O reconhecimento pelo Ministério da Educação das Ciências Policiais como área do saber
O Ministério da Educação, no dia 08 de junho de 2020, homologou o Parecer CNE/CES n. 945/2019, e reconheceu as Ciências Policiais como uma área do saber, conforme publicado no Diário Oficial da União de 09 de junho de 2020. Portanto, a partir deste reconhecimento, as Ciências Policiais figuram como área de conhecimento no rol das ciências estudadas no Brasil.
A ciência é responsável pelo estudo e conhecimento técnico que permite afirmar, comprovadamente, seguindo parâmetros científicos e confiáveis, a eficácia e os resultados, apresentando ainda os caminhos que foram percorridos (a metodologia empregada) para se atingir um determinado fim.
A ciência visa o aprofundamento, a pesquisa, o conhecimento para que possa ser utilizado para algum fim ou somente para se verificar a validade de histórias e determinadas hipóteses, podendo corroborá-las ou refutá-las. A ciência permite o avanço tecnológico, social, jurídico, econômico, policial, sociológico, filosófico, histórico, geográfico, da medicina, da psicologia. A ciência é o meio para o desenvolvimento de qualquer instituição e do país com base em realidades e fatos que sejam comprovadamente úteis.
As Ciências Policiais são responsáveis pelos estudos de todos os órgãos policiais, das finalidades das instituições policias, pela produção da teoria, doutrina policial e sua aplicação prática. A segurança pública, o planejamento estratégico voltado para a segurança pública, a atividade de inteligência, a preservação da ordem pública, a prevenção, repressão e a investigação criminal, a ressocialização de um preso, o policiamento comunitário, o crime enquanto fato social, são alguns dos objetos de estudos das Ciências Policiais. Trata-se de uma ciência ampla, que possui em sua composição ramos de diversas outras ciências, sem, no entanto, perder as suas peculiaridades. Surge, cientificamente, a Teoria Geral do Direito Policial.
Qual é a relevância das Ciências Policiais terem sido reconhecidas oficialmente pelo MEC como uma área do saber? Qual são as consequências práticas? O que muda?
Visando obter uma resposta técnica, consultei o Doutor em Educação pela UFMG e Capitão da Polícia Militar de Minas Gerais, Eduardo Godinho, que respondeu que “os estudos policiais não precisarão mais se ‘apropriar’ de outras áreas do saber (Direito, Administração Pública, Gestão Pública, Criminologia etc.), pois agora é uma área que possui conhecimento científico próprio. Os maiores ganhos serão no campo teórico. A atividade policial que até então era vista como uma prática, ganha espaço para ser debatida academicamente, dentro da Ciência Policial, que passa a figurar como uma área do saber.”
Os maiores ganhos serão no campo teórico, o que reflete, consequentemente, no campo prático, pois a atuação policial, seja na gestão pública e administrativa, seja na atividade de rua e investigativa, visa colocar a teoria em prática.
Com isso, haverá uma valorização acadêmica, formação e ampliação de especialistas em ciências policiais, maiores investimentos e recursos para estudos.
Haverá uma valorização técnica da palavra do especialista em Ciências Policiais, pois até então é comum ouvir pessoas de outras áreas que adentram à ciência policial, contudo possui formação somente em área diversa da ciência policial. É possível emitir opiniões jurídicas sobre a ciência policial, no entanto a opinião estritamente jurídica sobre a ciência policial pode não ser a mais técnica, dada as peculiaridades dessa ciência que é multidisciplinar.
O reconhecimento das Ciências Policiais como uma “área do saber” não afeta a abertura de curso superior e de especialização em Ciências Policiais, o que já ocorre no país, contudo valoriza essa área. Em termos práticos, o que muda é a valorização da atividade policial, que deixa de ser vista somente sob o ponto de vista prático e se torna teórica, científica, com estudos próprios por especialistas que se dedicam às Ciências Policiais.
O estudo das Ciências Policiais é dinâmico e interdisciplinar. Engloba diversas áreas do saber, como a Jurídica, a Psicologia, a Medicina, a Matemática, a Engenharia, a Criminologia, a Administração, a Comunicação Social, Computação, Contabilidade, Economia, dentre outras. Em maior ou menor grau, diversas ciências são estudadas pelas Ciências Policiais.
A atividade policial não se resume, simplesmente, em colocar policiais na rua ou realizar uma investigação. É infinitamente mais do que isso. Exige todo um estudo e preparo – exige a ciência – que muitas vezes é invisível aos olhos da sociedade.
A atividade policial é estritamente técnica e o reconhecimento das Ciências Policiais enquanto área do saber reforça a tecnicidade da atividade policial. O Superior Tribunal de Justiça já decidiu que o cargo de policial militar não é considerado técnico.1
Com o devido respeito, o cargo de policial militar é estritamente técnico. Em diversos estados exige-se que o militar seja bacharel em Direito para ingressar no Curso de Formação de Oficiais que, inclusive, é considerado carreira jurídica2, e ao se formar obtém o título de bacharel em Ciências Militares, sendo exigido qualquer curso superior para ingressar no Curso de Formação de Soldados, que ao se formar obtém o título de Técnico ou Tecnólogo em Segurança Pública, sendo este considerado curso superior.
Além do mais, o policial militar no dia a dia exerce inúmeras atribuições que exigem conhecimentos técnicos, específicos, como habilidade com arma de fogo; saber tipificar ocorrências; noções de primeiros socorros; noções de criminologia; noções profundas de Administração; gestor de pessoas; o Comandante é ordenador de despesas; realização de planejamento, logística, inteligência, comunicação social e inúmeras outras atividades específicas da atividade policial. É inegável que a carreira policial militar é técnica, do Soldado ao Coronel.
O reconhecimento da atividade policial como uma ciência não deixa dúvidas que o cargo de policial militar é técnico, ainda que a instituição não exija curso superior para o ingresso, pois o cargo técnico é aquele que possui um conjunto de atribuições cuja execução reclama conhecimento específico de uma área do saber.3
A partir do momento em que se reconhece as Ciências Policiais como uma área do saber, automaticamente, reconhece que os policiais exercem cargo técnico, pois as Ciências Policiais são responsáveis por toda a dinâmica, estudo e prática policial, de todas as instituições policiais. Isto é, os policiais são operadores das Ciências Policiais, razão pela qual exercem cargo técnico.
Um importante efeito prático consiste na possibilidade das instituições policiais ou universidades formarem os cientistas policiais, que poderão ser ouvidos e se manifestarem acerca de procedimentos e condutas adotadas institucionalmente ou na atividade de rua, sendo que, atualmente, o comum é colher opiniões de juristas (cientistas jurídicos).
A alteração é importante e relevante para a atividade policial que ganha relevo nas áreas do saber e passa a contar com uma ciência própria, sem necessidade de ficar migrando entre as diversas outras ciências, não que outras ciências se tornarão menos importantes para a atividade policial, contudo passarão a compor a Ciência Policial com uma visão própria, adaptada à realidade da atividade policial.
Tome como exemplo um planejamento institucional que busque conhecimentos sociológicos, filosóficos, estatísticos, jurídicos e de gestão pública. Ao invés de mencionar as diversas áreas do saber será possível dizer que o planejamento teve como base científica a Ciência Policial, que possui natureza multidisciplinar, sem perder a sua natureza própria e peculiar enquanto ciência.
Por fim, deve-se citar como exemplo de possível colaboração das Ciências Policiais o estudo acerca da definição de ordem pública para fins de manutenção da prisão preventiva (art. 312 do CPP), inclusive em casos concretos, sendo possível que o juiz nomeie como amicus curiae (art. 138 do CPC)um grupo de cientistas policiais para que emita parecer técnico dos riscos em se colocar determinada pessoa que praticou um crime que permite a prisão preventiva em liberdade, da mesma forma que o juiz ouve um médico ao decidir se em uma cirurgia ocorreu erro médico.
Obviamente, cada ciência tem a sua peculiaridade e não há condições técnicas do juiz detectar se em uma cirurgia houve erro médico, mas é possível que o juiz analise se um réu deve continuar preso ou em liberdade durante o processo, como a hipótese em que o réu for multirreincidente em crimes graves ou nunca tiver praticado nenhum crime e responder por um furto simples, o que não quer dizer que em muitos outros casos a palavra do cientista policial não será essencial para fundamentar as decisões judiciais – e não só as decisões judiciais -, mas as governamentais, de políticas públicas e de gestão administrativa e estratégica.
NOTAS
1RECURSO ORDINÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. ACUMULAÇÃO DO CARGO PÚBLICO DE POLICIAL MILITAR COM O DE PROFESSOR. IMPOSSIBILIDADE. 1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça assentou o entendimento de que o cargo público de técnico, que permite a cumulação com o de professor nos termos do art. 37, XVI, b, da Constituição Federal, é o que exige formação técnica ou científica específica. Não se enquadra como tal o cargo ocupado pelo impetrante, de Policial Militar. 2. Recurso ordinário desprovido. (STJ – RMS: 32031 AC 2010/0067325-0, Relator: Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, Data de Julgamento: 17/11/2011, T1 – PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 24/11/2011)
2Art. 142, § 4º, da Constituição do Estado de Minas Gerais.
3RMS 7.550/PB, 6.ª Turma, Rel. Min. LUIZ VICENTE CERNICCHIARO, DJ de 2/3/98.