A lavratura de termo circunstanciado de ocorrência pelo Poder Judiciário na hipótese do art. 28 da Lei n. 11.343/06 (porte de drogas para consumo pessoal)

SÍNTESE

O tema é polêmico e ainda está no campo dos debates de qual será a postura a ser adotada pelo Poder Judiciário e pelas instituições policiais em razão da decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI n. 3807, razão pela qual recomendo a leitura de todo o texto antes de extrair qualquer conclusão.

Fundamentos

• Art. 93, XIV, da Constituição Federal
• Arts. 28 e 48 da Lei n. 11.343/06
• Art. 203, § 4º, do Código de Processo Civil
• Art. 72 da Lei n. 9.099/95
• Art. 3º da Resolução n. 71/09 do Conselho Nacional de Justiça
• Art. 3º do Decreto-Lei n. 911/69
• STF – ADI 3807
• STF – ADI 5647
• STF – Reclamação n. 22470
• Enunciado 34 do FONAJE
• Enunciado n. 12 da Edição n. 131 da Jurisprudência em Teses do STJ
• Nota Técnica da Associação dos Delegados de Polícia do Brasil – ADEPOL (ADI 3807)

Palavras-chaves: termo circunstanciado de ocorrência; atribuição para lavratura do termo circunstanciado; ratio decidendi; obter dictum; eficácia vinculativa do precedente; teoria da transcendência dos motivos; jurisprudência defensiva; plantão judicial; juízo competente; Polícia Militar; Polícia Civil; autoridade policial; usuário de drogas.

Síntese

a) A Polícia Militar pode continuar lavrando termo circunstanciado de ocorrência na rua, nos estados em que já lavra, mesmo diante da decisão do STF na ADI 3807, sem necessidade de encaminhar o usuário de droga (art. 28 da Lei n. 11.343/06) ao fórum, ao quartel ou à Delegacia de Polícia;

b) Caso a abordagem ao usuário seja realizada pela Polícia Civil, deve primar pela lavratura do termo circunstanciado de ocorrência na rua, no local da abordagem, e na impossibilidade, conduzir o usuário de droga (art. 28 da Lei n. 11.343/06) ao fórum, se durante o expediente, e para a Delegacia de Polícia caso o fórum esteja fechado;

c) Apresentado o usuário de droga ao fórum, seja pela Polícia Militar ou pela Polícia Civil, se houver ato normativo do juiz competente, a Secretaria do Juizado Especial Criminal deverá proceder à lavratura do termo circunstanciado de ocorrência ou tal ato poderá ser lavrado por policial militar, desde que haja convênio ou termo de cooperação entre o Poder Judiciário e a Polícia Militar, uma vez que a finalidade precípua do policial militar que permanece no fórum é a segurança;

d) Fora do horário de expediente, isto é, nos finais de semana, em feriados, no horário noturno ou em qualquer situação que o fórum esteja fechado, não cabe ao Poder Judiciário lavrar o termo circunstanciado de ocorrência (art. 1º, III e VIII, da Resolução n. 71/09 do Conselho Nacional de Justiça);

e) Nos locais em que não houver fórum não há que se falar em condução do usuário de droga ao Poder Judiciário, devendo este ser encaminhado diretamente à Delegacia de Polícia, caso não seja possível a lavratura do termo circunstanciado de ocorrência na rua;

f) O encaminhamento da droga apreendida para a perícia poderá ocorrer pelo próprio Poder Judiciário ou pela instituição policial que tiver efetuado a captura do usuário de drogas, a depender do que for acertado entre as instituições, o que deve ocorrer mediante convênio ou termo de cooperação, dentro da realidade de cada local, uma vez que há fóruns e quartéis ou delegacias que não possuem estrutura física adequada e compatível para a guarda de drogas apreendidas em decorrência do art. 28 da Lei n. 11.343/06;

g) O juiz não deve realizar audiência preliminar ou aplicar qualquer medida em desfavor do usuário de droga sem que haja o laudo de constatação da substância entorpecente.

O Supremo Tribunal Federal decidiu na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3807, de relatoria da Ministra Cármen Lúcia, por 10 votos a 01, vencido o Ministro Marco Aurélio, dois pontos muito importantes:

1º) O termo circunstanciado de ocorrência, em que pese substituir o inquérito policial como principal peça informativa dos processos penais que tramitam nos juizados especiais, não é procedimento investigativo, mas sim um boletim de ocorrência mais detalhado.

2º) O autor do crime previsto no art. 28 da Lei n. 11.343/06 (porte de droga para consumo pessoal) deve ser encaminhado ao juízo competente que será o responsável pela confecção do termo circunstanciado de ocorrência e requisição dos exames e perícias necessários. Caso não haja disponibilidade do juízo competente, deve o autor ser encaminhado à autoridade policial, que então adotará as providências que seriam adotadas pelo juízo competente.

No voto da Ministra Cármen Lúcia assentou que:

Assim, pelo procedimento previsto nos §§ 2º a 4º do art. 48 da Lei n. 11.343/2006 e na Lei n. 9.099/1995, O AUTOR DO CRIME PREVISTO NO ART. 28 DAQUELE DIPLOMA LEGAL DEVE PREFERENCIALMENTE SER ENCAMINHADO DIRETAMENTE AO JUÍZO COMPETENTE, SE DISPONÍVEL, para que ali ser lavrado termo circunstanciado e requisitados os exames e perícias que se mostrem necessários.

Com a determinação de encaminhamento imediato do usuário de drogas ao juízo competente, afasta-se qualquer possibilidade de que o usuário de drogas seja preso em flagrante ou detido indevidamente pela autoridade policial.

Considerando-se que O TERMO CIRCUNSTANCIADO NÃO É PROCEDIMENTO INVESTIGATIVO, mas peça informativa com descrição detalhada do fato e as declarações do condutor do flagrante e do autor do fato, deve-se reconhecer que A POSSIBILIDADE DE SUA LAVRATURA PELO ÓRGÃO JUDICIÁRIO NÃO OFENDE OS §§ 1º E 4º DO ART. 144 DA CONSTITUIÇÃO, NEM INTERFERE NA IMPARCIALIDADE DO JULGADOR.

O Supremo Tribunal Federal, ao julgar improcedente a ADI 3807, decidiu pela constitucionalidade do art. 48, §§ 2º e 3º, da Lei n. 11.343/06.

Art. 48. O procedimento relativo aos processos por crimes definidos neste Título rege-se pelo disposto neste Capítulo, aplicando-se, subsidiariamente, as disposições do Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal.

§ 2º Tratando-se da conduta prevista no art. 28 desta Lei, não se imporá prisão em flagrante, devendo o autor do fato ser imediatamente encaminhado ao juízo competente ou, na falta deste, assumir o compromisso de a ele comparecer, lavrando-se termo circunstanciado e providenciando-se as requisições dos exames e perícias necessários.

§ 3º Se ausente a autoridade judicial, as providências previstas no § 2º deste artigo serão tomadas de imediato pela autoridade policial, no local em que se encontrar, vedada a detenção do agente.

É importante destacar que o STF decidiu que somente na impossibilidade do agente ser encaminhado para o juízo competente é que deve ser encaminhado à autoridade policial. Ou seja, há uma ordem de prioridade, uma vez que o objetivo da lei é afastar o usuário de drogas do ambiente policial e evitar que seja detido indevidamente pela autoridade policial.

As normas dos §§ 2º e 3º do art. 48 da Lei n. 11.343/2006 foram editadas em benefício do usuário de drogas, visando afastá-lo do ambiente policial quando possível e evitar que seja indevidamente detido pela autoridade policial (Trecho do voto da Ministra Cármen Lúcia na ADI 3807).

Assim, havendo disponibilidade do juízo competente, o autor do crime previsto no art. 28 da Lei n. 11.343/2006 deve ser até ele encaminhado imediatamente, para lavratura do termo circunstanciado e requisição dos exames e perícias necessários.

Se não houver disponibilidade do juízo competente, deve o autor ser encaminhado à autoridade policial, que então adotará as providências previstas no § 2º do art. 48 da Lei n. 11.343/2006.

Diante desse cenário deve-se analisar em que consiste a indisponibilidade do juízo competente em receber o usuário de droga e a possibilidade da Polícia Militar ou Civil em proceder à lavratura do termo circunstanciado na rua, sem necessidade de encaminhar o usuário de drogas para o fórum.

Sem entrar em discussões sobre o acerto ou erro da decisão do STF, o importante é que o tema foi pacificado pelo plenário em Ação Direta de Inconstitucionalidade, o que permite afirmar que vincula todo o Poder Judiciário, o Poder Público e todas as autoridades, por mais que discordem, pelo menos no caso decidido pelo STF – possibilidade do juiz lavrar TCO em se tratando do uso de drogas, na forma do art. 48, §§ 2º e 3º, da Lei 11.343/06 -, e isso surte um importante e nítido efeito para todos os demais casos que forem levados ao Supremo Tribunal Federal ou ao Poder Judiciário, em razão do efeito persuasivo das decisões do STF, sobretudo em controle abstrato de constitucionalidade e em razão da teoria dos motivos determinantes.

A decisão judicial possui fundamentos que são divididos em ratio decidendi e obter dictum.

Ratio decidendi é o argumento utilizado na decisão que é relevante, essencial à decisão, o qual, se retirado, torna a decisão nula, por ausência de fundamentação, uma vez que a decisão estará desprovida de fundamentos pertinentes e relacionados estritamente ao caso. A ratio decidendirefere-se aos motivos determinantes ou razões de decidir.

Obter dictumé o fundamento que não influencia na decisão e não possui, necessariamente, relação com o caso em discussão. É o fundamento de passagem, como decorrência da retórica jurídica. Trata-se de uma discussão jurídica desnecessária ou irrelevante para o julgamento do caso.

Daniel Amorim Assumpção Neves1 ensina que

A ratio decidendi não é fenômeno alheio ao direito brasileiro, pelo contrário, sendo considerada pelos tribunais superiores com relativa frequência, ora com a utilização da expressão “motivos determinantes” ora com a utilização da expressão “razões de decidir””. Mas não há dúvida de que o fenômeno terá que ser repensado.

Conforme ensina a melhor doutrina, a ratio decidendi (chamada de holding no direito americano) é o núcleo do precedente, seus fundamentos determinantes, sendo exatamente o que vincula. Distingue-se da fundamentação obiter dicta, que são prescindíveis ao resultado do julgamento, ou seja, fundamentos que, mesmo se fossem em sentido invertido, não alterariam o resultado do julgamento”. São argumentos jurídicos ou considerações feitas apenas de passagem, de forma paralela e prescindível para o julgamento, como ocorre com manifestações alheias ao objeto do julgamento, apenas hipoteticamente consideradas”. Justamente por não serem essenciais ao resultado do precedente os fundamentos obiter dicta não vinculam”.

Afirmar-se que a ratio decidendi do precedente vincula, o que não ocorre com a fundamentação obiter dicta, é indiscutível e a parte fácil de se compreender a eficácia vinculante dos precedentes. O mais problemático é a distinção entre elas no caso concreto, já que o conceito de ratio decidendi não é tranquilo, mesmo em países de muito mais tradição em seu exame do que o Brasil, havendo estudo que aponta o incrível número de 74 formas de encontrar a ratio decidendi.

Conforme considerável corrente doutrinária, o ideal é a adoção do método eclético sugerido por Rupert Cross. Dessa forma, combinam-se a técnica da inversão defendida por Wambaugh, que defende a identificação da ratio decidendi como a razão jurídica que, se invertida, resultaria em julgamento diferente e a técnica defendida por Goodhart, pela qual a identificação da ratio decidendi parte dos fatos materiais – categorias de fatos relevantes para o direito – e da decisão jurídica neles embasada – o julgamento final. (destaquei)

Fredie Didier Jr. e Leonardo Carneiro da Cunha2 discorrem didaticamente a respeito da eficácia vinculante das decisões do Supremo Tribunal Federal nos casos de controle concentrado de constitucionalidade.

A conjugação do art. 927, I, com o art. 988, ambos do CPC, reforça a eficácia formalmente vinculante dos precedentes do STF em casos de controle concentrado de constitucionalidade – e não apenas dos comandos dessas decisões.

Um acórdão de ADIn, ADC e ADPF contém duas partes diversas, assim como qualquer decisão judicial: a) a parte dispositiva, que soluciona a questão e que diz respeito ao ato normativo cuja (in)constitucionalidade foi proclamada; b) a fundamentação, que gera o precedente.

Quanto à parte dispositiva, há coisa julgada, insuscetível, no caso de ADIn, ADC e ADPF, de ação rescisória. O desrespeito a essa coisa julgada pode ser causa de pedir da reclamação.

Já em relação à fundamentação, há eficácia vinculativa do precedente. No exemplo citado, o STF não poderá rediscutir a constitucionalidade da lei estadual, em razão do efeito negativo da coisa julgada, mas o STF deverá seguir este precedente em casos futuros semelhantes; poderá, contudo, proceder ao overruling, superando o entendimento anterior. Se isso acontecer, não estará violando a coisa julgada, mas apenas alterando o seu entendimento jurisprudencial.

A teoria da transcendência dos motivos determinantes diz que os fundamentos essenciais, principais, decisivos (ratio decidendi) nos julgamentos do Supremo Tribunal Federal também possuem efeito vinculante. Trata-se do efeito irradiante ou transbordante dos motivos determinantes.

O Supremo Tribunal Federal não tem aceito referida teoria, conforme ensina Márcio Cavalcante3.

O STF não admite a “teoria da transcendência dos motivos determinantes”.

Segundo a teoria restritiva, adotada pelo STF, somente o dispositivo da decisão produz efeito vinculante. Os motivos invocados na decisão (fundamentação) não são vinculantes.

A reclamação no STF é uma ação na qual se alega que determinada decisão ou ato:

• usurpou competência do STF; ou

• desrespeitou decisão proferida pelo STF.

Não cabe reclamação sob o argumento de que a decisão impugnada violou os motivos (fundamentos) expostos no acórdão do STF, ainda que este tenha caráter vinculante. Isso porque apenas o dispositivo do acórdão é que é vinculante.

Assim, diz-se que a jurisprudência do STF é firme quanto ao não cabimento de reclamação fundada na transcendência dos motivos determinantes do acórdão com efeito vinculante.

STF. Plenário. Rcl 8168/SC, rel. orig. Min. Ellen Gracie, red. p/ o acórdão Min. Edson Fachin, julgado em 19/11/2015 (Info 808).

Trata-se de uma verdadeira jurisprudência defensiva, na medida em que admitir a teoria da transcendência dos motivos determinantes implicaria em um aumento expressivo no número de reclamações perante a Suprema Corte.

Na Reclamação n. 22470, o Supremo Tribunal Federal afirmou que “a exegese jurisprudencial conferida ao art. 102, I, “l”, da Magna Carta rechaça o cabimento de reclamação fundada na tese da transcendência dos motivos determinantes.”4

Dessa forma, não cabe reclamação para o Supremo Tribunal Federal na hipótese em que o juiz, o tribunal ou o Poder Público entender que o termo circunstanciado de ocorrência possui natureza investigativa, em que pese contrariar claramente a decisão do STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3807. O instrumento utilizado para impugnar este entendimento deve ser a ação judicial quando a decisão partir do Poder Público ou recursos quando a decisão decorrer do próprio Poder Judiciário.

Pedro Lenza5 ensina que:

Inegavelmente, contudo, temos de reconhecer que a perspectiva de transcendência dos motivos determinantes deve ser revista à luz do CPC/2015, destacando-se os arts. 927 e 988.Já expusemos a nossa crítica à vinculação ampliada pela lei processual, lembrando que a Constituição se limita a estabelecer o efeito vinculante nas ações de controle concentrado e em razão de edição de súmula vinculante.

Nesse sentido, como afirmam Barroso e Mello, “se o CPC/2015 acolheu tal concepção de tese jurídica vinculante, inclusive em sede de controle concentrado da constitucionalidade, isso significa que, com a sua vigência, o entendimento do STF que rejeitava a eficácia transcendente da fundamentação precisará ser revisitado. É que a eficácia transcendente significa justamente atribuir efeitos vinculantes à ratio decidendi das decisões proferidas em ação direta. Mesmo que este entendimento não fosse acolhido pelo STF no passado, o fato é que, ao que tudo indica, o novo Código o adotou”.

Pode-se concluir que a ratio decidendi das decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade possui eficácia vinculante, devendo ser obedecida por todo o Poder Judiciário, em todas as instâncias (art. 927, I, do CPC), contudo não cabe reclamação, como regra, das decisões judiciais que descumprem a ratio decidendi.

Diante da decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI n. 3807, por 10 votos a 01, no sentido de que o TCO não é procedimento investigativo, certamente, por coerência e integridade do direito, a ADI n. 5647, que questiona a constitucionalidade da autorização concedida pela Lei n. 22.257/16 de Minas Gerais para a Polícia Militar lavrar TCO, deve ser julgada improcedente e, consequentemente, autorizar a lavratura pela Polícia Militar, pois o principal fundamento que visa impossibilitar a Polícia Militar de lavrar TCO consiste na natureza investigativa do termo circunstanciado de ocorrência.

Em razão da decisão do STF na ADI 38071, a Associação dos Delegados de Polícia do Brasil – ADEPOL – emitiu nota técnica e recomendações para a padronização de procedimentos a serem adotados nas ocorrências envolvendo o crime previsto no art. 28 da Lei n. 11.343/06 (porte de drogas para o consumo pessoal).6

Conforme registrado em nota técnica publicada pela ADEPOL DO BRASIL e pela FENDEPOL, o precedente do STF na ADI 3807 fixou três teses:

(a) termo circunstanciado não é procedimento investigativo, mas peça informativa com descrição detalhada do fato e as declarações do condutor do flagrante e do autor do fato; 

(b) termo circunstanciado não é função privativa de polícia judiciária, de modo que não existe risco à imparcialidade do julgador; e

(c) a autoridade policial pode lavrar Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO) e requisitar exames e perícias em caso de flagrante de uso ou posse de entorpecentes para consumo próprio, desde que ausente a autoridade judicial.

O julgado do STF, de caráter vinculante, é clarto e categórico: apenas de forma excepcional, no caso de ausência da Autoridade Judicial, é que o usuário de drogas será conduzido até a Delegacia de Policial. Esse procedimento, segundo a ministra, afasta a possibilidade de que o usuário de drogas seja preso em flagrante ou detido indevidamente pela autoridade policial. Nessa linha, a preferência é o encaminhamento do usuário de drogas para a Autoridade Judicial, cabendo a essa a adoção dos procedimentos, até mesmo quanto à lavratura do termo circunstanciado. O objetivo é justamente retirar da esfera policial a coerção ao usuário de drogas.

Observe-se que o dispositivo legal confere ao Juiz de Direito o dever de lavratura do TCO nas condutas previstas no art. 28 da citada lei, inclusive de forma prioritária em relação a qualquer outro órgão de segurança pública. Nesses termos, a seguinte sistemática deve ser adotada a partir desse novo precedente da Suprema Corte:

1. Todos os casos envolvendo crime tipificado no art. 28 da Lei n° 11.343/06 devem ser encaminhados diretamente ao plantão do Poder Judiciário pelas Polícias Civil e Militar, em especial porque, nos termos do que foi decidido, a finalidade é retirar o cidadão do ambiente da Delegacia de Polícia.

2. Mesmo durante os fins de semana, feriados ou período noturno, o procedimento é o mencionado no tópico 1, inexistindo qualquer necessidade de acionar a equipe da Polícia Civil que esteja de plantão.

3. Na hipótese de o Magistrado compreender que não se tem o crime de uso de drogas, mas de qualquer outro crime da Lei n° 11.343/16, o caso será encaminhado ao Delegado de Polícia plantonista. Há de se ressaltar que a decisão tomada pelo magistrado não vincula a lavratura do Auto de Prisão em Flagrante Delito pelo Delegado de Polícia por ser esse dotado de autonomia ou independência funcional, podendo decidir, ao final, por lavrar ele mesmo o TCO com fundamento no art. 28 da Lei n° 11.343/16.

4.Não se aplicam as regras acima mencionadas no caso de ausência da Autoridade Judicial, assim configurada quando na comarca não houver vara criminal ou plantão judiciário, mesmo que em trabalho remoto. Como se extrai da decisão do próprio Supremo Tribunal Federal e do voto da Ministra Cármen Lúcia, a existência do plantão judicial impede a lavratura do TCO pela autoridade policial.

5.Caracterizada a ausência da autoridade judicial na localidade, inexiste necessidade de prévia autorização do Juiz para o Delegado de Polícia lavrar o TCO, uma vez que tal atribuição decorre de previsão legal e não de determinação judicial.

6.Nos casos de autoridade judicial presente, não se admite, legalmente e constitucionalmente, a autorização pelo magistrado para que o Delegado de Polícia lavre ele próprio o TCO, uma vez que incidiria em ato contrário à decisão vinculante do Supremo Tribunal Federal, passível de responsabilização disciplinar, sem contar a impugnação de tal ato por advogados e membros do Ministério Público com a consequente ilegalidade e incidência por crime na lei de abuso de autoridade. Tal premissa é “jeitinho”, ‘gambiarra jurídica” frente a uma decisão estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal.

Nas palavras do Supremo Tribunal Federal, vale a pena repetir, esse procedimento afasta a possibilidade de que o usuário de drogas seja encaminhado à Delegacia de Polícia, afastando-o do ambiente policial, que é a proposta central do precedente e que deve moldar o sistema criminal, em especial porque, nesta data, foi publicada a ata de julgamento, conferindo efeitos erga omnes e vinculante à decisão, que é de caráter obrigatório para todos os policiais, Delegados de Polícia e magistrados.

Por fim, ressaltamos que não há abuso de autoridade ou prevaricação a temer com a adoção de tais casos. Ao contrário: seguir o contrário do julgado do STF é que pode vir a gerar responsabilidade criminal na forma da Lei 13869/2019.

A Diretoria (destaques no original)

Antes de concluir se houve determinação do Supremo Tribunal Federal para que os juízes atuem nos casos de porte de drogas para uso pessoal em regime de plantão (fora do horário de expediente) deve-se analisar a ratio decidendi e a obiter dicta da fundamentação do voto da Ministra Cármen Lúcia, que foi o voto vencedor, mediante a utilização da “técnica da inversão defendida por Wambaugh, que defende a identificação da ratio decidendi como a razão jurídica que, se invertida, resultaria em julgamento diferente”7

A menção ao plantão judiciário no voto da Ministra Cármen Lúcia é feita ao citar o saudoso Professor Luiz Flávio Gomes, ao justificar a apresentação do usuário de drogas diretamente à autoridade judicial, por se tratar de uma questão de saúde pessoal e de saúde pública.

“[10] Envio do agente ao juízo competente

Normalmente, o agente que se encontra em posse de droga para consumo pessoal acaba sendo capturado por agente militar ou civil (ou federal). Dissemos normalmente porque, na verdade, qualquer pessoa (CPP, art. 301) está autorizada a proceder a essa captura (em flagrante).

Concretizada a captura do agente (e feita a apreensão da droga ou da planta tóxica) cabe ao condutor (pessoa que efetuou a captura) levar o autor do fato (imediatamente) ao juízo competente. Imediatamente significa sem demora, sem delongas, prontamente. Note-se que a lei autoriza essa condução coercitiva, por conseguinte, não há que se falar em delito contra a liberdade individual (de locomoção) do agente capturado.

A nova Lei de Drogas priorizou o “juízo competente”, em detrimento da autoridade policial. Ou seja: do usuário de droga não deve se ocupar a polícia (em regra). Esse assunto configura uma questão de saúde pessoal e pública, logo, não é um fato do qual deve cuidar a autoridade policial.

A lógica da Lei nova pressupõe Juizados (ou juízes) de plantão, vinte e quatro horas. Isso seria o ideal. Sabemos, entretanto, que na prática nem sempre haverá juiz (ou Juizado) de plantão. Conclusão: na prática, o agente flagrado com drogas para consumo pessoal normalmente será apresentado para a autoridade policial, que vai lavrar o termo circunstanciado e liberar o agente capturado.

[11] Falta ou ausência de autoridade judicial

Na falta (ou ausência) de autoridade judicial (ou seja: não havendo juiz ou juizado de plantão), todas as providências que a ela compete serão tomadas pela autoridade policial (ver comentários ao § 3.º logo abaixo). (…)

[13] Exames e perícias necessários

Uma vez lavrado o termo circunstanciado (pela autoridade judicial ou autoridade policial) devem ser requisitados os exames e perícias necessários. (…)

[14] Falta ou ausência da autoridade judicial

Se não existe autoridade judicial de plantão, uma vez capturado o agente do fato (com drogas ou planta tóxica), será ele conduzido à presença da autoridade policial. Como já enfatizamos, quer a lei (como meta prioritária) que o usuário seja apresentado ao juízo competente. Não sendo possível, então o agente do fato será apresentado à autoridade policial, que tomará as providências indicadas no § 2.º. (…) ” (GOMES, Luiz Flávio (Coord). Lei de Drogas comentada . 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014). (destaquei)

Nota-se que a menção ao plantão judicial ocorreu de forma desnecessária e a supressão dessa parte da decisão em nada alteraria o resultado do julgamento, pois a citação visou demonstrar a finalidade de se levar o usuário de droga à autoridade judicial, como dito pela própria Ministra Cármen Lúcia ao citar Luiz Flávio Gomes:

Essa interpretação é defendida por parte da doutrina. Para Luiz Flávio Gomes, o legislador optou pela apresentação do usuário de drogas diretamente à autoridade judicial por se tratar de questão de saúde pessoal e pública, da qual não deveria cuidar a autoridade policial:

Não há na decisão do STF nenhuma menção no voto, a não ser em razão da mencionada citação, da obrigatoriedade do Poder Judiciário atender os casos de usuário de drogas durante o plantão. Trata-se, portanto, de um fundamento obiter dictum, pois dito de passagem, sem maior relevância para o julgamento, razão pela qual não se deve interpretar que o STF determinou que o Poder Judiciário atenda as ocorrências dos usuários de droga durante o plantão.

Além do mais, cabe à lei estipular quais são as matérias de plantão e, consequentemente, ao Poder Judiciário disciplinar e definir quais são as matérias que serão atendidas em regime de plantão.

O art. 48, §§ 2º e 3º8, da Lei n. 11.343/06 trata da obrigatoriedade de conduzir o autor do fato à presença do juízo competente e utiliza as expressões “na falta deste” e “ausente a autoridade judicial”, sem mencionar a obrigatoriedade do usuário de droga ser encaminhado ao Poder Judiciário durante o plantão, pois o simples fato de dizer “na falta deste” ou “ausente a autoridade judicial” significa que a lei não determinada a condução do usuário de droga ao juízo competente em regime de plantão, na medida em que sempre haverá juízo de plantão em todas as comarcas do país, ainda que de forma remota. Caso fosse a vontade do legislador apresentar o usuário de drogas ao juízo competente, em qualquer situação, teria consignado que esta deveria ocorrer em plantão judiciário.

Nesse sentido, a Lei n. 13.043/14 alterou o Decreto-Lei n. 911/69 e passou a prever que o credor ou o proprietário fiduciário pode requerer contra o devedor ou terceiro a busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente, podendo a medida liminar ser apreciada em plantão judiciário.

De mais a mais, a Resolução n. 71/09 do Conselho Nacional de Justiça, recentemente, alterada pela Resolução n. 326, de 26 de junho de 2020, mesma data em que a votação da ADI 3807 foi concluída, dispõe sobre o regime de plantão judiciário em primeiro e segundo graus de jurisdição. Dentre as matérias elencadas na referida resolução que devem ser analisadas em regime de plantão, encontram-se:

Art. 1º O plantão judiciário, em primeiro e segundo graus de jurisdição, conforme a previsão regimental dos respectivos Tribunais ou juízos, destina-se exclusivamente ao exame das seguintes matérias: (Redação dada pela Resolução nº 326, de 26.6.2020)

III – comunicações de prisão em flagrante; (Redação dada pela Resolução nº 326, de 26.6.2020)

VIII – medidas urgentes, cíveis ou criminais, da competência dos Juizados Especiais a que se referem as Leis nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, e nº 10.259, de 12 de julho de 2001, limitadas às hipóteses acima enumeradas. (Redação dada pela Resolução nº 326, de 26.6.2020)


O art. 48, § 2º, da Lei n. 11.343/06 dispõe que “Tratando-se da conduta prevista no art. 28 desta Lei, NÃO SE IMPORÁ PRISÃO EM FLAGRANTE, devendo o autor do fato ser imediatamente encaminhado ao juízo competente ou, na falta deste, assumir o compromisso de a ele comparecer, lavrando-se termo circunstanciado e providenciando-se as requisições dos exames e perícias necessários.”

A prisão subdivide-se em quatro etapas: a) captura; b) condução; c) prisão (lavratura do Auto de Prisão em Flagrante pelo Delegado) e d) encarceramento. Em se tratando do porte de drogas para consumo pessoal ocorre somente a captura e a condução, e não a prisão, em nenhuma hipótese, nos termos do art. 48, § 2º, da Lei n. 11.343/06, ainda que a pessoa se recuse a assinar o termo circunstanciado e assumir o compromisso de comparecer perante o Juizado Especial Criminal, pois não se aplica neste caso a lógica do art. 69, parágrafo único, da Lei n. 9.099/959, que permite a prisão em flagrante quando o autor do fato se recusar a assumir o compromisso de comparecer, posteriormente, à justiça, pois não existe previsão de pena privativa de liberdade para o art. 28 da Lei n. 11.343/06 (porte de drogas para consumo pessoal).

Portanto, em qualquer situação, ao usuário de droga (art. 28 da Lei de Drogas) nunca será imposta prisão pelo fato de ter sido flagrado portando drogas para uso pessoal.

Na prática em diversos estados, como o Estado de Goiás, a Polícia Militar lavra o TCO em razão do porte de drogas para uso pessoal, o que caracteriza somente a captura do autor do fato, sequer há necessidade de condução, sendo este liberado no local dos fatos, o que atende à finalidade da lei, conforme mencionado pelo Supremo Tribunal Federal, de não conduzir o usuário de droga para um ambiente policial.

Dessa forma, a análise conjunta do art. 48, § 2º, da Lei n. 11.343/06 e do art. 1º, III e VIII, da Resolução n. 71 do CNJ permite afirmar que os usuários de droga que praticarem o crime previsto no art. 28 da Lei de Drogas não devem ser conduzidos ao Poder Judiciário quando estiver em regime de plantão, pois à conduta do art. 28 da Lei 11.343/06 não se imporá a prisão em flagrante em nenhuma situação e o plantão judicial atende exclusivamente as comunicações de prisões e as medidas urgentes de natureza criminal do Juizado Especial limitam-se às comunicações de prisões ou outras medidas urgentes criminais, que não abrangem o encaminhamento do usuário de droga, conclusão esta que é possível se extrair da parte final da redação do inciso VIII do art. 1º da Resolução n. 71 do CNJ ao mencionar “limitadas às hipóteses acima enumeradas”.

Art. 1º O plantão judiciário, em primeiro e segundo graus de jurisdição, conforme a previsão regimental dos respectivos Tribunais ou juízos, destina-se exclusivamente ao exame das seguintes matérias: (Redação dada pela Resolução nº 326, de 26.6.2020)

I – pedidos de habeas corpus e mandados de segurança em que figurar como coator autoridade submetida à competência jurisdicional do magistrado plantonista; (Redação dada pela Resolução nº 326, de 26.6.2020)

II – medida liminar em dissídio coletivo de greve; (Redação dada pela Resolução nº 326, de 26.6.2020)

III – comunicações de prisão em flagrante; (Redação dada pela Resolução nº 326, de 26.6.2020)

IV – apreciação dos pedidos de concessão de liberdade provisória; (Redação dada pela Resolução nº 326, de 26.6.2020)

V – em caso de justificada urgência, de representação da autoridade policial ou do Ministério Público visando à decretação de prisão preventiva ou temporária; (Redação dada pela Resolução nº 326, de 26.6.2020)

VI – pedidos de busca e apreensão de pessoas, bens ou valores, desde que objetivamente comprovada a urgência; (Redação dada pela Resolução nº 326, de 26.6.2020)

VII – medida cautelar, de natureza cível ou criminal, que não possa ser realizada no horário normal de expediente ou de caso em que da demora possa resultar risco de grave prejuízo ou de difícil reparação; (Redação dada pela Resolução nº 326, de 26.6.2020)

VIII – medidas urgentes, cíveis ou criminais, da competência dos Juizados Especiais a que se referem as Leis nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, e nº 10.259, de 12 de julho de 2001, LIMITADAS ÀS HIPÓTESES ACIMA ENUMERADAS. (Redação dada pela Resolução nº 326, de 26.6.2020)

A título argumentativo não há comunicação ao juiz plantonista quando o Delegado de Polícia inicia a lavratura do Auto de Prisão em Flagrante, mas constata no decorrer da lavratura que não é o caso de flagrante, por entender, por exemplo, que atuou em legítima defesa (art. 304, § 1º, do CPP), pois o agente não terá sido preso, razão pela qual dispensa a comunicação ao Poder Judiciário em regime de plantão.

A ratio decidendi da ADI 3807 consiste no fundamento de que o termo circunstanciado não é procedimento investigativo, que a sua lavratura não é atribuição exclusiva da polícia judiciária e que não há ofensa à imparcialidade do julgador em proceder à lavratura do termo circunstanciado de ocorrência, pois são fundamentos imprescindíveis para o mérito da questão que foi julgada improcedente. Para chegar a essa conclusão basta inverter a lógica dos fundamentos e sustentar que o termo circunstanciado é procedimento investigativo, a lavratura é atribuição exclusiva da polícia judiciária e que eventual lavratura pelo juiz ofenderia a parcialidade. O resultado seria exatamente o contrário, a ação seria julgado procedente para reconhecer a inconstitucionalidade do dispositivo impugnado.

Considerando-se que o termo circunstanciado não é procedimento investigativo, mas peça informativa com descrição detalhada do fato e as declarações do condutor do flagrante e do autor do fato, deve-se reconhecer que a possibilidade de sua lavratura pelo órgão judiciário não ofende os §§ 1º e 4º do art. 144 da Constituição, nem interfere na imparcialidade do julgador.

Dessa forma, é perfeitamente possível afirmar que a Polícia Militar pode proceder à lavratura do Termo Circunstanciado de Ocorrência, já que não se trata de um procedimento investigativo e não é atribuição exclusiva da polícia judiciária.

O voto da Ministra Cármen Lúcia menciona Ada Pellerini Grinover, nos seguintes termos:

“Pode também acontecer que, ocorrido o fato, os interessados, ao invés de dirigirem-se à autoridade policial, busquem diretamente o atendimento do Juizado. Por isso mesmo, seria conveniente que a lei local previsse a presença de uma autoridade policial junto aos Juizados, para que o termo circunstanciado fosse ali lavrado. E nada impede, demais, que a lavratura do termo e a tomada das providências cabíveis sejam realizadas pela própria secretaria do Juizado.

Exatamente nesse sentido, a Comissão Nacional da Escola Superior da Magistratura, encarregada de formular as primeiras conclusões sobre a interpretação da lei (v. n. 13 das considerações introdutórias à Seção), apresentou a seguinte:

Nona Conclusão: “A expressão autoridade policial referida no art. 69 compreende todas as autoridades reconhecidas por lei, podendo a Secretaria do Juizado proceder à lavratura do termo de ocorrência e tomar as providências devidas no referido artigo” ” (GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Juizados especiais criminais: comentários à Lei 9.099, de 26.09.1995 . 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 118). (destaquei)

Nota-se que para atingir a finalidade da lei, no sentido de não conduzir a pessoa que porta droga para consumo pessoal (art. 28 da Lei n. 11.343/06) para a Delegacia de Polícia ou para qualquer ambiente policial, seria suficiente haver a presença de um policial no fórum para registrar o termo circunstanciado de ocorrência.

Ao se evitar a condução de um usuário de droga para o ambiente policial a lei tem por fim prevenir o contato do usuário com presos e criminosos, já que o tratamento dado ao usuário, nos termos da Lei n. 11.343/06, deve ser o de uma pessoa que necessita de tratamento médico. Usar droga não é crime.

A Lei de Drogas não pune o vício – visa tratar o usuário -, não pune a pessoa que “usa drogas” – não há o verbo usar ou consumir no art. 28 -, pune somente a pessoa que a porta com o fim de consumi-la (art. 28) ou de comercializá-la ou passá-la a terceiro ou de ficar com a droga para si mesmo, sem, contudo, possuir o intuito de usá-la (art. 33). Pelo fato do usuário de droga movimentar o tráfico de drogas, quando a adquire, guarda, tem em depósito, transporta ou a traz consigo para consumo pessoal, coloca a saúde pública em perigo, razão pela qual tal conduta é considerada criminosa e não o vício, pois a partir do momento em que o usuário de droga a utiliza, causa lesão a si mesmo, e o direito não pune a autolesão (princípio da lesividade).

O art. 48, § 3º, da Lei n. 11.343/06 prescreve que a ausência da autoridade judicial implica na lavratura imediata do termo circunstanciado de ocorrência pela autoridade policial, no local em que se encontrar, vedada a detenção do agente.

Art. 48. O procedimento relativo aos processos por crimes definidos neste Título rege-se pelo disposto neste Capítulo, aplicando-se, subsidiariamente, as disposições do Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal.

§ 3º Se ausente a autoridade judicial, as providências previstas no § 2º deste artigo serão tomadas de IMEDIATO pela autoridade policial, no local em que se encontrar, VEDADA A DETENÇÃO DO AGENTE.

Cléber Masson e Vinícius Marçal10 ensinam que:

Quis a Lei de Drogas, portanto, que o autor do crime de consumo pessoal não fosse levado à delegacia de polícia para o registro da ocorrência, reservando o ambiente policial aos narcotraficantes. Por isso, não sendo possível a lavratura do termo pela secretaria do juízo, a autoridade policial o fará, no local em que estiver o autor do fato – na rua, por exemplo –, sendo vedada a detenção do autor do fato.

Ao vedar a detenção do agente visa a sua liberação no menor tempo possível, após tomadas as providências necessárias para a lavratura do termo circunstanciado de ocorrência, o que não impede a captura e condução do usuário de drogas ao fórum ou à Delegacia de Polícia, se necessário.

De qualquer forma, a solução mais razoável, prudente e que atende aos objetivos da lei consiste na lavratura do termo circunstanciado de ocorrência pela instituição policial que abordar o usuário na rua, o que é extremamente comum de ocorrer em razão das abordagens realizadas pela Polícia Militar.11

Isso porque o contato do usuário com a polícia será inevitável e natural, pois cabe ao policial abordá-lo e conduzi-lo ao fórum ou à Delegacia de Polícia, e ao lavrar o termo circunstanciado de ocorrência na rua, imediatamente, o policial somente terá realizada a primeira fase da prisão – a captura –, tomado as providências para lavrar o termo circunstanciado de ocorrência de imediato, e liberado o agente no menor tempo possível, atendido ao disposto no art. 48, § 3º, da Lei 11.343/06 que exige a lavratura do termo circunstanciado de imediato pela autoridade policial, no local em que se encontrar, e veda a detenção do agente.

Tal providência não desobedece ao disposto no art. 48, § 2º, da Lei de Drogas, que exige o encaminhamento do usuário ao juízo competente, pois como dito por Ada Pellerini Grinover e citado pela Ministra Cármen Lúcia, “seria conveniente que a lei local previsse a presença de uma autoridade policial junto aos Juizados, para que o termo circunstanciado fosse ali lavrado.” Ao contrário, ao lavrar o TCO na rua, no local da abordagem, dará um maior cumprimento à finalidade da lei, já que sequer será necessário conduzir o usuário para qualquer local, liberando-o imediatamente.

Portanto, a condução à presença do juízo competente (leia-se: fórum) pode ser substituída por um convênio ou outro instrumento jurídico adequado que permita a lavratura do TCO pelos policiais na rua, sem necessidade de encaminhamento do usuário ao fórum. Nota-se que o Supremo Tribunal Federal citou Ada Pellerini Grinover que menciona a possibilidade do policial trabalhar no fórum e lavrar os termos circunstanciados decorrentes do art. 28 da Lei de Drogas e o fato do policial lavrar o termo circunstanciado de ocorrência na rua somente reforça o cumprimento da lei e atende à sua finalidade, conforme explanado.

Atualmente, no Brasil, em pelo menos 12 (doze) estados, a Polícia Militar lavra o termo circunstanciado de ocorrência na rua.12

Destaca-se que em fóruns maiores não é incomum que haja policiais militares responsáveis pela segurança, sendo possível verificar junto ao Comando da Instituição, caso haja a condução de usuários para o fórum, a possibilidade de autorizar a lavratura do termo circunstanciado de ocorrência por estes policiais militares.

Na prática policial, em muitas circunstâncias, não será possível lavrar o termo circunstanciado de ocorrência na rua, no local em que o agente foi flagrado com drogas para uso pessoal, razão pela qual deverá ser conduzido para um local na rua seguro para a lavratura ou para o fórum ou na impossibilidade para a Delegacia de Polícia.

Tome como exemplo o usuário de droga que é abordado pela polícia em um “ponto de tráfico” logo após comprar a droga. O local é perigoso e inviabiliza a lavratura do TCO naquele lugar, momento e circunstâncias, o que justifica a condução do usuário para um local seguro nas proximidades, sendo possível que se desloque com o indivíduo para o fórum para utilizar a estrutura física e lavrar o termo circunstanciado e, na impossibilidade, para a Delegacia de Polícia.

É comum que as instituições policiais militares proíbam a condução de usuários de droga para quartéis para a lavratura do termo circunstanciado de ocorrência, devendo este ser feito na rua. Ocorre que na impossibilidade fundamentada de se lavrar o TCO na rua, não há impedimento legal para que este seja lavrado em um quartel, pois se a PM possuir atribuição para tal, desnecessário se torna conduzir o usuário para a Delegacia de Polícia, até porque no quartel não haverá contatos com criminosos e outros presos, pois estes são conduzidos para a Delegacia de Polícia, o que atende à finalidade da lei de deixar de levar o usuário de drogas para um ambiente policial, evitando, assim, o contato com presos e criminosos.

Imaginar que levar o usuário ao quartel, quando necessário para lavrar o TCO, significa que o indivíduo sofrerá maus-tratos ou tortura, por isso deve ser evitado, é um raciocínio equivocado, pois parte da presunção de que a atuação policial é violenta e que conduzir uma pessoa ao quartel fomenta a prática de violência, o que, se for a intenção dos policiais, ocorrerá na rua ou na Delegacia de Polícia.

De qualquer forma, por uma política institucional das forças militares estaduais, não é comum conduzir usuários de droga ou qualquer conduzido ou preso para o quartel.

Pode ocorrer também dos policiais não possuírem na rua os instrumentos e materiais necessários para a lavratura do termo circunstanciado, o que exigirá o deslocamento com o usuário de drogas para o fórum ou para a Delegacia de Polícia.

Precisas são as lições deCléber Masson e Vinícius Marçal13.

Conquanto esta seja a sistemática idealizada pela Lei de Drogas, não há como negar que dificuldades práticas, por vezes, impedirão o registro do termo circunstanciado e a requisição de exames pela secretaria do juízo, assim como inviabilizarão a lavratura da ocorrência no local em que o autor do fato for encontrado, dada a notória escassez patrimonial (certamente faltarão papéis, impressoras móveis, computadores etc.) das polícias. Igualmente, dificuldades físicas também se apresentarão. Com efeito,

“imagine um agente que é surpreendido portando determinada droga para consumo pessoal em local sabidamente dominado pelo tráfico, em horário próximo ao chamado ‘toque de recolher’ das favelas. Apesar de a autoridade policial ter o dever de enfrentar o perigo, não se pode exigir dela condutas desarrazoadas e, pior, que possam colocar em risco a vida e a segurança do agente e de eventuais testemunhas. Ademais, como dito acima, apesar da omissão da lei, será necessário realizar o chamado exame preliminar, com o intuito de se atestar, provisoriamente, que se trata de droga. Dificilmente a Polícia possuirá narcotestes à disposição para realizar o referido exame no local.”14

Demais disso, nem sempre será tarefa fácil determinar se a conduta configura crime de consumo pessoal ou tráfico ilícito de drogas, o que demandará o aprofundamento das diligências e a coleta de mais elementos. Por tudo isso, não nos parece haver problema algum na captura e subsequente condução (coercitiva, se for o caso) do sujeito diretamente ao estabelecimento policial para fins exclusivos de lavratura do termo circunstanciado, o que pode ser levado a cabo até por qualquer do povo (CPP, art. 301). O que não se admitirá, ressalte-se uma vez mais, é a lavratura de auto de prisão em flagrante e a manutenção do autor do fato no cárcere (detenção). (destaquei)

No mesmo sentido são as lições de Renato Brasileiro de Lima15.

No entanto, a despeito da redação expressa do art. 48, § 3°, da Lei de Drogas, é fato notório que nem sempre será possível a lavratura do termo circunstanciado no local em que o usuário for capturado, seja por conta da ausência de condições materiais (v.g., falta de narcotestes para realização do laudo preliminar), periculosidade de se levar adiante a documentação do crime do art. 28 em locais e horários inadequados (v.g., captura de usuário em comunidade dominada pelo tráfico de drogas após o denominado “toque de recolher “), seja pela dificuldade de se estabelecer com exatidão se se trata de mero usuário ou traficante de drogas. Nessas situações, por mais que a dicção expressa da Lei não tenha deixado explícita essa possibilidade, parece-nos ser plenamente possível a condução coercitiva do usuário de drogas à Delegacia de Polícia para fins de lavratura do termo circunstanciado, desde que sejam adotadas precauções para que este agente não seja colocado em contato com outros criminosos.

O próprio art. 48, § 4°, da Lei n. 11.343/06, confirma a possibilidade de encaminhamento do usuário de Drogas à Delegacia de Polícia ao dispor que, uma vez concluídos os procedimentos de que trata o § 2° deste artigo, o agente será submetido a exame de corpo de delito, se o requerer ou se a autoridade de polícia judiciária entender conveniente, e em seguida liberado. Referindo-se expressamente à autoridade de polícia judiciária leia-se, ao Delegado de Polícia Civil ou Federal, o dispositivo deixa entrever que haverá situações em que o usuário poderá ser encaminhado à Delegacia de Polícia, oportunidade em que a autoridade policial poderá determinar a realização de exame de corpo de delito, com o objetivo de comprovar a materialidade de eventuais maus-tratos ou lesões corporais perpetradas contra o agente.

Um ponto importante é que o juiz não possui a expertise que um policial possui para detectar, no momento da captura e abordagem, se determinada quantidade de droga, nas circunstâncias em que foi apreendida, caracteriza tráfico ou uso de drogas. Ocorre que quem realizará essa filtragem inicial, se o caso é de uso ou tráfico de drogas, é o policial que realizou a abordagem na rua, geralmente, o policial militar. Caso entenda que seja porte de drogas para uso pessoal, poderá lavrar o termo circunstanciado de ocorrência, do contrário, deverá conduzir o agente para a Delegacia de Polícia em razão da prática de tráfico de drogas.

O art. 48, § 2º, da Lei 11.343/06 menciona expressamente que o autor do fato (art. 28) será encaminhado imediatamente ao juízo competente.

Juízo competente não é, necessariamente, sinônimo de juiz competente. O termo é utilizado de forma mais ampla para abranger o órgão judiciário como um todo, o que abrange a Secretaria do Juízo e as pessoas que trabalham no fórum, como os policiais militares cedidos.

No texto “Juízo é sinônimo de juiz?” publicado no Migalhas, a distinção entre juízo e juiz competente fica nítida.

2) Num primeiro aspecto, importa observar que juízo, como já sintetizava Chiovenda, é o próprio tribunal (MARQUES, 2000, p. 368), quer considerado como órgão julgador, quer tido como estrutura de decisão.

3) Nesse sentido, o vocábulo é empregado em diversos dispositivos do Código de Processo Civil de 1973: a) “Art. 12. Serão representados em juízo, ativa e passivamente…”; b) “Art. 14. São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo: I – expor os fatos em juízo conforme a verdade…”; c) “Art. 33, parágrafo único. O juiz poderá determinar que a parte responsável pelo pagamento dos honorários do perito deposite em juízo o valor correspondente a essa remuneração”.

4) Já o juiz é a pessoa física que detém a atribuição estatal de dizer o direito e, nesse sentido, o vocábulo tem por sinônimos magistrado e julgador.

5) Com essas premissas, já se vê que juízo não pode ser tido, objetivamente, como sinônimo de magistrado, de juiz ou de julgador.

6) Vale a pena observar, entretanto, que, às vezes, se emprega uma figura de linguagem conhecida como metonímia, que consiste em usar uma palavra em lugar de outra, desde que ambas tenham entre si algum tipo de relação e de proximidade. Veja-se, assim, o seguinte exemplo: “Esse juízo decidiu anteriormente…”. Ora, o que se quer dizer é que o juiz decidiu anteriormente, e não o tribunal. Afinal, quem decide é a pessoa, e não a estrutura. E esse uso de uma palavra em lugar de outra é de integral correção.

7) Desse modo, assim pode ser sintetizada a resposta à leitora: a) por um lado, o vocábulo juízo não pode ser tido como sinônimo objetivo de juiz, de magistrado ou de julgador; b) por outro lado, é possível empregar juízo em lugar de juiz, quando se faz uso da figura de linguagem denominada metonímia, pela qual uma palavra toma o lugar de outra, com base em alguma relação de proximidade entre ambas: de causa e efeito, de parte e todo, de autor e obra, etc.

Dessa forma, quando o art. 48, § 2º, da Lei de Drogas diz que “Tratando-se da conduta prevista no art. 28 desta Lei, não se imporá prisão em flagrante, devendo o autor do fato ser imediatamente encaminhado ao juízo competente (…).”, significa que a Secretaria do Juízo ou outra seção designada pelo juiz competente pode proceder à lavratura do termo circunstanciado de ocorrência. Pensar de forma diversa contraria, inclusive, a finalidade da lei, de liberação do usuário de droga o quanto antes após a sua captura, pois é comum que o juiz possua várias audiências, razão pela qual o usuário terá que aguardar por muitas horas até que seja recebido pelo juiz.

O § 3º do art. 48 da Lei de Drogas explicita que “Se ausente a autoridade judicial, as providências previstas no § 2º deste artigo serão tomadas de imediato pela autoridade policial, no local em que se encontrar, vedada a detenção do agente.”, o que demonstra que a condução ao juízo competente visa a lavratura do termo circunstanciado de ocorrência ou realização da audiência preliminar do Juizado Especial Criminal pelo juiz competente.

Ocorre que a lavratura do termo circunstanciado de ocorrência em razão da prática do art. 28 da Lei n. 11.343/06 não possui nenhum caráter decisório. Trata-se somente de um registro de fatos, motivo pelo qual a lavratura pode ser interpretada como um ato ordinatório, que é aquele destituído de qualquer carga decisória.

O art. 93, XIV, da Constituição Federal preceitua que:

Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:

XIV os servidores receberão delegação para a prática de atos de administração e atos de mero expediente sem caráter decisório; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

O art. 203, § 4º, do Código de Processo Civil prescreve que:

Art. 203. Os pronunciamentos do juiz consistirão em sentenças, decisões interlocutórias e despachos.

§ 4º Os atos meramente ordinatórios, como a juntada e a vista obrigatória, independem de despacho, devendo ser praticados de ofício pelo servidor e revistos pelo juiz quando necessário.


Nota-se que os atos ordinatórios são plenamente delegáveis, já que não se delega o poder jurisdicional, e sim a prática de um ato sem conteúdo decisório, como é o caso da lavratura do termo circunstanciado de ocorrência decorrente do art. 28 da Lei n. 11.343/06.

(…) 3. Não há falar em nulidade da delegação aos serventuários de justiça da prática de atos ordinatórios ou de mero expediente, no caso em tela, a intimação das partes para complementação do preparo recursal. (…)”. (STJ, AgRg no AREsp 480.543/RJ, 4ª T., j. 06.09.2016, rel. Min. Marco Buzzi, DJe 14.09.2016).

Dessa forma, é perfeitamente possível delegar mediante a edição de ato normativo do juiz competente a atribuição de lavrar termo circunstanciado de ocorrência a um serventuário, pois a lavratura do TCO limita-se a registrar fatos sem conteúdo decisório, cujo desfecho já decorre da lei, que é a liberdade do usuário, além de se tratar de um ato do juiz relacionado à administração do juízo, bem como o fato do art. 48, § 2º, da Lei de Drogas dizer expressamente que o autor da conduta prevista no art. 28 da Lei n. 11.343/06 deve ser encaminhado ao juízo competente para a adoção das providências legais.

A ausência da autoridade judicial que justifica a impossibilidade da lavratura do termo circunstanciado em razão da prática do art. 28 da Lei de Drogas ocorrerá quando o juiz concentrar em si a lavratura do ato, sem delegar essa atribuição a um serventuário.

Não há que se falar em realização de audiência preliminar pelo juiz do Juizado Especial Criminal, na medida em que esta audiência tem por finalidade a proposta de transação penal (art. 72 da Lei n. 9.099/95), podendo haver propostas pelo Ministério Público de aplicação imediata da pena prevista no art. 28 da Lei n. 11.343/06 (art. 48, § 5º da Lei de Drogas), o que não é possível ocorrer após a captura do indivíduo e condução ao fórum, pois é necessário haver o laudo de constatação da substância entorpecente, na medida em que não é possível propor transação penal ou tomar qualquer decisão em desfavor do autor do art. 28 da Lei de Drogas sem que haja prova da materialidade (como deve ser em qualquer crime).

A Edição n. 131 da Jurisprudência em Teses do Superior Tribunal de Justiça traz enunciados referentes à Lei de Drogas, e o enunciado n. 12, dispõe que: “A comprovação da materialidade do delito de posse de drogas para uso próprio (art. 28 da Lei n. 11.343/2006) exige a elaboração de laudo de constatação da substância entorpecente que evidencie a natureza e a quantidade da substância apreendida.”

A jurisprudência é pacífica nesse sentido, portanto, para que haja responsabilização do agente que possui drogas para uso próprio, a comprovação da droga deve ocorrer mediante a elaboração de laudo de constatação da substância entorpecente.

O encaminhamento da droga apreendida para a perícia poderá ocorrer pelo próprio Poder Judiciário ou pela instituição policial que tiver efetuado a captura do usuário de drogas, a depender do que for acertado entre as instituições, o que deve ocorrer mediante convênio ou termo de cooperação, dentro da realidade de cada local, uma vez que há fóruns e quartéis ou delegacias que não possuem estrutura física adequada e compatível para a guarda de drogas apreendidas em decorrência do art. 28 da Lei n. 11.343/06.

É possível extrair do art. 48, § 2º, da Lei de Drogas que o responsável por lavrar o termo circunstanciado deve providenciar as requisições dos exames e perícias necessários, o que não impede, contudo, mediante aceitação voluntária e colaborativa, que instituição diversa da que lavrar o TCO encaminhe a droga, pois não se trata de procedimento investigativo, o ato de encaminhar a droga para a perícia é um ato que decorre diretamente da lei, cuja providência para a sua realização parte da autoridade que lavrar o termo circunstanciado, sendo a entrega da droga ao instituto de perícias um ato meramente mecânico. Não há, portanto, delegação de atividade investigativa, pois investigação TCO não é, nem delegação de atribuição do juízo competente a terceiro, pois a entrega física da droga não passa de um ato material, sem qualquer conteúdo decisório.

Art. 48 (…)

§ 2º Tratando-se da conduta prevista no art. 28 desta Lei, não se imporá prisão em flagrante, devendo o autor do fato ser imediatamente encaminhado ao juízo competente ou, na falta deste, assumir o compromisso de a ele comparecer, lavrando-se termo circunstanciado e providenciando-se as requisições dos exames e perícias necessários.

Por fim, o § 4º do art. 48 da Lei de Drogas ao mencionar que a autoridade de polícia judiciária (Delegado de Polícia), se entender conveniente, submeterá o agente a exame de corpo delito, não significa que dizer que restringiu a lavratura do termo circunstanciado de ocorrência, quando este for lavrado por autoridade policial, em razão da prática do art. 28 da Lei n. 11.343/06, somente ao Delegado de Polícia, pois o termo circunstanciado de ocorrência, como decidido pelo STF, não é procedimento investigativo e não é atividade exclusiva da polícia judiciária.

A leitura do § 4º do art. 48 da Lei de Drogas permite afirmar que quando for necessário exame de corpo de delito, este compete ao Delegado de Polícia requisitá-lo, tanto é que no § 3º do art. 48 o legislador utilizou o termo “autoridade policial” e não “autoridade de polícia judiciária” e é a úncia menção à “autoridade policial” contida na Lei n. 11.343/06. Em todas as demais menções a expressão utilizada é “autoridade de polícia judiciária”.

Diante de todo o exposto, é possível extrair as seguintes conclusões:

a) A Polícia Militar pode continuar lavrando termo circunstanciado de ocorrência na rua, nos estados em que já lavra, mesmo diante da decisão do STF na ADI 3807, sem necessidade de encaminhar o usuário de droga (art. 28 da Lei n. 11.343/06) ao fórum, ao quartel ou à Delegacia de Polícia;

b) Caso a abordagem ao usuário seja realizada pela Polícia Civil, deve primar pela lavratura do termo circunstanciado de ocorrência na rua, no local da abordagem, e na impossibilidade, conduzir o usuário de droga (art. 28 da Lei n. 11.343/06) ao fórum, se durante o expediente, e para a Delegacia de Polícia caso o fórum esteja fechado;

c) Apresentado o usuário de droga ao fórum, seja pela Polícia Militar ou pela Polícia Civil, se houver ato normativo do juiz competente, a Secretaria do Juizado Especial Criminal deverá proceder à lavratura do termo circunstanciado de ocorrência ou tal ato poderá ser lavrado por policial militar, desde que haja convênio ou termo de cooperação entre o Poder Judiciário e a Polícia Militar, uma vez que a finalidade precípua do policial militar que permanece no fórum é a segurança;

d) Fora do horário de expediente, isto é, nos finais de semana, em feriados, no horário noturno ou em qualquer situação que o fórum esteja fechado, não cabe ao Poder Judiciário lavrar o termo circunstanciado de ocorrência (art. 1º, III e VIII, da Resolução n. 71/09 do Conselho Nacional de Justiça);

e) Nos locais em que não houver fórum não há que se falar em condução do usuário de droga ao Poder Judiciário, devendo este ser encaminhado diretamente à Delegacia de Polícia, caso não seja possível a lavratura do termo circunstanciado de ocorrência na rua;

f) O encaminhamento da droga apreendida para a perícia poderá ocorrer pelo próprio Poder Judiciário ou pela instituição policial que tiver efetuado a captura do usuário de drogas, a depender do que for acertado entre as instituições, o que deve ocorrer mediante convênio ou termo de cooperação, dentro da realidade de cada local, uma vez que há fóruns e quartéis ou delegacias que não possuem estrutura física adequada e compatível para a guarda de drogas apreendidas em decorrência do art. 28 da Lei n. 11.343/06;

g) O juiz não deve realizar audiência preliminar ou aplicar qualquer medida em desfavor do usuário de droga sem que haja o laudo de constatação da substância entorpecente.

NOTAS

1NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. Volume Único. 10ª Edição. Editora JusPODIVM: Salvador. 2018. p. 1.045/1.046.

2 DIDIER JUNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de direito processual civil – v. 3: meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. 13. ed. Salvador: JusPODIVM, 2016. p. 549/550.

3Disponível em: <https://www.dizerodireito.com.br/search?q=O+STF+n%C3%A3o+admite+a+teoria+da+transcend%C3%AAncia+dos+motivos+determinantes>. Acesso em: 29/06/2020.

4STF. 1ª Turma. Rcl 22470 AgR, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 24/11/2017.

5. LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 24ª Edição. Saraiva: São Paulo, 2020.

6Disponível em: <https://adepoldobrasil.org.br/recomendacoes-de-medidas-a-serem-adotadas-nos-casos-de-posse-de-drogas-com-base-no-julgado-da-adi-3807/>. Acesso em: 20/07/2020.

7NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. Volume Único. 10ª Edição. Editora JusPODIVM: Salvador. 2018. p. 1.045/1.046.

8 Art. 48. O procedimento relativo aos processos por crimes definidos neste Título rege-se pelo disposto neste Capítulo, aplicando-se, subsidiariamente, as disposições do Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal.

§ 2º Tratando-se da conduta prevista no art. 28 desta Lei, não se imporá prisão em flagrante, devendo o autor do fato ser imediatamente encaminhado ao juízo competente ou, na falta deste, assumir o compromisso de a ele comparecer, lavrando-se termo circunstanciado e providenciando-se as requisições dos exames e perícias necessários.

§ 3º Se ausente a autoridade judicial, as providências previstas no § 2º deste artigo serão tomadas de imediato pela autoridade policial, no local em que se encontrar, vedada a detenção do agente.

9 Art. 69. A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários. Parágrafo único. Ao autor do fato que, após a lavratura do termo, for imediatamente encaminhado ao juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança. Em caso de violência doméstica, o juiz poderá determinar, como medida de cautela, seu afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima. (Redação dada pela Lei nº 10.455, de 13.5.2002)

10 MASSON, Cleber. MARÇAL, Vinícius. Lei de Drogas. Aspectos Penais e Processuais. Método: São Paulo. 2019.

11 Enunciado 34 do FONAJE: Atendidas as peculiaridades locais, o termo circunstanciado poderá ser lavrado pela Polícia Civil ou Militar.

12 Disponível em: <https://www.feneme.org.br/30-03-2020-plenario-do-stf-decide-que-tco-lavrado-pela-policia-militar-nao-e-inconstitucional/>. Acesso em: 20/07/2020.

13 MASSON, Cleber. MARÇAL, Vinícius. Lei de Drogas. Aspectos Penais e Processuais. Método: São Paulo. 2019.

14 MENDONÇA, Andrey Borges de; CARVALHO, Paulo Roberto Galvão de. Lei de drogas: Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006 – comentada artigo por artigo. 3. ed. São Paulo: Método, 2012. p. 253-254. Igualmente: “E o problema maior é este: terá, mesmo, a autoridade policial de realizar um termo circunstanciado em qualquer lugar, numa praia, numa praça, na estação de trem ou no terminal de ônibus, numa festa rave ou num estádio de futebol, isto para evitar a detenção do agente? Se assim for, o propósito do legislador não é outro senão o de tornar a cláusula procedimental absolutamente ineficaz, o que, convenhamos, não deve estar na gênese jurisfilosófica de nenhuma lei. Afinal, não se legisla para não funcionar. […] Em suma, entendemos que a autoridade policial deverá realizar o TC na delegacia de polícia, conduzindo o infrator para o efeito.” (GUIMARÃES, Isaac Sabbá. Nova Lei Antidrogas comentada: crimes e regime processual penal. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2007. p. 170)

15DE LIMA, Renato Brasileiro. Legislação Criminal Comentada. Volume Único. 8ª Edição. Editora JusPODIVM: Salvador. 2020.

Usar drogas não é crime!

SÍNTESE

Fundamentos

• Art. 5º, XXXIX, da CF
• Art. 1º do Código Penal
• Arts. 28 e 33 da Lei n. 11.343/06
• Art. 167 do Código de Processo Penal
• Art. 9º da Convenção Americana de Direitos Humanos
• STF – Recurso Extraordinário n. 635.659
• STF – Recurso Extraordinário n. 430.105-9

Síntese: o ato de usar ou consumir drogas, por si só, não é crime. Como regra, a comprovação de que a substância apreendida com o usuário é droga deve se dar mediante a realização de perícia. O exame de sangue ou de urina que constate que uma pessoa usou drogas não é suficiente para responsabilizá-la pelo art. 28 da Lei n. 11.343/06, pois comprova-se somente o uso de droga, mas não a prática de nenhum dos verbos núcleos do tipo. Isto é, não comprova que a pessoa adquiriu, guardou, teve em depósito, transportou ou trouxe consigo droga para consumo pessoal, salvo se restar demonstrado por outros meios de prova que o agente possuía a droga antes de usá-la, como a prova testemunhal e filmagens, aliada à confissão do agente. Contudo, é importante destacar que a doutrina majoritária entende não ser possível a responsabilização do agente que é surpreendido pela polícia logo após ter utilizado droga, pois o risco à saúde pública não existe mais.

A finalidade deste texto não é analisar o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do Recurso Extraordinário n. 635.659 que decidirá se o art. 28 da Lei n. 11.343/06 é constitucional, isto é, se as condutas previstas no crime de porte de drogas para consumo pessoal viola a Constituição Federal.

No Recurso Extraordinário n. 430.105-9 o Supremo Tribunal Federal decidiu que o art. 28 da Lei de Drogas continua sendo crime e que houve apenas despenalização, descarcerização, e não descriminalização.

O presente texto analisa se a conduta de usar ou consumir drogas, por si só, é considerada crime.

O art. 28 da Lei n. 11.343/06 dispõe o seguinte:

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I – advertência sobre os efeitos das drogas;

II – prestação de serviços à comunidade;

III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

Nota-se que o art. 28 da Lei n. 11.343/06 não utiliza o verbo usar ou consumir drogas, mas somente os verbos “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo“, o que impossibilita a abrangência do uso ou consumo de drogas, em face do princípio da taxatividade.

A taxatividade é uma das facetas do princípio da legalidade que dispõe não haver crime sem lei anterior que o defina (art. 5º, XXXIX, da CF e art. 1º do Código Penal).

A Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), incorporada ao Brasil mediante o Decreto n. 678/1992, possui status supralegal, e dispõe no art. 9º que ninguém pode ser condenado por ações ou omissões que não sejam previstas como delituosas no momento de sua prática.

Art. 9º Ninguém pode ser condenado por ações ou omissões que, no momento em que forem cometidas, não sejam delituosas, de acordo com o direito aplicável. Tampouco se pode impor pena mais grave que a aplicável no momento da perpetração do delito. Se depois da perpetração do delito a lei dispuser a imposição de pena mais leve, o delinqüente será por isso beneficiado.

A lei penal deve ser certa, expressa, clara, precisa quanto às condutas que são consideradas criminosas, de forma que não deixe dúvidas de que determinada conduta é criminosa, o que se denomina de princípio da taxatividade, isto é, a lei deve ser taxativa, o que é constatado diante dos verbos utilizados pelo tipo penal.

Não é possível aplicar a analogia, a interpretação analógica ou a interpretação extensiva para abranger os verbos “usar” ou consumir” como condutas definidoras do crime previsto no art. 28 da Lei de Drogas.

A analogia é uma técnica de integração do direito que visa suprir as lacunas existentes nas normas mediante a aplicação de normas para situações semelhantes, pois ao legislador não é possível editar leis que prevejam todas as hipóteses de ocorrência prática. Não existe norma para situação semelhante que permita a aplicação do verbo “usar” para o crime de porte de drogas para consumo pessoal. Além do mais, ainda que houvesse, no direito penal é vedada a analogia em prejuízo do réu (in malam partem), sendo possível somente a analogia em benefício do réu (in bonam partem).

A interpretação analógica no direito penal é possível, ainda que seja em prejuízo do réu, pois trata-se de uma cláusula genérica contida no texto da lei penal que permite uma ampliação da norma para inserir outros casos, além dos já mencionados pelo tipo penal, pois ao legislador não é possível imaginar todas as situações de possível ocorrência, razão pela qual permite ao intérprete que se realize essa adequação.

Um exemplo claro de interpretação analógica encontra-se no art. 121, § 2º, I, do Código Penal.

Art. 121. Matar alguém:

§ 2° Se o homicídio é cometido:

I – mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe;

Nota-se que a lei enumera hipóteses de motivos torpes (paga ou promessa de recompensa) e depois cita “ou por outro motivo torpe”, o que permite a interpretação analógica, ainda que em prejuízo do réu, pois ao se permitir a realização de interpretação analógica nesses casos autorizados pela lei, entender que é vedada a interpretação analógica em in malam partem,seria o mesmo que retirar da lei penal as previsões que autorizam outras hipóteses (“ou por outro motivo”; “ou qualquer outro”), pois essas outras hipóteses sempre serão prejudiciais ao réu, já que se trata de norma que amplia a possibilidade de enquadramento penal, o que não existe no crime previsto no art. 28 da Lei de Drogas.

A interpretação extensiva ocorre quando o intérprete concede um maior alcance à norma, por estar ter dito menos do que deveria. A doutrina diverge a respeito de sua aplicabilidade em prejuízo do réu.

A primeira corrente sustenta não ser possível, pois violaria a estrita legalidade e ampliaria as hipóteses de incriminação, o que não cabe ao intérprete e sim ao legislador. Aplica-se o mesmo raciocínio da analogia em prejuízo do réu.

A segunda corrente, com a qual concordamos, sustenta ser possível, pois não inova, mas somente interpreta e busca a finalidade do conceito legal empregado, razão pela qual não há óbices em se realizar uma interpretação extensiva em prejuízo do réu. Não se busca, com a interpretação extensiva, suprir a lacuna da lei ou utilizar um método de integração da norma, como ocorre com a analogia, mas sim buscar sentido à lei.

Cite-se como exemplo de interpretação extensiva em prejuízo do réu o conceito de “casa” previsto no art. 150, § 4º, do Código Penal, pois este é interpretado extensivamente, como forma de abranger diversos tipos de casa (casa sobre rodas, barracos debaixo da ponte, parte interna de restaurantes e bares, casas de praia etc.), portanto, se o agente invadir uma casa em sentido amplo, decorrente de interpretação extensiva, praticará o crime de violação de domicílio.

Em se tratando do crime de porte de drogas para consumo pessoal não é possível aplicar a interpretação extensiva, pois supriria a lacuna da lei e criaria um crime. Não se trata de mera interpretação, mas de uma autêntica criação de crime mediante interpretação, o que fere o princípio da legalidade na faceta da taxatividade e, portanto, deve ser rechaçado.

AnalogiaForma de integração da lei; Em razão da ausência de previsão em norma para um caso concreto, o intérprete utiliza norma prevista para casos semelhantes. Não se admite em prejuízo do réu Admite-se em benefício do réu.
Interpretação analógicaTrata-se de uma cláusula genérica contida no texto da lei penal que permite uma ampliação da norma para inserir outros casos; Admite-se em prejuízo e em benefício do réu.
Interpretação extensivaOcorre quando o intérprete concede um maior alcance à norma, por estar ter dito menos do que deveria; Há divergência se admite em prejuízo do réu. Sustentamos que sim. Admite-se em benefício do réu.

A intenção do legislador ao prever o crime de porte de drogas para consumo pessoal foi dificultar a difusão de drogas, pois os usuários ao comprarem drogas fomentam o tráfico. A lei não combate o vício (saúde individual), mas sim o risco à saúde pública, que é criado ao se adquirir, guardar, ter em depósito, levar consigo ou transportar droga para consumo pessoal.

O relatório do projeto de lei aprovado que se tornou a atual Lei n. 11.343/06 e foi publicado no Diário da Câmara dos Deputados em 13 de fevereiro de 2004 afirma que:1

Ressalvamos que não estamos, de forma alguma, descriminalizando a conduta do usuário – o Brasil é, inclusive, signatário de convenções – internacionais que proíbem a eliminação desse delito. O que fazemos é apenas modificar os tipos de penas a serem aplicadas ao usuário, excluindo a privação da liberdade, como pena principal.

A Lei n. 11.343/06 em diversas passagens – ao todo 46 vezes – utiliza o termo “usuário”, como o art. 23-A que aborda o tratamento do usuário ou dependente de drogas, o que demonstra a preocupação do legislador em tratar o usuário como política de saúde pública, uma vez que sua conduta é reprovável por alimentar o tráfico de drogas.

Renato Brasileiro de Lima sustenta que “fosse o uso da droga considerado crime, não haveria necessidade de tipificação autônoma da conduta daquele que auxilia, instiga ou determina alguém a usar a droga (art. 33, § 2°), pois a norma de extensão do art. 29 do Código Penal seria suficiente para abranger o concurso de agentes para esse suposto “‘uso de droga'”2, o que não se pode concordar, na medida em que o referido crime consiste em induzir, instigar ou auxiliar ao uso indevido de droga e não em usar droga conjuntamente ou compartilhar o uso de droga, pois a partir do momento que terceiro utiliza droga com outro haverá o crime previsto no art. 33, § 3º, da Lei n. 11.343/06, caso um dos usuários tenha oferecido ao outro de forma eventual, sem objetivo de lucro e seja pessoa de seu convívio, ou então será o crime de tráfico de drogas previsto no art. 33, caso ausente qualquer uma das condicionantes mencionadas (oferecimento de droga de forma eventual, sem objetivo de lucro e pessoa do relacionamento).

A revogada Lei n. 6.368/76, da mesma forma que a Lei n. 11.343/06 não previa a conduta de usar drogas como criminosa.

Lei n. 11.343/06 (Atual Lei de Drogas)Lei n. 6.368/76 (Revogada Lei de Drogas)
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I – advertência sobre os efeitos das drogas; II – prestação de serviços à comunidade; III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.Art. 16. Adquirir, guardar ou trazer consigo, para o uso próprio, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena – Detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e pagamento de (vinte) a 50 (cinqüenta) dias-multa.


Nota-se que foram acrescentados ao crime de porte de drogas para uso próprio as condutas de ter em depósito e transportar.

Rogério Greco3 ensina que:

Foram acrescentados à nova figura típica os núcleos ter em depósito e transportar. Não foi inserido o núcleo usar, motivo de discussões anteriores. Havia posição no sentido de que a conduta de usar era atípica, pois não se amoldava aos núcleos adquirir, guardar e trazer consigo, previstos no revogado art. 16 da Lei n. 6.368/76. No entanto, a posição contrária dizia que quem usa, por questões óbvias, traz consigo. O exemplo que era motivo de discussão, principalmente, acadêmica, era aquele em que o cigarro de maconha era colocado, por uma terceira pessoa, na boca do sujeito, para que pudesse tragá-lo, ou, a hipótese mais acadêmica ainda, da situação daquele que tragava o mencionado cigarro, que se encontrava acondicionado sobre um objeto, sem que, para tanto, o agente tivesse que segurá-lo. Como não foi inserido o núcleo usar, a discussão ainda persiste.

Renato Brasileiro de Lima leciona que:4

Dentre os cinco verbos nucleares do art. 28, caput, da Lei nº 11.343/06, não consta a conduta de mero uso da droga. Aliás, não por outro motivo, grande parte da doutrina prefere se referir ao art. 28 com o nomen iuris de porte de drogas para consumo pessoal, e não simplesmente uso de drogas.

Pelo menos em regra, se o indivíduo é flagrado usando substância entorpecente, deverá responder pelo crime de porte de drogas para consumo pessoal, não por conta do “uso da droga”, que é uma conduta atípica, mas sim porque é muito provável que, antes do uso, já tenha praticado uma das condutas incriminadas pelo art. 28, como por exemplo, o adquirir ou trazer consigo. Nesse caso, a fim de se comprovar a materialidade delitiva por meio do exame toxicológico, é imprescindível que parte da substância entorpecente seja apreendida .

No entanto, o uso de drogas nem sempre será precedido das condutas de adquirir ou trazer consigo. Com efeito, é perfeitamente possível que determinado indivíduo, sem ter consciência de que uma pessoa de seu relacionamento havia adquirido determinada substância entorpecente, trazendo-a consigo, resolva simplesmente anuir ao uso da droga. Nesse caso, como o uso da droga não consta do art. 28 como uma das condutas típicas, o ideal é concluir pela atipicidade do fato, até mesmo porque o perigo à saúde pública consubstanciado pelo fato de o agente trazer a droga consigo teria desaparecido com o consumo da substância entorpecente. De mais a mais, fosse o uso da droga considerado crime, não haveria necessidade de tipificação autônoma da conduta daquele que auxilia, instiga ou determina alguém a usar a droga (art. 33, § 2°), pois a norma de extensão do art. 29 do Código Penal seria suficiente para abranger o concurso de agentes para esse suposto “uso de droga”.5

Na vigência da antiga Lei de Drogas, cujo art. 16 também não incriminava o uso de drogas, a matéria foi apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, in verbis: “( … ) É mais que razoável o entendimento dos que entendem não realizado o tipo do art. 16 da Lei de entorpecentes (L. 6.368/76) na conduta de quem, recebendo de terceiro a droga, para uso próprio, incontinenti, a consome: a incriminação do porte de tóxico para uso próprio só se pode explicar – segundo a doutrina subjacente à lei – como delito contra a saúde pública, que se insere entre os crimes contra a incolumidade pública, que só se configuram em fatos que “acarretam situação de perigo a indeterminado ou não individuado grupo de pessoas” (Hungria) . De qualquer sorte, conforme jurisprudência sedimentada, o exame toxicológico positivo da substância de porte vedado é elemento essencial à validade da condenação pelo crime cogitado, o que pressupõe sua apreensão na posse do agente e não de terceiro: impossível, assim, imputar a alguém a posse anterior do único cigarro de maconha que teria fumado em ocasião anterior, se só se pode apreender e submeter à perícia resíduos daquela encontrados com o outro acusado, em contexto diverso”.6

O uso de drogas não precede, necessariamente, de algum dos núcleos do tipo previstos no art. 28 da Lei n. 11.343/06 (adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo).

É perfeitamente possível que uma pessoa use, consuma droga sem ter adquirido, sem guardá-la, sem tê-la em depósito, sem transportá-la e sem levá-la consigo. Tome como exemplo uma festa em que o organizador coloque cocaína por cima da mesa para que os presentes que tiverem interesse se aproximem da mesa e comecem a aspirar cocaína com a utilização de um canudo de papel. Tal conduta, por si só, não configura a prática de crime para os usuários, pois somente consumiram, usaram a droga, e não existe os verbos usar e consumir no art. 28 da Lei n. 11.343/06.7

O mesmo ocorre quando uma pessoa que esteja fumando maconha ofereça e coloque o cigarro de maconha na boca de outra para que este use droga, sem que este obtenha a propriedade do cigarro de maconha, somente o “empréstimo de uso” (algumas tragadas). Tal conduta também será atípica para o usuário de droga.

Em ambos os casos o agente que forneceu a droga responderá pelo crime de tráfico de drogas (art. 33 da Lei n. 11.343/06), podendo responder pelo art. 33, § 3º, da Lei de Drogas, caso tenha oferecido droga, eventualmente, e sem objetivo de lucro, a pessoa de seu relacionamento, para juntos a consumirem:

Não será a hipótese de induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de droga (art. 33, § 3º, da Lei n. 11.343/06) pelo fato deste crime pressupor uma participação acessória e não o fornecimento diretamente da droga. Induzir significa fazer nascer a ideia de usar droga. Instigar consiste em incentivar a pessoa a usar drogas, sendo que esta já pensava em usar. Auxiliar, por sua vez, consiste em prestar um auxílio material, como emprestar o carro para que a pessoa vá buscar a droga ou emprestar dinheiro para que compre a droga.

Caso a pessoa aceite o cigarro de maconha e já comece a usá-lo, segurando-o com as mãos, terá adquirido o cigarro, ainda que não pague nada por isso e tenha recebido o cigarro de maconha “de graça”. Adquirir significa obter a propriedade, seja mediante pagamento ou gratuitamente. Adquirir é vir a ter, vir a possuir, independentemente, da forma como tenha obtido, seja ao pegar ou ao receber o cigarro de maconha. Portanto, ao aceitar segurar o cigarro para usá-lo terá adquirido, razão pela qual pratica o crime previsto no art. 28 da Lei de Drogas.

E caso o indivíduo não segure o cigarro com as mãos? Poderá ou não haver o crime previsto no art. 28 da Lei de Drogas. Na hipótese em que ficar demonstrado que o usuário adquiriu a droga por intermédio de terceiro e solicitou que esta pessoa colocasse a droga (cigarro de maconha) em sua boca, por ter adquirido a droga utilizando-se de outra pessoa, praticará o crime em tela em razão do verbo adquirir, sendo o terceiro responsabilizado por tráfico de drogas (art. 33 da Lei n. 11.343/06). O mesmo raciocínio se aplica à pessoa que esteja impossibilitada de movimentar os braços, por ter sofrido um acidente, por exemplo, e não consiga fumar maconha, sendo atendida por terceiro.

É possível que uma pessoa que não use drogas seja responsabilizada pelo crime previsto no art. 28 da Lei n. 11.343/06, pois trata-se de um tipo penal incongruente, assimétrico, isto é, os elementos objetivos e subjetivos do tipo penal não coincidem, pois o crime de porte de droga exige que a droga seja destinada para o consumo pessoal (especial fim de agir). Exige-se a presença do elemento subjetivo especial do tipo.

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

Quando o art. 28 menciona “para consumo pessoal” significa dizer que não basta o porte de drogas para a sua configuração, é necessário que este porte seja destinado ao consumo pessoal. Nota-se que além do dolo há a exigência de um fim especial (consumo pessoal), sem o qual o crime é diverso, o tráfico de drogas (art. 33 da Lei n. 11/343/06). Portanto, trata-se de um tipo pena incongruente, assimétrico, pois os elementos objetivos (os verbos núcleos do tipo) não coincidem com o elemento subjetivo (dolo acrescido do especial fim de agir). Diversa é a hipótese do tráfico de drogas, cujos elementos objetivos e subjetivos coincidem, pois não há nenhuma exigência no tipo penal além do porte de drogas. Trata-se, portanto, de tipo penal congruente ou simétrico.

Portanto, ao se dizer acima que é possível que uma pessoa que não consuma drogas seja responsabilizada pelo crime previsto no art. 28 da Lei de Drogas significa dizer que uma pessoa que ainda não possui coragem para usar drogas, pois sabe que faz mal para a saúde, mas tenha adquirido droga e a porte consigo pela rua, enquanto cria coragem para usá-la, ocasião em que é abordado pela polícia, responderá pelo crime de porte de drogas e não por tráfico, pois a finalidade do agente era utilizar a droga, mas ainda estava indeciso.

O agente que for flagrado com o cigarro de maconha sozinho, necessária e logicamente, trazia consigo a droga, razão pela qual deverá responder pelo crime de porte de drogas para consumo pessoal (art. 28 da Lei n. 11.343/06), o que não ocorre caso tenha sido flagrado com o cigarro de maconha na boca enquanto terceiro colocasse e tirasse o cigarro enquanto fumava (“empréstimo de uso”).

Outro exemplo pode ocorrer no local em que o traficante deixe pequenas amostras de cocaína sobre um murinho para que os usuários cheirem um pouco antes de adquirir a droga. Caso a polícia flagre os usuários cheirando a droga no murinho, antes de comprá-la, não haverá crime.

É importante mencionar julgado do Supremo Tribunal Federal que considerou não ser crime a conduta de quem recebe droga de terceiro para uso próprio e a consome imediatamente, pois não há que se falar em violação ao bem jurídico tutelado (saúde pública), que somente é ofendido se acarretar em situação de perigo a indeterminado ou não individualizado grupo de pessoas.8

É mais que razoável o entendimento dos que entendem não realizado o tipo do art. 16 da Lei de entorpecentes (L. 6.368/76) na conduta de quem, recebendo de terceiro a droga, para uso próprio, incontinenti, a consome: a incriminação do porte de tóxico para uso próprio só se pode explicar – segundo a doutrina subjacente à lei – como delito contra a saúde pública, que se insere entre os crimes contra a incolumidade pública, que só se configuram em fatos que “acarretam situação de perigo a indeterminado ou não individuado grupo de pessoas” (Hungria). (STF – HC: 79189 SP, Relator: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Data de Julgamento: 12/12/2000, Primeira Turma, Data de Publicação: DJ 09-03-2001)

Portanto, sob essa ótica, o exemplo acima citado, do indivíduo que recebe, adquire cigarro de maconha de terceiro e o fuma imediatamente, não é crime, o que não se pode concordar, já que praticou o verbo núcleo do tipo (adquirir) e, portanto, colaborou para a difusão da droga.

Na hipótese em que o agente for flagrado utilizando o restinho de maconha ou de cocaína, de forma que os policiais não consigam apreender a droga para a realização do exame pericial, o exame toxicológico positivo (sangue, urina) poderá servir para incriminá-lo? E se o agente sequer tiver sido flagrado usando droga, mas fizer o exame, posteriormente, por qualquer motivo, e for constatado que utilizou droga, poderá ser incriminado?

A Edição n. 131 da Jurisprudência em Teses traz enunciados referentes à Lei de Drogas o enunciado n. 12 dispõe que “A comprovação da materialidade do delito de posse de drogas para uso próprio (art. 28 da Lei n. 11.343/2006) exige a elaboração de laudo de constatação da substância entorpecente que evidencie a natureza e a quantidade da substância apreendida.”

A jurisprudência é pacífica nesse sentido, portanto, para que haja responsabilização do agente que possui drogas para uso próprio, a comprovação da droga deve ocorrer mediante a elaboração de laudo de constatação da substância entorpecente.

Excepcionalmente, caso a droga não seja apreendida, por ter sido destruída imediatamente pelo agente ao visualizar a polícia, que ao chegar ao local sentiu cheiro característico de maconha e o agente se dispôs a realizar, voluntariamente, exame de sangue e/ou de urina, em razão do nemo tenetur se detegere, sendo constatado que o agente utilizou droga, é possível a condenação pelo porte de droga para consumo pessoal, pois o Código de Processo Penal permite a utilização de outros meios de prova quando não for possível realizar o exame de corpo de delito (laudo de constatação da droga), em razão do desaparecimento dos vestígios.

Código de Processo Penal

Art. 167. Não sendo possível o exame de corpo de delito, por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta.


Em casos excepcionais a jurisprudência admite o reconhecimento da droga ilícita ainda que não haja apreensão, sobretudo se a droga houver desaparecido em decorrência de ação do agente com o fim de se beneficiar.

PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. MATERIALIDADE DELITIVA. DOSIMETRIA DA PENA. REGIME INICIAL. JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.

1. “A falta de laudo pericial não conduz, necessariamente, à inexistência de prova da materialidade de crime que deixa vestígios, a qual pode ser demonstrada, em casos excepcionais, por outros elementos probatórios constante dos autos da ação penal (CPP, art. 167)” (HC 130.265, Rel. Min. Teori Zavascki).

2. A natureza e a quantidade da droga apreendida justificam a fixação da pena-base em patamar acima do mínimo legal (HC s 122.299 e 126.055, Rel. Min. Dias Toffoli; HC 118.389, Rel. Min. Teori Zavascki).

3. A “imposição do regime de cumprimento mais severo do que a pena aplicada permitir exige motivação idônea” (Súmula 719/STF). Hipótese em que o regime inicial fechado foi fixado com apoio em dados empíricos idôneos, extraídos da prova judicialmente colhida. 4. Agravo regimental a que se nega provimento.

(STF – AgR HC: 181632 PR – PARANÁ 0086772-76.2020.1.00.0000, Relator: Min. ROBERTO BARROSO, Data de Julgamento: 29/05/2020, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-148 15-06-2020)

RECURSO ESPECIAL. TRÁFICO DE DROGAS. MATERIALIDADE. AUSÊNCIA DE APREENSÃO DE DROGAS. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA. MANUTENÇÃO. RECURSO IMPROVIDO.

1. A caracterização do crime de tráfico de drogas prescinde de apreensão de droga em poder de cada um dos acusados, podendo ser comprovada pela existência de estupefacientes com apenas parte deles.

2. A prova da materialidade também pode ser demonstrada por outros meios quando seja a apreensão impossibilitada por ação do criminoso – que não poderia de sua má-fé se beneficiar.

3. Deve ser mantida a rejeição da denúncia por ausência de lastro probatório mínimo, quando não houver a apreensão de substância entorpecente com nenhum dos acusados.

4. Recurso improvido.

(STJ – REsp: 1800660 MG 2019/0062176-6, Relator: Ministro NEFI CORDEIRO, Data de Julgamento: 11/02/2020, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 25/05/2020)9

HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DO RECURSO CABÍVEL. DESCABIMENTO. EXECUÇÃO PENAL. FALTA GRAVE. POSSE DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE NO ESTABELECIMENTO PRISIONAL. FALTA DE LAUDO TOXICOLÓGICO. IMPRESCINDIBILIDADE. CONFISSÃO INSUFICIENTE. AUSÊNCIA DE MATERIALIDADE. NULIDADE DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONFIGURADO. 1. Os Tribunais Superiores restringiram o uso do habeas corpus e não mais o admitem como substitutivo de recursos outros, nem sequer para as revisões criminais. 2. O laudo toxicológico é um exame pericial imprescindível para se aferir a materialidade delitiva, no que se refere às substâncias entorpecentes, para que seja demonstrada a sua toxicidade. 3. A falta do laudo toxicológico pode ser suprida com outros elementos que confirmem o fato, se e quando possível, para a comprovação da materialidade do delito, sendo insuficiente a confissão do acusado. 4. A ingestão de um grama de maconha, em tese, não inviabilizaria a realização do exame toxicológico, pois a substância seria naturalmente expelida pelo corpo humano, Assim, a ausência de materialidade evidencia o constrangimento ilegal. 5. Ordem concedida, de ofício, para cassar o acórdão vergastado e reconhecer a nulidade do procedimento administrativo disciplinar instaurado em desfavor do paciente, relativo à prática de falta grave. (STJ – HC: 273881 MG 2013/0231168-1, Relator: Ministro MOURA RIBEIRO, Data de Julgamento: 03/12/2013, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 06/12/2013)

De qualquer forma, deve-se destacar que o reconhecimento da droga depende de laudo pericial, sendo possível excepcioná-lo, na linha dos julgados acima citados, quando restar comprovada a impossibilidade de apreensão da droga por atuação do agente, como o exemplo do agente que a destrói com a chegada da polícia com o intuito de se esquivar da responsabilização criminal.

[…] TRÁFICO DE DROGAS. AUSÊNCIA DE APREENSÃO DE TÓXICOS COM O ACUSADO OU COM AS MENORES QUE COM ELE SE ENCONTRAVAM. INEXISTÊNCIA DE LAUDO QUE COMPROVE QUE A SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE SERIA APTA A CAUSAR DEPENDÊNCIA FÍSICA OU PSÍQUICA. IMPOSSIBILIDADE DE COMPROVAÇÃO DA MATERIALIDADE DO DELITO. COAÇÃO ILEGAL CONFIGURADA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. 1. Conquanto existam precedentes em que, na hipótese de inexistência de apreensão da droga, dispensam laudo para comprovar a materialidade do delito de tráfico de entorpecentes, a melhor compreensão é a que defende a indispensabilidade da perícia no crime em questão.2. A constatação da aptidão da substância entorpecente para produzir dependência, ou seja, para viciar alguém, só é possível mediante perícia, já que tal verificação depende de conhecimentos técnicos específicos. Doutrina. 3. O artigo 50, § 1º, da Lei 11.343/06 não admite a prisão em flagrante e o recebimento da denúncia sem que seja demonstrada, ao menos em juízo inicial, a materialidade da conduta por meio de laudo de constatação preliminar da substância entorpecente, que configura condição de procedibilidade para a apuração do ilícito de tráfico. Precedentes. 4. Na hipótese em exame, verifica-se que nenhuma droga foi encontrada em poder do acusado ou das menores que com ele se encontravam, e, por conseguinte, não foi efetivada qualquer perícia que ateste que ele teria fornecido às adolescentes substâncias entorpecentes, circunstância que impede que seja incriminado pelo ilícito tipificado no artigo 33 da Lei 11.343/2006, já que ausente a comprovação da materialidade delitiva. 5. Recurso parcialmente provido apenas para determinar o trancamento da ação penal no tocante ao crime de tráfico de drogas. (RHC 65.205/RN, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 12/04/2016, DJe 20/04/2016)


Destaca-se que para que o agente responda pelo crime previsto no art. 28 da Lei n. 11.343/06 deve ficar comprovada a prática de pelo menos um dos cinco verbos núcleos do tipo previsto no referido artigo (adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo), o que não é comprovado com a simples constatação mediante exame de sangue ou de urina que detecte o uso de droga ilícita, já que o agente pode ter usado a droga sem ter adquirido, guardado, tido em depósito, transportado ou levado consigo, conforme demonstrado. Em que pese na maioria absoluta das vezes o agente que usa droga, realmente, tê-la consigo, não é possível afirmar em uma sentença condenatória que o agente, por ter usado droga, incidiu em qualquer um dos cinco verbos núcleos do tipo, na medida em que existe a possibilidade fática de não ter incidido e, ainda que mínima, é suficiente para a absolvição, pois qualquer possibilidade, ainda que extremamente improvável, que seja suficiente para gerar dúvida, deve levar à absolvição. Isto é, a certeza do juízo condenatório deve ser 200%.

A Lei de Drogas não pune o vício – visa tratar o usuário -, não pune a pessoa que “usa drogas”, pune somente a pessoa que a porta com o fim de consumi-la (art. 28) ou de comercializá-la ou passá-la a terceiro ou de ficar com a droga para si mesmo, sem, contudo, possuir o intuito de usá-la (art. 33). Pelo fato do usuário de droga movimentar o tráfico de drogas, quando a adquire, guarda, tem em depósito, transporta ou a traz consigo para consumo pessoal, coloca a saúde pública em perigo, razão pela qual tal conduta é considerada criminosa e não o vício, pois a partir do momento em que o usuário de droga a utiliza, causa lesão a si mesmo, e o direito não pune a autolesão (princípio da lesividade).

Independentemente da quantidade de drogas apreendidas, não se aplica o princípio da insignificância aos delitos de porte de substância entorpecente para consumo próprio e de tráfico de drogas, sob pena de se ter a própria revogação, contra legem, da norma penal incriminadora. Precedentes. O objeto jurídico tutelado pela norma do artigo 28 da Lei n.11.343/2006 é a saúde pública, e não apenas a do usuário, visto que sua conduta atinge não somente a sua esfera pessoal, mas toda a coletividade, diante da potencialidade ofensiva do delito de porte de entorpecentes. Para a caracterização do delito descrito no artigo 28 da Lei n.11.343/2006, não se faz necessária a ocorrência de efetiva lesão ao bem jurídico protegido, bastando a realização da conduta proibida para que se presuma o perigo ao bem tutelado. Isso porque, ao adquirir droga para seu consumo, o usuário realimenta o comércio nefasto, pondo em risco a saúde pública e sendo fator decisivo na difusão dos tóxicos. A reduzida quantidade de drogas integra a própria essência do crime de porte de substância entorpecente para consumo próprio, visto que, do contrário, poder-se-ia estar diante da hipótese do delito de tráfico de drogas, previsto no artigo 33 da Lei n.11.343/2006. (STJ. RHC 35.920/DF, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 20/05/2014, DJe 29/05/2014)

Nesse sentido, o exame de sangue ou de urina que constate que uma pessoa usou drogas não é suficiente para responsabilizá-la pelo art. 28 da Lei n. 11.343/06, pois comprova-se somente o uso de droga, mas não a prática de nenhum dos verbos núcleos do tipo. Isto é, não comprova que a pessoa adquiriu, guardou, teve em depósito, transportou ou trouxe consigo droga para consumo pessoal, salvo se restar demonstrado por outros meios de prova que o agente possuía a droga antes de usá-la, como a prova testemunhal e filmagens, aliada à confissão do agente.

Destaco a existência de entendimento no sentido de que “o uso pretérito do entorpecente não é crime, pois se a droga não mais existe – eis que consumida – o risco de difusão e propagação do entorpecente deixa de existir”10, conforme ensinamentos de Cleber Couto e Túlio Leno Góes Silva, que cita Fernando Capez e julgado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

A lei em estudo não tipifica a ação de usar a droga, mas apenas o porte, pois o que a lei visa é coibir o perigo social representado pela detenção, evitando facilitar a circulação da droga pela sociedade, ainda que a finalidade do sujeito seja apenas a de consumo pessoal. Assim, existe transcendentalidade na conduta e perigo para a saúde da coletividade, bem jurídico tutelado pela norma do art. 28. […] é exatamente por isso que a lei não incrimina o uso pretérito (desaparecendo a droga, extingue-se a ameaça) (CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal – Legislação Penal Especial. 8ª ed. Saraiva. p. 686-687).

O uso pretérito de droga, ainda que recente e induvidoso, por afirmação testemunhal ou até mesmo policial, não integra o delito porque, desaparecida a droga pela consumação, deixa de haver o risco potencial da disseminação de seu uso, fator determinante da punibilidade (TJSP – AC 122.315-3 – Rel. Reynaldo Ayrosa – JTJ 143/301).

Rogério Greco leciona que o agente que é surpreendido pela polícia logo após ter feito uso da droga “Não responderá pelo delito em estudo, pois seu comportamento não se amolda a qualquer núcleo, tampouco poderá ser objeto de prova pericial residuográfica.”11

Cleber Masson e Vinícius Marçal escrevem que “É importante recordar que o uso pretérito de droga, por si só, não configura crime. De fato, em se tratando de delito contra a saúde pública, este bem jurídico não corre perigo se a substância já deixou de existir.”12

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais já decidiu que se o agente for encontrado quando já tiver utilizado a droga, a conduta é atípica, uma vez que não se poderá falar em “trazer consigo” aquilo que não mais existe.

Entorpecente. Posse. Descaracterização. Acusado que, ao ser preso, já havia feito uso da droga. Conduta atípica, uma vez que não se poderá falar em “trazer consigo” aquilo que não mais existe. Inteligência do art. 16 da Lei 6.368/76” (TJMG, Ap. 23.802-2, RT 673/352).13

Tal entendimento, em que pese ser majoritário, não deve prosperar, na medida em que não é possível falar em “trazer consigo” no momento da abordagem policial, mas caso haja provas de que trazia consigo imediatamente antes de consumir a droga, o agente estará em flagrante delito, pois terá praticado um crime e terá sido flagrado pelos policiais logo após a prática. A questão é a ausência de materialidade para a adoção de providências policiais, o que é uma questão probatória e não de existência de crime. O fato da substância (droga) ter deixado de existir, realmente, não coloca mais em risco o bem jurídico tutelado (saúde pública), contudo, enquanto existia, houve risco para a saúde pública.

Salienta-se que o julgado acima exposto trata da prisão da pessoa que trazia consigo droga para uso próprio na vigência da Lei n. 6.368/76, quando o porte de droga para uso pessoal possuía pena privativa de liberdade, o que inexiste desde o advento da Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006.

O Código Penal Militar prevê o crime de tráfico, posse ou uso de entorpecentes ou substância de efeito similar (art. 290), contudo, da mesma forma que o art. 28 da Lei n. 11.343/06 não utiliza os verbos usar ou consumir, razão pela qual aplica-se o mesmo raciocínio exposto neste texto para o crime previsto no art. 290 do Código Penal Militar.

Uma constatação interessante é que o nome jurídico (nomen iuris) do art. 290 é “Tráfico, posse ou uso de entorpecente ou substância de efeito similar”, contudo não há o verbo usar no tipo penal, razão pela qual a conduta de usar droga, por si só, é atípica, ainda que praticada por militares em serviço ou em local sujeito à administração militar.

Tráfico, posse ou uso de entorpecente ou substância de efeito similar

Art. 290. Receber, preparar, produzir, vender, fornecer, ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, ainda que para uso próprio, guardar, ministrar ou entregar de qualquer forma a consumo substância entorpecente, ou que determine dependência física ou psíquica, em lugar sujeito à administração militar, sem autorização ou em desacôrdo com determinação legal ou regulamentar:

Pena – reclusão, até cinco anos.

Por fim, salienta-se que é um equívoco dizer crime de “uso de drogas”. O correto é utilizar a expressão “porte de drogas para consumo pessoal”.

NOTAS

1 Disponível em: <http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD13FEV2004.pdf#page>. Acesso em: 13/07/2020.

2 DE LIMA, Renato Brasileiro. Legislação Criminal Comentada. Volume Único. 8ª Edição. Editora JusPODIVM: Salvador. 2020. p. 1.029.

3 GRECO, Rogério. Atividade Policial. Aspectos penais, processuais penais, administrativos e constitucionais. 9ª Edição. Impetus: Niterói. 2018. p. 332.

4 DE LIMA, Renato Brasileiro. Legislação Criminal Comentada. Volume Único. 8ª Edição. Editora JusPODIVM: Salvador. 2020. p. 1.029.

5Nesse contexto: JESUS, Damásio Evangelista de. Lei Antitóxicos anotada. 3ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1997. p. 89. Na mesma linha, segundo Mendonça e Carvalho (op. cit . p. 60), “não poderia ser punido o atleta cujo exame antidoping demonstre o uso de droga , como ocorreu, há alguns anos, com um jogador de vôlei da seleção brasileira “.

6STF, 1ª Turma, HC 79.189/SP, Rei. Min . Sepúlveda Pertence, j. 12/12/2000, DJ 09/03/2001.

7 No mesmo sentido: SIMONASSI, Vanessa Perpetuo. Afinal, usar drogas é crime? O que diz a Lei:. Disponível em: <https://vanessaperpetuosilva.jusbrasil.com.br/artigos/534667208/afinal-usar-drogas-e-crime-o-que-diz-a-lei >. Acesso em: 13/07/2020.

8Entorpecentes: posse para uso próprio: inexistência do crime ou, de qualquer sorte, de prova indispensável à condenação: habeas corpus deferido por falta de justa causa.

1. É mais que razoável o entendimento dos que entendem não realizado o tipo do art. 16 da Lei de entorpecentes (L. 6.368/76) na conduta de quem, recebendo de terceiro a droga, para uso próprio, incontinenti, a consome: a incriminação do porte de tóxico para uso próprio só se pode explicar – segundo a doutrina subjacente à lei – como delito contra a saúde pública, que se insere entre os crimes contra a incolumidade pública, que só se configuram em fatos que “acarretam situação de perigo a indeterminado ou não individuado grupo de pessoas” (Hungria).

2. De qualquer sorte, conforme jurisprudência sedimentada, o exame toxicológico positivo da substância de porte vedado é elemento essencial à validade da condenação pelo crime cogitado, o que pressupõe sua apreensão na posse do agente e não de terceiro: impossível, assim, imputar a alguém a posse anterior do único cigarro de maconha que teria fumado em ocasião anterior, se só se pode apreender e submeter à perícia resíduos daquela encontrados com o outro acusado, em contexto diverso.

(STF – HC: 79189 SP, Relator: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Data de Julgamento: 12/12/2000, Primeira Turma, Data de Publicação: DJ 09-03-2001)

9AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL PENAL. TRÁFICO DE DROGAS. (…) ALEGADA AUSÊNCIA DE MATERIALIDADE POR NÃO EXISTIR LAUDO TOXICOLÓGICO. PRESCINDIBILIDADE. PLEITO DE ABSOLVIÇÃO POR FALTA DE PROVAS. IMPOSSIBILIDADE. ÓBICE DO VERBETE SUMULAR N.º 7/STJ. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. (…) 2. A despeito da pacífica orientação desta Corte no sentido da indispensabilidade do laudo toxicológico para se comprovar a materialidade do crime de tráfico ilícito de drogas, já se posicionou esta Col. Quinta Turma (HC 91.727/MS, 5.ª Turma, Rel. Min. ARNALDO ESTEVES LIMA, DJe de 19/12/2008) no sentido de que o referido entendimento só é aplicável nas hipóteses em que a substância entorpecente é apreendida, a fim que se confirme a sua natureza. 3. Dessa forma, é possível, nos casos de não apreensão da droga, que a condenação pela prática do delito tipificado no art. 33 da Lei n.º 11.343/2006 seja embasada em extensa prova documental e testemunhal produzida durante a instrução criminal que demonstrem o envolvimento com organização criminosa acusada do delito, o que, conforme se constata dos excertos transcritos, constitui a hipótese dos autos. (…) 5. Decisão agravada que se mantém pelos seus próprios fundamentos. 6. Agravo regimental desprovido. (AgRg no AREsp 293.492/MT, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 26/08/2014, DJe 02/09/2014)

10COUTO, Cleber; SILVA, Túlio Leno Góes Silva . A (in)constitucionalidade do artigo 28 da Lei de DrogasRevista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20n. 446017 set. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/42689. Acesso em: 14 jul. 2020.

11 GRECO, Rogério. Atividade Policial. Aspectos penais, processuais penais, administrativos e constitucionais. 9ª Edição. Impetus: Niterói. 2018. p. 336.

12MASSON, Cleber. MARÇAL, Vinícius. Lei de Drogas. Aspectos Penais e Processuais. Método: São Paulo. 2019.

13 Em sentido semelhante: “Mesmo admitindo-se que o acusado houvesse confessado ter feito uso de droga, mas não tendo sido encontrada qualquer substância em seu poder, e ainda assim não poderia prosperar a sua condenação tendo por base o art. 16 da Lei 6.368/76, por não estar portando a maconha, sendo clara a atipicidade da conduta.” (TJ-RN – APR: 30905 RN 2001.003090-5, Relator: Des. Vivaldo Otavio Pinheiro, Data de Julgamento: 19/04/2002, Câmara Criminal, Data de Publicação: 09/05/2002).