Viaturas policiais podem ser multadas por infrações de circulação, parada e estacionamento? Entenda a alteração promovida pela Lei n. 14.599, de 19 de junho de 2023.

Rodrigo Foureaux e Cristiano Mendes

O Código de Trânsito Brasileiro foi alterado no dia 20 de junho pela Lei n. 14.599, de 19 de junho de 2023.

Dentre as alterações destacaremos a mais relevante para a atividade policial.

A previsão inserida no art. 280, § 6º, do Código de Trânsito Brasileiro, criou uma espécie de “isenção” das multas de trânsito relacionadas à circulação, parada ou estacionamento relativa aos veículos destinados a socorro de incêndio e salvamento, aos de polícia, aos de fiscalização e operação de trânsito e às ambulâncias, ainda que não identificados ostensivamente.

Art. 280 (…)

§ 6º Não há infração de circulação, parada ou estacionamento relativa aos veículos destinados a socorro de incêndio e salvamento, aos de polícia, aos de fiscalização e operação de trânsito e às ambulâncias, ainda que não identificados ostensivamente.    (Incluído pela Lei nº 14.599, de 2023

A isenção da infração de trânsito se aplica a quais veículos?

Às viaturas policiais (PM, PC, PF, PRF, PP), do Corpo de Bombeiros, do SAMU, ambulâncias em geral (como das prefeituras e particulares), veículos do DETRAN, e quaisquer veículos destinados a socorro de incêndio e salvamento, bem com os de fiscalização e operação de trânsito.

A isenção aplica-se aos veículos da Guarda Municipal?

A lei não previu expressamente a Guarda Municipal, mas entendo que possa ser feita uma interpretação que abranja os veículos da Guarda Municipal, pois ao dizer “aos de polícia” não significa, necessariamente, que tenha que ser uma instituição policial, mas sim realize atividades de “polícia”, em sentido amplo, como a Guarda Municipal realiza. Além do mais, guardas municipais podem realizar fiscalização e operação de trânsito, como já decidiu o STF no RE 658.570.

Só o tempo vai dizer se o nosso entendimento vai prevalecer.

Esses veículos não podem ser multados em nenhuma circunstância?

A lei isentou da multa apenas nos casos de:

  1. Circulação: movimentação de pessoas, animais e veículos em deslocamento, conduzidos ou não, em vias públicas ou privadas abertas ao público e de uso coletivo.  
  2. Parada: imobilização do veículo com a finalidade e pelo tempo estritamente necessário para efetuar embarque ou desembarque de passageiros.
  3. Estacionamento: imobilização de veículos por tempo superior ao necessário para embarque ou desembarque de passageiros.

Logo, se o motorista de um dos veículos indicados transita sem cinto de segurança ou utilizando-se do celular, em tese, praticará infração de trânsito, mas se parar, estacionar em local proibido (parada/estacionamento), entrar na contramão de uma via (circulação) não haverá infração de trânsito.

Um exemplo muito comum de aplicação dessa nova previsão legal consiste na possibilidade de estacionar viaturas policiais em cima de passeios sem que pratique infração de trânsito por estacionar irregularmente o veículo.

Para que não haja a prática de infração de trânsito é necessário que os veículos estejam em atendimento de ocorrência ou se deslocando ou atuando em situações que exijam urgência?

Não!

Como se nota a novidade legislativa não trouxe nenhuma exigência, além de ser um veículo nas condições citadas, para que não haja infração de trânsito. Logo, a viatura policial ao entrar em uma contramão, ainda que seja durante o patrulhamento normal, sem urgência, não pratica infração de trânsito. Igualmente, não haverá infração de trânsito quando a viatura avançar um sinal vermelho ou ultrapassar em local proibido, mesmo se não houver urgência.

Uma prática que poderá ocorrer e não será infração de trânsito é uma viatura se deslocar para o quartel próximo do horário do turno de serviço ou após o horário do turno ter se encerrado e para tanto poderá se utilizar da pista exclusiva de ônibus e avançar um sinal vermelho com cautela, durante a madrugada, por exemplo.

Até então era comum que viaturas que se deslocavam para as ocorrências com agilidade tinham que informar o COPOM os radares que a viatura passava, pois chegariam muitas multas. No caso, o fundamento era o estrito cumprimento do dever legal. Agora, o fundamento passa a ser a isenção de multa para veículos oficiais nas situações descritas no § 6º do art. 280 do CTB. De toda forma, não deixa de ser estrito cumprimento do dever legal.

Os veículos deverão estar caracterizados para que não haja infração de trânsito?

Não!

O § 6º do art. 280 do CTB é expresso ao dizer que não há infração nos casos descritos ainda que não estejam identificados ostensivamente.

Logo, os veículos utilizados pelo serviço de inteligência e investigação por parte das instituições policiais, inclusive, os veículos descaracterizados que são utilizados no serviço administrativos, estão isentos da prática de infração de trânsito quando se relacionar à circulação, parada e estacionamento.

Revogação das alíneas “e” e “f” do art. 29, VII, do CTB?

A Lei n. 14.599/2023 revogou alguns dispositivos do Código de Trânsito Brasileiro, mas deixou intacto o art. 29, VII, “e” e “f”, que parece conflitar com o § 6º do art. 280.

Art. 29 (…) VII – os veículos destinados a socorro de incêndio e salvamento, os de polícia, os de fiscalização e operação de trânsito e as ambulâncias, além de prioridade no trânsito, gozam de livre circulação, estacionamento e parada, quando em serviço de urgência, de policiamento ostensivo ou de preservação da ordem pública, observadas as seguintes disposições:     (Redação dada pela Lei nº 14.071, de 2020)      (Vigência) e) as prerrogativas de livre circulação e de parada serão aplicadas somente quando os veículos estiverem identificados por dispositivos regulamentares de alarme sonoro e iluminação intermitente;    (Incluído pela Lei nº 14.071, de 2020)    (Vigência) f) a prerrogativa de livre estacionamento será aplicada somente quando os veículos estiverem identificados por dispositivos regulamentares de iluminação intermitente;      (Incluído pela Lei nº 14.071, de 2020)     (Vigência)Art. 280 (…)                         § 6º Não há infração de circulação, parada ou estacionamento relativa aos veículos destinados a socorro de incêndio e salvamento, aos de polícia, aos de fiscalização e operação de trânsito e às ambulâncias, ainda que não identificados ostensivamente.

Portanto, em um primeiro momento pode-se pensar que o art. 29, VII, alíneas “e” e “f”, foram revogadas com fundamento no art. 2º, § 1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (lei posterior revoga lei anterior quando seja com ela incompatível), pois o § 6º diz expressamente que não há infração de trânsito ainda que o veículo não esteja identificado ostensivamente, ao passo que as referidas alíneas exigem a identificação por dispositivo regulamentar de iluminação intermitente.

Entretanto, deve-se destacar que o art. 29 situa-se no capítulo que trata das normas gerais de circulação e conduta (norma de comportamento), enquanto o art. 280 localiza-se no capítulo que trata do processo administrativo (norma de consequências). É certo que as normas que determinam comportamentos, mas não impõem punições podem ser vistas como meras recomendações.

De toda forma, é possível dizer que o inciso VII do art. 29 aplica-se nos casos em que os veículos estiverem em serviço de urgência, de policiamento ostensivo ou de preservação da ordem pública e para se valer, nestes casos, da prerrogativa de livre circulação e parada deverão estar com a iluminação e sirene ligados e, em relação à prerrogativa de estacionamento, com o dispositivo de iluminação ligado. Todavia, com o advento do § 6º do art. 280, caso o motorista não ligue o dispositivo não poderá ser multado, ou seja, não haverá consequências administrativas (infração de trânsito), mas poderá haver consequências cíveis.

Tome como exemplo o motorista da viatura que a estaciona durante uma ocorrência em uma via movimentada, com pouca iluminação, mas não liga o giroflex. O motorista não poderá ser multado, mas em caso de acidente responderá civilmente, pois não observou o dever objetivo de cuidado e o princípio da confiança na circulação de trânsito.

Dessa forma, pode-se afirmar que o art. 29, “e” e “f” do CTB continuam vigentes.

Carta branca para não cumprir as leis de trânsito?

Em que pese a nova redação inserida no Código de Trânsito Brasileiro vir ao encontro do interesse público por conceder segurança jurídica para a atuação dos policiais e todos os profissionais que atuam nos veículos mencionados, é muito importante e necessário que haja muita cautela e prudência dos motoristas para que não haja riscos desnecessários para a segurança do trânsito.

Obviamente, avançar o sinal vermelho e transitar na contramão, por exemplo, somente deve ocorrer com a máxima segurança. Não se trata de uma autorização legislativa para que veículos oficiais, nas condições descritas, exponham a risco elevado a segurança do trânsito, até porque o condutor ficará isento da multa, mas não da responsabilidade cível e criminal.

Por fim, caso se constate no caso concreto que houve desvio de finalidade, em que pese o cenário ideal ser a lavratura da multa, o policial na rua, no momento da aplicação da multa não tem como avaliar as circunstâncias e decidir por superar a previsão legal que isenta da multa e lavrar a autuação de trânsito, razão pela qual neste caso deve comunicar o órgão do policial para a adoção das providências disciplinares cabíveis.

A título exemplificativo, podemos citar a hipótese em que uma pessoa se utiliza de um veículo oficial (viatura descaracterizada) para fins particulares e pratica infrações de trânsito relacionadas à circulação e estacionamento irregular do veículo ou, mesmo durante o serviço, vale-se da isenção da infração de trânsito para estacionar e deixar por longo período o veículo oficial na porta da garagem do desafeto, o que o impede de sair de casa naquele dia. São situações claras de desvio de finalidade que não têm como serem analisadas individualmente pelo agente de trânsito na rua e como não é possível a lavratura de multa posteriormente, após instaurado procedimento administrativo para apurar o caso, este deverá ser resolvido pela via disciplinar.