A promoção a Coronel continua sendo de livre escolha do Governador após a Lei Orgânica Nacional das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares – Lei n. 14.751/2023?

Com o advento da Lei n. 14.751/2023 – Lei Orgânica Nacional das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares dos Estados e do Distrito Federal – tem-se discutido se ainda é possível que o Governador do Estado escolha livremente os tenentes-coronéis que serão promovidos a Coronel, conforme ocorre atualmente nos estados diante de previsão em lei que a promoção a Coronel será de livre escolha do Governador.

A Constituição Federal dispõe no art. 22, XXI, que cabe à União legislar sobre normas gerais de organização e efetivo das instituições militares estaduais, razão pela qual a Lei n. 14.751/2023 é constitucional ao traçar diretrizes gerais de promoção no âmbito das polícias militares e corpos de bombeiros militares e suspende legislação estadual no que contrariar a lei nacional (intepretação extensiva do art. 24, § 4º, da CF).

O art. 14 da Lei n. 14.751/2023 disciplina que:

Art. 14. A progressão do militar na hierarquia militar, pelos fundamentos das Forças Armadas, independentemente da sua lotação no quadro de organização, será fundamentada no valor moral e profissional, de forma seletiva, gradual e sucessiva, e será feita mediante promoções, pelos critérios de antiguidade e merecimento, este com parâmetros objetivos, em conformidade com a legislação e a regulamentação de promoções de oficiais e de praças do ente federado, de modo a garantir fluxo regular e equilibrado de carreira para os militares.

Apresentaremos nesse texto três possíveis soluções fundamentadas que poderão ser escolhidas pelo comando, sem prejuízo de que haja outras interpretações.

1ª solução: persiste a possibilidade de o Governador escolher livremente os tenentes-coronéis que serão promovidos

Não obstante o art. 14 da Lei n. 14.751/2023 tenha definido que as promoções serão feitas por antiguidade e merecimento, sendo esta com parâmetros objetivos, a promoção a Coronel goza, ainda que minimamente, de uma valoração política de livre escolha do Governador, pois trata-se de promoção ao último posto da instituição com vinculação direta ao Comando da corporação, que por sua vez é escolhido pelo Governador, sendo possível, nesses casos, que a legislação local preveja exceção à regra contida no art. 14.

O Governador e os entes federativos gozam de autonomia para definir as normas de promoção na carreira, sendo competência privativa do Governador, enquanto Chefe do Poder Executivo, tratar do regime jurídico e promoção dos militares (art. 61, § 1º, II, “f”, da CF)[1], razão pela qual lei editada pela União pode apenas apresentar regras gerais, o que não impede que o Estado, justificadamente, preveja exceções. Do contrário, haveria ruptura do Pacto Federativo em razão do excessivo intervencionismo da União na autonomia dos entes federativos.

O art. 9º da Lei n. 14.751/2023 prevê que o Governador do Estado editará lei de iniciativa privativa sobre a organização das instituições militares estaduais, observadas as normas gerais previstas nesta Lei e os fundamentos de organização das Forças Armadas. Como a promoção a Coronel não observa as regras gerais da carreira, por se tratar do acesso ao último posto e das peculiaridades que regem o cargo de Coronel, e tendo como parâmetro os fundamentos de organização das Forças Armadas, que preveem a possibilidade de escolha para o último posto (oficial-general), na forma do art. 60 da Lei n. 5.821/1972, igual entendimento deve ser aplicado às forças reservas e auxiliares do Exército.

Soma-se ainda o fato do art. 29, § 3º, da Lei n. 14.751/2023 prever que compete aos comandantes-gerais indicar os nomes para nomeação aos cargos que lhes são privativos, realizar a promoção das praças e apresentar ao governador a lista de promoção dos oficiais, nos termos da lei que estabelece as regras de promoção.

Nota-se que a lei foi clara ao prever que o Comandante-Geral promove as praças, mas em relação aos oficiais apresenta a lista de promoção ao Governador. Portanto, qual é o sentido de a lei exigir a apresentação da lista ao Governador se este não puder modificá-la, incluir ou retirar nomes? Seria o Governador um mero chancelador da lista apresentada? As patentes dos oficiais são conferidas pelos respectivos governadores (art. 42, § 1º, da CF) que possui ampla discricionariedade para promover por merecimento, segundo critérios de conveniência e oportunidade. Do contrário, o ato de promoção seria, por vias indiretas, da própria corporação, de órgão que lhe é subordinado, e não do Governo. Portanto, o Governador do Estado pode escolher livremente os tenentes-coronéis que estão habilitados a serem promovidos a coronéis, mesmo após a Lei n. 14.751/2023.

O Superior Tribunal de Justiça permite a livre escolha do Governador, conforme decisão abaixo que foi proferida antes da Lei Orgânica Nacional das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares dos Estados e do Distrito Federal, mas pelos fundamentos apresentados, a lógica continua sendo a mesma.

Por força da legislação sul-matogrossense de regência (Lei Complementar 53/1990, Lei 61/1980 e Decreto 10.768/2002), é inegável o caráter discricionário que informa a promoção por merecimento, assim evidenciado pelo reiterado emprego da expressão ‘de livre escolha do Governador’, tal como utilizada nos aludidos textos legais (…) Como ato discricionário que é, sujeita-se à avaliação – até certo ponto subjetiva – da autoridade competente, que decidirá sobre a conveniência e oportunidade de sua efetivação. Se, por um lado, isto não significa que o Governador possa promover o militar a qualquer tempo, sem observância dos critérios e limites regulamentares (pois discricionariedade não se confunde com arbitrariedade), é igualmente certo, de outra mão, que o Tenente-Coronel constante da Lista de Escolha, que atenda às exigências para ser promovido, não tem, só por isso, direito líquido e certo à desejada promoção ao posto de Coronel (STJ, AgInt no RMS 57.200/MS, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, DJe de 23/08/2018). Esse precedente está em harmonia com precedentes do STJ, proferidos em casos semelhantes: STJ, RMS 27.600/DF, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, DJe de 19/04/2010; AgInt no RMS 62.035/MG, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, SEGUNDA TURMA, DJe de 30/09/2020; AgRg no RMS 45.170/PB, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, DJe de 24/02/2016.

AgInt no RMS n. 67.511/MS, relatora Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, julgado em 21/8/2023, DJe de 29/8/2023. (destaquei)

2ª solução: não é mais possível haver a livre escolha do Governador do Estado

O art. 14 da Lei n. 14.751/2023 não previu exceções nos critérios de escolha para a promoção a Coronel, razão pela qual esta também deve observar parâmetros objetivos.

Quando a lei diz “critérios de antiguidade e merecimento” significa que a instituição pode se utilizar dos dois critérios para promoção ao longo da carreira e não que ambos devam ser utilizados para o acesso a todos os postos, sendo possível que, por uma escolha política do legislador local, dada a envergadura e relevância do cargo, a promoção a Coronel seja possível apenas por merecimento.

Na carreira da magistratura a Constituição Federal não deixa dúvidas que a situação é distinta, pois claramente prevê a promoção de entrância para entrância, alternadamente, por antigüidade e merecimento e que o acesso aos “tribunais de segundo grau far-se-á por antigüidade e merecimento, alternadamente, apurados na última ou única entrância” (art.  93, II e III). A alternância nos critérios para promoção não deixa dúvidas da obrigatoriedade de se observar tanto a antiguidade quanto o merecimento, ao passo que o art. 14 da Lei n. 14.751/2023 previu a promoção por antiguidade e merecimento, conforme a legislação local, o que permite ao estado a definição se a promoção a Coronel será por antiguidade e merecimento ou apenas por merecimento ou antiguidade.

Quando a lei diz que a promoção por merecimento observará “parâmetros objetivos, em conformidade com a legislação e a regulamentação de promoções” significa que os critérios para promoção devem constar objetivamente na lei, como tempo de serviço e no posto/graduação; nota em avaliação de desempenho; cumprimento de metas estipuladas pelo comando; titulação acadêmica; conceito disciplinar; nota da comissão de promoção que pode aferir o relacionamento interpessoal, a capacidade de liderança, a habilidade para lidar com pressões e gerenciar a tropa, a representatividade institucional, a qualidade técnica das decisões tomadas enquanto tenente-coronel e ao longo da carreira etc.

Nota-se que os parâmetros devem ser objetivamente previstos em lei e no regulamento de promoção, mas haverá uma carga de subjetivismo e discricionariedade fundamentada, até porque a promoção a Coronel, último posto da carreira, exige uma série de habilidades que não são aferíveis por critérios puramente objetivos, como tempo de serviço, titulação acadêmica e conceito disciplinar. A relevância e envergadura do cargo exige uma série de avaliações.

Enquanto o art. 14 da Lei n. 14.751/2023 prevê que a promoção na carreira militar estadual será por antiguidade e merecimento, a Lei n. 6.880/1980 – Estatuto dos Militares das FFAA – prevê que as promoções serão efetuadas pelos critérios de antiguidade, merecimento ou escolha (art. 60) e a Lei n. 5.821/1972 prevê que as promoções para as vagas de oficiais-generais serão pelo critério de escolha do Presidente da República (arts. 11, “c” e 24), o que concede ao Presidente um alto grau de discricionariedade.

Como a Lei Orgânica Nacional das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares dos Estados e do Distrito Federal não previu a promoção, para o posto de Coronel, por livre escolha do Governador do Estado, é certo que essa modalidade de promoção, ainda que prevista em lei estadual, não existe mais, pois não foi prevista pelo legislador competente (União) a possibilidade de promover por escolha, como ocorre nas Forças Armadas.

A promoção por livre escolha do Chefe do Poder Executivo é constitucional, desde que haja previsão em lei, pois a Constituição Federal permite que alguns cargos, em razão da envergadura, responsabilidade e impacto político e social possa ser livremente escolhido, como ocorre com os Ministros do Supremo Tribunal Federal (art. 101, parágrafo único, da CF); Ministros do Tribunal Superior Eleitoral dentre os advogados indicados pelo STF (art. 119, II); Ministros Civis do STM (art. 123, parágrafo único), dentre outros. São atos de alto grau de discricionariedade do Presidente da República, desde que observado os requisitos previstos em lei, como notável saber jurídico e reputação ilibada para o cargo de Ministro do STF.

Soma-se ainda ao fato de a Constituição Federal prever que na carreira militar federal e estadual (art. 42, § 1º) a lei disporá sobre as situações especiais dos militares, consideradas as peculiaridades de suas atividades, o que inclui a promoção (art. 142, § 3º, X).

Na hipótese em que a lei estadual prever que a promoção será por merecimento, mediante livre escolha do Governador, ao fundo significa que o critério é escolha do Governador, que recebe o nome de merecimento, sem critério objetivo, o que contraria o que determina a Lei n. 14.751/2023, razão pela qual essa forma de escolher os coronéis que serão promovidos não é mais possível juridicamente.

Diante desse cenário os estados devem adequar a legislação e o regulamento de promoção para prever critérios objetivos para o acesso ao posto de coronel não sendo mais possível que ao abrir vagas o comando envie para o Governador lista com os tenentes-coronéis selecionados sem que haja fundamentação.

Assim como ocorre a Comissão de Promoção de Oficiais e de Praças é possível se criar a Comissão de Promoção de Coronéis – CPC. O Alto-Comando ou uma comissão de coronéis pode se reunir para debater e fundamentar, mediante critérios objetivos e impessoais previstos em lei e no regulamento de promoções, como os exemplos citados, quais tenentes-coronéis merecem ser promovidos e lançar as notas de forma fundamentada para, ao final, encaminhá-la para o Governador do Estado que poderá recusar algum nome, desde que haja previsão em lei ou no regulamento, por exemplo, por contrariar o interesse público, mediante justificativa baseada em fatos concretos.

O Governador do Estado, enquanto Comandante-Supremo das Instituições Militares Estaduais continua livre para escolher, sem fundamentar, o Comandante-Geral, o Chefe do Estado-Maior e o Gabinete Militar, pois são cargos estratégicos e de escolha política do Chefe do Executivo que, inclusive, compõem o seu secretariado. Trata-se, na verdade, de uma promoção horizontal que não exige critério objetivo, apenas a livre escolha do Governador. Não obstante a escolha seja política o exercício do cargo é estritamente técnico.

Assim é possível afirmar, para a 2ª solução, que:

  1. A promoção a Coronel pode ter como critério apenas o merecimento e depende de critérios objetivos previstos em lei e no regulamento de promoção, não sendo possível que o Governador escolha livremente os tenentes-coronéis que serão promovidos;
  2. Cabe à lei estadual e ao regulamento de promoções definir quais serão os critérios objetivos e dentre esses critérios pode haver uma avaliação subjetiva e discricionária fundamentada, pois é inerente à gestão pública a avaliação de aspectos humanos, como relacionamento interpessoal, liderança, capacidade de articulação estratégica e política, gestão de pessoas, representatividade institucional e o cargo ocupado por Coronel exige grandes habilidades em diversas áreas, o que não é possível de ser aferido matematicamente;
  3. O Governador do Estado pode escolher livremente, sem fundamentar, o Comandante-Geral, o Chefe do Estado-Maior e o Gabinete Militar, desde que já seja Coronel.

3ª solução: a instituição seleciona os nomes de forma fundamentada e o Governador escolhe livremente dentre os nomes da lista (mescla da 1ª e 2ª soluções).

Há a possibilidade de se sustentar que a decisão final dos tenentes-coronéis que serão promovidos cabe ao Governador do Estado, desde que siga a lista previamente selecionada de forma fundamentada pelo Comando da Instituição, pois ao mesmo tempo seguiria os critérios objetivos exigidos pelo art. 14 da Lei n. 14.751/2023, conforme exposto na 2ª solução, e ainda preservaria a autonomia do ente federativo e o poder de livre escolha do Governador do Estado, em que pese limitado à lista apresentada pelo comando.

Essa solução mostra-se plausível por preservar, ao mesmo tempo, a autonomia do ente federativo e a impessoalidade ao restringir os nomes que possam ser escolhidos pelo Governador com fundamento no merecimento.

A livre escolha do Governador para a ocupação de cargos públicos relevantes ocorre em outras instituições, como a escolha, em lista tríplice, de advogados e membros do Ministério Público para os tribunais de justiça (art. 94, parágrafo único, da CF).

Nada impede que lei estadual, consoante a Constituição Federal (art. 42, § 1º c/c art. 142, § 3º, X) preveja a possibilidade de o Governador escolher livremente tenentes-coronéis para serem promovidos a Coronel, observada a lista apresentada pela instituição, após critérios objetivos de escolha (art. 14 da Lei n. 14.751/2023).

A nosso ver a 3ª solução é a mais viável jurídica e politicamente, pois, ao mesmo tempo preserva a autonomia dos entes federativos, não coloca o Chefe do Poder Executivo (Governador do Estado, Comandante-Supremo da Instituição Militar Estadual) em situação subalterna ao comando da corporação e como mero chancelador da lista selecionada pelo comando, como se fosse um órgão meramente homologador e assegura a preservação, na lista encaminhada ao Governador, dos parâmetros objetivos exigidos pela Lei n. 14.751/2023, o que preserva a impessoalidade e os critérios republicanos, bem como a seleção dos tenentes-coronéis aptos a serem promovidos, o que é selecionado pelo comando que sabe quais são os oficiais prontos para serem coronéis, mediante a análise de parâmetros objetivos.

Trata-se, portanto, de um ato administrativo complexo, que se inicia na instituição militar e é finalizado no Governo do Estado.

Expostas as possíveis três soluções apresentadas, sem a pretensão de exaurir o assunto, passamos a analisar um ponto muito importante.

As sessões das comissões de promoção de oficiais e de praças precisam ser abertas ao público ou podem ser sigilosas?

As deliberações das comissões de promoções de oficiais e de praças, por atos normativos internos e na prática, como regra, são secretas. Essa prática é constitucional ou deveriam ser realizadas a portas abertas?

No âmbito do Poder Judiciário (art. 93, X c/c art. art. 1º da Resolução n. 106/2010-CNJ) e do Ministério Público (art. 129, § 4º, da CF e art. 2º da Recomendação n. 108/2024-CNMP), as promoções de juízes e promotores devem ocorrer em sessão pública, cuja votação é aberta, nominal e fundamentada, o que atende ao princípio da transparência, publicidade e fundamentação dos atos administrativos.

A Lei Complementar n. 80/1994 organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescreve normas gerais para sua organização nos Estados e dispõe que a promoção por merecimento dependerá de lista tríplice para cada vaga, organizada pelo Conselho Superior, em sessão secreta, com ocupantes da lista de antiguidade, em seu primeiro terço (art. 76, § 2º), o que é inconstitucional, pois a regra da publicidade aplicável à magistratura aplica-se também à Defensoria Pública (art. 134, § 4º, da CF).

Nesse sentido, leis locais e atos internos preveem que a sessão da escolha dos membros que serão selecionados para serem promovidos deve ocorrer publicamente, como ocorre na Defensoria Pública de Minas Gerais (art. 64 da Lei Complementar n. 65/2003) e na Defensoria Pública do Rio Grande do Sul (art. 9º da Resolução n. 12/2014).

Nas demais carreiras, como a de delegado, auditor e analista as promoções não ocorrem como nas instituições militares e da forma como é feita para membros do Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública, em que há uma limitação de vagas para determinados cargos e um número superior de candidatos. Geralmente, nas demais carreiras é necessário observar o tempo de serviço, além de ser aprovado na avaliação de desempenho e realizar determinados cursos.

No caso das instituições militares há peculiaridades que precisam ser consideradas, pois é a única instituição que possui como pilares constitucionais a hierarquia e disciplina, sendo que para as demais instituições a previsão é legal. Isto é, nas instituições militares a hierarquia e disciplina são pontos fulcrais que não podem ser abalados e caso sejam o Código Penal Militar traz crimes próprios para atos insubordinados.

A publicidade das deliberações das comissões de promoção pode comprometer a hierarquia e disciplina e abalar a autoridade dos militares em relação aos inferiores hierárquicos, pois um Comandante ou superior hierárquico em relação a outros militares, ao ser avaliado, terá exposta toda a sua carreira e pode haver apontamentos negativos, bem como eventuais infrações disciplinares expostas, o que comprometerá o regular funcionamento da instituição militar que precisa estar com a hierarquia e disciplina inabaladas e, inegavelmente, o efeito disso perante os militares será negativo e prejudicial para a instituição e a sociedade[2]. Dessa forma, há justificativa para que as sessões sejam sigilosas, até porque envolve uma série de avaliações de diversos militares, devendo, entretanto, os atos de promoção ou não serem previamente fundamentados com base em parâmetros objetivos, conforme exposto, e o militar terá acesso.

Por fim, a Lei n. 14.751/2023 teve vigência imediata, isto é, está em vigor desde o dia 13/12/2023 e quanto aos critérios de promoção não houve vacatio legis.


[1] STF. Plenário. ADI 3920/MT, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 5/2/2015.

[2] O art. 23, III e o art. 24, ambos da Lei n. 12.527/2011 permitem o sigilo das informações quando for necessário para a segurança da sociedade e do Estado.

Juiz de primeira instância pode condenar militares estaduais que sejam praças à perda do cargo público?

Este texto concentra-se na análise da decretação da perda do cargo das praças por juiz de primeira instância, uma vez que a perda do cargo de oficiais já foi analisada no texto “A impossibilidade de juízes condenarem Oficiais das Instituições Militares à perda do posto e da patente.”

A hierarquia dos militares estaduais subdivide-se em oficiais e praças (art. 8º do Decreto-Lei n. 667/69).

A hierarquia militar é a ordenação em postos e graduações dentro da estrutura das Instituições Militares.

Posto é o grau hierárquico dos oficiais, que em âmbito estadual, é conferido pelo Governador do Estado.

Graduação é o grau hierárquico das praças que, em âmbito estadual, geralmente, é conferido pelo Comandante-Geral.

Os oficiais podem ser: a) Coronel; b) Tenente-Coronel; c) Major; d) Capitão; e) 1º Tenente e f) 2º Tenente. As praças podem ser: a) Aspirante-a-Oficial; b) Alunos da Escola de Formação de Oficiais da Polícia; c) Subtenente; d) 1º Sargento; e) 2º Sargento; f) 3º Sargento; g) Cabo; h) Soldado de 1ª Classe; i) Soldado de 2ª Classe e j) Soldado de 3ª Classe.1

Os postos e graduações que cada instituição militar possui é uma questão de organização administrativa da instituição em âmbito estadual, pois é possível suprimir, mediante lei estadual, na escala hierárquica, um ou mais postos ou graduações e subdividir a graduação de soldado em classes, até o máximo de três.2

Cargo público militar é o conjunto de atribuições, deveres e responsabilidades, definidas por lei ou regulamento e cometido, em caráter permanente, a um militar.3

Os cargos militares são providos com pessoal que satisfaça aos requisitos de grau hierárquico e de qualificação exigidos para o seu desempenho.4

Nota-se que todo cargo militar deve ser ocupado por militar que satisfaça o grau hierárquico compatível com a função, ou seja, a todo cargo corresponde um posto ou graduação.

O cargo de comandante de um Batalhão, certamente, será exercido por um oficial no posto de Tenente Coronel, enquanto que o cargo de um patrulheiro de viatura, certamente, será exercido por um Soldado ou Cabo, enquanto que o Comandante da Viatura, certamente, será um Sargento. Tudo dependerá de normas próprias que regem a carreira militar.

Demonstrado quem são as praças em uma instituição militar estadual, deve-se analisar a competência para a decretação da perda do cargo público das praças.

O art. 125, § 4º, da Constituição Federal trata do julgamento de crimes militares e assegura que cabe ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças.

Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição.

§ 4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)


Assim, as praças somente perderão a graduação, nos crimes militares, por julgamento do tribunal competente, que será o tribunal de justiça militar onde houver (Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul) e o tribunal de justiça comum nos demais estados.

Nota-se que o art. 125, § 4º, da Constituição Federal refere-se ao julgamento pelo tribunal competente para decidir sobre a perda da graduação somente nos crimes militares. Portanto, não há óbice constitucional ou legal para que uma praça seja condenada por crime comum e o juiz decrete a perda do cargo público.

Somente para oficiais das instituições militares foi previsto o julgamento da perda do posto e da patente por um tribunal militar – onde houver (MG, SP e RS) e do tribunal de justiça comum nos demais estados. – quando se tratar de condenações por crimes comuns, o que reforça a possibilidade da Justiça Comum condenar praças à perda do cargo, ainda que por um juiz de primeira instância. A ausência de menção das praças no art. 142, § 3º, VII, da Constituição Federal é silêncio eloquente, intencional, o que demonstra a impossibilidade de se aplicar este dispositivo constitucional às praças.

Art. 142. § 3º (…)

VI – o oficial só perderá o posto e a patente se for julgado indigno do oficialato ou com ele incompatível, por decisão de tribunal militar de caráter permanente, em tempo de paz, ou de tribunal especial, em tempo de guerra; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)

VII – o oficial condenado na JUSTIÇA COMUM OU MILITAR a pena privativa de liberdade superior a dois anos, por sentença transitada em julgado, será submetido ao julgamento previsto no inciso anterior; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)

Nesse sentido, recentemente, o Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais5 reformou uma sentença e consignou na fundamentação que “a decretação da perda do cargo público dos apelantes em primeiro grau de jurisdição viola o disposto no art. 125, § 4º da Constituição da República.”

O Supremo Tribunal Federal6 ao analisar um caso em que uma praça fora condenado à perda do cargo público pela primeira instância da Justiça Militar, deu provimento parcial ao recurso para excluir da condenação a pena de perda da graduação imposta pelo Conselho Permanente da Justiça Militar, pois a competência para tal é do tribunal de justiça mediante a instauração de procedimento próprio. Isto é, a confirmação da perda da graduação em segunda instância não é suficiente para que ocorra a perda da graduação. É necessário que se instaure procedimento próprio e específico para analisar se o militar deve perder a graduação.

É no procedimento próprio para a perda da graduação que será analisado todo o histórico funcional do militar, o número de recompensas e punições durante toda a vida profissional, as circunstâncias em que o crime que foi praticado ocorreu, a repercussão disso em âmbito institucional e perante a sociedade. Há uma série de análises que são impróprias para serem decididas no bojo do processo judicial, razão pela qual exige-se, nos crimes militares, em razão de previsão constitucional, que seja instaurado um procedimento próprio.

Quando a Constituição Federal menciona que cabe ao tribunal competente decidir sobrea perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças diz que essa perda deve ser analisada em procedimento próprio, pois a finalidade é realizar toda uma análise, conforme acima explicado, e se fosse possível condenar em segunda instância sem que houvesse um procedimento próprio criaria uma situação inusitada e absurda de exigência de recurso da sentença para que o tribunal decida sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças. A instauração de um procedimento próprio pode ocorrer ainda que não haja recurso da sentença, mediante representação do Ministério Público perante o tribunal competente.

Em 08 de junho de 2020, o Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário 601.146, conforme voto vencedor do Ministro Alexandre de Morares, decidiu que no campo judicial, para os policiais militares perderem a graduação, é necessária a incidência do procedimento previsto pelo artigo 125, §4º da Constituição Federal.

Nesse sentido é a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.

HABEAS CORPUS. CONCUSSÃO. ART. 305 DO CÓDIGO PENAL MILITAR. POLICIAL. CONDENAÇÃO. PERDA DO CARGO DECRETADA EM SEDE DE PROCEDIMENTO ESPECÍFICO. OBSERVÂNCIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. ART. 125, § 4º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO CONFIGURADO. DENEGAÇÃO DA ORDEM. 1. Ao interpretar o artigo 125, § 4º, da Constituição Federal, especialmente após as alterações promovidas pela Emenda Constitucional 19/1998, o Supremo Tribunal Federal posicionou-se no sentido da necessidade de processo específico para a perda de graduação de praças da Polícia Militar, entendimento seguido pelo Superior Tribunal de Justiça. 2. In casu, a perda da graduação decorreu de processo específico, nos termos do art. 125, § 4º, da Constituição Federal e não como efeito secundário da condenação por crime militar, observados, portanto, os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. 3. Ordem denegada. ..EMEN: (HC – HABEAS CORPUS – 185112 2010.01.70021-9, JORGE MUSSI, STJ – QUINTA TURMA, DJE DATA:29/08/2011 ..DTPB:.)

Salienta-se que o tema apresenta decisões divergentes dentro do Supremo Tribunal Federal, uma vez que em 21/05/2015, no Recurso Extraordinário n. 447.859, foi decidido que “Relativamente a praça, é inexigível pronunciamento de Tribunal, em processo específico, para que se tenha a perda do posto.”, o que agora foi pacificado com o julgamento do Recurso Extraordinário n. 601.146. Equivocadamente, o julgado menciona a perda do posto da praça, que sabidamente possui graduação, e não posto, conforme explicado.

É importante ressaltar que não é possível justificar que a condenação em primeira instância decreta a perda do cargo, sem, no entanto, decretar a perda da graduação.

Isso porque a relação entre cargo, praça e graduação é intrínseca. Não é possível que haja um cargo ocupado por uma praça sem graduação. É como se fosse um corpo sem alma. A graduação está para a praça, assim como o crime está para o Direito Penal.

Não é possível que uma praça perca o cargo, mas mantenha a graduação ou que perca a graduação, mas mantenha o cargo. A perda de um implica, necessariamente, na perda do outro.

Matheus Carvalho7 ensina que “Todo cargo público é criado mediante a edição de lei, fazendo parte da estrutura de um órgão público e, necessariamente, lhe será atribuída uma função. Não existe cargo sem função, não obstante exista função sem cargo.”

A função é a atividade em si mesmo, corresponde à atribuição e às tarefas que são de responsabilidade do agente que ocupa um cargo público.

Assim, se uma praça é condenada à perda do cargo público, não poderá mais exercer os deveres, atribuições e responsabilidades. A razão de ser da graduação, que é inserir o militar dentro de uma organização militar hierárquica em determinado cargo, se esvazia e, consequentemente, torna-se sem validade jurídica, o que implica na perda automática da graduação. Manter a graduação quando se decreta a perda do cargo público seria como manter o Direito Penal e abolir todos os crimes. Não há sentido algum.

Não se deve cogitar, também, que a praça que venha a perder o cargo público deve ser transferida para a reserva não remunerada, pois não existe, em lei, essa previsão de reserva não remunerada para quem perde o cargo público em razão de condenação judicial. Seria uma criação judicial, sem previsão em lei.

Em Minas Gerais, por exemplo, o art. 138 do Estatuto dos Militares – Lei n. 5.301/69 – dispõe que a praça será transferida para a reserva não remunerada se solicitar baixa do serviço ou se candidatar e for eleito para a função ou cargo público. Não há previsão em lei de transferência para a reserva não remunerada de militares condenados à perda do cargo e aventar tal hipótese mediante decisão judicial seria legislar por via judicial, o que não se pode admitir, sob pena de ofensa à separação de poderes e exacerbado ativismo judicial.

A condenação à perda da graduação implica em um único resultado: exclusão do Quadro de Praças da Instituição Militar a que pertencer (demissão), de forma que o condenado volte a ser civil, sequer passará para a reserva não remunerada.

Caso a primeira instância condene uma praça à perda do cargo, sob a justificativa de que não está a condenar à perda da graduação, pois são conceitos distintos, na verdade, está a utilizar um meio inconstitucional de, por vias transversas, burlar o art. 125, § 4º, da Constituição Federal.

Todas as leis que prevejam a perda do cargo como efeito automático da condenação criminal, devem sofrer interpretação conforme a Constituição, quando se tratar do julgamento de crime militar (art. 125, § 4º), pois a competência será sempre do tribunal competente.

A Lei de Tortura – Lei n. 9.455/97 – prevê a perda do cargo público como um efeito automático da condenação (art. 1º, § 5º) e desde o advento da Lei n. 13.491/17 o crime de tortura pode ser crime militar, como o exemplo do militar que pratica tortura em serviço (art. 9º, II, “c”, do CPM).

A Lei de Organizações Criminosas – Lei n. 12.850/13 – também prevê a perda do cargo público como um efeito automático da condenação (art. 2º, § 6º), caso o servidor público componha organização criminosa, o que pode ser aplicado aos militares diante da Lei n. 13.491/17.

No caso de crime militar de tortura e crime militar por constituir organização criminosa, não há efeito automático da condenação à perda do cargo, devendo, após o trânsito em julgado do processo, o juiz de primeira instância remeter os autos ao tribunal competente, para, se for o caso, ser instaurado procedimento próprio para a perda do cargo e da graduação.

Caso o militar pratique o crime de tortura comum – e não militar -, como a hipótese em que o militar de folga torture uma pessoa sob seu poder com o fim de aplicar castigo pessoal, a Justiça Comum será a competente para julgá-lo e poderá decretar a perda do cargo e da graduação.

O art. 102 do Código Penal Militar prevê que “A condenação da praça a pena privativa de liberdade, por tempo superior a dois anos, importa sua exclusão das fôrças armadas.”

Uma simples leitura do dispositivo permite afirmar que não se aplica às forças militares estaduais, por não serem mencionadas no art. 102 do CPM e por ser vedada analogia em prejuízo do réu no direito penal.

Independentemente, dessa discussão, o Supremo Tribunal Federal8 já pacificou que o art. 102 do Código Penal Militar não foi recepcionado pela Constituição em relação aos militares estaduais, por ser necessário, em vista do disposto no art. 125, § 4º, da Constituição Federal, um procedimento próprio.

Em se tratando de condenação de praças por crimes militares que possam resultar na perda da graduação, é indiferente o quantum da pena, diferentemente, da condenação dos oficiais, que para serem levados a julgamento que possa resultar na perda do posto e da patente devem ter sido condenados a uma pena privativa de liberdade superior a dois anos (art. 142, § 3º, VII, CF).

Deve-se salientar que o art. 125, § 4º, da CF/88, não impede a perda da graduação de militar mediante procedimento administrativo (Súmula 673 do STF). Isto é, a instituição militar estadual poderá apurar a infração disciplinar administrativamente e decidir pela exclusão do militar das fileiras da Corporação.

Por fim, nas ações decorrentes de improbidade administrativa, é perfeitamente, possível, a decretação da perda do cargo e da graduação da praça por decisão de primeira instância, face à inexistência de previsão legal ou constitucional que preveja ser competência do tribunal.

Ante todo o exposto é possível concluir que:

a) as praças somente podem ser condenadas à perda do cargo público e da graduação, nos crimes militares, pelo tribunal competente, ou seja, pelo tribunal de justiça militar em MG, SP e RS e pelo tribunal de justiça comum nos demais estados (art. 125, § 4º, da CF);

b) a condenação à perda do cargo e da graduação pelo tribunal competente requer procedimento próprio, não devendo ser analisado pelo tribunal em sede de recurso;

c) as praças podem perder o cargo e graduação por decisão de primeira instância se for crime comum ou ato de improbidade administrativa, seja este julgado pela justiça comum ou militar;

d) as praças podem perder o cargo e a graduação em processo administrativo disciplinar, sem necessidade de remessa do processo à justiça, mediante decisão da própria Corporação.

NOTAS

1 Art. 8º, § 2º, “c”, do Decreto-Lei n. 667/69.

2Art. 8º, § 2º, “b” e “c”, do Decreto-Lei n. 667/69.

3 Estatuto dos Militares do Estado de Minas Gerais – Lei n. 5.301/69. Art. 38 – São adotadas as seguintes definições: I – cargo é o conjunto de atribuições definidas por lei ou regulamento e cometido, em caráter permanente, a um militar; Estatuto dos Militares. Lei n. 6.880/80. Art. 20. Cargo militar é um conjunto de atribuições, deveres e responsabilidades cometidos a um militar em serviço ativo.

4 Art. 21 da Lei n. 6.880/80.

5 Autos n. 0003082-85.2018.9.13.0002.

6 RE 418.375.

7CARVALHO, Matheus. Manual de Direito Administrativo. 4ª edição. Salvador: Juspodivm. 2017. p. 863.

8RE 601.146