A atuação policial em ocorrências em que a mulher não é ameaçada, contudo o ex a procura insistentemente por não aceitar o término do relacionamento

A Lei n.º 11.340/06 – Lei Maria da Penha – considera como formas de violência a física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.

O art. 7º, II, da Lei Maria da Penha define como violência psicológica “qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação”.

Ao terminar o relacionamento a mulher tem o direito de ser deixada em paz, de forma que não sofra nenhuma ingerência, perturbação, perseguição ou incômodo por parte do ex.

O art. 65 da Lei de Contravenções Penais trata da contravenção de perturbação da tranquilidade.

Art. 65. Molestar alguém ou perturbar-lhe a tranquilidade, por acinte ou por motivo reprovável:

Pena – prisão simples, de quinze dias a dois meses, ou multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.

Molestar significa importunar, incomodar. Perturbar significa causar chateação, atrapalhar a tranquilidade.

Alguém refere-se à vítima, à pessoa que sofre os atos consistentes em “molestar” ou “perturbar”.

A tranquilidade é o estado de paz que toda pessoa tem direito a ter.

A contravenção penal de perturbação da tranquilidade exige o dolo específico consistente no acinte (agir de propósito, de caso pensado) ou motivo reprovável (censurável, condenável).

O fato de ex manter contato com a mulher, insistentemente, contra a sua vontade, seja por qual meio for (presencial ou eletrônico), em tese, perturba-lhe a tranquilidade por motivo reprovável, uma vez que o simples término de relacionamento e a não aceitação pelo homem não tem o condão de justificar a continuidade dos contatos e dado o contexto de violência contra mulheres no país, ato que é extremamente reprovável, torna o motivo censurável.

Não constitui nenhum ilícito o fato do ex tentar se aproximar da mulher para reatar o relacionamento, desde que seja dentro da normalidade, contudo a partir do momento em que a mulher demonstra não ter nenhum interesse em reatar o relacionamento e que a presença do agente a incomoda ou perturba, viola o direito de paz que toda mulher possui quando rompe um relacionamento.

Caso a guarnição policial seja acionada para atender a uma ocorrência que a mulher alega que não recebeu nenhuma ameaça, contudo o ex tem enviado reiteradas mensagens ou efetuado constantes ligações telefônicas ou que a fica observando pelas ruas, aparentemente, pode parecer não ser infração penal, contudo tais práticas configuram uma forma de violência psicológica (art. 7º, II, da Lei n. 11.340/06) e constitui contravenção penal de perturbação da tranquilidade (art. 65 da Lei de Contravenções Penais), razão pela qual deverá adotar as providências necessárias para o registro da contravenção penal.

O art. 41 da Lei 11.340/06 é expresso ao prever a inaplicabilidade da Lei n. 9.099/95 quanto aos “crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher”, sem mencionar as contravenções penais. Ocorre que o Supremo Tribunal Federal1 e o Superior Tribunal de Justiça2 realizaram uma interpretação finalística da norma e protetiva dos direitos da mulher em situação de violência doméstica para estender a inaplicabilidade da Lei n. 9.099/95 às contravenções penais, razão pela qual será o caso de lavratura de auto de prisão em flagrante e não termo circunstanciado de ocorrência.

Essas condutas caracterizam stalking (assédio por intrusão), que é uma forma de violência em que o stalker invade a esfera de intimidade e privacidade da vítima, causando-lhe uma série de transtornos. O simples fato de procurar a mulher, quando esta já não quer mais nenhum contato com o ex, seja por meio de mensagens, ligações, presença física, por intermédio de terceiros ou por qualquer outro meio, caracteriza stalking, o que, por si só, configura a contravenção penal prevista no art. 65 do Decreto-Lei n. 3.688/41.

A prática de stalking pode ser somente um indicativo de que fatos mais graves podem ocorrer e evoluir para ameaças, agressões e até mesmo para a prática de feminicídio, sendo necessária uma atuação estatal para evitar que haja uma progressão das ofensas aos direitos das mulheres. Lamentavelmente, tal prática não é incomum no país em que homens perseguem mulheres como se fossem suas propriedades.

NOTAS

1VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – ARTIGO 41 DA LEI Nº 11.340/06 – ALCANCE. O preceito do artigo 41 da Lei nº 11.340/06 alcança toda e qualquer prática delituosa contra a mulher, até mesmo quando consubstancia contravenção penal, como é a relativa a vias de fato. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – ARTIGO 41 DA LEI Nº 11.340/06 – AFASTAMENTO DA LEI Nº 9.099/95 – CONSTITUCIONALIDADE. Ante a opção político-normativa prevista no artigo 98, inciso I, e a proteção versada no artigo 226, § 8º, ambos da Constituição Federal, surge harmônico com esta última o afastamento peremptório da Lei nº 9.099/95 – mediante o artigo 41 da Lei nº 11.340/06 – no processo-crime a revelar violência contra a mulher. (STF – HC: 106212 MS, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, Data de Julgamento: 24/03/2011, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-112 DIVULG 10-06-2011 PUBLIC 13-06-2011)

2HABEAS CORPUS. WRIT SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. LEI MARIA DA PENHA. CONTRAVENÇÃO PENAL. TRANSAÇÃO PENAL. IMPOSSIBILIDADE. MANIFESTO CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. 1. O Superior Tribunal de Justiça, alinhando-se à nova jurisprudência da Corte Suprema, também passou a restringir as hipóteses de cabimento do habeas corpus, não admitindo que o remédio constitucional seja utilizado em substituição ao recurso ou ação cabível, ressalvadas as situações em que, à vista da flagrante ilegalidade do ato apontado como coator, em prejuízo da liberdade do (a) paciente, seja cogente a concessão, de ofício, da ordem de habeas corpus. 2. Uma interpretação literal do do disposto no artigo 41 da Lei n. 11.340/2006 viabilizaria, em apressado olhar, a conclusão de que os institutos despenalizadores da Lei n. 9.099/1995, entre eles a transação penal, seriam aplicáveis às contravenções penais praticadas com violência doméstica e familiar contra a mulher. 3. À luz da finalidade última da norma e do enfoque da ordem jurídico-constitucional, tem-se que, considerados os fins sociais a que a lei se destina, o artigo 41 da Lei n. 11.340/2006 afasta a incidência da Lei n. 9.099/1995, de forma categórica, tanto aos crimes quanto às contravenções penais praticados contra mulheres no âmbito doméstico e familiar. Vale dizer, a mens legis do disposto no referido preceito não poderia ser outra, senão a de alcançar também as contravenções penais. 4. Uma vez que o paciente está sendo acusado da prática, em tese, de vias de fato e de perturbação da tranquilidade de sua ex-companheira, com quem manteve vínculo afetivo por cerca de oito anos, não há nenhuma ilegalidade manifesta no ponto em que se entendeu que não seria aplicável o benefício da transação penal em seu favor. 5. Habeas corpus não conhecido. (STJ – HC: 280788 RS 2013/0359552-9, Relator: Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Data de Julgamento: 03/04/2014, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 22/04/2014)