Em caso de perseguição a moto o policial pode disparar no pneu ou no piloto?

O vídeo abaixo me chamou atenção pela habilidade do piloto da moto da Guarda Municipal. Claramente, a vida e a integridade física do guarda estavam em constante risco durante toda a perseguição e com um domínio incomum conseguiu perseguir o sujeito até rendê-lo. Para pilotar moto da GM ou da PM o policial deve, além de ser voluntário, ter grande domínio e habilidade!

 

Juridicamente, temos os seguintes apontamentos:

a) A fuga, sobretudo no caso do vídeo, claramente é uma situação de fundada suspeita, o que legitima a busca pessoal. Há julgado do STJ que decidiu que a fuga após visualizar a viatura policial não justifica a busca pessoal (HC 811.634).

b) A Portaria Interministerial n. 4.226/2010 do Ministério da Justiça e Secretaria de Direitos Humanos diz no Anexo I, item 4, que “Não é legítimo o uso de armas de fogo contra pessoa em fuga que esteja desarmada ou que, mesmo na posse de algum tipo de arma, não represente risco imediato de morte ou de lesão grave aos agentes de segurança pública ou terceiros.”

c) A Lei n. 13.060/2014 trata do uso dos instrumentos de menor potencial ofensivo pelos agentes de segurança pública e no art. 2º, parágrafo único, I, diz que não é legítimo o uso de arma de fogo “contra pessoa em fuga que esteja desarmada ou que não represente risco imediato de morte ou de lesão aos agentes de segurança pública ou a terceiros.”

d) O Manual Técnico-Profissional n. 3.04.04/2020-CG da PMMG recomenda não “disparar arma fogo contra o veículo em fuga, pois haverá risco de atingir transeuntes ou prováveis reféns em seu interior.” Certo que a escrita visou carros, mas o mesmo raciocínio se aplica a motos em relação ao risco de atingir transeuntes.

Em se tratando da fuga em moto há diversas variáveis: a) O indivíduo em fuga coloca em risco diversas pessoas, como se pode ver no vídeo. A depender do caso, se o veículo for utilizado como “arma”, como um carro que sai atropelando pessoas ou que haja grande risco disso ocorrer, o policial está autorizado a disparar em legítima defesa (se houver destinatário certo) ou estado de necessidade (se o perigo não tiver destinatário certo, o que é mais provável); b) O policial efetuar um disparo contra o piloto em fuga tem uma chance alta de errar o disparo e atingir terceiro; c) Caso o policial consiga atingir o piloto este cairá da moto que poderá ir na direção de terceiros e provocar lesões graves ou até a morte; d) Em alguns trechos da perseguição, se o policial conseguir alcançar a moto em fuga pode se utilizar, se houver condições, da pistola de emissão de impulso elétrico; e) Deve-se analisar se tem passageiro na moto e em qual condição está.

Concluo que a regra é não atirar, salvo situações extremas, como o indivíduo na moto que esteja armado e possa atirar ou que haja uma elevada probabilidade de utilizar o veículo como “arma”, atropelar e matar pessoas.

O policial pode dar um “totó” com a viatura em um carro ou moto em fuga com o fim de forçar uma parada?

O fato mostrado no vídeo abaixo ocorreu em 2001 nos Estados Unidos. Os policiais perseguiram o veículo em fuga após este passar em alta velocidade em uma via e desobedecer às ordens de parada. A perseguição durou mais de 06 minutos, sendo empreendida alta velocidade e o veículo em fuga foi parado pelos policiais após mais de 16 km de fuga.

Em um certo momento o policial que estava na viatura mais próxima solicitou autorização para o Comandante para que pudesse encerrar a perseguição aplicando uma técnica de parar veículos em fuga denominada PIT.

Durante a perseguição o policial deu um totó na traseira do carro, que não é a manobra PIT, o que resultou no acidente que deixou o motorista em fuga tetraplégico.

O vídeo abaixo mostra como a técnica PIT é aplicada.


Em um certo momento o policial que estava na viatura mais próxima solicitou autorização para o Comandante para que pudesse encerrar a perseguição aplicando uma técnica de parar veículos em fuga denominada PIT.
 
Durante a perseguição o policial deu um totó na traseira do carro, que não é a manobra PIT, o que resultou no acidente que deixou o motorista em fuga tetraplégico.

O policial foi levado a julgamento. Nas primeiras instâncias foi negado pela justiça a absolvição, sendo entendido que deveria ser submetido a julgamento perante o tribunal do júri. O policial recorreu e o caso chegou à Suprema Corte dos Estados Unidos.

Na Suprema Corte os juízes viram pelo vídeo que a versão apresentada pela pessoa que ficou paraplégica é completamente diversa da mostrada no vídeo (um acréscimo: vejam que a gravação salvou o policial). O agente relatou que foi cauteloso e que não colocou a vida de terceiros em risco, razão pela qual foi desproporcional e desnecessário o policial ter parado o veículo da forma como ocorreu, mas a gravação mostra exatamente o contrário, o risco de vida de várias pessoas, o avanço de sinais, os veículos se desviando para não serem atingidos pelo veículo em fuga. A Suprema Corte concluiu que houve  “uma perseguição de carro ao estilo de Hollywood do tipo mais assustador”.

Diante da gravação feita, o que demonstrou a realidade dos fatos e os riscos gerados pelo agente em fuga, a Suprema Corte dos EUA decidiu que a conduta do agente representava uma ameaça real e iminente a pedestres, outros motoristas e aos próprios policiais, razão pela qual a conduta do policial de tocar o carro em fuga por trás foi razoável.

A Suprema Corte decidiu que mesmo quando a vida do motorista em fuga é colocada em risco de lesões graves ou de morte, a conduta do policial no sentido de encerrar uma perigosa perseguição em alta velocidade não viola a Quarta Emenda. A Quarta Emenda da Constituição dos EUA protege os cidadãos norte-americanos de buscas e apreensões arbitrárias do Estado.

Ao final a Suprema Corte dos EUA decidiu por não interferir e estabelecer uma regra que impeça a polícia de atuar nesses casos e deixarem os suspeitos fugirem, pois seria um incentivo perverso para que todo motorista que quisesse fugir imprimiria uma alta velocidade, colocando outras pessoas em risco, e fugiria. Decidiu que a Constituição norte-americana não impõe esse convite à impunidade e estipulou como regra que a tentativa de um policial de encerrar uma perseguição perigosa de um veículo em alta velocidade que coloca em risco a vida de outras pessoas não viola a Constituição, ainda que o motorista em fuga corra discos de ferimentos graves ou de morte.

Os juízes da Suprema Corte destacaram a importância da filmagem de todo o ocorrido para que o policial fosse absolvido sumariamente.

E no Brasil? O “totó” com a viatura com o fim de parar um veículo é permitido?

O Manual Técnico-Profissional n. 3.04.04/2020-CG da PMMG que cuida da abordagem a veículos preconiza que:

e) manter a distância mínima de segurança da viatura em relação ao veículo em fuga. Essa distância poderá ser aumentada para se os ocupantes efetuarem disparos de arma de fogo contra a viatura. Nessas circunstâncias, os policiais militares evitarão revidar a agressão;

Devido aos possíveis resultados que poderão advir dessas ações, recomenda-se ao policial militar que não execute as seguintes medidas:

 • ultrapassar ou emparelhar a viatura com o veículo em fuga, efetuando manobras perigosas (“fechadas”);

 • disparar arma fogo contra o veículo em fuga, pois haverá risco de atingir transeuntes ou prováveis reféns em seu interior.

Como se pode ver, na PMMG a orientação institucional é não encostar a viatura com o veículo em fuga, tendo, inclusive, que manter uma distância de segurança.

No Brasil os policiais são orientados a não forçarem uma parada abrupta dos veículos em fuga.

É difícil dizer como um caso semelhante ao ocorrido nos Estados Unidos seria decidido pelos tribunais no Brasil. Há uma série de fatores a serem avaliados. Há risco de vida para terceiros e para os policiais? Há refém no veículo em fuga? Se parar o veículo em fuga ocorrerá um acidente. Este acidente pode atingir terceiros? Qual é o melhor momento para parar o veículo? Tem helicóptero para acompanhar a fuga? Isso tudo atrelado à atuação policial em meio a um turbilhão de emoções, adrenalina e o calor dos fatos. Caso haja atuação nesses casos, havendo razoabilidade, diante do caso concreto, pode-se falar em estado de necessidade. De toda forma, não é um protocolo recomendável no Brasil.

Ementa do julgado


Scott v. Harris (2007). Suprema Corte dos Estados Unidos da America.
Policial e perseguição de carro em alta velocidade; motorista em fuga em risco de ferimentos graves ou morte; procedimento que termina com acidente e motorista paralisado; ameaça à vida de espectadores; justificada a força letal.