilmar Ferreira Mendes. – 2. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2018, p. 305);

• A jurisprudência dos Tribunais pátrios é assente no sentido de que a autorização do morador da casa é suficiente para validar o ingresso dos policiais na residência, contudo, neste caso, apesar do consentimento da proprietária do imóvel, trata-se de estabelecimento destinado à hospedagem (hostel), o qual, por conta de sua natureza de moradia, ainda que temporária, exige o consentimento dos hóspedes para a incursão policial, o que não ocorreu. Dessa forma, as provas colhidas em razão do ingresso no quarto hospedado foram consideradas ilícitas, bem como todas as que delas decorreram.

Comentários

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é pacífica que a denúncia anônima não é fundamento idôneo para legitimar o ingresso de policiais em locais que possuem a proteção do direito fundamental à inviolabilidade domiciliar, o que não impede da autoridade policial realizar diligências com base na denúncia anônima, proceder à verificação da procedência das informações – VPI – e, fundamentadamente, instaurar inquérito policial ou arquivar a VPI.

Os locais destinados à hospedagem de qualquer pessoa, ainda que de forma rápida e temporária, seja por horas ou de um dia para o outro, como hotéis, motéis, hostels, possuem proteção da inviolabilidade domiciliar, na forma do art. 150, § 4º, II e § 5º, I, do Código Penal. A autorização do proprietário não é suficiente para autorizar o ingresso na residência, pois esta autorização cabe ao morador.

A Constituição Federal é clara ao dizer que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial” (art. 5º, XI). Note que não diz consentimento do proprietário.

O crime de abuso de autoridade de invasão de domicílio diz que este crime ocorre quando for praticado à revelia da vontade do ocupante, enquanto que o crime de violação de domicílio dispõe que este resta configurado quando for praticado contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito.

Crime de abuso de autoridade de invasão de domicílioCrime de violação de domicílio
Art. 22. Invadir ou adentrar, clandestina ou astuciosamente, ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel alheio ou suas dependências, ou nele permanecer nas mesmas condições, sem determinação judicial ou fora das condições estabelecidas em lei: Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.Art. 150 – Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências: Pena – detenção, de um a três meses, ou multa. § 4º – A expressão “casa” compreende: I – qualquer compartimento habitado; II – aposento ocupado de habitação coletiva; III – compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade.

Os tipos penais visam conceder proteção penal ao direito fundamental previsto no art. 5º, XI, da Constituição Federal. Trata-se de um mandamento de criminalização implícito, pois a Constituição, ao considerar a inviolabilidade domiciliar um direito fundamental e expressar as exceções, quis proteger com mais intensidade este direito fundamental, razão pela qual é digno de proteção penal, que é o ramo do direito que atinge de forma mais gravosa o ser humano, por possuir pena privativa de liberdade.

O titular do direito fundamental à inviolabilidade domiciliar é tratado nos tipos penais como “ocupante” do imóvel ou “quem de direito”.

O “ocupante do imóvel” ou “quem de direito” refere-se à pessoa que possui poder de autorizar ou retirar alguém de casa, seja o dono ou não. Nesse contexto, surgem dois regimes que devem ser analisados, o regime de subordinação e o de igualdade.

No regime de subordinação não são todos que moram na casa que podem autorizar a entrada e permanência de terceiros, mas somente aqueles que são responsáveis pela casa, como o pai e a mãe (arts. 5º, I e 226, § 5º, da CF) em relação aos filhos e o responsável pelo pensionato, escola, dentre outros. Caso haja conflito de vontades a respeito da autorização para que uma pessoa entre na casa, o que só pode ocorrer entre os responsáveis pela casa, prevalece a impossibilidade de ingresso, pois um dos moradores teria o seu direito fundamental violado. Portanto, no choque de interesses, preserva-se a vontade daquele que não autoriza a entrada ou caso já tenha entrado, a vontade daquele que não quer a permanência de terceiro na casa. Na hipótese em que a divergência de autorização para entrar na casa envolver quem na relação hierárquica esteja em grau inferior, como a relação pai-filho, prevalece a vontade do pai, desde que esteja em sua própria casa e não na casa de seu filho. Isso não quer dizer que os filhos não possam convidar pessoas para a sua casa, mas caso os pais vedem ou mandem sair, a vontade do pai deverá ser atendida, sob pena de violação de domicílio.

No regime de igualdade todos os moradores da casa possuem igual poder para aceitar ou expulsar alguém da casa, o que ocorre numa relação familiar composta por marido e esposa (arts. 5º, I e 226, § 5º, da CF); em uma república de estudantes; em condomínios. Caso haja discordância quanto à possibilidade de ingresso na casa, aplica-se o raciocínio acima exposto.

A vontade do morador da casa pode ser manifestada de forma expressa ou tácita. Será expressa quando disser expressamente ou manifestar-se por escrito, gestos ou qualquer outra forma que seja possível dizer claramente que o morador autoriza ou não o ingresso na casa. Será tácita quando puder constatar a manifestação de vontade do morador em razão das circunstâncias do caso concreto, como manter a porta fechada.

É suficiente que qualquer um dos moradores responsáveis pela casa, seja no regime de subordinação, seja no de igualdade, autorize o ingresso da polícia na residência para que este seja lícito, não sendo necessário que o policial aguarde a manifestação de vontade do outro morador que não estiver presente, pois a ausência de qualquer um dos moradores responsáveis pela casa implica em autorizar que somente o morador presente autorize o ingresso de terceiros. Deve-se presumir, inclusive, que o morador presente está a atuar de acordo com a vontade do outro morador, pois do contrário o morador presente relataria a impossibilidade de ingresso em razão da discordância do outro morador. Caso haja mais de um morador responsável pela casa e um deles esteja ausente no portão no momento da autorização, pois estava dentro de casa, a autorização, igualmente, é válida, em razão do mesmo raciocínio ora exposto.

Por fim, é importante destacar que o ingresso nesses locais sem que haja fundadas razões ou autorização dos ocupantes ou moradores caracteriza ingresso ilícito e as provas eventualmente colhidas são consideradas ilícitas.

Considerações finais

No RE 603616/RO o STF fixou o entendimento de que o parâmetro que autoriza o ingresso forçado consiste na existência de elementos mínimos da prática de crime a caracterizar fundadas razões (justa causa) para a medida.

O Superior Tribunal de Justiça utiliza a decisão do Supremo Tribunal Federal para balizar os seus julgados, contudo realiza uma interpretação bem restritiva.

Afinal de contas, o que são elementos mínimos da prática de crime a caracteriza fundadas razões (justa causa)?

Não existe um conceito fechado, pelo contrário, trata-se de um conceito vago e aberto, que deve ser analisado em cada caso, razão pela qual é importante conhecer os mais diversos julgados do Superior Tribunal de Justiça, conforme exposto.

Após análise dos julgados do STJ pode se afirmar que elementos mínimos correspondem à denúncia anônima associada a entrevistas com vizinhos e monitoração do local pelos policiais a fim de confirmar as alegações; comunicação de que houve disparo de arma de fogo dentro do imóvel; descoberta de droga por cão farejador, associada as informações obtidas na vizinhança de que no local é realizada traficância, somada a diligência policial de monitoração do local; visualização do agente descartando a droga para fora do domicílio; visualização do agente manuseando a droga do lado de fora do domicílio pela janela.

Os julgados do STJ apresentam um denominador comum: a realização de investigações prévias a fim de confirmar os indicativos mínimos da prática de crime no local. Depreende-se, ainda, dos julgados, que não se discute a legitimidade da conduta com base no resultado do ingresso, pois isso esvaziaria a garantia fundamental à inviolabilidade domiciliar, pois um direito fundamental ficaria à mercê da sorte.

Para o STJ, tornou-se recorrente o ingresso em domicílio alheio sem elementos concretos suficientes para autorizar o ingresso legítimo, o que viola a garantia constitucional, o que deve ser controlado pelo Poder Judiciário.

Atento a essa situação, no julgamento do HC 415332, o Ministro Rogério Schietti Cruz ressaltou que “se a lei exige do juiz que profira uma decisão fundamentada com elementos concretos para autorizar a busca e apreensão não se revela razoável conferir ao um agente de segurança pública total discricionariedade para, diante da mera intuição, adentrar de maneira forçada na residência de alguém para verificar se há situação de flagrante delito”.

Afirmou ainda que “Tal compreensão não se traduz, obviamente, em transformar a casa em salvaguarda de criminosos, tampouco um espaço de criminalidade. Há de se convir, no entanto, que só justifica o ingresso na moradia alheia a situação fática emergencial consubstanciadora de flagrante delito, incompatível com o aguardo do momento adequado para, mediante mandado judicial, legitimar a entrada na residência ou local de abrigo”.

No HC 611.918 o Ministro Antônio Saldanha afirmou que “Todas as vezes em que alguém é preso na comunidade, com determinada quantidade de entorpecente, alguns elementos se reiteram. Primeiro, que o local é conhecido ponto de venda de drogas. Que o preso é conhecido na localidade como traficante. E que ele autorizou o ingresso no domicílio, que é nas proximidades. Isso para mim não traz verossimilhança.” e que “Sempre a dinâmica é essa. Precisamos começar a mitigar esse tipo de arroubo policial”.

O Ministro Rogério Schietti Cruz, por sua vez, afirmou que “Temos que pensar quantos domicílios são invadidos neste país pela polícia sem que se encontre nada dentro. E fica por isso mesmo. Ninguém vai reportar isso. Não vai gerar nenhum tipo de responsabilização. Porque se alguém ingressa em um domicílio sem fundada suspeita, concreta, é abuso de autoridade. E isso está na lei. É preciso que realmente a polícia reveja sua rotina em relação a estes fatos e tenha mais cuidado, documentando o que justificou o ingresso e o próprio ingresso. E filmando a operação.”

Sempre que possível é prudente que a ação policial seja filmada, com o fim de resguardar a lisura e transparência da ação.

Cada caso é um caso, mas é possível ter os diversos julgados do STJ como parâmetro para a atuação policial, até porque, em termos proporcionais, são poucos os casos que chegam ao STJ mediante Habeas Corpus ou Recurso Especial, o que cria um tratamento diferenciado para casos iguais, em que os acusados com bons advogados teriam o entendimento do STJ aplicado e os demais não.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça cada vez mais tem se consolidado pela impossibilidade da polícia ingressar na residência se não houver investigação policial prévia que forneça elementos concretos da prática de crime dentro da residência, como filmagens e campanas de movimentação atípica na residência (venda de drogas), audição de testemunhas, abordagem de um usuário que confirme ter comprado drogas em determinada residência (o que é difícil de afirmar, em razão do medo do traficante), dentre outras. O STJ destaca que não se exige diligências profundas, mas sim breve averiguação, o que pode ocorrer com um dos exemplos acima citados.26

Diante desse contexto, é importante que quando a Polícia Militar receber denúncia anônima e não conseguir obter maiores informações que demonstrem concretamente haver a prática de crime dentro da residência, compartilhe a denúncia anônima com a Polícia Civil para que realize a investigação policial.

Por óbvio há casos e casos e se o flagrante dentro da residência estiver bem caracterizado a Polícia Militar deve atuar prontamente, sob pena de fulminar o princípio da oportunidade e todo objeto ilegal, como armas e drogas que seriam apreendidas, não serem mais encontrados.

A vibração policial em efetuar a prisão de criminosos perigosos para a sociedade em flagrante delito e apreender armas e drogas, em que pese ser um ponto positivo, por demonstrar compromisso e envolvimento com o trabalho e com a sociedade, pode acabar por resultar na perda da apreensão desses objetos ilícitos, como decorrência da ilegalidade no ingresso domiciliar e, consequentemente, na impunidade, em razão da absolvição do agente preso pela polícia.

Além do mais, um trabalho conjunto feito entre a Polícia Militar e a Polícia Civil somente gerará dividendos para a sociedade, na medida em que a PM repassará as informações e a Polícia Civil poderá investigar e decidir o melhor momento, sob o ponto de vista investigativo, da atuação policial, o que possibilitará ampliar o número de prisões de agentes envolvidos, bem como a localização de uma maior quantidade de drogas e armas, enquanto que a ausência de comunicação entre as instituições pode levar à frustração das diligências realizadas pela autoridade de polícia judiciária que poderá estar investigando um agente por tráfico de drogas e aguarda o melhor momento para atuar, na certeza do flagrante ou mediante pedido de autorização judicial, o que pode ser interrompido por uma ação antecipada da Polícia Militar, que atuou de boa-fé, com o intuito de somar, de combater e de prevenir o crime. Às vezes a autoridade de polícia judiciária possui informações da prática de um tráfico de drogas, está investigando o caso e planeja atuar em um determinado dia, pois sabe que neste dia planejado chegará maior quantidade de drogas e haverá uma possibilidade maior de efetuar a prisão de mais agentes do tráfico. A comunicação, cooperação e parceria entre as instituições é o melhor caminho para a repressão e prevenção.

A seguir, tabela esquematizada com a síntese dos entendimentos do Superior Tribunal de Justiça em diversos casos.

Ingresso lícito da polícia
DecisãoJulgado
É legítimo o ingresso forçado em imóvel não habitado após denúncia anônima e monitoração do local pela polícia para confirmar ausência de habitantes.HC: 588445 J.25/08/2020.
É legítimo o ingresso no domicílio alheio em razão de denúncia de disparo de arma de fogo dentro da casa.HC 595.700, J. 06/10/2020.
Busca por arma de fogo utilizada em crime autoriza o ingresso forçado em domicílio, na hipótese em que o agente for reconhecido por foto e fugir ao avistar a aproximação da polícia, entrando em sua casa e se evadindo pela janela em direção à mata.HC 614.078, J. 03/11/2020.
É legítima busca domiciliar forçada realizada por policiais militares que sentem cheiro de maconha. No caso concreto os policiais foram autorizados a entrar na casa pelo agente que buscava documento de identidade para apresentar aos policias, momento em que foi sentido o forte cheiro de maconha, o que somado ao nervosismo do agente, legitimou o ingresso na residência.HC 423838, J. 08/12/2018.
Denúncia de traficância via COPOM, associada a atitude suspeita e emprego de fuga do agente autoriza o ingresso forçado em domicílio.HC 607.601 J. 27/10/2020.
Investigação inicial de crimes de receptação e falsidade ideológica e posterior suspeita de prática de traficância confirmada por agentes da divisão estadual de narcóticos legitimam o ingresso forçado em domicílio.HC 610.828 J. 27/10/2020.
Agente encontrado no telhado se desfazendo das drogas autoriza o ingresso forçado em domicílio.RHC 129.923 J. 06/10/2020.
Denúncia anônima associada à fuga de agentes, que portavam arma de fogo e rádios comunicadores, e relato de usuários que o local é ponto de venda e consumo de drogas, legitima ingresso forçado em domicílioHC 500.101 J. 11/06/2019.
Denúncia anônima, associada à fuga e descarte de droga autorizam o ingresso forçado.HC 516.746 J. 15/08/2019.
É lícito o ingresso em domicílio no caso em que policiais abordarem indivíduo na via pública em atividade duvidosa, sem documentos e que não saiba responder a perguntas básicas, e que aponte como lugar de moradia uma construção inacabada, sendo em seguida apontado o real endereço é por vizinhos.HC 484.111 J. 07/02/2019.
Box do tipo self storage não se enquadra no conceito de domicílio. Atenção: Em que pese não ser considerado domicílio, não significa que o ingresso é livre, devendo haver elementos que demonstrem a situação de flagrante delito, sobretudo diante do disposto no art. 22 da Lei n. 13.869/19.RHC 86.561 J. 21/08/2018
Ingresso ilícito da polícia
DecisãoJulgado
Denúncia anônima confirmada por vizinho desacompanhada de investigação preliminar não legitima o ingresso em domicílio.HC 609.982 J. 15/12/2020.
Denúncia anônima seguida de fuga do agente para dentro da residência não legitima o ingresso em domicílio.RHC 89.853 J. 18/02/2020.
A denúncia anônima, desacompanhada de outros elementos indicativos da ocorrência de crime, não legitima o ingresso de policiais no domicílio.REsp 1871856 J. 23/06/2020.
A “fama” de traficante, por já ter se envolvido com tráfico de drogas, não justifica, por si só, o ingresso na casa sem mandado.RHC126092 J. 23/06/2020
A denúncia anônima, aliada à venda de drogas na porta da residência, não autorizam presumir armazenamento de substância ilícita no domicílio, razão pela qual o ingresso, sem mandado, é ilícito.REsp 1886985 J. 07/12/2020
A descoberta de droga por cão farejador, por si só, não autoriza o ingresso no domicílio.HC 566818 J. 16/06/2020.
Perseguição a veículo em fuga não autoriza ingresso policial em domicílio.HC 561360 J. 09/06/2020
A fuga para o interior de residência ao avistar o policial, que encontra-se em diligência de trânsito de rotina, não autoriza o ingresso em domicílio.HC 415332 J. 16/08/2018.
Não justifica o ingresso da polícia na residência na hipótese em que o agente encontra-se na porta de sua casa e adentra às pressas ao visualizar a viatura policial na rua.HC 609072 J. 06/10/2020.
Abordagem em quintal da residência não legitima ingresso forçado, ainda que um dos abordados empreenda fuga para dentro da residência e com o outro agente sejam encontradas drogas.HC 586474 J. 18/08/2020
A abordagem do agente, em local conhecido como ponto de tráfico, ainda que com ele encontre drogas, não autoriza o ingresso na residência.HC 611.918 J. 07/12/2020.

NOTAS

1LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 7. ed. Salvador: Juspodivm, 2020.p. 838.

2 STJ – HC: 69552 PR 2006/0241993-5, Relator: Ministro FELIX FISCHER, Data de Julgamento: 06/02/2007, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJ 14/05/2007 p. 347.

3OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de processo penal. 24ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2020.

4STJ, RHC: 126092 SP 2020/0096758-5, Rel. Ministro Reynaldo Soares Da Fonseca, 5ª Turma, j. 23/06/2020.

5 STF – RE nº 603.616/RO

6STJ, HC: 566818, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, decisão monocrática, Data de Publicação: DJ 29/04/2020.

7STJ – HC: 588445 SC 2020/0139280-1, Relator: Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, Data de Julgamento: 25/08/2020, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 31/08/2020

8STJ – RHC: 89853 SP 2017/0247930-4, Relator: Ministro RIBEIRO DANTAS, Data de Julgamento: 18/02/2020, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 02/03/2020.

9HC 364.359/SP, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 19/02/2019, DJe 12/03/2019.

10STF-RT, 709/418

11STJ – RHC: 89853 SP 2017/0247930-4, Relator: Ministro RIBEIRO DANTAS, Data de Julgamento: 18/02/2020, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 02/03/2020.

12 Disponível em: <https://veja.abril.com.br/brasil/o-duro-trabalho-de-um-cao-farejador/>. Acesso em: 04/02/2021.

13AgRg no HC 423.838/SP, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, j. 08/02/2018.

14 ROSA, L. E. (2009). O emprego de cães de faro nas operações de fiscalização de drogas ilícitas realizadas nos postos da Polícia Militar Rodoviária de Santa Catarina. Polícia Militar de Santa Catarina, 2009.

15 Disponível em: <https://aopp.org.br/pdf/O_olfato_do_cachorro_permite_ao_policial_militar_ingressar_no_domicilio_sem_autorizacao_%20judicial_ou_sem_consentimento_do_morador.pdf>. Acesso em: 04/02/2021.

16STF-RT, 709/418

17HC 364.359/SP, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 19/02/2019, DJe 12/03/2019.

18 STF-RT, 709/418.

19NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 19ª. ed. ver., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2020.

20“A ‘fundada suspeita’, prevista no art. 

244 do 

CPPnão pode fundar-se em parâmetros unicamente subjetivosexigindo elementos concretos que indiquem a necessidade da revista, em face do constrangimento que causa. Ausência, no caso, de elementos dessa natureza, que não se pode ter por configurados na alegação de que trajava, o paciente, um” blusão “suscetível de esconder uma arma, sob risco de referendo a condutas arbitrárias ofensivas a direitos e garantias individuais e caracterizadoras de abuso de poder. Habeas corpus deferido para determinar-se o arquivamento do Termo. (

HC 81305, Min. ILMAR GALVÃO, DJ 22-02-2002).

21 STJ – AgRg no HC: 585150 SC 2020/0126925-4, Relator: Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, Data de Julgamento: 04/08/2020, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 13/08/2020.

22STF-RT, 709/418

23STJ, AgRg no REsp 1886985/RS, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, 6ª Turma, j. em 07/12/2020.

24STF-RT, 709/418

25STJ, AgRg no REsp 1886985/RS, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, 6ª Turma, j. em 07/12/2020.

26STJ – RHC: 89853 SP 2017/0247930-4, Relator: Ministro RIBEIRO DANTAS, Data de Julgamento: 18/02/2020, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 02/03/2020.

O direito fundamental à inviolabilidade de domicílio e os seus limites

Sumário: 1. O direito fundamental à inviolabilidade domiciliar. 2. O conceito de casa. 2.1. O direito à inviolabilidade domiciliar da pessoa em situação de rua. 3. Hipóteses em que são autorizados o ingresso em domicílio alheio. 3.1 Livre consentimento; 3.1.1 Quando houver mais de um morador na casa, é suficiente que somente um autorize o ingresso da polícia? Na hipótese em que um dos moradores não autorizar o ingresso na casa, a polícia poderá entrar?. 3.2 Flagrante delito; 3.3 Desastre; 3.4 Para prestar socorro; 3.5 Por determinação judicial, durante o dia. Conceito de dia. É possível o cumprimento de mandado durante a noite? 3.6 Desapropriação; 3.7 Para a contenção de doenças (saúde pública); 3.8 Tolerância de ingresso do vizinho; 3.9 Ingresso do proprietário do imóvel locado; 4. O ingresso irregular em casa configura crime de abuso de autoridade?

1.O direito fundamental à inviolabilidade domiciliar

O direito fundamental à inviolabilidade domiciliar possui raízes inglesas, conforme se extrai de um discurso proferido por Lord Chatam no Parlamento Britânico: O homem mais pobre desafia em sua casa todas as forças da Coroa, sua cabana pode ser muito frágil, seu teto pode tremer, o vento pode soprar entre as portas mal ajustadas, a tormenta pode nela penetrar, mas o Rei da Inglaterra não pode nela entrar”.

No Brasil, a inviolabilidade domiciliar possui previsão desde a Lei de 14 de outubro de 1822, que tratou do devido respeito à casa do cidadão e assegurou no art. 1º que “Depois do Sol posto, e antes de nascer, nenhuma Autoridade, ou Empregado Publico, poderá entrar em alguma casa sem consentimento de quem nella morar.”

Desde a Constituição do Império (1824) a inviolabilidade domiciliar é assegurada constitucionalmente.1

A inviolabilidade domiciliar visa assegurar um feixe de direitos, dentre os quais encontra-se a intimidade, a privacidade, a paz, o sossego, a liberdade de estar só ou com a sua família sem a interferência de qualquer outra pessoa e a liberdade de fazer o que bem entender, desde que não seja ilícito, pois a inviolabilidade domiciliar não pode ser utilizada como um escudo protetor para a prática de ilicitudes.

Deve-se destacar que todas as pessoas possuem o mesmo grau de proteção constitucional da inviolabilidade domiciliar, independentemente, da condição econômica. Trata-se de um direito assegurado aos ricos e aos pobres, ainda que estes morem em um barraco debaixo da ponte. Por serem os pobres mais vulneráveis, é necessário que haja uma maior proteção estatal, com o fim de assegurar a inviolabilidade domiciliar, na medida em que a igualdade de direitos fundamentais, em sua essência, só é assegurada quando os seus destinatários podem exercê-los em condições de igualdade e esta só é alcançada quando na vida real há igual proteção.

Portanto, para saber se o direito à inviolabilidade domiciliar é devidamente cumprido pelo Estado e por particulares, deve-se analisar no plano hipotético se as pessoas que adentraram à residência de uma pessoa simples, em uma favela (sem nenhuma conotação pejorativa), adentrariam também, diante das mesmas circunstâncias fáticas, na residência de uma pessoa abastada, em bairro nobre.

Caso a resposta seja negativa, é um indicativo de que pode ter ocorrido excessos ao ingressar no domicílio alheio.

O art. 5º, XI, da Constituição garante a inviolabilidade domiciliar e que ninguém nela pode penetrar, salvo nas hipóteses autorizadas constitucionalmente.

Em 1988, quando da promulgação da Constituição, o constituinte ao utilizar o verbo “penetrar” pretendeu vedar a entrada física arbitrária do Estado ou do particular em residências.

Ocorre que a Constituição Federal já possui mais de 30 anos e deve ser feita uma interpretação evolutiva, adaptada à nova realidade, sobretudo em observância às tecnologias atuais, inexistentes à época ou até mesmo inimagináveis, com o fim de se garantir a máxima efetividade dos direitos fundamentais e a proibição de proteção deficiente.

Nesse sentido, o verbo “penetrar”, atualmente, deve ser entendido como qualquer adentramento físico ou virtual ou por instrumento tecnológico que permita a captação de imagens e áudios na residência de terceiros. Portanto, a instalação de uma câmara que filme o interior de uma residência ou a extração de fotos e imagens do lado de fora para dentro da casa, sem autorização judicial ou do morador, é ilícita, pois penetra, adentra à residência, indevidamente, o que viola o art. 5º, XI, da Constituição Federal, além de violar, igualmente, o inciso X da Constituição Federal que assegura a inviolabilidade da intimidade e da vida privada.

A Constituição Federal especifica no art. 5º, XI, as hipóteses que autorizam o ingresso de terceiros em residência alheia, sem que se configure situação de ilegalidade.

Art. 5º (…) XI – a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;    (Vide Lei nº 13.105, de 2015)   (Vigência)

Obviamente, o livre consentimento do morador também torna lícito o ingresso de terceiros em sua casa.

Além das hipóteses autorizadas pela Constituição, consistentes em flagrante delito, desastre, para prestar socorro ou por determinação judicial, se durante o dia, a lei especifica outras situações que autorizam o ingresso em domicílio.

O art. 7º do Decreto-Lei n. 3.365/41 prevê que “Declarada a utilidade pública, ficam as autoridades administrativas autorizadas a penetrar nos prédios compreendidos na declaração, podendo recorrer, em caso de oposição, ao auxílio de força policial.

A Lei n. 13.301/16 dispõe sobre a adoção de medidas de vigilância em saúde quando verificada situação de iminente perigo à saúde pública pela presença do mosquito transmissor do vírus da dengue, do vírus chikungunya e do vírus da zika, sendo autorizado pelo art. 1º, § 1º, IV, § 1o, o “ingresso forçado em imóveis públicos e particulares, no caso de situação de abandono, ausência ou recusa de pessoa que possa permitir o acesso de agente público, regularmente designado e identificado, quando se mostre essencial para a contenção das doenças.”

O Código Civil, no art. 1.313, I e II, obrigada o proprietário ou ocupante de imóvel a tolerar que o vizinho entre no prédio, mediante prévio aviso, para “dele temporariamente usar, quando indispensável à reparação, construção, reconstrução ou limpeza de sua casa ou do muro divisório” ou para “apoderar-se de coisas suas, inclusive animais que aí se encontrem casualmente.”

A Lei 8.245/91 (Lei de Locações) prevê que o locatário (aquele que aluga o imóvel de terceiros) é obrigado a permitir a vistoria do imóvel pelo locador ou por seu mandatário, mediante combinação prévia de dia e hora, bem como admitir que seja o mesmo visitado e examinado por terceiros, no caso de venda (art. 23, IX).

2. O conceito de casa

O conceito de casa não é fechado e para fins de proteção constitucional (art. 5º, XI) deve ser interpretado de forma ampla.2

Com efeito, o art. 5º, XI, da Constituição Federal assegura que a casa, como regra, é asilo inviolável do indivíduo.

O art. 150, §§ 4º e 5º, do Código Penal (art. 226, §§ 4º e 5º, do CPM) é uma norma de conteúdo explicativo e define que a expressão “casa” compreende: a) qualquer compartimento habitado; b) aposento ocupado de habitação coletiva; c) compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade e que não se compreendem na expressão “casa”: a) hospedaria, estalagem ou qualquer outra habitação coletiva, enquanto aberta, salvo quando se tratar de aposento ocupado de habitação coletiva e b) taverna, casa de jogo e outras do mesmo gênero.

Para fins constitucionais, penais e processuais penais, o conceito de “casa” é mais amplo do que o de residência e aquele definido no Código Civil, ao conceituar domicílio (art. 70).

Art. 70. O domicílio da pessoa natural é o lugar onde ela estabelece a sua residência com ânimo definitivo.

O conceito de domicílio previsto no Código Civil é restrito ao local onde a pessoa fixa sua residência com a vontade de morar.

Alexandre de Moraes ensina que no “sentido constitucional, o termo domicílio tem amplitude maior do que no direito privado ou no senso comum, não sendo somente a residência, ou, ainda, a habitação com intenção definitiva de estabelecimento, mas inclusive, quarto de hotel habitado. Considera-se, pois, domicílio todo local, delimitado e separado, que alguém ocupa com exclusividade, a qualquer título, inclusive profissionalmente, pois nessa relação entre pessoa e espaço preserva-se, mediatamente, a vida privada do sujeito.”3

Nesse sentido, casa para fins constitucionais é todo local restrito, não aberto ao público, que uma pessoa utiliza com exclusividade, para morar ou trabalhar.

O Código Penal Comum e Militar apresentam, exemplificadamente, hipóteses do que é casa e do que não é.

Para a lei penal comum e militar, a expressão “casa” compreende: a) qualquer compartimento habitado; b) aposento ocupado de habitação coletiva; c) compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade.

a) qualquer compartimento habitado: abrange todo e qualquer local destinado à ocupação humana e que esteja em uso, ainda que aquele que utilize não esteja presente fisicamente, desde que temporariamente. Em caso de abandono o compartimento deixa de ser habitado e deixa de possuir a proteção constitucional de casa, como uma residência abandonada. Em que pese o termo “compartimento” transmitir a ideia de divisão, de uma parte do todo, deve ser interpretado em sentido amplo, de forma que abranja não só as partes de um todo, mas o todo também. Se as partes de um todo são invioláveis, logicamente, o todo também é inviolável. Se os cômodos de uma casa são invioláveis, a casa também é. O local deve ser utilizado para moradia, independentemente, dessa moradia ser temporária ou permanente. O compartimento habitado não precisa ser imóvel. A lei é clara ao dizer “qualquer compartimento habitado”, o que abrange móveis e imóveis. São exemplos de “qualquer compartimento habitado”: a casa; o pequeno barraco debaixo da ponte – que é uma casa -; barcos e vagões de trem utilizados como dormitórios; a boleia do caminhão; contêineres utilizados para a moradia; trailer; motorhome; locais que as pessoas dormem na rua, no chão ou sobre um colchão, e colocam seus pertences ao lado – este espaço goza de proteção constitucional e é considerado “qualquer compartimento habitado”, pois é o local em que essas pessoas moram.

Destaca-se que casa de praia4, imóvel de veraneio, sítios e fazendas que são ocupados eventualmente, seja em alguns dias no ano ou em alguns finais de semana, são considerados “casa”, uma vez que não estão abandonados, mas sim desocupados temporariamente. É suficiente para a caracterização de “casa”, o fato de ser eventualmente ocupado, ainda que em alguns dias do ano. Em que pese o art. 150, § 4º, I, do Código Penal mencionar “qualquer compartimento habitado”, a interpretação de “casa” é ampla, pois visa tutelar direito fundamental, razão pela qual o termo “habitado” não impede que se considere “casa” os imóveis temporariamente desocupados, mas que são habitados pelos donos ou não no decorrer do tempo.

De mais a mais, é possível realizar uma interpretação extensiva, que conceda maior proteção a um direito fundamental, e ainda que possua repercussões no crime de violação de domicílio, a par das divergências, não há impedimento para que a interpretação extensiva seja em prejuízo ao réu, uma vez que não inova, mas somente interpreta e busca a finalidade do conceito legal empregado (casa).

b) aposento ocupado de habitação coletiva: habitação coletiva refere-se a um local para a moradia, hospedagem ou permanência de várias pessoas, como os quartos de um hotel ou uma pensão; apart-hotel repúblicas; flats. O local deve estar ocupado para ser considerado “casa”, ainda que por uma pessoa que não esteja dentro do quarto, portanto, um quarto de hotel vazio não goza de proteção constitucional. Destaca-se que somente os locais destinados a ocupação exclusiva de pessoas pode ser considerado “casa”, razão pela qual os locais de uso comum, como os corredores dos hotéis, a sala de espera e a recepção, não são considerados “casa”.

c) compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade: trata-se de hipótese que contempla o espaço de trabalho, com vista a assegurar a necessária tranquilidade para o desempenho das funções. Nos locais de trabalho, seja público ou privado, pois a lei não distingue, o espaço fechado ao público é considerado “casa” e possui proteção constitucional. Dessa forma, considera-se “casa” a parte interna de um barzinho ou restaurante (dentro do balcão); o consultório médico na área que o médico atende (a sala de espera é aberto ao público); o escritório de advocacia; o gabinete de um juiz, promotor, delegado ou comandante; a parte interna dos cartórios judiciais e extrajudiciais; cozinhas de bares, restaurantes e hotéis, quando não houver o direito de visitar, o que decorre de previsão em lei; as lavanderias e quaisquer espaços fechados ao público em que as pessoas exerçam profissão ou atividade; o local onde as garotas de programa atendem seus clientes em uma casa da prostituição.

Não se deve discutir se a profissão ou atividade é moral ou imoral. Para a lei, isso pouco importa, pois o que se tutela é a profissão ou atividade. Além do mais, não cabe ao Estado realizar juízos morais da vida privada de qualquer pessoa e querer impor um determinado padrão de conduta. Não sendo prática ilícita, deve merecer tutela do Estado e não repressão.

O Código Brasileiro de Ocupações, regulamentado pela Portaria do Ministério do Trabalho n. 397, de 2002, reconhece a atividade dos profissionais do sexo como uma categoria profissional (código 5198).

O STJ já reconheceu a licitude da prostituição, quando a pessoa for maior de idade e não vulnerável (HC 211888-TO).

Dessa forma, o local onde as garotas de programa atendem seus clientes em um prostíbulo é considerado “casa”, esteja ou não efetivamente em atendimento a seus clientes, e a polícia não pode adentrar nos quartos de uma “zona” (termo este utilizado para que fique muito claro) sem mandado de busca e apreensão, salvo nas hipóteses autorizadas constitucionalmente, como a presença de flagrante delito.

No entanto, a polícia poderá adentrar à área aberta do prostíbulo, realizar buscas e operações policiais, pois se trata de compartimento aberto ao público e não goza da proteção de casa, conforme art. 150, § 4º, III, do CP.

É importante mencionar que o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que o gabinete do Delegado de Polícia, em que pese pertencer a uma repartição pública, possui proteção penal na forma do art. 150, § 4º, III, do Código Penal.

Configura o crime de violação de domicílio (art. 150 do CP) o ingresso e a permanência, sem autorização, em gabinete de Delegado de Polícia, embora faça parte de um prédio ou de uma repartição públicos.

No caso concreto, dezenas de manifestantes foram até a Delegacia de Polícia Federal cobrar agilidade na conclusão de um inquérito policial. Como não foram recebidos, decidiram invadir o gabinete do Delegado.

STJ. 5ª Turma. HC 298763-SC, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 7/10/2014 (Info 549)5.

Questão controversa refere-se ao tratamento dado aos imóveis rurais.

O Estatuto da Terra define imóvel rural, para os fins previstos no estatuto, como o prédio rústico, de área contínua qualquer que seja a sua localização que se destina à exploração extrativa agrícola, pecuária ou agro-industrial, quer através de planos públicos de valorização, quer através de iniciativa privada (art. 4º, I, da Lei n.4.504/64).

A primeira corrente sustenta que o imóvel rural não goza da proteção constitucional da inviolabilidade domiciliar, por mais amplo que seja o conceito de casa, uma vez que a finalidade do crime de violação de domicílio e da tutela do direito fundamental à inviolabilidade domiciliar é assegurar a paz, o sossego, a privacidade, a intimidade e até mesmo a tranquilidade para trabalhar. O imóvel rural possui dimensão incompatível com os fins da proteção à inviolabilidade domiciliar, pois o bem jurídico tutelado não é violado em caso de invasão. Isto é, não há violação à paz, ao sossego, à privacidade, à intimidade e ao direito de trabalhar em paz.

Nesse sentido são as lições de Júlio Fabrini Mirabete.

(…) no caso em que há invasão de imóvel rural, não configura o delito para os efeitos do art. 150 do CP, a propriedade rural não pode ser considerada como dependência domiciliar, posto que o bem jurídico tutelado pelo crime de invasão de domicílio é a liberdade individual, a privacidade do lar, atributos inexistentes na amplitude da zona rural (…) (Citado por GRANJA, Cícero Alexandre. Domicílio e suas interpretações doutrinárias e seus mecanismos de proteção. Disponível em: <Domicílio e suas interpretações doutrinárias e seus mecanismos de proteção>.)

Para esta corrente, que parece prevalecer, a proteção do imóvel rural limita-se à casa propriamente dita.

A segunda corrente, a qual defendemos, sustenta que configura crime de violação de domicílio adentrar em imóvel rural fora das hipóteses autorizadas constitucionalmente, pois, independentemente, de não violar a privacidade ou intimidade, não deixa de violar o direito à paz, ao sossego e à tranquilidade que são perturbados quando o morador tem ciência de que terceiros estão a invadir seu imóvel rural e que poderão estar, a qualquer momento, dentro ou próximo da casa propriamente dita. Além do mais, caso o imóvel rural seja utilizado para plantação ou pasto para gado, tem-se a presença de um local não aberto ao público em que são realizadas atividades, o que também possui proteção penal.

O art. 5º, § 5º, do Estatuto do Desarmamento – Lei n. 10.826/03 – assegura aos residentes em área rural, o direito a andar com a arma em toda a extensão do imóvel rural, por ser considerada residência ou domicílio (posse de arma de fogo), o que reforça que a proteção constitucional da inviolabilidade domiciliar abrange todo o imóvel rural.

Art. 5o O certificado de Registro de Arma de Fogo, com validade em todo o território nacional, autoriza o seu proprietário a manter a arma de fogo exclusivamente no interior de sua residência ou domicílio, ou dependência desses, ou, ainda, no seu local de trabalho, desde que seja ele o titular ou o responsável legal pelo estabelecimento ou empresa.(Redação dada pela Lei nº 10.884, de 2004)

§ 5º Aos residentes em área rural, para os fins do disposto no caput deste artigo, considera-se residência ou domicílio toda a extensão do respectivo imóvel rural. (Incluído pela Lei nº 13.870, de 2019)

Dessa forma, toda a extensão do imóvel rural deve ser considerada casa para fins de proteção da inviolabilidade domiciliar, desde que o imóvel rural esteja cercado e não aberto ao público.

O Supremo Tribunal Federal já se manifestou que o imóvel rural possui a proteção constitucional da inviolabilidade domiciliar, ao decidir que não era necessária autorização judicial para ingressar em imóvel rural quando houvesse situação caracterizadora de flagrante de crime permanente, no caso, redução à condição análoga à de escravo, ocasião em que se referiu ao imóvel rural como “domicílio alheio” (HC n. 106.178).

Não são consideradas casas para a lei penal.

a) hospedaria, estalagem ou qualquer outra habitação coletiva, enquanto aberta, salvo quando se tratar de aposento ocupado de habitação coletiva: esses locais quando estiverem abertos ao público permitem o ingresso e saída de pessoas, sem que haja maiores preocupações com a privacidade, intimidade, tranquilidade e sossego protegidos pela inviolabilidade domiciliar. Caso estejam fechados ou ocupados devem ser considerados “casa” e gozam de proteção constitucional.

Hospedaria é o local destinado a receber pessoas para ficarem por um tempo, geralmente, mediante contraprestação econômica, como um hotel, motel, flat, hostel.

Estalagem também é um local destinado a receber pessoas para ficarem por um tempo, geralmente, mediante contraprestação financeira, todavia possui instalações mais simples e menores que a de hospedarias, como as pensões, abrigos e pousadas.

Por “qualquer outra habitação coletiva” deve-se entender qualquer outro local destinado a receber pessoas, como as áreas de campings.

b) taverna, casa de jogo e outras do mesmo gênero: naturalmente, esses locais são abertos ao público, razão pela qual não gozam de proteção penal quanto à inviolabilidade domiciliar.

Taverna é o local de livre acesso ao público em que são vendidas bebidas e alimentos. São os bares e restaurantes.

Casa de jogo é o local de livre acesso ao público que possui fliperama, lotérica, jogos de tabuleiros ou qualquer outro legalmente permitido. No Brasil são proibidos jogos de azar, como o cassino e o bingo.

Por “outras do mesmo gênero” deve-se compreender todo local de acesso ao público utilizado para diversão, como as boates, teatros, cinemas, estádio de futebol, dentre outros.

Em se tratando do escritório de advocacia, o art. 7º, II, da Lei n. 8.906/1994 assegura a inviolabilidade do escritório ou do local de trabalho.

Art. 7º São direitos do advogado:

II – a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia; (Redação dada pela Lei nº 11.767, de 2008)

Ocorre que os § 6º do art. 7º permite a busca no escritório de advocacia ou local de trabalho quando presentes indícios de autoria e materialidade da prática de crime por parte de advogado

§ 6o Presentes indícios de autoria e materialidade da prática de crime por parte de advogado, a autoridade judiciária competente poderá decretar a quebra da inviolabilidade de que trata o inciso II do caputdeste artigo, em decisão motivada, expedindo mandado de busca e apreensão, específico e pormenorizado, a ser cumprido na presença de representante da OAB, sendo, em qualquer hipótese, vedada a utilização dos documentos, das mídias e dos objetos pertencentes a clientes do advogado averiguado, bem como dos demais instrumentos de trabalho que contenham informações sobre clientes. (Incluído pela Lei nº 11.767, de 2008)

Em caso concreto, o Supremo Tribunal Federal validou o ingresso a autoridade policial em escritório de advocacia para a instalação de equipamento de captação de sinais óticos e acústicos, na medida em que o sigilo do advogado não existe para protegê-lo na prática de crimes, não sendo admissível que a inviolabilidade transforme o escritório em um local seguro para praticar crimes.6

É importante esclarecer que em nenhuma hipótese é possível a quebra da inviolabilidade do escritório de advocacia para investigar a prática de crime de seu cliente, desde que o advogado atue somente na condição de advogado e não esteja envolvido na prática do crime. O advogado não se confunde com o seu cliente, independentemente, do crime que este tenha praticado, da mesma forma que o médico não se confunde com o paciente que tenha praticado um crime gravíssimo.

Nesse sentido dispõe o art. 7º, § 7º, da Lei n. 8.906/1994

§ 7oA ressalva constante do § 6o deste artigo não se estende a clientes do advogado averiguado que estejam sendo formalmente investigados como seus partícipes ou co-autores pela prática do mesmo crime que deu causa à quebra da inviolabilidade. (Incluído pela Lei nº 11.767, de 2008)

Na hipótese em que a inviolabilidade do escritório de advocacia for quebrado, ocorre a prática do crime previsto no art. 7º-B da Lei n. 8.906/1994, em razão da redação dada pela Lei n. 13.869/2019, e não do art. 150 do Código Penal ou art. 22 da Lei de Abuso de Autoridade, em razão do princípio da especialidade.

Art. 7º-B Constitui crime violar direito ou prerrogativa de advogado previstos nos incisos II, III, IV e V do caput do art. 7º desta Lei: (Incluído pela Lei nº 13.869. de 2019)

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. (Incluído pela Lei nº 13.869. de 2019)


Apontada as exceções à inviolabilidade domiciliar e o que configura casa ou não para fins de proteção constitucional e penal, deve ser feita uma análise de cada umas das exceções previstas na Constituição e nas leis.

2.1 O direito à inviolabilidade domiciliar da pessoa em situação de rua

O Decreto n. 7.053, de 23 de dezembro de 2009, instituiu a Política Nacional para a População em Situação de Rua e define no art. 1º, parágrafo único, que considera população em situação de rua, para fins do Decreto, “o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória.”

Em que pese o referido decreto mencionar “para fins do Decreto” e passar a impressão de que este conceito deve ser aplicado somente para as hipóteses tratadas no Decreto que versem sobre a Política Nacional para a População em Situação de Rua, serve também para ser utilizado como parâmetro para o conceito de “casa” para as pessoas que vivem na rua, uma vez que o conceito de população em situação de rua é o mesmo sob todas as óticas e o próprio Decreto n. 7.053/09 visa promover os direitos humanos e a dignidade das pessoas que moram nas ruas, inclusive em relação à moradia (art. 7º, I).

Nota-se que, independentemente, de ocuparem um espaço público, o local que utilizam para moradia, temporária ou permanente, deve ser considerado “espaço de moradia”.

O art. 73 do Código Civil dispõe que “Ter-se-á por domicílio da pessoa natural, que não tenha residência habitual, o lugar onde for encontrada” e o o art. 7º, § 8º, da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro prescreve que “Quando a pessoa não tiver domicílio, considerar-se-á domiciliada no lugar de sua residência ou naquele em que se encontre.

Trata-se do domicílio ocasional ou aparente.

O termo “domicílio” apresenta distinções conceituais de residência e moradia, também denominado habitação.

Carlos Roberto Gonçalves7 ensina que:

Domicílio é a sede jurídica da pessoa, onde ela se presume presente para feitos de direito e onde pratica habitualmente seus atos e negócios jurídicos.

A residência é, portanto, apenas um elemento componente do conceito de domicílio, que é mais amplo e com ela não se confunde. Residência, como foi dito, é simples estado de fato, sendo o domicílio uma situação jurídica. Residência, que indica a radicação do indivíduo em determinado lugar, também não se confunde com morada ou habitação, local que a pessoa ocupa esporadicamente, como a casa de praia ou de campo, ou o hotel em que passa uma temporada, ou mesmo o local para onde se mudou provisoriamente até concluir a reforma de sua casa. É a mera relação de fato, de menor expressão que residência.

Uma pessoa pode ter um só domicílio e mais de uma residência. (…)

Admite-se, também, que uma pessoa possa ter domicílio sem possuir residência determinada, ou em que esta seja de difícil identificação. Preleciona Orlando Gomes que, nesses casos, para resguardar o interesse de terceiros, vem-se adotando a teoria do domicílio aparente, segundo a qual, no dizer de Henri de Page, ‘aquele que cria as aparências de um domicílio em um lugar pode ser considerado pelo terceiro como tendo aí seu verdadeiro domicílio.’” (destaquei)

As leis utilizam a expressão domicílio sem rigor técnico, tanto é que emprega este termo na Constituição para se referir ao domicílio eleitoral (art. 14, § 3º, IV); no processo penal para fixar competência jurisdicional (art. 69, II, do CPP) e para tratar da busca domiciliar (art. 240 do CPP); no processo civil para tratar da fixação de competência (arts. 22, 46, 47, 48 e outros do CPC); no direito tributário para tratar do domicílio tributário (art. 127 do CTN), dentre outros.

Independentemente, do conceito ou termo que se utilize, a denominação “casa” contida no art. 5º, XI, da Constituição Federal é a expressão que contém a maior amplitude conceitual e independe da casa ser móvel ou imóvel, desde que seja um espaço utilizado para o momento de descanso, paz, sossego, privacidade, intimidade ou até mesmo para o trabalho, desde que não seja aberto ao público.

A expressão “casa” contida na Constituição abrange o conceito de domicílio, residência e de moradia (habitação), é um conceito abrangente.8

Diante desse cenário, pode-se dizer que as pessoas que moram nas ruas possuem direito à inviolabilidade domiciliar?

As pessoas que moram na rua e escolhem um canto para dormirem, ocasião em que deitam e dormem no chão ou sobre um simples colchão e colocam seus pertences ao lado, também gozam de proteção constitucional da inviolabilidade domiciliar, pois se encaixa no conceito de “qualquer compartimento habitado” (art. 150, § 4º, I, do CP). Portanto, este pequeno e simples espaço ocupado por um morador de rua, ainda que seja desprovido de divisão visual e de estrutura material, é considerado “casa” para fins da proteção constitucional da inviolabilidade domiciliar (art. 5º, XI), ainda que cada dia durma em um local diferente. Dessa forma, a polícia não pode abordar essas pessoas quando estiverem em suas casas sem que haja um mandado de busca e apreensão, salvo se visualizar a prática de crime, ocasião em que o agente estará em flagrante delito (art. 302 do CPP) ou em outra hipótese autorizada constitucionalmente. Caso haja suspeita de que essa pessoa guarde drogas ou armas consigo, mas não seja possível uma atuação em flagrante delito, em razão da ausência de elementos concretos para a atuação policial, poderá ser solicitado mandado de busca e apreensão ao juiz que poderá expedi-lo e constar como destinatário do mandado o morador que troca de casa diariamente, de forma que seja abordado onde for encontrado pela polícia.

Independentemente, de ocuparem um espaço público, o local que utilizam para moradia, temporária ou permanente, deve ser considerado casa para fins constitucionais.

Deryck Miranda Belizário no texto “Os Direitos Fundamentais das Pessoas em Situação de Rua: O Ministério Público como Instituição Garantidora Desses Direitos”9 escreve que “Apesar de ser um grupo heterogêneo (pessoas em situação de rua), possui em comum, caracterizando a situação precária de rua: a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional – seu teto são o sol e a lua, suas paredes são os papelões ou os viadutos e as pontes.”

Para o morador de rua não existe a moradia convencional e como muito bem afirmado pelo autor, “seu teto são o sol e a lua, suas paredes são os papelões ou os viadutos e as pontes.”

Para saber se o morador de rua se utiliza de um espaço público como “casa” deve-se observar o seu comportamento, o tempo que permanece no local, se utiliza para dormir, para o descanso, para se alimentar, para guardar seus objetos pessoais.

O direito à moradia é um direito social assegurado no art. 6º da Constituição Federal. Obviamente, o constituinte visou garantir uma moradia digna, e na ausência de uma moradia convencional, deve-se assegurar, ainda que minimamente, que o espaço que os moradores de rua fazem de “moradia” possua proteção constitucional.

Sequer o mínimo existencial e a dignidade da pessoa humana são assegurados aos moradores de rua – lamentavelmente, estão abaixo de qualquer noção de dignidade – que são vistos como coisas, quando não são tidos como seres invisíveis aos olhos da sociedade. Trata-se de um processo de coisificação ou invisibilidade do ser humano.

A polícia enquanto órgão protetor da sociedade e das pessoas e o policial enquanto promotor de direitos humanos, deve zelar, sobretudo, pelos direitos fundamentais das classes menos favorecidas, que são as que mais necessitam de proteção estatal.

Certo é que a Constituição ao garantir a inviolabilidade domiciliar visou tutelar a privacidade e da intimidade, mas não foi só, pois visou proteger também a paz e o sossego.

Os moradores de rua não terão privacidade e intimidade ao estarem expostos publicamente em um colchão em local público, mas possuem o direito de gozarem de paz e de sossego, que são direitos assegurados na Constituição ao garantir a inviolabilidade domiciliar. Assegura-se ainda que precariamente, uma parte das finalidades do direito fundamental à inviolabilidade domiciliar.

Entender que os moradores de rua não possuem direito ao sossego e paz quando estiverem em seus “cantos”, que servem como “casa”, por morarem na rua, seria uma verdadeira negação de um direito fundamental para pessoas que já possuem uma vida extremamente sofrida e que necessitam de uma maior proteção estatal.

Em qualquer caso, não se deve permitir que os moradores de rua impeçam ou dificultem a livre circulação de pessoas ou veículos, em razão do interesse público e da necessidade de se assegurar o direito à locomoção sem que haja importunações.

Deve haver razoabilidade na ocupação de locais públicos por moradores de rua, de forma que não impeça o livre exercício de direito por terceiros, inclusive, o direito ao lazer, o que ocorreria na hipótese em que um morador de rua utilizasse um espaço de brinquedo infantil de uma praça para dormir.

A proteção da “casa” utilizada pelos moradores de rua deve ocorrer enquanto estiverem em seus “cantos”, geralmente, composto por um simples colchão ou colchonete, objetos de uso pessoal e algumas peças de roupa.

A partir do momento em que o morador de rua sai de seu “canto” e anda pelas ruas, perde o direito à proteção domiciliar, pois deixa de estar em “casa”, razão pela qual poderá ser abordado livremente pela polícia, caso apresente situação de fundada suspeita.

Argumentos no sentido de que os moradores de rua ocupam espaço público ou que praticam violência contra transeuntes e entre si, o que impossibilita a garantia da inviolabilidade domiciliar não se sustentam, pois, mutatio mutatis seria o mesmo que argumentar que as casas em favelas (termo utilizado sem nenhuma conotação pejorativa) com alto índice de criminalidade não merecem proteção, pois foram criadas em espaços públicos e são locais violentos.

O fato de ocupar espaços nas ruas, debaixo de viaduto e de pontes10, quando não trouxer prejuízo para nenhuma outra pessoa ou para o exercício de direito, deve ser tolerado pelo Poder Público, por uma questão social e humana, no sentido de se considerar “casa” para fins do art. 5º, XI, da Constituição Federal (função social da casa). Além do mais, o Decreto n. 7.053, de 23 de dezembro de 2009, reconhece a utilização desses espaços públicos como moradia da população em situação de rua.

A violência protagonizada por moradores de rua entre si e contra os transeuntes deve sim ser motivo de ação da polícia, contudo dentro dos limites da lei, de forma que somente aqueles moradores de rua que apresentarem suspeita da prática de crime, como portar droga, arma ou objeto produto de crime, sofram abordagens.

Eventuais abordagens realizadas aos moradores de rua como rotina policial, sem que haja qualquer fundamento, como uma estratégia de prevenção à prática de crimes, é inconstitucional e seria uma forma de presumir que a extrema pobreza implica estar mais propenso para a prática de crime.

Infelizmente, muitos moradores de rua são usuários de drogas ou alcoólatras, o que propicia a prática de crimes, razão pela qual a atuação da polícia preventivamente é essencial, sem, contudo, adentrar às humildes casas – se é que assim podem ser chamadas – dos moradores de rua, podendo realizar abordagens enquanto transitam pelas ruas ou dentro de suas casas quando for visualizado qualquer prática de crime.

O Brasil registra um alto índice de violência contra moradores de rua, que superou 17 mil casos de violência em três anos (2015-2017)11, o que reforça a necessidade do Estado garantir uma maior proteção da segurança dos moradores de rua.

O espaço que o morador de rua utiliza para dormir e guardar seus pertences, em que pese ser considerado “casa” para fins de proteção constitucional, não deve ser utilizado como um espaço seguro para guardar objetos produtos do crime. Direitos fundamentais não servem para a salvaguarda de práticas ilícitas12, mas sim para assegurar a proteção de direitos essenciais ao homem, que permitam usufruir de uma vida digna.

Deve-se salientar que a amplitude do conceito de “casa” visa resguardar a proteção constitucional da inviolabilidade (art. 5º, IX, da CF), o que não permite que o morador de rua se utilize de sua “casa” para com ela permanecer em local público, sendo vedado, inclusive, o uso de ações possessórias contra o poder público13, a eventual retenção ou indenização por acessões e benfeitorias14 e a usucapião de bem público (art. 183, § 3º, da CF). É possível que o Poder Público, inclusive, se utilize da autotutela e autoexecutoriedade e aplicação do art. 1.210, § 1º, do Código Civil (legítima defesa da posse ou desforço imediato)15 para retirar pessoas que queiram tornar o espaço público em local de uso privado16, caso se observe que um morador de rua, por exemplo, está a construir em um espaço público.

Destaco que o tema é altamente polêmico, controverso e o posicionamento sustentado neste texto encontrará resistências, sob a alegação principal de que o espaço utilizado é público.17

Na hipótese em que policiais adentrarem à “casa” de um morador de rua para realizar buscas, não haverá a prática do crime de abuso de autoridade previsto no art. 22 da Nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei n. 13.869/19), pois este crime ocorre somente em imóveis, uma vez que o tipo penal do art. 22 da Lei n. 13.869/19 diz expressamente que a invasão deve ser em “imóvel alheio ou suas dependências”.

Lado outro, o crime de violação de domicílio não exige que a invasão ocorra em imóvel, sendo este uma espécie de casa (gênero), que abrange imóveis e móveis.

Crime de abuso de autoridade de invasão de domicílioCrime de violação de domicílio
Art. 22. Invadir ou adentrar, clandestina ou astuciosamente, ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel alheio ou suas dependências, ou nele permanecer nas mesmas condições, sem determinação judicial ou fora das condições estabelecidas em lei: Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.Art. 150 – Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências: Pena – detenção, de um a três meses, ou multa. § 4º – A expressão “casa” compreende: I – qualquer compartimento habitado; II – aposento ocupado de habitação coletiva; III – compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade.

A Nova Lei de Abuso de Autoridade revogou o § 2º do art. 150 do Código Penal que era uma causa de aumento da pena, caso a invasão de domicílio fosse praticada por funcionário público fora dos casos legais, ou com inobservância das formalidades estabelecidas em lei, ou com abuso do poder, em razão da previsão específica do crime de abuso de autoridade para invasão de imóvel, mas se esqueceu de que a violação de domicílio pode ocorrer em móveis ou imóveis, sendo que agora a pena será maior somente quando a invasão ocorrer em imóveis, uma vez que o crime de abuso de autoridade previsto no art. 22 da Lei n. 13.869/19 possui pena mais grave e abrange somente os imóveis.

Dessa forma, o ingresso irregular nas “casas” de moradores de rua poderia configurar o crime de violação de domicílio, porém, dada a controvérsia do tema, deve-se aplicar a regra das descriminantes putativas.

Descriminantes são as causas de exclusão da ilicitude (estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal e exercício regular de um direito).

Putativa refere-se ao que parece, mas não é. É aquilo que é imaginário, que o agente acredita, seriamente, que ocorre uma situação, mas na verdade não ocorre.

As descriminantes putativas caracterizam as situações em que o agente atua acreditando estar acobertado por uma causa excludente de ilicitude, mas na verdade não está.

O equívoco da presença de uma causa excludente de ilicitude pode recair sobre a sua existência, os seus limites ou os seus pressupostos fáticos.

Na hipótese a descriminante putativa recai sobre a existência de uma causa excludente de ilicitude, pois o policial supõe equivocadamente, que existe uma causa que exclui a ilicitude (estrito cumprimento do dever legal putativo ao realizar uma abordagem dentro da “casa” do morador de rua, o que é permitido por se tratar de “casa”, mas o policial desconhece que é “casa” ou acolhe entendimento de que não é “casa”), o que exclui o dolo, seja o equívoco evitável ou não, e por inexistir crime de violação de domicílio culposo, o policial não será punido.18

Destaco que nas hipóteses de divergência jurisprudencial ou doutrinária que adotem entendimentos razoáveis e defensáveis, o acolhimento de um dos entendimentos pelo policial não deve levar à responsabilização criminal, seja pelo fato de possuir autonomia para aplicar o direito dentro das possibilidades jurídicas e legais existentes, seja por incidir em uma descriminante putativa, caso outra autoridade entenda, posteriormente, que o entendimento que deveria ser aplicado é diverso, como a hipótese em que o juiz julgar de forma diferente ao entendimento aplicado pelo policial, pois trata-se somente de uma divergência de entendimento, quando defensável, e não prática de arbitrariedades. De mais a mais, a Lei de Abuso de Autoridade prescreve que “a divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade” (art. 1º, § 1º), previsão esta que deve ser aplicada como cláusula geral para todas as situações de atuação policial, desde que não seja feita uma interpretação absurda, como admitir a possibilidade de prender em flagrante uma pessoa encontrada dias após a prática do crime.

3. Hipóteses em que são autorizados o ingresso em domicílio alheio

3.1Livre consentimento

O livre consentimento para o ingresso em “casa” ocorre quando o morador, ciente de que pode vedar o ingresso da polícia, o autoriza livre de qualquer intimidação, pressão, coação ou medo, de forma que a vontade do morador não esteja viciada, em razão de qualquer fator.

Não existe um conceito fechado do que seja intimidação, pressão, coação ou medo, o que deve ser analisado caso a caso.

O Código Civil, ao tratar dos defeitos do negócio jurídico, inclui a coação como um vício de vontade dispõe, o que anula o negócio jurídico.

Art. 151. A coação, para viciar a declaração da vontade, há de ser tal que incuta ao paciente fundado temor de dano iminente e considerável à sua pessoa, à sua família, ou aos seus bens.

Certo é que este conceito aplica-se aos negócios jurídicos, o que não impede de servir como parâmetro ao se analisar eventual coação quando o morador autoriza o ingresso da polícia.

A coação consiste em qualquer forma de pressão exercida sobre o morador. A pressão pode ser ostensiva ou velada.

Para os negócios jurídicos, o simples temor reverencial não é considerado coação (art. 153 do CC). Temor reverencial é o receio que uma pessoa possui em desagradar outra que possui respeito, consideração, admiração ou obediência, como a relação do filho com o pai, entre grandes amigos, do Coronel com o Soldado, do Delegado com o Agente. Contudo, tal raciocínio não deve ser aplicado na manifestação de autorização para ingresso em domicílio, pois o temor reverencial que, eventualmente, um morador tenha em relação ao policial pode decorrer de eventual “obediência” que acredita ter, no sentido de ter que autorizar a entrada quando solicitado pelo policial.

A Polícia Militar, enquanto órgão do Estado, possui o dever de assegurar a proteção de direitos fundamentais, e antes de ingressar na casa deve informar ao morador o seu direito de não autorizar o acesso19. Caso o morador autorize após essa advertência ou fique demonstrado que poderia não ter autorizado o acesso da polícia, não haverá ilegalidade no ingresso da polícia na casa sem mandado, independentemente, da hora do dia ou da noite.

Em qualquer caso, quando houver livre autorização do morador, sem qualquer intimidação, pressão, coação ou medo, não será necessária autorização judicial e o ingresso poderá ocorrer durante o dia ou à noite.

O consentimento do morador que autoriza o ingresso da polícia deve, comprovadamente, ser livre. A assinatura de um termo de autorização de ingresso ou a gravação da autorização concedida pelo morador, poderá não ser suficiente para validar o ingresso, restando configurada a nulidade de eventuais provas localizadas na residência pela polícia, quando ficar comprovado que houve qualquer intimidação, pressão, coação ou medo.

A verificação da espontaneidade da autorização do morador em ingressar em sua casa perpassa pelo tom de voz que o policial pede para entrar, bem como os armamentos que o policial possui e a forma que os carrega no momento da realização deste pedido, a cortesia e educação com que trata o morador, se o policial e o morador já são conhecidos e se no passado já houve algum fato que incutiu no morador medo do policial ou da própria instituição policial, dentre outros.

Dentro das circunstâncias apresentadas, deve-se levar em consideração também o nível de instrução e, muitas vezes, a simplicidade das pessoas que autorizam a entrada da polícia.

O mais seguro para o policial é que o registro da autorização seja feito por intermédio de gravação de áudio e vídeo, por haver uma maior possibilidade de averiguar a forma exata como ocorreu a autorização, já que não é incomum que quando a polícia localiza droga, arma ou qualquer outro objeto ilícito, durante o processo, o réu alega que autorizou o ingresso da polícia em sua residência por medo ou que foi obrigado a assinar a autorização, e o que comprova isso é o fato de terem sido localizados objetos ilícitos na sua casa, e por tal razão, não autorizaria o ingresso da polícia, o que poderá ser verificado em eventual gravação.

Exemplo 1: policiais fortemente armados, encaram o morador e solicitam autorização para o ingresso na residência, o qual é prontamente permitido e os policiais gravaram essa autorização. Neste caso, o morador, certamente, autorizou por se sentir intimidado em razão de vários policiais armados o encararem e pedirem autorização para entrarem na casa.

Exemplo 2: um policial solicita autorização a um morador para entrar na casa, sem apresentar armas ostensivamente, somente com a arma na cintura, e após explicar que é direito do morador não autorizar o ingresso, este autoriza e tudo é registrado mediante áudio e vídeo. Neste caso, o morador, certamente, autorizou sem se sentir intimidado, razão pela qual eventuais objetos ilícitos apreendidos na casa serão considerados provas lícitas.

3.1.1 Quando houver mais de um morador na casa, é suficiente que somente um autorize o ingresso da polícia? Na hipótese em que um dos moradores não autorizar o ingresso na casa, a polícia poderá entrar?

O crime de abuso de autoridade de invasão de domicílio diz que este crime ocorre quando for praticado à revelia da vontade do ocupante, enquanto que o crime de violação de domicílio dispõe que este resta configurado quando for praticado contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito.

Crime de abuso de autoridade de invasão de domicílioCrime de violação de domicílio
Art. 22. Invadir ou adentrar, clandestina ou astuciosamente, ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel alheio ou suas dependências, ou nele permanecer nas mesmas condições, sem determinação judicial ou fora das condições estabelecidas em lei: Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.Art. 150 – Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências: Pena – detenção, de um a três meses, ou multa. § 4º – A expressão “casa” compreende: I – qualquer compartimento habitado; II – aposento ocupado de habitação coletiva; III – compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade.

Os tipos penais visam conceder proteção penal ao direito fundamental previsto no art. 5º, XI, da Constituição Federal. Trata-se de um mandamento de criminalização implícito, pois a Constituição, ao considerar a inviolabilidade domiciliar um direito fundamental e expressar as exceções, quis proteger com mais intensidade este direito fundamental, razão pela qual é digno de proteção penal, que é o ramo do direito que atinge de forma mais gravosa o ser humano, por possuir pena privativa de liberdade.

O titular do direito fundamental à inviolabilidade domiciliar é tratado nos tipos penais como “ocupante” do imóvel ou “quem de direito”.

O “ocupante do imóvel” ou “quem de direito” refere-se à pessoa que possui poder de autorizar ou retirar alguém de casa, seja o dono ou não. Nesse contexto, surgem dois regimes que devem ser analisados, o regime de subordinação e o de igualdade.

No regime de subordinação não são todos que moram na casa que podem autorizar a entrada e permanência de terceiros, mas somente aqueles que são responsáveis pela casa, como o pai e a mãe (arts. 5º, I e 226, § 5º, da CF) em relação aos filhos e o responsável pelo pensionato, escola, dentre outros. Caso haja conflito de vontades a respeito da autorização para que uma pessoa entre na casa, o que só pode ocorrer entre os responsáveis pela casa, prevalece a impossibilidade de ingresso, pois um dos moradores teria o seu direito fundamental violado. Portanto, no choque de interesses, preserva-se a vontade daquele que não autoriza a entrada ou caso já tenha entrado, a vontade daquele que não quer a permanência de terceiro na casa. Na hipótese em que a divergência de autorização para entrar na casa envolver quem na relação hierárquica esteja em grau inferior, como a relação pai-filho, prevalece a vontade do pai, desde que esteja em sua própria casa e não na casa de seu filho. Isso não quer dizer que os filhos não possam convidar pessoas para a sua casa, mas caso os pais vedem ou mandem sair, a vontade do pai deverá ser atendida, sob pena de violação de domicílio.

No regime de igualdade todos os moradores da casa possuem igual poder para aceitar ou expulsar alguém da casa, o que ocorre numa relação familiar composta por marido e esposa (arts. 5º, I e 226, § 5º, da CF); em uma república de estudantes; em condomínios. Caso haja discordância quanto à possibilidade de ingresso na casa, aplica-se o raciocínio acima exposto. No entanto, se for possível delimitar o espaço de cada morador de uma casa, sem que invada espaço do morador que não autorizou, o ingresso é permitido, como a entrada em uma residência para acessar um quarto, cuja passagem é pelos fundos e não tem acesso ao quarto e cômodos do morador que não autorizou.

A vontade do morador da casa pode ser manifestada de forma expressa ou tácita. Será expressa quando disser expressamente ou manifestar-se por escrito, gestos ou qualquer outra forma que seja possível dizer claramente que o morador autoriza ou não o ingresso na casa. Será tácita quando puder constatar a manifestação de vontade do morador em razão das circunstâncias do caso concreto, como manter a porta fechada.

É suficiente que qualquer um dos moradores responsáveis pela casa, seja no regime de subordinação, seja no de igualdade, autorize o ingresso da polícia na residência para que este seja lícito, não sendo necessário que o policial aguarde a manifestação de vontade do outro morador que não estiver presente, pois a ausência de qualquer um dos moradores responsáveis pela casa implica em autorizar que somente o morador presente autorize o ingresso de terceiros. Deve-se presumir, inclusive, que o morador presente está a atuar de acordo com a vontade do outro morador, pois do contrário o morador presente relataria a impossibilidade de ingresso em razão da discordância do outro morador. Caso haja mais de um morador responsável pela casa e um deles esteja ausente no portão no momento da autorização, pois estava dentro de casa, a autorização, igualmente, é válida, em razão do mesmo raciocínio ora exposto.

A autorização do ingresso da polícia em prédio ou condomínio para acessar as áreas comuns cabe ao síndico, que é o representante do condomínio (art. 1.348, II, do CC), salvo se houver regras diversas no condomínio.

Questão interessante quanto à manifestação de vontade surge na hipótese em que o (a) amante de um dos cônjuges se vale da ausência do outro cônjuge para ingressar na casa, o que faz presumir o dissenso tácito do cônjuge ausente, pois jamais autorizaria que o (a) amante entrasse em sua casa para manter relações sexuais com seu/sua marido/esposa.

Nesta hipótese, estaria configurada a prática do crime de violação de domicílio, já que no regime de igualdade prevalece a vontade de quem não autoriza a entrada, ainda que tacitamente? A par das divergências doutrinárias, entendo que na ausência do marido ou da mulher, considerando que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher (art. 226, § 5º, da CF), aquele que estiver presente na casa pode autorizar, independentemente, da vontade do ausente, a entrada de qualquer pessoa, ainda que vise a prática de ilícitos, o que não caracterizará crime de violação de domicílio, somente ilícito civil (art. 1.566, I, do CC).

Nesse sentido, ensina Flávio Augusto Monteiro de Barros20, ao discorrer que:

(…) Sustenta Magalhães Noronha a existência do delito, porque do comportamento pregresso do marido, de homem honrado e digno, infere-se o dissenso tácito a essa situação.

Outros juristas pátrios, como Bento de Faria, entendem que na ausência temporária do marido compete exclusivamente À esposa a permissão da entrada de alguém em sua casa. Nessa hipótese, a violação não será do domicílio, mas da fidelidade conjugal, configurando-se o ilícito civil.

Alinhamo-nos entre os que esposam o último ponto de vista. Com a Constituição Federal de 1988, marido e esposa encontram-se em regime de igualdade (arts. 5º, I e 226, § 5º). Aliás, já se decidiu que na ausência do marido a esposa assume a exclusividade de poder admitir quem bem entenda. Pouco importa o fim, seja este lícito ou não. O certo é que, autorizando o ingresso, faz desparecer a condição sine qua non do delito previsto no art. 150, ou seja, a entrada clandestina ou astuciosa ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito.

3.2 Flagrante delito

O flagrante delito ocorre nas situações especificadas no art. 302 do Código de Processo Penal.

Portanto, considera-se em flagrante delito quem: a) está cometendo a infração penal (flagrante próprio); b) acaba de cometê-la (flagrante próprio); c) é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração (flagrante impróprio ou quase flagrante); d) é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração (flagrante presumido ou ficto).

Nos crimes permanentes, entende-se o agente em flagrante delito enquanto não cessar a permanência.

Todas as hipóteses de flagrante delito autorizam o ingresso em domicílio, na medida em que a Constituição Federal autoriza o ingresso nos casos de flagrante delito, sem especificar a modalidade de flagrância.

Caso a infração penal esteja ocorrendo dentro de uma casa ou tenha acabado de ocorrer, configura-se a hipótese de flagrante próprio, sendo possível que a polícia chegue ao local e adentre à residência, caso as portas não estejam abertas ou outras pessoas presentes no local não abram ou não consigam abrir, será possível o arrombamento.

Nos casos urgentes, como a situação de um crime em andamento, em que uma pessoa está a lesionar outra, a polícia ao chegar no local da ocorrência poderá arrombar a porta, imediatamente, sem necessidade de aguardar que terceiros abram a porta.

Nesses casos a urgência do ingresso da polícia na residência prevalece em relação ao direito patrimonial do morador, pois é a vida e integridade física de terceiros em risco.

Em se tratando de crime permanente, muitas vezes não será conveniente que aguarde o morador abrir as portas. Basta imaginar que a polícia tenha informações e provas de que há drogas em uma residência e que ao “bater campainhas”, os infratores poderão se desfazer das drogas, jogando-as no vaso e dando descarga ou arremessando-as para casa de vizinhos. Nesse caso, igualmente, será possível que a polícia arrombe a porta, sem necessidade de avisar aos moradores que vai entrar. O fator surpresa será essencial para o êxito da diligência.

O arrombamento das portas deverá ocorrer de forma que cause o menor dano possível.

A análise deve ser feita caso a caso.

Quando o agente pratica um crime e ao fugir entra em uma residência, própria ou de terceiros, poderá estar caracterizada a hipótese de flagrante impróprio ou de flagrante presumido, havendo divergências doutrinárias, se é possível ingressar na residência nesses casos.

A primeira corrente defende que a possibilidade de ingresso restringe-se somente ao flagrante próprio, na medida em que a proteção do domicílio, sendo garantia constitucional, não merece ser alargada indevidamente. Nesse sentido: Guilherme Nucci21.

A segunda corrente advoga que é possível ingressar em domicílio nas situações caracterizadoras de flagrante delito (art. 302, I, II, III e IV, do CPP), na medida em que a fuga para residência não pode inviabilizar a realização da prisão, sob pena de se criar uma espécie de proteção e imunidade para o criminoso. Nesse sentido: Renato Brasileiro22, Tourinho Filho e Henrique Hoffmann23.

A terceira corrente preconiza que deve-se aplicar o disposto nos artigos 293 e 294, ambos do Código de Processo Penal.

O Código de Processo Penal prescreve no art. 293 que no cumprimento de mandado de prisão, o executor poderá cumpri-lo durante o dia, inclusive com o arrombamento das portas, mas se for noite, o executor deverá guardar todas as saídas, tornando a casa incomunicável, e, logo que amanheça, arrombará as portas e efetuará a prisão.

O art. 294 do CPP assegura que o art. 293 será aplicável aos casos de flagrante delito, no que for aplicável.

Logo, para essa corrente, nos casos de flagrante, a polícia deve cercar o local, se durante à noite, e entrar na residência ao amanhecer, sendo possível o ingresso imediato somente se o infrator entrar na casa durante o dia.

Filiamos à segunda corrente, por diversas razões.

Com efeito, a Constituição Federal permite o ingresso em domicílio nas situações de flagrante delito (que estão definidas no Código de Processo Penal), independentemente, do horário, isso porque em uma ponderação de valores, a Constituição decidiu que no caso de ocorrência de infração penal deve preponderar o interesse público na realização da prisão do agente, ainda que haja uma momentânea e mínima relativização da inviolabilidade domiciliar.

Em se tratando do horário em que é possível ingressar na residência de terceiros, a própria Constituição Federal foi expressa ao restringir o ingresso durante o dia somente para os casos de cumprimento de ordem judicial, não havendo igual previsão para as situações de flagrante delito.

Ademais, o direito fundamental à inviolabilidade domiciliar tem como objetivo permitir que os moradores possuam privacidade, paz, sossego, não sendo razoável invocar essa proteção para dar guarida a um agente que acabou de praticar uma infração penal e está sendo perseguido pela polícia.

Deve-se levar em consideração ainda que é inviável operacionalmente que uma guarnição policial (ou várias) fique (m) toda a noite cercando uma residência, o que implicaria na retirada de viatura(s) de circulação, causando prejuízos para o policiamento ostensivo e a segurança pública. Há, portanto, um interesse público na imediata prisão do agente.

De mais a mais, caso o agente ingresse em casa de terceiros durante a fuga, deve-se presumir que há o consentimento para o ingresso da Polícia, pois presume-me que nenhuma pessoa quer que um criminoso que acabou de cometer um crime e está sendo perseguido pela polícia permaneça em sua residência, sendo que eventual negativa do morador em franquear a entrada pode ocorrer em razão de intimidação ou ameaças do preso que está dentro da residência.

Na hipótese em que a casa em que o agente em fuga tenha ingressado seja de ascendente, descendente, cônjuge ou irmão do criminoso, estes não serão obrigados a autorizarem a entrada, invertendo-se a lógica de que estão intimidados, sendo possível constatar que prestam auxílio ao agente por ser um familiar.

Deve-se destacar ainda os riscos da não realização imediata da prisão, pois a depender da periculosidade do infrator, este poderá se comunicar com membros de sua organização criminosa que poderão se organizar para atacarem os policiais, não sendo incomum a imprensa noticiar ataques a policiais militares do Rio de Janeiro, quando estão em operações em regiões perigosas.

Portanto, em que pese as controvérsias, a polícia militar pode e deve entrar nas residências em qualquer situação de flagrante delito.

Em se tratando de crime permanente, como o tráfico de drogas (ter em depósito), somente será lícito o ingresso na residência caso os policiais tenham prévia ciência da ocorrência do crime, o que deverá estar amparado em fundadas razões e ser devidamente justificado posteriormente.

Caso o ingresso na residência ocorra sem prévia ciência de que ali ocorre situação de flagrante delito, vindo a ser constatada a ocorrência de crime permanente por “sorte”, o ingresso será ilícito e as provas eventualmente produzidas em desfavor do morador deverão ser declaradas nulas.

Foi nesse sentido que decidiu o Supremo Tribunal Federal.

A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas “a posteriori”, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos praticados. Essa a orientação do Plenário, que reconheceu a repercussão geral do tema e, por maioria, negou provimento a recurso extraordinário em que se discutia, à luz do art. 5º, XI, LV e LVI, da Constituição, a legalidade das provas obtidas mediante invasão de domicílio por autoridades policiais sem o devido mandado de busca e apreensão. O acórdão impugnado assentara o caráter permanente do delito de tráfico de drogas e mantivera condenação criminal fundada em busca domiciliar sem a apresentação de mandado de busca e apreensão. A Corte asseverou que o texto constitucional trata da inviolabilidade domiciliar e de suas exceções no art. 5º, XI (“a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”). Seriam estabelecidas, portanto, quatro exceções à inviolabilidade: a) flagrante delito; b) desastre; c) prestação de socorro; e d) determinação judicial. A interpretação adotada pelo STF seria no sentido de que, se dentro da casa estivesse ocorrendo um crime permanente, seria viável o ingresso forçado pelas forças policiais, independentemente de determinação judicial. Isso se daria porque, por definição, nos crimes permanentes, haveria um interregno entre a consumação e o exaurimento. Nesse interregno, o crime estaria em curso. Assim, se dentro do local protegido o crime permanente estivesse ocorrendo, o perpetrador estaria cometendo o delito. Caracterizada a situação de flagrante, seria viável o ingresso forçado no domicílio. Desse modo, por exemplo, no crime de tráfico de drogas (Lei 11.343/2006, art. 33), estando a droga depositada em uma determinada casa, o morador estaria em situação de flagrante delito, sendo passível de prisão em flagrante. Um policial, em razão disso, poderia ingressar na residência, sem autorização judicial, e realizar a prisão. Entretanto, seria necessário estabelecer uma interpretação que afirmasse a garantia da inviolabilidade da casa e, por outro lado, protegesse os agentes da segurança pública, oferecendo orientação mais segura sobre suas formas de atuação. Nessa medida, a entrada forçada em domicílio, sem uma justificativa conforme o direito, seria arbitrária. Por outro lado, não seria a constatação de situação de flagrância, posterior ao ingresso, que justificaria a medida. Ante o que consignado, seria necessário fortalecer o controle “a posteriori”, exigindo dos policiais a demonstração de que a medida fora adotada mediante justa causa, ou seja, que haveria elementos para caracterizar a suspeita de que uma situação a autorizar o ingresso forçado em domicílio estaria presente. O modelo probatório, portanto, deveria ser o mesmo da busca e apreensão domiciliar — apresentação de “fundadas razões”, na forma do art. 240, §1º, do CPP —, tratando-se de exigência modesta, compatível com a fase de obtenção de provas. Vencido o Ministro Marco Aurélio, que provia o recurso por entender que não estaria configurado, na espécie, o crime permanente. RE 603616/RO, rel. Min. Gilmar Mendes, 4 e 5.11.2015. (RE-603616)

Quanto ao grau de certeza da ocorrência do crime permanente, Henrique Hoffmann24 explica que existem, basicamente, três correntes:

a) é preciso que o policial tenha certeza visual do flagrante ocorrendo no interior da casa, sob a perspectiva da via pública; trata-se de juízo de certeza;

b) não se exige que o policial possa enxergar o crime acontecendo dentro da residência, mas fundadas razões de que há uma situação flagrancial, com lastro em circunstâncias objetivas, ou seja, demonstração por outros meios além do olhar da via pública (ex: palavra de testemunhas, relatório policial decorrente de campana, conversas captadas em interceptação telefônica); cuida-se de juízo de probabilidade, demonstrado por elemento externo objetivo;

c) é dispensável do policial a certeza visual do flagrante e mesmo as fundadas razões, podendo ingressar em domicílio baseado em vagas suspeitas de que crime está ocorrendo no interior da casa, com base na mera intuição pessoal; trata-se de juízo de possibilidade, aferível por elemento interno subjetivo.

O Supremo Tribunal Federal se filiou à posição intermediária:

Dessa forma, não se exige que o policial veja o crime ocorrendo, sendo suficiente que possua elementos que justifiquem o ingresso.

A denúncia anônima, por si só, não é suficiente para que o policial ingresse em domicílio, pois não constitui fundadas razões, na medida em que não há um mínimo de lastro probatório que justifique a tomada de uma providência tão invasiva.

Sempre que houver denúncia anônima o policial deve proceder ao levantamento de informações que visem comprovar ou não o teor da denúncia e havendo segurança de que há crime permanente em determinada residência os policiais poderão entrar.

O ingresso em domicílio nas hipóteses de flagrante delito caracteriza estrito cumprimento do dever legal.

Caso ingressem fundamentadamente e não seja constatada a prática de crime permanente, haverá uma situação de putatividade (imaginária). Isto é, há uma situação que aparentava ser real, mas na verdade não é.

Nesses casos deve-se aplicar a regra das descriminantes putativas quanto aos pressupostos fáticos do estrito cumprimento do dever legal.

Descriminantes são as causas de exclusão da ilicitude (estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal e exercício regular de um direito).

Putativa refere-se ao que parece, mas não é. É aquilo que é imaginário, que o agente acredita, seriamente, que ocorre uma situação, mas na verdade não ocorre.

Logo, as descriminantes putativas caracterizam as situações em que o agente atua acreditando estar acobertado por uma causa excludente de ilicitude, mas na verdade não está.

Os pressupostos fáticos referem-se à situação concreta ocorrida, aos fatos ocorridos que levaram o agente a se enganar. O agente não sabe exatamente o que faz.

O estrito cumprimento do dever legal ocorre porque é obrigação do policial realizar a prisão de quem esteja em situação de flagrante delito (art. 301 do CPP).

Em se tratando de descriminante putativa em razão de erro do agente quanto aos pressupostos fáticos, prevalece que o Código Penal adotou a teoria limitada da culpabilidade, devendo incidir o erro de tipo permissivo, que tem como consequência excluir o dolo e a culpa, se o erro for justificável ou se injustificável, excluir o dolo, subsistindo a responsabilidade por crime culposo, se previsto em lei (art. 20, § 1º, do CP e art. 36, § 1º, do CPM)25.

Logo, o policial que entrar em uma residência por acreditar, de forma fundamentada, que nela ocorre crime permanente, mas nada é encontrado, estará no estrito cumprimento do dever legal putativo e não deve ser responsabilizado criminalmente, seja o erro justificável ou não, na medida em que não existe crime culposo de abuso de autoridade e de violação de domicílio.

Lado outro, caso o policial, por receio de ser responsabilizado criminalmente, “plante” drogas ou objetos ilícitos na residência, com o fim de respaldar o ingresso, deverá responder por denunciação caluniosa (art. 339 do CP e art. 343 do CPM).

Deve-se destacar que a prática de contravenção penal autoriza o ingresso em domicílio, na medida em que a constituição utiliza o termo “flagrante delito”, que é conceituado pelo Código de Processo Penal (art. 302, I, do CPP) como infração penal, que, por sua vez, abrange crimes e contravenções penais, na forma do art. 1º da Lei de Introdução ao Código Penal (Decreto-Lei n. 3.914/41).

Dessa forma, é perfeitamente possível o ingresso em domicílio nas situações flagranciais decorrentes da prática de contravenção penal.

Caso o agente pratique um crime de desacato e corra para dentro da casa ou então ao avistar os policiais da janela da casa profira palavras desrespeitosas, está autorizado o ingresso na residência, caso o agente se recuse a sair, uma vez que estará em flagrante delito.

Em que pese não se impor a prisão em flagrante nos crimes de menor potencial ofensivo, o que, em um primeiro momento, poderia fundamentar a impossibilidade de ingresso dos policiais na residência, o autor do fato deve assumir o compromisso de comparecimento em juízo e a recusa em assinar o termo poderá resultar na prisão.

Portanto, justifica-se o ingresso policial, por estar em flagrante delito e pela necessidade do autor dos fatos assumir compromisso de comparecer em juízo e em caso de recusa deve ser efetuada a prisão do agente (art. 69, parágrafo único, da Lei 9.099/95).

De qualquer forma, face ao princípio da razoabilidade e proporcionalidade, o policial pode deixar de entrar na residência, visando evitar maiores danos e exposição a risco de vida ou da integridade física dos próprios policiais ou de outras pessoas, como a hipótese em que um agente desacata os policiais, corre para dentro de uma casa, que encontra-se repleta de pessoas, em uma região perigosa. Será suficiente a lavratura de um Boletim de Ocorrência com todos os detalhes e o autor dos fatos será, posteriormente, intimado para comparecer à justiça.

Ao policial no local dos fatos compete realizar uma leitura de cenário e concluir se a ação policial, ainda que haja situação caracterizadora de flagrante delito, deve ocorrer, pois a atuação policial exige não só a obrigação decorrente de lei, mas o aspecto prático, operacional, as condições de atuação. Tanto é que o art. 13, § 2º, “a”, do Código Penal (art. 29, § 2º, do CPM) ao responsabilizar o agente garantidor pela omissão – e o policial é um exemplo – é claro ao mencionar que somente haverá responsabilização se além do dever de atuar, for possível a atuação. A possibilidade de atuação envolve a razoabilidade, a proporcionalidade e os efeitos que a atuação vai causar. Não quer dizer que a atuação é discricionária, mas sempre que os efeitos da ação puderem ser mais gravosos do que o fato praticado, e as condições de captura do autor não forem viáveis, é lícito o registro da ocorrência sem a prisão em flagrante.

Tome como exemplo uma ocorrência de perturbação de sossego decorrente de uma festa com som alto e com muitas pessoas que consomem bebidas alcoólicas. O policial, ao chegar no local, pede para baixar o som de forma que fique restrito ao ambiente local, mas o organizador da festa ignora a ordem do policial. Neste caso terá praticado desobediência, além da contravenção penal de perturbação de sossego, contudo o agente está dentro da casa e não desliga o som. O ingresso da polícia na residência, nestas circunstâncias, não é ilegal, pois o agente está em flagrante delito. Contudo, em razão da aglomeração de pessoas, bebidas alcoólicas e clima no local, é possível notar que se a polícia entrar na casa uma simples ocorrência de perturbação de sossego poderá se transformar em briga generalizada e em homicídio e/ou lesão corporal. Nessa hipótese é perfeitamente possível que a polícia limite-se a lavrar um Boletim de Ocorrência e relatar todo o ocorrido. Não há nenhuma ilegalidade e a ação policial será digna de reconhecimento.26

3.3 Desastre

O Glossário de Proteção e Defesa Civil da Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil – SEDEC, conceitua desastre como o “Resultado de eventos adversos, naturais ou provocados pelo homem, sobre um ecossistema (vulnerável), causando danos humanos, materiais e/ou ambientais e consequentes prejuízos econômicos e sociais.”27

O dicionário on-line Michaelis28 conceitua desastre da seguinte forma:

1 Acontecimento funesto, geralmente inesperado, que provoca danos graves de qualquer ordem; soçobro.

O desastre é todo acontecimento, independentemente, da causa, que venha a provocar graves danos, de ordem humana, material, biológica, química, econômica, social ou de qualquer natureza.

A Codificação Brasileira de Desastres (COBRADE) elenca uma série de situações que são consideradas desastres e as dividem na categoria desastres naturais e desastres tecnológicos. Os desastres naturais subdividem-se em cinco grupos: a) geológico; b) hidrológico; c) meteorológico; d) climatológico; e) biológico. Os desastres tecnológicos, por sua vez, subdivide-se também em cinco grupos: a) desastres relacionados a substâncias radioativas; b) desastres relacionados a produtos perigosos; c) desastres relacionados a incêndios urbanos ; d) desastres relacionados a obras civis; e) desastres relacionados a transporte de passageiros e cargas não perigosas.

Nos casos de desastre, o ingresso em domicílio é autorizado constitucionalmente com o fim de que terceiros prestem socorro ou auxiliem os moradores, o que já está contemplado no art. 5º, XI, da Constituição Federal, ao autorizar o ingresso em casa alheia para prestar socorro.

Portanto, se uma casa desmorona ou vem a acontecer qualquer grave dano, como um avião, helicóptero ou carro cair em cima de uma casa, está autorizado o ingresso por terceiros para prestar socorro.

Independentemente, do horário que o desastre ocorrer, está autorizado o ingresso, afinal de contas, a prestação de socorro pode ser urgente e não pode aguardar.

Destaca-se que as epidemias decorrentes de doenças infecciosas virais são consideradas uma espécie de desastre de ordem biológica.

No Piauí, o Decreto n. 18.942, de 16 de abril de 2020, declarou situação de calamidade pública, provocada pelo Desastre Natural Classificado e codificado como doenças infecciosas virais em toda a extensão territorial do Estado do Piauí.

O art. 2º, § 1º, do referido decreto autoriza que as autoridades administrativas e os agentes de defesa civil, diretamente responsáveis pelas ações de resposta ao desastre, em caso de risco iminente, penetrem nas casas para prestar socorro ou para determinar a pronta evacuação.

Art. 2º Ficam autorizadas:

§ 1º As autoridades administrativas e os agentes de defesa civil, diretamente responsáveis pelas ações de resposta ao desastre, em caso de risco iminente, são autorizados a:

I – penetrar nas casas para prestar socorro ou para determinar a pronta evacuação;

A epidemia decorrente do coronavírus é considerada um desastre de ordem biológica em razão da Classificação e Codificação Brasileira de Desastres COBRADE N. 1.5.1.1.0 – Doenças infecciosas virais.

Portanto, estariam as autoridades autorizadas a entrarem nas casas, sem autorização do morador ou judicial, em razão de risco iminente de contaminação por coronavírus?

A resposta é sim, pois a situação de coronavírus no Brasil é considerada um desastre de ordem biológica e o ingresso de um agente de defesa civil visará impedir que as pessoas que estejam dentro da casa sejam contaminadas. Entra-se em razão de um desastre com o objetivo de prestar socorro, ainda que os moradores não tenham ciência, no momento da entrada, de que estão prestes a serem vítimas da contaminação pelo coronavírus.

Tome como exemplo um agente que trabalha em um hospital que recebe pacientes contaminados com coronavírus e decide utilizar equipamentos contaminados para levar para o prédio em que mora com o fim de contaminar todos os vizinhos e utiliza esses equipamentos para contaminar as escadas, os elevadores, as portas das casas de todos os moradores do prédio e ainda arremessa objetos contaminados pelas janelas dos prédios, o que vem a ser de conhecimento da Defesa Civil, pois o agente filmou tudo e enviou para amigos por meio de aplicativo de mensagens. Independentemente, de autorização dos moradores, os agentes da defesa civil poderão adentrar ao prédio e com as cautelas necessárias retirar todos os moradores (pronta evacuação) e realizar a sanitização do prédio, pois trata-se de uma situação de desastre de ordem biológica.

Além do mais, a pessoa que entra em uma residência com a intenção de transmitir coronavírus está a praticar crime (lesão corporal; perigo para a vida ou saúde de outrem; infração de medida sanitária preventiva, a depender do caso), o que, também, legitima o ingresso no domicílio pelos agentes da defesa civil e pela polícia com o fim de efetuar a prisão.

Por fim, o ingresso de autoridades em casa de terceiros em razão do coronavírus deve ser permitido nas situações excepcionais ora demonstradas, sob pena de se esvaziar uma garantia fundamental (inviolabilidade domiciliar) em tempos de crise, momento em que a eficácia e proteção dos direitos fundamentais são colocados à prova.

3.4 Para prestar socorro

O Glossário de Proteção e Defesa Civil da Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil – SEDEC, conceitua socorro como o “Ato ou efeito de socorrer. Atendimento a pessoa acidentada ou atingida por mal súbito. Ajuda ou assistência vinda do exterior para comunidades que se encontram sob o efeito de um grande desastre. Equipe de bombeiros ou de pessoas capacitadas, designadas para atender a uma ocorrência (sinistro). Pedido de auxílio.”29

O dicionário on-line Michaelis30 conceitua socorro da seguinte forma:

2 Ajuda ou assistência a alguém que se encontra em situação dramática (desamparo, doença, perigo etc.); socorrimento.

“Prestar” socorro consiste em atuar, ajudar, assistir em uma situação que exige socorro, como levar para o hospital uma pessoa que acabou de se acidentar em um acidente de carro ou por ter sido vítima de disparo de arma de fogo.

A prestação de socorro é um termo mais amplo que o desastre, pois possibilita o ingresso de terceiros em casa alheia em situações de desastre ou não.

Assim é possível que ocorra o ingresso quando uma pessoa estiver passando mal, e necessitar de atendimento urgente, com o fim de socorrê-la e levá-la para o hospital.

Da mesma forma que o desastre, o ingresso em residência alheia para prestar socorro independe de horário, já que a situação que enseja a prestação de socorro não pode aguardar.

3.5 Por determinação judicial, durante o dia. Conceito de dia. É possível o cumprimento de mandado durante a noite?

Quando a Constituição Federal exige autorização judicial para ingressar em casa reserva ao Poder Judiciário, exclusivamente, a possibilidade de autorizar. Trata-se de uma verdadeira cláusula de reserva jurisdicional (art. 5º, XI, da CF), o que impede que o fisco adentre a estabelecimentos comerciais ou qualquer escritório para realizar fiscalizações31, bem como impede comissões parlamentares de inquérito de expedirem mandado de busca e apreensão em domicílio32.

O art. 241 do Código de Processo Penal prevê que “Quando a própria autoridade policial ou judiciária não a realizar pessoalmente, a busca domiciliar deverá ser precedida da expedição de mandado.”

Tal dispositivo não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, uma vez que o mandado de busca domiciliar deve ser, necessariamente, expedido pela autoridade judiciária (art. 5º, XI), independentemente, da autoridade policial realizar ou não a busca domiciliar e ao juiz não cabe proceder à busca domiciliar, por ferir a imparcialidade, o sistema acusatório (art. 129, I) e invadir espaço reservado aos órgãos policiais (art. 144).

A determinação judicial a que se refere a Constituição Federal abrange todas as hipóteses previstas em lei que permitem ao juiz autorizar o ingresso em domicílio, seja para fins criminais, o que é comum nos mandados de busca e apreensão (art. 240 do CPP) ou mandado de prisão ou cíveis, como um mandado de penhora (art. 846 do CPC).

Permite-se a expedição de mandado judicial para ingressar em domicílio para localizar crianças em processos de guarda, bem como nas hipóteses previstas no art. 1.313, I e II, do Código Civil, em que o proprietário ou ocupante de imóvel é obrigado a tolerar que o vizinho entre no prédio, mediante prévio aviso, para “dele temporariamente usar, quando indispensável à reparação, construção, reconstrução ou limpeza de sua casa ou do muro divisório” ou para “apoderar-se de coisas suas, inclusive animais que aí se encontrem casualmente.”, ou seja o proprietário é obrigado a permitir que o vizinho entre em sua casa para apoderar-se de coisas suas, inclusive animais que aí se encontrem casualmente, como um cachorrinho que passa pelas grades de uma casa, mas o dono da casa nega-se a devolver o animal ou então em um caso em que crianças brinquem de jogar bola na rua e esta venha a cair no terreiro de um vizinho que não devolve a bola.

O ingresso em domicílio alheio em razão do cumprimento de mandado judicial deve ocorrer durante o dia, uma vez que o constituinte visou preservar o período noturno para que fosse respeitado o direito ao repouso e descanso que são comuns durante a noite.

Qual é o conceito de dia?

O tema é divergente e existem, pelo menos, três correntes.

A primeira adota o critério físico-astronômico e considera dia o intervalo entre a aurora (nascer do sol) e o crepúsculo (pôr do sol), pois é o período em que há luz natural do sol.

A segunda adota o critério cronológico por uma questão de segurança, por não depender de interpretação de quem analisa, o que concede maior garantia ao conceito de “dia”. Subdivide-se em outras três correntes, a saber: a) dia é o intervalo entre 06:00 e 18:00h, de forma que o período do dia e da noite possuam igualdade de tempo (12 horas para cada); b) dia é o intervalo entre 06:00 e 20:00h, uma vez que o Código de Processo Civil (art. 212) prevê que os atos processuais serão realizados nesse intervalo de tempo, o que concede uma maior segurança jurídica para o cumprimento de diligências durante o dia; e c) dia é o intervalo de tempo entre 05:00 e 21:00h, em razão do disposto no art. 22, III, da Lei n. 13.869/19, que tipifica como crime de abuso de autoridade o cumprimento de mandado de busca e apreensão domiciliar fora desse horário, ou seja, entre 21:00 e 05:00h. Como a Constituição Federal diz que somente pode entrar em domicílio, por determinação judicial, durante o dia, para esta corrente, entende-se que houve uma delimitação do período “dia” (entre 05:00 e 21:00h).

A terceira corrente adota o critério misto, de forma a priorizar o critério para o início e fim de dia que seja mais benéfico para a proteção da inviolabilidade domiciliar. Portanto, adotando-se o primeiro e segundo subcritérios cronológicos, se às 06:00 da manhã ainda estiver escuro, o dia ainda não terá se iniciado, pois ainda não tem luz solar. Caso seja 05:30 e já haja sol, o dia também não terá se iniciado, pois ainda não são 06:00h.

Excepcionalmente, é possível que haja autorização judicial para o ingresso em domicílio no período noturno.

Em caso concreto, o Supremo Tribunal Federal validou o ingresso a autoridade policial em escritório de advocacia, no período noturno, para a instalação de equipamento de captação de sinais óticos e acústicos, na medida em que o sigilo do advogado não existe para protegê-lo na prática de crimes, não sendo admissível que a inviolabilidade transforme o escritório em um local seguro para praticar crimes. Destacou-se que a inviolabilidade domiciliar não possui valor absoluto e considerou-se ser, no mínimo, duvidosa, a equiparação entre escritório vazio com domicílio stricto sensu, que pressupõe a presença de pessoas que o habitem.33

Dessa forma, é possível que o juiz autorize, no caso concreto, que o mandado judicial que autoriza o ingresso domiciliar seja cumprido no período noturno.

Tome como exemplo um caso em que traficantes guardem as drogas, no período noturno, em determinadas casas, tendo a polícia recebido diversas denúncias anônimas e ao proceder à verificação dos fatos, com a audição de testemunhas e interceptação telefônica, comprova que as drogas, realmente, são guardadas no período noturno, em certas casas.

Assim, a autoridade policial, com receio de entrar nas residências, na medida em que nem sempre os traficantes guardam as drogas nas casas, requer mandado de busca e apreensão. Nesse caso, é possível que o juiz autorize o cumprimento do mandado durante o período noturno.

3.6 Desapropriação

O art. 7º do Decreto-Lei n. 3.365/41 prevê que “Declarada a utilidade pública, ficam as autoridades administrativas autorizadas a penetrar nos prédios compreendidos na declaração, podendo recorrer, em caso de oposição, ao auxílio de força policial.”

Nota-se que a lei permite, neste caso, o ingresso em domicílio sem necessidade de autorização judicial, para fins de se realizar levantamentos e inspeções, como decorrência do efeito da declaração de utilidade pública, que submete a propriedade à força expropriatória do estado.

Neste caso deve prevalecer o interesse público, sendo o ingresso na residência limitado, estritamente, para fins de levantamentos e inspeções necessárias à desapropriação. Ademais, o imóvel está em vias de ser retirado do particular para compor o patrimônio do estado e deve-se aplicar a lógica de que se o próprio patrimônio (o mais) vai ser retirado do particular, quanto mais uma mera entrada para verificação (o menos).

3.7 Para a contenção de doenças (saúde pública)

A Lei n. 13.301/16 dispõe sobre a adoção de medidas de vigilância em saúde quando verificada situação de iminente perigo à saúde pública pela presença do mosquito transmissor do vírus da dengue, do vírus chikungunya e do vírus da zika, sendo autorizado pelo art. 1º, § 1º, IV, § 1o, o “ingresso forçado em imóveis públicos e particulares, no caso de situação de abandono, ausência ou recusa de pessoa que possa permitir o acesso de agente público, regularmente designado e identificado, quando se mostre essencial para a contenção das doenças.”

Sempre que se mostrar necessário, o agente público competente poderá requerer auxílio à autoridade policial ou à Guarda Municipal (art. 3º, § 1º).

A lei não exigiu autorização judicial para o ingresso nas situações nela especificadas, sendo defendido pela doutrina que não há inconstitucionalidade, conforme precisas lições de Márcio André Lopes Cavalcante34

De fato, a entrada do agente público para fiscalizar possíveis locais dentro da residência da pessoa onde o mosquito Aedes aegyptie possa vir a colocar ovos não se enquadra em nenhuma das hipóteses previstas no inciso XI, não podendo ser classificada como situação de “desastre” ou para “prestar socorro”, expressões muito intensas e que não se confundem com mero exercício de poder de polícia preventivo.

Desse modo, é certo que o inciso IV do § 1º do art. 1º da Lei nº 13.301/2016 não encontra autorização no art. 5º, XI, da CF/88.

Apesar disso, entendo que a previsão do ingresso forçado, na forma como delineada pela Lei nº 13.301/2016, não se revela inconstitucional, devendo ser realizado no caso uma ponderação dos interesses envolvidos.

A inviolabilidade do domicílio consiste em direito fundamental inerente à pessoa humana. Ocorre que não se trata de um direito absoluto. Assim, pode ser restringido, desde que observado o princípio da proporcionalidade.

No caso, tem-se o conflito aparente entre dois valores protegidos pelo Direito: de um lado, a liberdade individual dos moradores; e de outro, a vida e a saúde desses mesmos indivíduos e de toda a coletividade, que devem ser protegidas pelo Estado.

Diante disso, deve haver uma ponderação dos interesses envolvidos: ou restringe-se a liberdade individual, ou então haverá um grave e real risco à saúde de toda a sociedade (incluindo os proprietários e/ou moradores do imóvel). Não há dúvidas de que, no presente contexto, deverá preponderar a proteção à vida e à saúde, havendo uma restrição à liberdade individual.

Ressalte-se que a restrição imposta pela Lei nº 13.301/2016 à inviolabilidade de domicílio é pontual, específica, temporária e mínima.

A entrada forçada só é permitida em três situações excepcionais (imóvel abandonado, morador não encontrado ou recusa do morador). Além disso, o ingresso compulsório tem apenas uma finalidade: encontrar possíveis focos de criadouro do mosquito, eliminando-os. Ressalte-se, ainda, que não haverá qualquer prejuízo ao morador, já que os agentes públicos não irão adentrar na casa para produzir provas contra ele (não se trata de investigação criminal) nem para retirar de lá seus bens (não é uma medida de busca e apreensão ou de penhora). Logo, não há violação ao devido processo legal (art. 5º, LIV, da CF/88).

Ressalte-se que se fosse necessário buscar autorização judicial todas as vezes em que o imóvel estiver fechado o trabalho de fiscalização restaria inviabilizado, além de sobrecarregar o Poder Judiciário. Segundo dados oficiais, desde que a campanha de combate ao mosquito se iniciou, com os primeiros casos de Zika Vírus, as equipes de saúde já encontraram cerca 2,7 milhões de domicílios fechados no momento das visitas. Seria inimaginável ter que exigir uma ação judicial para cada uma dessas casas.Dessa forma, a medida prevista na Lei nº 13.301/2016 é adequada, necessária e proporcional, sendo a solução que melhor atende a proteção da saúde pública, que é um dever constitucional do Estado (art. 196), havendo uma mínima intervenção na inviolabilidade do domicílio. (destaque nosso)

Em que pese um dos argumentos para não se exigir autorização judicial para o caso de contenção de doenças é a inviabilidade de se ingressar com milhares ou milhões de ações judiciais, é possível que haja uma única ação para cada Comarca, que autorizará o ingresso em todas as residências vazias ou que os moradores demonstrarem resistência.

Na prática municípios têm ingressado com pedido na justiça para que seja autorizada a fiscalização nas residências, uma vez que o art. 5, XI, da Constituição Federal não contempla o ingresso domiciliar em razão de previsão em lei.35

O art. 4º da Lei n. 13.301/16 diz que é possível o ingresso forçado em residência, contra a vontade do morador, quando for para verificar a proliferação de doenças que representem grave risco ou ameaça à saúde pública, desde que haja determinação da autoridade máxima do SUS de qualquer nível federativo (União, Estado ou Município), bem como o reconhecimento da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional – ESPIN, que é o caso do covid-19 (Portaria n. 188/2020 do Ministério da Saúde).

A Lei n. 13.979/20 autoriza que haja a determinação de isolamento para as pessoas que estejam contaminadas com o coronavírus (art. 3º, I).

Portanto, caso haja a determinação para que uma pessoa fique em casa, por ter coronavírus, a autoridade sanitária poderá fiscalizar se essa pessoa, realmente, encontra-se em casa e se um morador da residência não autorizar o ingresso da autoridade sanitária, esta poderá entrar à força para proceder à fiscalização.

No caso do coronavírus, se houver determinação para que a pessoa fique em isolamento em casa e esta saia, praticará o crime previsto no art. 268 do Código Penal (infração de medida sanitária preventiva), logo, essa pessoa não é obrigada a autorizar a produção de prova contra si mesmo (art. 5º, LVII, da CF), o que ocorrerá ao autorizar o ingresso do agente de saúde em sua casa, razão pela qual necessita de autorização judicial36, em caso de negativa do morador que esteja contaminado com coronavírus.

Salienta-se, ainda, que obstar ou dificultar a ação fiscalizadora das autoridades sanitárias competentes no exercício de suas funções caracteriza infração administrativa prevista na Lei n. 6.437/77 (art. 10, X), podendo ser aplicada, dentre outras, a pena de multa.

3.8 Tolerância de ingresso do vizinho

O Código Civil, no art. 1.313, I e II, obrigada o proprietário ou ocupante de imóvel a tolerar que o vizinho entre no prédio, mediante prévio aviso, para “dele temporariamente usar, quando indispensável à reparação, construção, reconstrução ou limpeza de sua casa ou do muro divisório” ou para “apoderar-se de coisas suas, inclusive animais que aí se encontrem casualmente.”

Nessa hipótese há conflito de interesses entre particulares. Por um lado tem-se o vizinho que tem o direito a reparar, construir, reconstruir, limpar sua casa ou o muro divisório, ou então, pegar suas coisas que caíram na casa do vizinho, inclusive animais que aí se encontrem. Por outro lado, tem-se o vizinho que possui o direito à inviolabilidade domiciliar. Nesse caso o legislador já decidiu que prevalecerá, desde que haja prévio aviso e seja pelo tempo estritamente necessário, o direito do vizinho em entrar no imóvel para exercer seus direitos em detrimento da inviolabilidade domiciliar.

Nesses casos, em razão do conflito de interesses ser entre particulares, caso o proprietário da casa não tolere o ingresso do vizinho, ou não devolva o bem móvel, será necessária autorização judicial, nos termos do art. 5º, XI, da Constituição Federal.

3.9 Ingresso do proprietário do imóvel locado

A Lei 8.245/91 (Lei de Locações) prevê que o locatário (aquele que aluga o imóvel de terceiros) é obrigado a permitir a vistoria do imóvel pelo locador ou por seu mandatário, mediante combinação prévia de dia e hora, bem como admitir que seja o mesmo visitado e examinado por terceiros, no caso de venda (art. 23, IX).

Caso o morador não autorize o ingresso do proprietário na residência ou de terceiro por ele indicado, poderá haver rescisão contratual37, não sendo possível que ingresse contra a vontade do morador, sem que haja autorização judicial, na medida em que não há previsão legal que autorize o ingresso sem ordem judicial, além de se tratar de um conflito entre particulares, devendo prevalecer o direito fundamental à inviolabilidade domiciliar.

Expostas todas as possibilidades de ingresso domiciliar, são as seguintes hipóteses a seguir esquematizadas, que permitem o ingresso em domicílio de terceiros:

HipóteseOrdem JudicialDurante o diaDurante a noiteFundamento
Autorização do moradorNãoSimSimArt. 5º, XI, da CF.
Flagrante delitoNãoSimSimArt. 5º, XI, da CF.
DesastreNãoSimSimArt. 5º, XI, da CF.
Prestar socorroNãoSimSimArt. 5º, XI, da CF.
DesapropriaçãoNãoSimNãoArt. 7º do Decreto-Lei n. 3.365/41.
Fiscalização de doenças transmitidas por mosquitosNão*SimNãoArt. 1º, § 1º, IV, da Lei n. 13.301/16.
Lei de LocaçõesSim38SimNãoArt. 23, IX, da Lei n. 8.245/91.
Reparação, construção ou limpeza da casa ou muro.SimSimNãoArt. 1.313, I, do Código Civil.
Buscas objetos próprios ou cachorros que estejam na casa de terceiros.SimSimNãoArt. 1.313, II, do Código Civil.
Reparação de esgotos, goteiras, poços etc.SimSimNãoArt. 1.313, § 1º, do Código Civil.
Busca e apreensão de natureza administrativa (Fisco, p. ex.) cível ou criminal.SimSimNão39Art. 5º, XI, da CF
Realização de diligências em investigações.SimSimNão40Art. 5º, XI, da CF

4. O ingresso irregular em casa configura crime de abuso de autoridade?

O crime de abuso de autoridade de invasão de domicílio ocorre somente em imóveis, pois o tipo penal do art. 22 da Lei n. 13.869/19 diz expressamente que a invasão deve ser em “imóvel alheio ou suas dependências”.

O crime de violação de domicílio não exige que a invasão ocorra em imóvel, sendo este uma espécie de casa (gênero), que abrange imóveis e móveis.

Crime de abuso de autoridade de invasão de domicílioCrime de violação de domicílio
Art. 22. Invadir ou adentrar, clandestina ou astuciosamente, ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel alheio ou suas dependências, ou nele permanecer nas mesmas condições, sem determinação judicial ou fora das condições estabelecidas em lei: Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.Art. 150 – Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências: Pena – detenção, de um a três meses, ou multa. § 4º – A expressão “casa” compreende: I – qualquer compartimento habitado; II – aposento ocupado de habitação coletiva; III – compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade.

A Nova Lei de Abuso de Autoridade revogou o § 2º do art. 150 do Código Penal que era uma causa de aumento da pena, caso a invasão de domicílio fosse praticada por funcionário público fora dos casos legais, ou com inobservância das formalidades estabelecidas em lei, ou com abuso do poder, em razão da previsão específica do crime de abuso de autoridade para invasão de imóvel, mas se esqueceu de que a violação de domicílio pode ocorrer em móveis ou imóveis, sendo que agora a pena será maior somente quando a invasão ocorrer em imóveis, uma vez que o crime de abuso de autoridade previsto no art. 22 da Lei n. 13.869/19 possui pena mais grave e abrange somente os imóveis.

Portanto, o ingresso irregular em casa “móvel”, como um trailer ou motorhome, não caracteriza crime de abuso de autoridade, contudo configura crime de violação de domicílio (art. 150 do Código Penal ou art. 226 do CPM), uma vez que são considerados “casa” para fins de violação de domicílio, nos termos do art. 150, § 4º, I (qualquer compartimento habitado), do Código Penal. Trata-se de “casa sobre rodas”.

Noutro giro, caso a invasão de domicílio decorra de atuação policial em imóvel, caracterizará o crime de abuso de autoridade.

Não é objeto deste texto estudar detalhadamente o crime de abuso de autoridade de invasão de domicílio de o de violação de domicílio, o que ocorrerá oportunamente.

NOTAS

1Constituição de 1824 (art. 179, 7); Constituição de 1891 (art. 72, § 11); Constituição de 1934 (art. 113, 16); Constituição de 1937 (art. 122, 6); Constituição de 1946 (art. 141, § 15); Constituição de 1967 (art. 150, § 10); Emenda Constitucional n. 1/69 (art. 153, § 10); Constituição de 1988 (art. 5º, XI).

2 STF – MS 23.595/DF.

3MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 33. ed. São Paulo: Atlas, 2016.

4APELAÇÃO CRIMINAL. VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO DURANTE A NOITE (CP, ART. 150, § 1º). SENTENÇA CONDENATÓRIA. RECURSO DO ACUSADO. 1. ATIPICIDADE. CASA DESABITADA. IMÓVEL DE VERANEIO. MOBÍLIA. DESOCUPAÇÃO TEMPORÁRIA. 2. DEFENSOR DATIVO. HONORÁRIOS RECURSAIS (CPC, ART. 85, §§ 1º E 11). ARBITRAMENTO POR EQUIDADE (CPC, ART. 85, §§ 2º e 8º). 1. A casa de praia que somente é ocupada por alguns meses e permanece temporariamente desabitada presta-se a ser objeto material do crime de violação de domicílio, especialmente se equipada com mobília e eletrodomésticos que identificam para qualquer pessoa que não se trata de local abandonado. 2. Faz jus à remuneração fixada de modo equitativo, em razão do trabalho adicional realizado em grau recursal, a defensora nomeada para atuar durante a instrução da ação que apresenta apelo. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. (TJ-SC – APR: 00026568020128240125 Itapema 0002656-80.2012.8.24.0125, Relator: Sérgio Rizelo, Data de Julgamento: 10/04/2018, Segunda Câmara Criminal)

5CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Invasão de domicílio (art. 150 do CP). Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/bb04af0f7ecaee4aae62035497da1387>. Acesso em: 24/05/2020

6 STF, Inq. 2424/RJ, Tribunal Pleno, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ 26.03.2010.

7GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: direito das coisas. Volume 1. São Paulo: Saraiva, 9ª Edição, 2014.

8 No sentido de ser um conceito abrangente: STF – RHC: 90376 RJ, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 03/04/2007, Segunda Turma, Data de Publicação: DJe-018 DIVULG 17-05-2007 PUBLIC 18-05-2007 DJ 18-05-2007 PP-00113 EMENT VOL-02276-02 PP-00321 RTJ VOL-00202-02 PP-00764 RT v. 96, n. 864, 2007, p. 510-525 RCJ v. 21, n. 136, 2007, p. 145-147.

9 Disponível em: <https://aplicacao.mpmg.mp.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/1334/Os%20direitos%20fundamentais%20das%20pessoas.pdf?sequence=1 >. Acesso em: 25/05/2020.

10Nesse sentido é a lição de Cezar Roberto Bitencourt ao citar como exemplo de “casa” no sentido de qualquer compartimento habitado, o abrigo embaixo de ponte ou viaduto etc. (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Especial 2. Dos crimes contra a pessoa. 14ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva. 2014.

11 Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2019/06/17/brasil-registra-mais-de-17-mil-casos-de-violencia-contra-moradores-de-rua-em-3-anos.ghtml>. Acesso em: 25/05/2020.

12 STF – HC 82.424, rel. p/ o ac. min. Maurício Corrêa, j. 17-9-2003, P, DJ de 19-3-2004.

13STJ. 2ª Turma. AgRg no REsp 1200736/DF, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, julgado em 24/05/2011.

14 Súmula 619-STJ: A ocupação indevida de bem público configura mera detenção, de natureza precária, insuscetível de retenção ou indenização por acessões e benfeitorias. STJ. Corte Especial. Aprovada em 24/10/2018, DJe 30/10/2018.

15 Art. 1.210. O possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação, restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado. § 1 o O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria força, contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse.

16 Parecer n. 193/2016 – Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo

17 Com o mesmo entendimento sustentado no texto: A pessoa em situação de rua e o direito de inviolabilidade do domicílio. Texto de autoria de Maria do Rosário Carneiro. Disponível em: <http://mariadorosariocarneiro.blogspot.com/2016/09/a-pessoa-em-situacao-de-rua-e-o-direito.html>. Acesso em: 25/05/2020.

18 Aplicação da teoria limitada da culpabilidade adotada pelo Código Penal (art. 20, §1º, do CP).

19 O STF já decidiu que o Poder Público deve advertir os presos e os acusados em geral do direito ao silêncio, o que se aplica à polícia. HC 99558/ES, rel. Min. Gilmar Mendes, 14.12.10. (HC-99558)

20 BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Manual de Direito Penal. Partes Geral e Especial. Volume Único. 1ª Ed. Salvador: Editora JusPODIVM. 2019. p. 887.

21NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 13. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2014. 1590 p.

22LIMA, Renato Brasileiro de. Código de Processo Penal Comentado. 2. ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2017. 1926 p.

23CASTRO, Henrique Hoffmann. Prisão em flagrante no domicílio possui limites. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5697, 5 fev. 2019. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/71781>. Acesso em: 4 abr. 2019.

24CASTRO, Henrique Hoffmann. Prisão em flagrante no domicílio possui limites. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5697, 5 fev. 2019. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/71781>. Acesso em: 4 abr. 2019.

25Não trataremos, neste momento, as distinções entre o Código Penal Comum e Militar, sendo suficiente saber que as consequências são as mesmas, ou seja, ausência de responsabilidade criminal.

26Para ler mais a respeito, consulte o texto “A perturbação do trabalho ou do sossego alheios” disponível no site “Atividade Policial”.

27Disponível em: <https://www.mdr.gov.br/images/stories/ArquivosDefesaCivil/ArquivosPDF/publicacoes/glossario.pdf>. Acesso em: 24/05/2020.

28Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/>. Acesso em: 24/05/2020.

29Disponível em: <https://www.mdr.gov.br/images/stories/ArquivosDefesaCivil/ArquivosPDF/publicacoes/glossario.pdf>. Acesso em: 24/05/2020.

30Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/>. Acesso em: 24/05/2020.

31 STF – HC: 103325 RJ, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 03/04/2012, Segunda Turma, Data de Publicação: ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-213 DIVULG 29-10-2014 PUBLIC 30-10-2014.

32 STF – MS: 23452 RJ, Relator: CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 16/09/1999, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ 12-05-2000 PP-00020 EMENT VOL-01990-01 PP-00086.

33 STF, Inq. 2424/RJ, Tribunal Pleno, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ 26.03.2010.

34Disponível em: < https://www.dizerodireito.com.br/2016/06/comentarios-lei-133012016-que-preve-o.html>. Acesso em 04/04/2019.

35 Em Valparaíso de Goiás, a Justiça autorizou que os agentes de saúde ingressassem nos imóveis com o fim de combater a dengue. Disponível em: <https://www.tjgo.jus.br/index.php/institucional/centro-de-comunicacao-social/17-tribunal/19627-agentes-de-saude-da-valparaiso-de-goias-estao-autorizados-a-entrar-em-imoveis-sem-permissao-para-combater-a-dengue>. Acesso em: 28/05/2020.

36 Caso se entenda que nas fiscalizações para a contenção de doenças não se exige autorização judicial, pois entendimento diverso levaria ao raciocínio de se exigir autorização judicial para qualquer caso.

37Art. 9º, II, da Lei 8.245/91.

38Caso não haja autorização do morador, ainda que haja previsão contratual que permita o ingresso na residência.

39Conforme será demonstrado, excepcionalmente, é possível o ingresso no período noturno, mediante autorização judicial.

40Conforme será demonstrado, excepcionalmente, é possível o ingresso no período noturno, mediante autorização judicial.