O Comandante-Geral na linha de frente: análise técnica e jurídica da Nota do Comando da PMMG a respeito da manifestação de militares por recomposição inflacionária
No dia 25 de fevereiro de 2022 o jornal Folha de São Paulo publicou uma matéria, cujo título é “Carta de Comandante da PM de MG pode configurar crime, dizem especialistas”.
A seguir, a Nota do Comando da Polícia Militar de Minas Gerais.
A respeito dessa matéria sobre a nota do comando, especificamente, do Coronel Comandante-Geral da PMMG, que antecedeu a manifestação do dia 11/02 de militares da PMMG em busca de recomposição inflacionária, a reportagem veicula a possibilidade de haver vários crimes militares por parte do Comandante-Geral.
A matéria destacou alguns trechos da nota do comando, como a parte em que o comandante disse que “se mantém, diuturnamente, engajado na defesa dos interesses e direitos da corporação” e que o “evento legítimo, inclusive com a participação de quem ombreia na ativa.”, no entanto, não destacou a parte em que o Comandante-Geral diz para o evento ser pacífico, nos trechos “cuidemos para que nenhuma ação retire o brilho do respaldo que a nossa instituição conquistou até hoje” e “Qualquer ato que saia do campo de uma manifestação pacífica poderá fazer com a nossa marca seja apedrejada…”.
Sobre eventuais crimes militares em razão do conteúdo da nota do comando, não vislumbro nenhum. Vamos analisar, tecnicamente, cada um dos possíveis crimes mencionados na matéria, partindo do pressuposto que o movimento é legítimo, como divulguei no texto “Militares podem protestar por reajuste salarial?” e na entrevista concedida ao Jornal Estado de Minas do dia 21 de fevereiro de 2022, cujo título da matéria é “Policiais e bombeiros devem fazer paralisação hoje em BH“.
1. Crime militar de crítica indevida (art. 166 do CPM)
Não houve esse crime, pois em nenhum momento na nota há crítica a qualquer resolução do Governo nem crítica a ato de superior ou assunto atinente à disciplina militar. Além do mais, a crítica a superior mencionada no crime de crítica indevida se refere ao superior que seja militar, que ocupe função militar e não há superior ao Comandante-Geral em uma instituição militar estadual. Não houve também crítica a assunto atinente à disciplina militar, pelo contrário, a nota pede por uma manifestação pacífica.
2. Crime militar de inobservância de lei, regulamento ou instrução (art. 324 do CPM)
Em razão da possibilidade de se deflagrar uma greve do movimento e, consequentemente, haver motim, o Comandante-Geral poderia responder pelo crime do art. 324 do CPM, por ter, no exercício de função, deixado de observar lei, regulamento ou instrução, dando causa direta à prática de ato prejudicial à administração militar, caso houvesse a greve. Como sustentei anteriormente, o movimento, o protesto pacífico é legítimo, é um direito fundamental, do qual os militares não estão excluídos. Deve-se coibir excessos, obviamente, mas não vedar peremptoriamente qualquer protesto pacífico por militares. Portanto, o Comandante-Geral observou um direito fundamental dos militares e para isso exige coragem e um ato de um comandante que tem pulso firme. Comandante não deve ser medroso nem jamais abandonar a sua tropa. Se do movimento houvesse greve, aí sim o Comandante-Geral deveria atuar para fazer cessá-la, visando, inclusive, resgatar a imagem da instituição. Não se pode proibir um movimento legítimo em razão da possibilidade desse movimento ser deflagrada uma greve. Seria negar um direito fundamental e os excessos devem ser combatidos pontualmente.
3. Crime militar de incitamento (art. 155 do CPM)
Não houve na nota do comando incitamento à desobediência, à indisciplina ou à prática de crime militar. Destaco que a nota pede um protesto pacífico – sem crimes, sem indisciplina, sem desobediência – como relatei anteriormente. Além do mais, dizer que há o crime militar de incitamento confunde manifestação com greve. São coisas absolutamente distintas. A manifestação pacífica é direito fundamental, do qual os militares não estão excluídos. A greve é inconstitucional, é vedada.
Não se sustenta a afirmação na matéria que o Comandante-Geral pode ter livrado a tropa de eventual participação em greve e que possuem quase uma excludente de ilicitude, pois teriam o apoio do comando. Primeiro pelo fato da nota em nenhum momento estimular a realização de greve, pelo contrário, pediu que não haja nenhuma ação que retire o brilho da instituição. Segundo porque a realização de greve é expressamente vedada pela Constituição Federal e já foi pacificada pelo STF que não é possível (art. 143, § 3º, IV c/c art. 42, § 1º, ambos da CF e STF – ARE 654.432), o que já afastaria a afirmação de que a tropa estaria livre de responsabilidades, pois não há controvérsias sobre a inconstitucionalidade e eventual autorização nesse sentido é manifestamente ilegal e criminosa, pois pode configurar motim, revolta, deserção, incitamento, razão pela qual eventual autorização não deve ser exercida e eventual ordem nesse sentido não deve ser cumprida (art. 38, § 3º, do CPM). Terceiro porque o Código Penal Militar impõe aos militares o dever de conhecer as normas, sendo impossível a alegação de estarem amparados pelo comando para deflagrarem uma greve (art. 35 do CPM).
Vamos analisar todo o contexto por uma visão macro, que inclusive vai além da análise jurídica. Uma preocupação que devemos ter, sobretudo quem é da área jurídica, é que o direito não é uma ilha. O direito não fala por si só, deve-se comunicar com outras áreas (econômica, saúde, humanas etc.), sem substituí-las ou achar que deve prevalecer, e nunca se deve esquecer, sobretudo, da gestão de pessoas, o que não é nada fácil. Por vezes uma visão “fechada” do Direito ou achar que o Direito se sobrepõe a outras ciências, muito mais atrapalha do que ajuda. Cada ciência cuida da sua área e isso deve ser respeitado.
A ausência de um posicionamento do Comandante-Geral, neste momento de tensão, poderia ter efeitos nefastos, gerar revolta na tropa e aí sim ser deflagrada greve e acontecimentos de consequências incalculáveis, com resultados trágicos, como homicídios e aumento de diversos crimes patrimoniais em toda a sociedade mineira, em razão de eventual greve. Não se tem como segurar uma tropa revoltada, o que somente com a liderança de um bom Comandante pode evitar ou atenuar os efeitos da revolta de uma tropa.
A história está aí para nos mostrar isso. A história, os acontecimentos passados, devem ser usados para balizar as ações atuais. Quantas greves das forças militares já não houve cujos resultados foram desastrosos para a sociedade?
O Comandante-Geral deve saber lidar com gestão de pessoas e pisa em ovos, pois ao mesmo tempo que deve se manter leal e fiel ao Governador do Estado, que é o Comandante Supremo das Instituições Militares Estaduais, deve estar com a tropa, não deve abandoná-la e também deve ser leal e fiel à tropa. Não é nada fácil. É um momento crítico, de grande tensão e que exige uma habilidade extraordinária, adquirida com décadas de experiência profissional, operacional e administrativa.
Diante de todo esse contexto, pode-se afirmar com tranquilidade que não houve atitude irresponsável e que não houve a prática de qualquer crime por parte do Comandante-Geral, pelo contrário, evitou-se que o pior acontecesse.
Em um Estado Democrático de Direito, a liberdade de expressão e as críticas ao Governo são pilares essenciais para a manutenção da democracia. É normal, natural, que ocorram e é até bom que ocorram. Somente na ditadura querem silenciar quem pensa diferente ou manter o controle do que pode ser falado. Não se deve permitir discurso de ódio, mas críticas sempre são bem-vindas em uma democracia. Em se tratando de militares há limitações à liberdade de expressão, em razão da hierarquia e disciplina, contudo as restrições não implicam em total ausência de liberdade de expressão, sendo perfeitamente possível que critiquem de forma respeitosa e construtiva.
Por fim, para fins didáticos, caso se entenda que houve crime militar por parte do Comandante-Geral, a competência para processá-lo e julgá-lo é do Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais em razão da prerrogativa de foro prevista no art. 106, I, “b”, da Constituição do Estado de Minas Gerais. Ao deixar o comando da instituição, caso a instrução processual ainda não tenha terminado, o processo deve ser remetido para o juiz de primeira instância. Isto é, com a publicação do despacho para a intimação para a apresentação das alegações finais, a competência para processar e julgar o Comandante-Geral não é mais afetada com a sua exoneração do cargo, em razão da passagem para a reserva ou por outro motivo (interpretação da AP 937 QO/RJ – STF).