Supremo Tribunal Federal pacifica que cabe ao tribunal competente, mediante processo específico, julgar a perda do posto dos oficiais ou da graduação das praças nos crimes militares e que não cabe a concessão de reforma a militar julgado inapto a permanecer nas fileiras da corporação

Em 08 de junho de 2020 o Supremo Tribunal Federal apreciou o tema 358 da repercussão geral e fixou a seguinte tese:

A competência constitucional do tribunal para decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças é específica, nos termos do artigo 125, § 4º, não autorizando a concessão de reforma de policial militar julgado inapto a permanecer nas fileiras da corporação.

As teses fixadas pelo Supremo Tribunal Federal em julgamento de Recurso Extraordinário repetitivo vinculam os juízes e os tribunais, isto é, todo o Poder Judiciário fica obrigado a decidir de acordo o entendimento fixado pela Suprema Corte (art. 927, III, do CPC).

O descumprimento das teses fixadas pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento de Recurso Extraordinário repetitivo enseja a reclamação prevista no art. 988, IV, do Código de Processo Civil, após o esgotamento dos recursos cabíveis perante as instâncias ordinárias (art. 988, § 5º, II, do CPC).

Essa tese foi fixada na análise de um caso em que um militar do Mato Grosso do Sul foi condenado em primeira instância à perda do cargo público, por ter praticado concussão e prevaricação e a decisão foi mantida pelo Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul. Contudo, no Supremo Tribunal Federal1 o recurso foi parcialmente provido para determinar que o militar fosse submetido a um julgamento perante o tribunal de justiça em um procedimento próprio, em razão do disposto no art. 125, § 4º, da Constituição Federal.

Em razão disso, a Procuradoria-Geral de Justiça do Mato Grosso do Sul representou perante o Tribunal de Justiça do Estado pela perda da graduação da praça e sua exclusão dos quadros da Polícia Militar Sul Mato-grossense, sendo a representação julgada parcialmente procedente para reformar o militar com proventos proporcionais ao tempo de serviço, uma vez que a conduta do militar ofendeu o decoro da classe e o pundonor policial militar, mas, por mais de vinte anos de atividade na corporação não registrava sanções disciplinares e constavam em favor dos militares inúmeros elogios e medalhas em razão dos serviços prestados.

Para conceder a reforma à praça o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul aplicou analogicamente o art. 16, II, da Lei Estadual n. 105, de 1º de julho de 1980, que prevê a possibilidade de determinar a reforma de oficial que for condenado criminalmente e o art. 13, IV, “b”, do Decreto Estadual n. 1.261/81, que dispõe sobre a reforma da praça a bem da disciplina pelo Comandante-Geral da Corporação.

A Constituição Federal assegura que nos crimes militares, a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças, será julgada pelo tribunal competente, o que deve ocorrer mediante processo específico que se destina a esse fim e não no bojo do processo judicial.2

Em se tratando de condenação por crime comum, ainda assim, para os oficiais, a perda do posto e da patente deve ser julgada por tribunal militar onde houver (MG, SP e RS) e pelo tribunal de justiça comum nos demais estados. Para as praças, nos crimes comuns, é possível a decretação da perda do cargo e da graduação pelo juiz de primeira instância.3

Para maiores aprofundamentos sugiro a leitura dos seguintes textos de nossa autoria:“A impossibilidade de juízes condenarem Oficiais das Instituições Militares à perda do posto e da patente” e “Juiz de primeira instância pode condenar militares estaduais que sejam praças à perda do cargo público?”.

Feita essa explanação inicial, passamos a explicar o que foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal ao fixar a tese de que “A competência constitucional do tribunal para decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças é específica, nos termos do artigo 125, § 4º, não autorizando a concessão de reforma de policial militar julgado inapto a permanecer nas fileiras da corporação”.

O primeiro ponto refere-se à competência constitucional específica do tribunal em decidir pela perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças nos crimes militares, nos termos do art. 125, § 4º, da Constituição Federal.

No inteiro teor do voto vencedor do Ministro Alexandre de Moraes no Recurso Extraordinário n. 601.146, julgado em 08/06/2020, consta que a Constituição Federal de 1988 estabeleceu a possibilidade de perda de graduação das praças das policias militares em virtude de decisão do Tribunal competente, mediante procedimento específico.

A Constituição Federal de 1988 estabeleceu a possibilidade de perda de graduação dos praças das policias militares em virtude de decisão do Tribunal competente, MEDIANTE PROCEDIMENTO ESPECÍFICO, conforme já definido por esta CORTE:

EMENTA: Praças da Polícia Militar estadual: perda de graduação: exigência de processo específico pelo art. 125, § 4º, parte final, da Constituição, não revogado pela Emenda Constitucional 18/98: caducidade do art. 102 do Código Penal Militar. O artigo 125, § 4º, in fine, da Constituição, de eficácia plena e imediata, subordina a perda de graduação dos praças das policias militares à decisão do Tribunal competente, mediante procedimento específico, não subsistindo, em conseqüência, em relação aos referidos graduados o artigo 102 do Código Penal Militar, que a impunha como pena acessória da condenação criminal a prisão superior a dois anos. A EC 18/98, ao cuidar exclusivamente da perda do posto e da patente do oficial (CF, art. 142, VII), não revogou o art. 125, § 4º, do texto constitucional originário, regra especial nela atinente à situação das praças. (RE 358.961, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, DJ de 12 /3/2004)

No voto consta ainda que:

A previsão constitucional do art. 125, § 4º, da Constituição Federal, portanto, afastou a incidência do artigo 102 do CPM em relação aos policiais militares, pois definiu a competência do Poder Judiciário Estadual, especificamente, para decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças no campo judicial, não alterando ou substituindo as demais competências administrativas.

O art. 102 do Código Penal Militar prevê que “A condenação da praça a pena privativa de liberdade, por tempo superior a dois anos, importa sua exclusão das fôrças armadas.”

Uma simples leitura do dispositivo permite afirmar que não se aplica às forças militares estaduais, por não serem mencionadas no art. 102 do CPM e por ser vedada analogia em prejuízo do réu no direito penal.

Independentemente, dessa discussão, o Supremo Tribunal Federal pacificou que o art. 102 do Código Penal Militar não foi recepcionado pela Constituição em relação aos militares estaduais, por ser necessário, em vista do disposto no art. 125, § 4º, da Constituição Federal, um procedimento próprio.

É no procedimento próprio para a perda do posto ou da graduação que será analisado todo o histórico funcional do militar, o número de recompensas e punições durante toda a vida profissional, as circunstâncias em que o crime que foi praticado ocorreu, a repercussão disso em âmbito institucional e perante a sociedade. Há uma série de análises que são impróprias para serem decididas no bojo do processo judicial, razão pela qual exige-se, nos crimes militares, em razão de previsão constitucional, que seja instaurado um procedimento próprio.

Quando a Constituição Federal menciona que cabe ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças diz que essa perda deve ser analisada em procedimento próprio, pois a finalidade é realizar toda uma análise, conforme acima explicado, e se fosse possível condenar em segunda instância sem que houvesse um procedimento próprio criaria uma situação inusitada e absurda de exigência de recurso da sentença para que o tribunal decida sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças. A instauração de um procedimento próprio pode ocorrer ainda que não haja recurso da sentença, mediante representação do Ministério Público perante o tribunal competente.

Portanto, o primeiro ponto pacificado consiste na necessidade de um procedimento próprio perante o tribunal competente para que oficiais e praças, nas condenações perante a justiça militar, percam o posto e a graduação. Vejamos, novamente, a tese fixada pelo STF no Recurso Extraordinário n. 601.146, julgado em 08/06/2020.

A COMPETÊNCIA CONSTITUCIONAL DO TRIBUNAL PARA DECIDIR SOBRE A PERDA DO POSTO E DA PATENTE DOS OFICIAIS E DA GRADUAÇÃO DAS PRAÇAS É ESPECÍFICA, NOS TERMOS DO ARTIGO 125, § 4º, não autorizando a concessão de reforma de policial militar julgado inapto a permanecer nas fileiras da corporação”.

O segundo ponto trata dos limites que podem ser decididos em ação autônoma de perda do posto ou da graduação perante o tribunal competente.

O Supremo Tribunal Federal definiu que não é possível decidir, no procedimento próprio e específico que analisa a perda do posto ou da graduação, questões administrativas e previdenciárias, tais como a reforma do militar.

O fato de ao Poder Judiciário competir, em ação autônoma, a determinação da perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças da Polícia Militar Estadual (CF, art. 125, § 4º) não autoriza a deliberação, nesse mesmo processo, sobre questões administrativas e previdenciárias, tais como a reforma do militar (Recurso Extraordinário n. 601.146, julgado em 08/06/2020).

A Suprema Corte4 assentou que na análise da perda do posto ou da graduação, em ação autônoma, a Constituição não conferiu aos tribunais competência para dispor sobre outras penas arroladas no Código Penal Militar, ou sobre questões administrativas e previdenciárias, que seguem sendo afeitas ao âmbito da corporação.

Dessa maneira, a Constituição não conferiu aos Tribunais competência para dispor sobre outras penas arroladas no Código Penal Militar, ou sobre questões administrativas e previdenciárias, que seguem sendo afeitas ao âmbito da corporação.

O Plenário deste SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL já teve a oportunidade de se pronunciar sobre o art. 125 § 4º, da Constituição Federal, consignando que ele (a) não restringiu a competência da Administração Pública de gerir seu corpo de pessoal; (b) não outorga ao Poder Judiciário a aplicação de sanções disciplinares administrativas. Nesse sentido:

Ementa: EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. JURISPRUDÊNCIA PACIFICADA NO SENTIDO DO ACÓRDÃO PARADIGMA. PRAÇA DA POLÍCIA MILITAR. PERDA DA GRADUAÇÃO. SANÇÃO ADMINISTRATIVA. AUSÊNCIA DE COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR ESTADUAL. ART. 125, § 4º, DA CONSTITUIÇÃO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA CONHECIDOS E PROVIDOS PARA NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. I – A jurisprudência deste Tribunal acerca da interpretação do art. 125, § 4º, da Constituição pacificou-se no sentido do aresto paradigma indicado pelo embargante – RE 197.649/SP, Plenário –, segundo o qual o aludido dispositivo constitucional não restringiu a tarefa da Administração Pública de gerir o seu próprio corpo de funcionários; desse modo, não afastou a competência administrativa do Comandante da Polícia Militar para repreender, advertir ou expulsar os policiais militares incursos em falta grave. II – A Justiça Militar estadual tem competência para decidir a respeito da perda da graduação dos praças apenas como pena acessória de crime de sua respectiva competência, sendo-lhe estranha a aplicação de sanção disciplinar administrativa. III – Embargos de divergência conhecidos e providos para negar provimento ao recurso extraordinário. (RE 140.466 ED-EDv, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, DJ de 25/11/2015)

A reforma do militar, por ser questão estranha ao processo autônomo de perda de posto ou graduação do militar, está fora do âmbito de competência atribuído pela Constituição Federal, no art. 125, § 4º, ao Poder Judiciário.

Na hipótese em que o tribunal competente decide por questão diversa da perda do posto ou da graduação, como a reforma do militar, em procedimento próprio e específico (ação autônoma) ofende o art. 125, § 4º, da Constituição Federal e o princípio da separação de poderes, por interferir em questão administrativa, que é própria da Corporação.

Vejamos, novamente, a tese fixada pelo STF no Recurso Extraordinário n. 601.146, julgado em 08/06/2020.

A competência constitucional do tribunal para decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças é específica, nos termos do artigo 125, § 4º, NÃO AUTORIZANDO A CONCESSÃO DE REFORMA DE POLICIAL MILITAR JULGADO INAPTO A PERMANECER NAS FILEIRAS DA CORPORAÇÃO.

O art. 125, § 4º, da Constituição Federal dispõe que cabe ao tribunal competente decidir, nos crimes militares, sobre a PERDA – e não reforma do militar – do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças.

Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição.

§ 4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, CABENDO AO TRIBUNAL COMPETENTE DECIDIR SOBRE A PERDA DO POSTO E DA PATENTE DOS OFICIAIS E DA GRADUAÇÃO DAS PRAÇAS. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

Em Minas Gerais, o Estatuto dos Militares – Lei n. 5.301/69 – prevê no art. 16, II, § 2º, que o Tribunal de Justiça Militar pode ao reconhecer a indignidade para o oficialato determinar a reforma do oficial.

Art. 16 – O Oficial somente perderá o posto ou patente nos seguintes casos:

I – Em virtude de sentença condenatória restritiva da liberdade individual, por mais de 2(dois) anos e passada em julgado;

II – quando declarado indigno do oficialato ou com ele incompatível, em face de incapacidade moral ou profissional, pelo Tribunal de Justiça Militar, em tempo de paz, ou por tribunal especial, em tempo de guerra;

III – quando demitido, nos termos da legislação vigente.

§ 1º – A declaração de indignidade ou incompatibilidade referida no item II do artigo proceder-se-á através de processo especial, iniciando-se pelo Conselho de Justificação, nos termos da legislação própria.

§ 2º – O tribunal referido no item II do artigo poderá determinar a reforma do oficial no posto por ele ocupado, com os vencimentos proporcionais ao seu tempo de serviço, nos termos da legislação própria.

O Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário n. 601.146, julgado em 08/06/2020 ao fixar a tese que prevê que o art.125, § 4º, não autoriza a concessão de reforma de policial militar julgado inapto a permanecer nas fileiras da corporação não distinguiu a situação de oficiais ou praças, nem se essa possibilidade existe se houver previsão expressa em lei, sem necessidade de se recorrer à analogia, contudo os fundamentos apresentados no voto vencedor permitem afirmar que a concessão de reforma para o militar não é possível em nenhuma situação, pois ofende o art. 125, § 4º, da Constituição que prevê a possibilidade do tribunal decretar a perda do posto ou da graduação, sem prever a possibilidade de decretar a reforma do militar, além de ferir o princípio da separação de poderes, por interferir em questão administrativa, que é própria da Corporação.

Portanto, todas as previsões em leis estaduais que permitam a reforma do militar, caso assim entenda o tribunal competente ao julgar processo de perda do posto ou da graduação, não foram recepcionadas pela Constituição, caso sejam anteriores à Constituição Federal (05 de outubro de 1988) ou são inconstitucionais, caso sejam posteriores à entrada em vigor da Constituição.

Conclui-se, portanto, que a Corporação poderá determinar a reforma do militar (Oficial ou Praça), desde que haja previsão em lei, sem necessidade de enviar o processo administrativo disciplinar ao tribunal competente.

Em se tratando de oficiais, a remessa do processo administrativo disciplinar para o tribunal competente somente é necessária caso a Corporação objetive a decretação da perda do posto e da patente (art. 142, § 3º, VI, da CF), pois a reforma do oficial compete, exclusivamente, à Instituição.

No tocante às praças, a Súmula 673 do Supremo Tribunal Federal dispõe que “O art. 125, § 4º, da Constituição não impede a perda da graduação de militar mediante procedimento administrativo”, ou seja, a própria Corporação pode decretar a perda da graduação sem necessidade de envio do processo administrativo ao tribunal competente.

Na hipótese em que a representação pela perda do posto ou da graduação reconhecer a inaptidão para permanecer nas fileiras da Corporação, não cabe ao tribunal reformar o militar por ele não ter mais condições de continuar trabalhando na Corporação, razão pela qual deve determinar a exclusão do militar das fileiras da Corporação.

Dessa forma, o processo de perda do posto ou da graduação perante o tribunal competente pode ter somente dois fins: 1º) procedente para decretar a perda do posto ou da graduação com a consequente demissão do militar das fileiras da Corporação; 2º) improcedente, ocasião em que não será decretada a perda do posto ou da graduação e o militar permanecerá nas fileiras da Corporação. Não é possível que seja julgada parcialmente procedente para determinar a reforma do militar.

NOTAS

1RE 418.375, decisão monocrática proferida em 4/8/2004.

2 STF – RE 418.375.

Constituição Federal. Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição § 4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

3 Constituição Federal. Art. 142. § 3º (…) VI – o oficial só perderá o posto e a patente se for julgado indigno do oficialato ou com ele incompatível, por decisão de tribunal militar de caráter permanente, em tempo de paz, ou de tribunal especial, em tempo de guerra; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)

VII – o oficial condenado na JUSTIÇA COMUM OU MILITAR a pena privativa de liberdade superior a dois anos, por sentença transitada em julgado, será submetido ao julgamento previsto no inciso anterior; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)

4 Recurso Extraordinário n. 601.146, julgado em 08/06/2020.

Juiz de primeira instância pode condenar militares estaduais que sejam praças à perda do cargo público?

Este texto concentra-se na análise da decretação da perda do cargo das praças por juiz de primeira instância, uma vez que a perda do cargo de oficiais já foi analisada no texto “A impossibilidade de juízes condenarem Oficiais das Instituições Militares à perda do posto e da patente.”

A hierarquia dos militares estaduais subdivide-se em oficiais e praças (art. 8º do Decreto-Lei n. 667/69).

A hierarquia militar é a ordenação em postos e graduações dentro da estrutura das Instituições Militares.

Posto é o grau hierárquico dos oficiais, que em âmbito estadual, é conferido pelo Governador do Estado.

Graduação é o grau hierárquico das praças que, em âmbito estadual, geralmente, é conferido pelo Comandante-Geral.

Os oficiais podem ser: a) Coronel; b) Tenente-Coronel; c) Major; d) Capitão; e) 1º Tenente e f) 2º Tenente. As praças podem ser: a) Aspirante-a-Oficial; b) Alunos da Escola de Formação de Oficiais da Polícia; c) Subtenente; d) 1º Sargento; e) 2º Sargento; f) 3º Sargento; g) Cabo; h) Soldado de 1ª Classe; i) Soldado de 2ª Classe e j) Soldado de 3ª Classe.1

Os postos e graduações que cada instituição militar possui é uma questão de organização administrativa da instituição em âmbito estadual, pois é possível suprimir, mediante lei estadual, na escala hierárquica, um ou mais postos ou graduações e subdividir a graduação de soldado em classes, até o máximo de três.2

Cargo público militar é o conjunto de atribuições, deveres e responsabilidades, definidas por lei ou regulamento e cometido, em caráter permanente, a um militar.3

Os cargos militares são providos com pessoal que satisfaça aos requisitos de grau hierárquico e de qualificação exigidos para o seu desempenho.4

Nota-se que todo cargo militar deve ser ocupado por militar que satisfaça o grau hierárquico compatível com a função, ou seja, a todo cargo corresponde um posto ou graduação.

O cargo de comandante de um Batalhão, certamente, será exercido por um oficial no posto de Tenente Coronel, enquanto que o cargo de um patrulheiro de viatura, certamente, será exercido por um Soldado ou Cabo, enquanto que o Comandante da Viatura, certamente, será um Sargento. Tudo dependerá de normas próprias que regem a carreira militar.

Demonstrado quem são as praças em uma instituição militar estadual, deve-se analisar a competência para a decretação da perda do cargo público das praças.

O art. 125, § 4º, da Constituição Federal trata do julgamento de crimes militares e assegura que cabe ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças.

Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição.

§ 4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)


Assim, as praças somente perderão a graduação, nos crimes militares, por julgamento do tribunal competente, que será o tribunal de justiça militar onde houver (Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul) e o tribunal de justiça comum nos demais estados.

Nota-se que o art. 125, § 4º, da Constituição Federal refere-se ao julgamento pelo tribunal competente para decidir sobre a perda da graduação somente nos crimes militares. Portanto, não há óbice constitucional ou legal para que uma praça seja condenada por crime comum e o juiz decrete a perda do cargo público.

Somente para oficiais das instituições militares foi previsto o julgamento da perda do posto e da patente por um tribunal militar – onde houver (MG, SP e RS) e do tribunal de justiça comum nos demais estados. – quando se tratar de condenações por crimes comuns, o que reforça a possibilidade da Justiça Comum condenar praças à perda do cargo, ainda que por um juiz de primeira instância. A ausência de menção das praças no art. 142, § 3º, VII, da Constituição Federal é silêncio eloquente, intencional, o que demonstra a impossibilidade de se aplicar este dispositivo constitucional às praças.

Art. 142. § 3º (…)

VI – o oficial só perderá o posto e a patente se for julgado indigno do oficialato ou com ele incompatível, por decisão de tribunal militar de caráter permanente, em tempo de paz, ou de tribunal especial, em tempo de guerra; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)

VII – o oficial condenado na JUSTIÇA COMUM OU MILITAR a pena privativa de liberdade superior a dois anos, por sentença transitada em julgado, será submetido ao julgamento previsto no inciso anterior; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998)

Nesse sentido, recentemente, o Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais5 reformou uma sentença e consignou na fundamentação que “a decretação da perda do cargo público dos apelantes em primeiro grau de jurisdição viola o disposto no art. 125, § 4º da Constituição da República.”

O Supremo Tribunal Federal6 ao analisar um caso em que uma praça fora condenado à perda do cargo público pela primeira instância da Justiça Militar, deu provimento parcial ao recurso para excluir da condenação a pena de perda da graduação imposta pelo Conselho Permanente da Justiça Militar, pois a competência para tal é do tribunal de justiça mediante a instauração de procedimento próprio. Isto é, a confirmação da perda da graduação em segunda instância não é suficiente para que ocorra a perda da graduação. É necessário que se instaure procedimento próprio e específico para analisar se o militar deve perder a graduação.

É no procedimento próprio para a perda da graduação que será analisado todo o histórico funcional do militar, o número de recompensas e punições durante toda a vida profissional, as circunstâncias em que o crime que foi praticado ocorreu, a repercussão disso em âmbito institucional e perante a sociedade. Há uma série de análises que são impróprias para serem decididas no bojo do processo judicial, razão pela qual exige-se, nos crimes militares, em razão de previsão constitucional, que seja instaurado um procedimento próprio.

Quando a Constituição Federal menciona que cabe ao tribunal competente decidir sobrea perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças diz que essa perda deve ser analisada em procedimento próprio, pois a finalidade é realizar toda uma análise, conforme acima explicado, e se fosse possível condenar em segunda instância sem que houvesse um procedimento próprio criaria uma situação inusitada e absurda de exigência de recurso da sentença para que o tribunal decida sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças. A instauração de um procedimento próprio pode ocorrer ainda que não haja recurso da sentença, mediante representação do Ministério Público perante o tribunal competente.

Em 08 de junho de 2020, o Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário 601.146, conforme voto vencedor do Ministro Alexandre de Morares, decidiu que no campo judicial, para os policiais militares perderem a graduação, é necessária a incidência do procedimento previsto pelo artigo 125, §4º da Constituição Federal.

Nesse sentido é a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.

HABEAS CORPUS. CONCUSSÃO. ART. 305 DO CÓDIGO PENAL MILITAR. POLICIAL. CONDENAÇÃO. PERDA DO CARGO DECRETADA EM SEDE DE PROCEDIMENTO ESPECÍFICO. OBSERVÂNCIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. ART. 125, § 4º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO CONFIGURADO. DENEGAÇÃO DA ORDEM. 1. Ao interpretar o artigo 125, § 4º, da Constituição Federal, especialmente após as alterações promovidas pela Emenda Constitucional 19/1998, o Supremo Tribunal Federal posicionou-se no sentido da necessidade de processo específico para a perda de graduação de praças da Polícia Militar, entendimento seguido pelo Superior Tribunal de Justiça. 2. In casu, a perda da graduação decorreu de processo específico, nos termos do art. 125, § 4º, da Constituição Federal e não como efeito secundário da condenação por crime militar, observados, portanto, os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. 3. Ordem denegada. ..EMEN: (HC – HABEAS CORPUS – 185112 2010.01.70021-9, JORGE MUSSI, STJ – QUINTA TURMA, DJE DATA:29/08/2011 ..DTPB:.)

Salienta-se que o tema apresenta decisões divergentes dentro do Supremo Tribunal Federal, uma vez que em 21/05/2015, no Recurso Extraordinário n. 447.859, foi decidido que “Relativamente a praça, é inexigível pronunciamento de Tribunal, em processo específico, para que se tenha a perda do posto.”, o que agora foi pacificado com o julgamento do Recurso Extraordinário n. 601.146. Equivocadamente, o julgado menciona a perda do posto da praça, que sabidamente possui graduação, e não posto, conforme explicado.

É importante ressaltar que não é possível justificar que a condenação em primeira instância decreta a perda do cargo, sem, no entanto, decretar a perda da graduação.

Isso porque a relação entre cargo, praça e graduação é intrínseca. Não é possível que haja um cargo ocupado por uma praça sem graduação. É como se fosse um corpo sem alma. A graduação está para a praça, assim como o crime está para o Direito Penal.

Não é possível que uma praça perca o cargo, mas mantenha a graduação ou que perca a graduação, mas mantenha o cargo. A perda de um implica, necessariamente, na perda do outro.

Matheus Carvalho7 ensina que “Todo cargo público é criado mediante a edição de lei, fazendo parte da estrutura de um órgão público e, necessariamente, lhe será atribuída uma função. Não existe cargo sem função, não obstante exista função sem cargo.”

A função é a atividade em si mesmo, corresponde à atribuição e às tarefas que são de responsabilidade do agente que ocupa um cargo público.

Assim, se uma praça é condenada à perda do cargo público, não poderá mais exercer os deveres, atribuições e responsabilidades. A razão de ser da graduação, que é inserir o militar dentro de uma organização militar hierárquica em determinado cargo, se esvazia e, consequentemente, torna-se sem validade jurídica, o que implica na perda automática da graduação. Manter a graduação quando se decreta a perda do cargo público seria como manter o Direito Penal e abolir todos os crimes. Não há sentido algum.

Não se deve cogitar, também, que a praça que venha a perder o cargo público deve ser transferida para a reserva não remunerada, pois não existe, em lei, essa previsão de reserva não remunerada para quem perde o cargo público em razão de condenação judicial. Seria uma criação judicial, sem previsão em lei.

Em Minas Gerais, por exemplo, o art. 138 do Estatuto dos Militares – Lei n. 5.301/69 – dispõe que a praça será transferida para a reserva não remunerada se solicitar baixa do serviço ou se candidatar e for eleito para a função ou cargo público. Não há previsão em lei de transferência para a reserva não remunerada de militares condenados à perda do cargo e aventar tal hipótese mediante decisão judicial seria legislar por via judicial, o que não se pode admitir, sob pena de ofensa à separação de poderes e exacerbado ativismo judicial.

A condenação à perda da graduação implica em um único resultado: exclusão do Quadro de Praças da Instituição Militar a que pertencer (demissão), de forma que o condenado volte a ser civil, sequer passará para a reserva não remunerada.

Caso a primeira instância condene uma praça à perda do cargo, sob a justificativa de que não está a condenar à perda da graduação, pois são conceitos distintos, na verdade, está a utilizar um meio inconstitucional de, por vias transversas, burlar o art. 125, § 4º, da Constituição Federal.

Todas as leis que prevejam a perda do cargo como efeito automático da condenação criminal, devem sofrer interpretação conforme a Constituição, quando se tratar do julgamento de crime militar (art. 125, § 4º), pois a competência será sempre do tribunal competente.

A Lei de Tortura – Lei n. 9.455/97 – prevê a perda do cargo público como um efeito automático da condenação (art. 1º, § 5º) e desde o advento da Lei n. 13.491/17 o crime de tortura pode ser crime militar, como o exemplo do militar que pratica tortura em serviço (art. 9º, II, “c”, do CPM).

A Lei de Organizações Criminosas – Lei n. 12.850/13 – também prevê a perda do cargo público como um efeito automático da condenação (art. 2º, § 6º), caso o servidor público componha organização criminosa, o que pode ser aplicado aos militares diante da Lei n. 13.491/17.

No caso de crime militar de tortura e crime militar por constituir organização criminosa, não há efeito automático da condenação à perda do cargo, devendo, após o trânsito em julgado do processo, o juiz de primeira instância remeter os autos ao tribunal competente, para, se for o caso, ser instaurado procedimento próprio para a perda do cargo e da graduação.

Caso o militar pratique o crime de tortura comum – e não militar -, como a hipótese em que o militar de folga torture uma pessoa sob seu poder com o fim de aplicar castigo pessoal, a Justiça Comum será a competente para julgá-lo e poderá decretar a perda do cargo e da graduação.

O art. 102 do Código Penal Militar prevê que “A condenação da praça a pena privativa de liberdade, por tempo superior a dois anos, importa sua exclusão das fôrças armadas.”

Uma simples leitura do dispositivo permite afirmar que não se aplica às forças militares estaduais, por não serem mencionadas no art. 102 do CPM e por ser vedada analogia em prejuízo do réu no direito penal.

Independentemente, dessa discussão, o Supremo Tribunal Federal8 já pacificou que o art. 102 do Código Penal Militar não foi recepcionado pela Constituição em relação aos militares estaduais, por ser necessário, em vista do disposto no art. 125, § 4º, da Constituição Federal, um procedimento próprio.

Em se tratando de condenação de praças por crimes militares que possam resultar na perda da graduação, é indiferente o quantum da pena, diferentemente, da condenação dos oficiais, que para serem levados a julgamento que possa resultar na perda do posto e da patente devem ter sido condenados a uma pena privativa de liberdade superior a dois anos (art. 142, § 3º, VII, CF).

Deve-se salientar que o art. 125, § 4º, da CF/88, não impede a perda da graduação de militar mediante procedimento administrativo (Súmula 673 do STF). Isto é, a instituição militar estadual poderá apurar a infração disciplinar administrativamente e decidir pela exclusão do militar das fileiras da Corporação.

Por fim, nas ações decorrentes de improbidade administrativa, é perfeitamente, possível, a decretação da perda do cargo e da graduação da praça por decisão de primeira instância, face à inexistência de previsão legal ou constitucional que preveja ser competência do tribunal.

Ante todo o exposto é possível concluir que:

a) as praças somente podem ser condenadas à perda do cargo público e da graduação, nos crimes militares, pelo tribunal competente, ou seja, pelo tribunal de justiça militar em MG, SP e RS e pelo tribunal de justiça comum nos demais estados (art. 125, § 4º, da CF);

b) a condenação à perda do cargo e da graduação pelo tribunal competente requer procedimento próprio, não devendo ser analisado pelo tribunal em sede de recurso;

c) as praças podem perder o cargo e graduação por decisão de primeira instância se for crime comum ou ato de improbidade administrativa, seja este julgado pela justiça comum ou militar;

d) as praças podem perder o cargo e a graduação em processo administrativo disciplinar, sem necessidade de remessa do processo à justiça, mediante decisão da própria Corporação.

NOTAS

1 Art. 8º, § 2º, “c”, do Decreto-Lei n. 667/69.

2Art. 8º, § 2º, “b” e “c”, do Decreto-Lei n. 667/69.

3 Estatuto dos Militares do Estado de Minas Gerais – Lei n. 5.301/69. Art. 38 – São adotadas as seguintes definições: I – cargo é o conjunto de atribuições definidas por lei ou regulamento e cometido, em caráter permanente, a um militar; Estatuto dos Militares. Lei n. 6.880/80. Art. 20. Cargo militar é um conjunto de atribuições, deveres e responsabilidades cometidos a um militar em serviço ativo.

4 Art. 21 da Lei n. 6.880/80.

5 Autos n. 0003082-85.2018.9.13.0002.

6 RE 418.375.

7CARVALHO, Matheus. Manual de Direito Administrativo. 4ª edição. Salvador: Juspodivm. 2017. p. 863.

8RE 601.146