Atropelar cachorro e fugir é crime? Para quem o motorista que atropela um animal na rua ou na estrada deve ligar?
Não existe no Brasil o crime de “omissão de socorro de animais”. Em um primeiro momento pode-se pensar então que quem atropela um cachorro e foge, não pratica crime. No entanto penso que este entendimento não esteja correto.
O art. 13, § 2º, “c”, do Código Penal considera que a omissão é penalmente relevante quando a pessoa “com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado”. Não entendi nada. Calma. Vamos lá.
A omissão, como regra, é irrelevante para o direito penal, salvo se houver um crime prevendo que a omissão é crime, o que é denominado de omissão PRÓPRIA, a exemplo do crime de omissão de socorro, que não abrange animais ou se a omissão decorrer de uma das hipóteses do art. 13, § 2º, do Código Penal, que é a omissão IMPRÓPRIA. É chamada de imprópria por ser uma omissão em que a pessoa tinha o DEVER LEGAL DE AGIR para evitar o resultado, mas não age. Perceba que na omissão imprópria a pessoa pratica um crime por ação, em razão da omissão, por isso é omissão imprópria, como o exemplo da mãe que nada faz, mesmo ciente que sua filha de 13 anos mantém relações sexuais com o padrasto, o que é crime de estupro de vulnerável. Conseguiu visualizar que a mãe tem dever de proteção da filha, mas como não a protegeu deverá responder por estupro (crime praticado por ação)? O Código Penal delimitou algumas situações para trazer uma maior responsabilidade penal caso a pessoa não aja. É como se o direito penal dissesse assim: “Você tem uma grande responsabilidade na proteção de seu filho, aluno, do bebê, da sociedade, nos casos que você provocou um risco de ocorrer um resultado. Ou você toma providências nesses casos e faça todo o possível para evitar que ocorra o resultado (morte, lesão, violação à dignidade sexual etc.) ou você responderá pelo resultado (homicídio, lesão corporal, estupro etc.)”. Cria-se para essas pessoas um grau de responsabilidade muito maior, pois encontra-se em situação jurídica e fática que a torna mais responsável. É óbvio que os pais possuem maiores responsabilidades pelos filhos em relação a qualquer outra pessoa. Um policial possui maior responsabilidade para enfrentar o crime em relação a outras pessoas. Essas pessoas que o direito penal obriga agir para evitar o resultado são denominadas de agentes garantidores. Pais são garantidores dos filhos; os professores em relação aos alunos; os policiais e bombeiros em relação à sociedade; a babá em relação ao bebê etc.
Feita essa brevíssima explicação, no caso de um motorista que atropela um cachorro na rua e foge, pratica crime?
Voltamos ao art. 13, § 2º, “c”, do Código Penal:
Art. 13 (…)
§ 2º – A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:(Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado. (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Quando a lei diz que a omissão é penalmente relevante quando quem se omite criou o risco da ocorrência do resultado com o seu comportamento anterior, significa dizer que quem deu causa a um acontecimento que gere uma situação de perigo e resulte em lesão a um bem jurídico, responderá pelo resultado, isto é, pela lesão ao bem jurídico. Para ficar claro, um exemplo: uma pessoa se encontra nas proximidades de uma piscina e por desatenção, ao dar um passo para trás, derrubou outra pessoa dentro da piscina, que não sabe nadar e pede socorro. Se quem a derrubou na piscina não prestar socorro responderá pelo resultado e não pela omissão de socorro. Logo, se ocorrer a morte (resultado), responderá pelo crime de homicídio.
Para fins didáticos, veja que a pessoa por seu comportamento (desatenção que jogou outra dentro da piscina) provocou um acontecimento (vítima dentro da piscina) que gerou uma situação de perigo (pessoa dentro da piscina que não sabe nadar) e gerou lesão ao bem jurídico (no caso, o bem jurídico lesado é a vida).
Uma observação muito importante é que o comportamento anterior da pessoa que cria o risco pode ser doloso ou culposo, lícito ou ilícito.
Voltando à pergunta inicial. Atropelar cachorro e fugir é crime?
Em que pese inexistir o crime de omissão de socorro de animais, entendo que sim, pois quem atropela animal e foge dá causa a um resultado, qual seja, maus-tratos e por ter sido a pessoa que atropelou a causadora do resultado, surge para ela a obrigação de prestar socorro, sob pena de responder pelo resultado, conforme toda a explicação feita anteriormente.
O art. 32 da Lei de Crimes Ambientais – Lei n. 9.605/98 – prevê o crime de maus-tratos a animais, inclusive, quando se tratar de cães e gatos, a pena é qualificada.
Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: (Vide ADPF 640)
Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.
§ 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos. (Vide ADPF 640)
§ 1º-A Quando se tratar de cão ou gato, a pena para as condutas descritas no caput deste artigo será de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda. (Incluído pela Lei nº 14.064, de 2020)
§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal. (Vide ADPF 640)
Logo, pela lógica da omissão imprópria, quem, com o seu comportamento (atropelar animal) gera um resultado (cachorro sentindo dor) e nada faz para atenuar ou evitar o resultado, que pode até se agravar (morte), responde pelo crime de maus-tratos previsto no art. 32 da Lei de Crimes Ambientais. Se o animal vier a morrer responderá pelo crime de maus-tratos com a pena aumentada de 1/6 a 1/3.
Imagine um motorista que, a título de culpa, atropela um cachorro e foge, vendo que o cachorro está vivo e sofrendo. Não liga para nenhum órgão e nada faz. Deverá responder pelo crime do art. 32 da Lei de Crimes Ambientais, pois, em que pese o atropelamento ter sido culposo, a fuga foi dolosa e a partir do momento que atropelou o cachorro, surgiu para o motorista o dever de agir.
Caso seja possível visualizar claramente que o cachorro morreu com o atropelamento, como a hipótese de esmagamento da cabeça ou corpo partido, não há crime se o atropelamento tiver sido culposo, pois inexiste o crime de maus-tratos de animais a título culposo nem há que se falar em prestação de socorro para o cachorro que já estiver morto.
Caso o atropelamento seja doloso responderá também pelo crime de maus-tratos e a não prestação de socorro é pós-fato impunível (princípio da consunção).
Por fim, para quem o motorista que atropela um animal na rua ou na estrada deve ligar?
Infelizmente, os municípios – a maioria deles – não são dotados de estruturas e locais adequados para receber animais, cachorros que foram atropelados e os órgãos públicos, como o Corpo de Bombeiros Militar, por vezes, fica de mãos atadas, pois não têm para onde levar. Vão buscar os animais nas ruas e levar para onde, se não existe local próprio para essa finalidade?
Fato é que o Corpo de Bombeiros Militar atua em ocorrências em que animais se encontram em situação de risco, como cachorro que fica preso em local ilhado em razão de enchente. Igualmente, um cachorro que foi atropelado também está em situação de risco, sobretudo porque pode vir a morrer, caso não seja prestado socorro, logo deve também ser resgatado pelo Corpo de Bombeiros Militar.
O problema não está no Corpo de Bombeiros Militar, mas na ausência de política pública de proteção de animais, o que é relegado, em grande parte, pelo Poder Público. Então, o que fazer?
Caso o atropelamento de animal ocorra em rodovia federal (estrada), o socorro pode ser prestado pela Polícia Rodoviária Federal, se houver risco de provocar outros acidentes, que poderá contar com o apoio do Corpo de Bombeiros Militar, afinal de contas, a função do CBM não possui limitação territorial (pode atuar em área federal, estadual ou municipal).
Ambas as instituições enfrentam o problema de para onde levar. Na prática algumas ONGs ajudam, no entanto é um trabalho que deve ser feito, primordialmente, pelo Poder Público.
Enfim, o motorista que atropela um animal possui o dever mínimo de acionar órgão público. Entendo que deve ligar para o Corpo de Bombeiros Militar, se o acidente ocorrer em rodovias estaduais ou dentro de cidades, ou para a Polícia Rodoviária Federal, se o acidente ocorrer em rodovias federais. Pode até ser que o CBM e a PRF não atendam a ocorrência, contudo o motorista terá feito a sua parte e se afastado, inclusive, de eventual responsabilidade criminal.