Abordagem policial e busca pessoal

O artigo a seguir é de autoria do Rodrigo Foureaux e de Eduardo Godinho e foi publicado no livro “ABORDAGEM POLICIAL E DIREITOS HUMANOS”, organizado por Sérgio Carrera Neto e Frederico Afonso Izidoro.

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Introdução

No dia a dia qualquer pessoa está sujeita a ser abordada na rua pela polícia. A abordagem policial é uma realidade na vida dos policiais e de um número significativo de pessoas.

A lei autoriza a realização da abordagem, conforme será visto, mas não disciplina como as abordagens devem ocorrer, o que coube às instituições policiais disciplinarem.

Abordar significa aproximar-se, verificar. Abordagem é o ato de aproximação, de verificação. Abordagem policial é aquela realizada por uma das instituições policiais previstas no art. 144 da Constituição Federal.

A abordagem policial é um instrumento operacional de trabalho utilizado pela polícia, o que inclui todos os órgãos policiais do art. 144 da Constituição Federal ou instituições com poder de polícia, dentro de suas atribuições, como a Polícia Legislativa, Polícia Judicial, Guarda Municipal, com o fim de fiscalizar e garantir a segurança pública, prevenir e reprimir o crime e pode ser efetuada em pessoas, bens e objetos e possui toda uma técnica, de acordo com as circunstâncias de cada caso. A entonação da voz, a postura, a manutenção da arma no coldre ou o saque e a direção da arma de fogo são alguns aspectos que devem ser avaliados no momento da abordagem policial.

O conceito de abordagem policial é mais amplo do que o de busca pessoal, pois aquele pode ocorrer em imóveis. Tome como exemplo uma denúncia de que foi instalada uma bomba em um edifício e a polícia necessitará realizar buscas no prédio. É uma forma de abordagem policial em edifício. Enquanto a busca pessoal refere-se à busca a pessoas e a seus pertences (roupas, veículos), a abordagem policial abrange a busca pessoal, domiciliar, a edifícios.

A busca pessoal é invasiva e impõe restrições a direitos individuais, como a liberdade de ir e vir sem sofrer ingerências estatais (art. 5º, XV, da CF) e o direito à intimidade e vida privada (art. 5º, X, da CF), devendo, portanto, ser realizada somente em casos justificáveis.

Conceito e classificação da busca pessoal

A busca pessoal é aquela realizada sobre o corpo do indivíduo e em seus pertences, como mochilas, bolsas, malas e veículos e tem por finalidade fiscalizar e garantir a segurança pública, prevenir e investigar o crime.

A busca pessoal se estende aos pertences pessoais do indivíduo e quando decorrer de mandado de prisão autoriza, inclusive, a apreensão do aparelho celular, ainda que não haja um mandado de busca e apreensão anterior que autorize a apreensão do celular, já que o cumprimento de mandado de prisão, por si só, na forma do art. 244 do Código de Processo Penal, autoriza a busca pessoal, a qual, por sua vez, abrange pertences pessoais, dentre os quais se incluem celulares que poderão ser apreendidos pelos policiais e, posteriormente, ser solicitada autorização judicial para acessar as informações contidas no aparelho celular. Como a busca pessoal significa a realização de busca não somente no corpo da pessoa, mas também em seus pertences, seria de toda inócua a busca no celular se não fosse possível apreendê-lo para posterior investigação. Essa possibilidade de apreensão do aparelho celular em razão de busca pessoal deve ocorrer somente quando houver mandado de prisão ou de busca domiciliar ou situação de flagrante delito, não sendo possível na hipótese de busca decorrente de fundada suspeita em que nada de ilícito é localizado com o agente.[1]

O art. 180 do Código de Processo Penal Militar preceitua que a busca pessoal consistirá na procura material feita nas vestes, pastas, malas e outros objetos que estejam com a pessoa revistada e, quando necessário, no próprio corpo.

A Resolução n. 515, de 08 de maio de 2019, da Agência Nacional de Aviação Civil, define, no art. 3º, § 1º, a busca pessoal como sendo a revista do corpo de uma pessoa, suas vestes e demais acessórios, realizada por autoridade policial ou por Agente de Proteção da Aviação Civil, neste caso com consentimento do inspecionado.

A busca pessoal subdivide-se da seguinte forma:

            a) Quanto à natureza jurídica: busca pessoal administrativa e processual;

            b) Quanto ao contato corporal: imediata e mediata;

            c) Quanto ao grau de invasividade: ligeira, minuciosa e completa;

            d) Quanto ao sujeito ativo da medida: estado ou particular;

            e) Quanto ao sujeito passivo da medida: individual ou coletivo;

            f) Quanto à decisão da execução da busca: com e sem autorização judicial.

            a) Quanto à natureza jurídica: busca pessoal preventiva e processual;

A busca pessoal preventiva ou administrativa, ao lado do policiamento ostensivo, é uma das formas de se preservar a incolumidade das pessoas e o patrimônio. Não está prevista no Código de Processo Penal e decorre do poder de polícia, da lei ou em razão de contrato.

O poder de polícia autoriza que a Administração Pública, amparada pelo ordenamento jurídico, utilize-se de mecanismos que restrinjam e limitem o exercício de direitos em busca da promoção do bem comum e do interesse social.

A realização de blitz de trânsito pela Polícia Militar decorre da lei (arts. 23, III e 269, § 1º, ambos do CTB) e do exercício do poder de polícia e as buscas realizadas durante essas blitze possuem natureza preventiva. Em que pese a realização de blitz possuir como finalidade principal a fiscalização do trânsito e da regularidade do motorista e do veículo, as buscas eventualmente realizadas, sobretudo quando se verifica, no corpo do motorista ou dentro do veículo, se há objetos que possam colocar a integridade física dos policiais, possuem natureza preventiva e como fundamento o poder de polícia, por uma questão de segurança, em razão dos riscos decorrentes de uma fiscalização policial, o que deve ser verificado pelos próprios policiais que realizam a blitz, sobretudo se a blitz ocorrer em local de rota de fuga ou de alta incidência criminal.

Deve-se levar em consideração, inclusive, a real possibilidade de o policial constatar ilegalidades e ter que adotar providências criminais ou administrativas e uma situação, aparentemente, tranquila, pode ganhar contornos trágicos. Eventual busca pessoal realizada por policiais em blitze, quando houver risco para a segurança dos policiais e de terceiros, são legais, pois decorre do poder de polícia e possui finalidade preventiva, assim como ocorrem nas buscas pessoais realizadas ao se dirigir ao aeroporto ou em veículos procedentes do exterior, pelas autoridades aduaneiras.

O art. 13-A, III, da Lei n. 10.671, de 15 de maio de 2013, que dispõe sobre o Estatuto do Torcedor, prevê como condição de acesso e permanência do torcedor no recinto esportivo o consentimento com a revista pessoal de prevenção e segurança. Dessa forma, aquele que se recusa a se submeter a revista pessoal para ingressar em recinto esportivo (estádio de futebol, de vôlei) pode ter a entrada impedida.  Trata-se de uma busca pessoal preventiva que decorre da lei.

O Decreto-Lei n. 37, de 18 de novembro de 1966, reorganiza os serviços aduaneiros, e prevê no art. 37, § 4º, que a autoridade aduaneira poderá proceder a buscas em veículos que forem necessárias para prevenir e reprimir a ocorrência de infração à legislação, sejam os veículos procedentes do exterior ou a ele destinado, o que cabe à Equipe de Vigilância e Repressão. Trata-se de uma busca pessoal preventiva de natureza administrativa que decorre do poder de polícia.

O Decreto Federal n. 7.168, de 5 de maio de 2010, dispõe sobre o “Programa Nacional de Segurança da Aviação Civil Contra Atos de Interferência Ilícita” e o art. 116 dispõe que a busca pessoal deve ser realizada com o propósito de identificar qualquer item de natureza suspeita em passageiros sobre os quais, após os procedimentos de inspeção de segurança, permaneça a suspeição, sendo disciplinado pelo art. 117 que poderá ocorrer a inspeção manual da bagagem para identificar qualquer item de natureza suspeita que seja detectado durante a inspeção de bagagem de mão por intermédio do raio-x ou detector de traços de explosivos.

A Resolução n. 515, de 08 de maio de 2019, da Agência Nacional de Aviação Civil, dispõe sobre os procedimentos de inspeção de segurança da aviação civil contra atos de interferência ilícita nos aeroportos e prevê a possibilidade de se realizar a busca pessoal nas seguintes hipóteses:

            a) caso o alarme sonoro do pórtico detector de metais seja disparado, o passageiro deverá observar as orientações do Agente de Proteção da Aviação Civil relacionadas aos procedimentos necessários para resolução do alarme, que poderão incluir nova passagem pelo pórtico, inspeção por meio de detector manual de metais, inspeção por meio de escâner corporal e busca pessoal (art. 3º, IV);

            b) aleatoriamente e sempre que julgado necessário, os passageiros devem passar por medidas adicionais de segurança, que podem incluir busca pessoal (art. 3º, V);

            c) o passageiro que, por motivo justificado, não puder ser inspecionado por meio de equipamento detector de metal, a exemplo de passageiro com material implantado, deverá submeter-se a busca pessoal (art. 3º, X);

            d) as mulheres grávidas, caso solicitem, podem ser inspecionadas por meio de detector manual de metais ou por meio de busca pessoal (art. 3º, XI).

Na hipótese em que houver suspeita de porte de o objeto ilícito ou tentativa de ocultá-los, sendo estes considerados aqueles cujo porte ou posse sejam proibidos por lei, o acesso à sala de embarque deverá ser negado e o órgão de segurança pública responsável pelas atividades de polícia no aeroporto deverá ser acionado (art. 3º, XIV, “b” e “c”).

As buscas pessoais realizadas no aeroporto também são, como regra, de natureza preventiva.

Há ainda as buscas ou revistas privadas, que ocorrem, comumente, no ingresso de boates e casas noturnas. Trata-se de uma busca de natureza preventiva e decorre de uma relação contratual. O ingresso da pessoa ao local do evento é condicionado, contratualmente, à autorização para que sofra uma revista privada. Caso não concorde não poderá entrar no local.

O art. 6º, I, do Código de Defesa do Consumidor prevê como direito básico do consumidor a segurança contra os riscos provocados no fornecimento de serviços, o que inclui a realização de serviços artísticos e shows. A segurança ora referida deve ser interpretada em sentido amplo, o que abrange a segurança física, patrimonial e da saúde.

Trata-se de uma espécie de busca pessoal preventiva, em que pese possuir natureza privada.          Uma característica comum às buscas pessoais preventivas ou administrativas é que não se faz necessária a presença da fundada suspeita exigida para a realização de buscas pessoais processuais, uma vez que as buscas pessoais preventivas decorrem diretamente da lei, sem que exija a fundada suspeita, somente a constatação de um fato objetivo – como a fiscalização aduaneira – do poder de polícia ou de uma relação contratual.

As buscas pessoais de natureza privada normalmente são feitas nos casos acima especificados, sendo possível de serem realizadas nas mercadorias com que as pessoas saem dos estabelecimentos comerciais após a consumação da venda, conforme já decidido pelo Superior Tribunal de Justiça, ao afirmar que a “prática da conferência indistinta de mercadorias pelos estabelecimentos comerciais, após a consumação da venda, é em princípio lícito e tem como base o exercício do direito de vigilância e proteção ao patrimônio, razão pela qual não constitui, por si só, prática abusiva. Se a revista dos bens adquiridos é realizada em observância aos limites da urbanidade e civilidade, constitui mero desconforto, a que atualmente a grande maioria dos consumidores se submete, em nome da segurança.”[2]

A busca pessoal de natureza processual possui previsão no art. 244 do Código de Processo Penal e arts. 180, 181 e 182, todos do Código de Processo Penal Militar. Essa busca independe de autorização judicial quando ocorrer em razão de prisão em flagrante ou cumprimento de mandado de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma ilegal ou de objetos que sirvam como elementos de prova ou sejam instrumentos ou produtos de crime ou quando ocorrer durante a realização de busca domiciliar, seja em decorrência de mandado de busca e apreensão ou em razão de flagrante delito.

            a) Prisão: com a prisão ocorre a restrição da liberdade da pessoa e esta deve, naturalmente, passar por uma busca pessoal antes mesmo de ser colocada na viatura policial, por uma questão de segurança dos policiais e de terceiros. O mesmo ocorre antes de ser encarcerado, com o fim de se evitar que objetos ilícitos (armas e drogas) ou proibidos (celulares) ingressem nos estabelecimentos penais.

            b) Fundada suspeita: o conceito de “fundada suspeita” será aprofundado no tópico 3 deste artigo. De qualquer forma, a fundada suspeita deve ser de que a pessoa esteja na posse de arma ilegal ou de objetos que sirvam como elementos de prova ou sejam instrumentos ou produtos de crime.

            c) Busca domiciliar: a busca domiciliar pode decorrer do cumprimento de mandado de busca e apreensão ou em situação de flagrante delito. Em ambos os casos os policiais estão autorizados a efetuarem a busca pessoal nas pessoas que estiverem dentro da casa, ainda que esta autorização não conste no mandado, pois podem esconder produtos criminosos ou objeto que a busca visa apreender no corpo ou em pertences pessoais.

Verifica-se que o policial pode realizar busca pessoal ainda que não decorra de fundada suspeita de que a pessoa porte objetos ilegais, como o caso de prisão ou de busca domiciliar. A partir do momento em que o policial dá “voz de prisão” está autorizada a busca pessoal, ainda que não haja fundada suspeita de que porte objetos ilegais, por questão de segurança, na medida em que uma pessoa presa deve ser revistada para assegurar que não possui nenhum objeto ilegal e para que não possa colocar em risco os policiais ou terceiros, até porque o agente adentrará à guarnição e depois poderá será colocado em uma cela. O mesmo ocorre na busca domiciliar, pelos fundamentos acima expostos.

O art. 182, “e”, do Código de Processo Penal Militar traz hipóteses que autorizam a busca pessoal sem autorização judicial, havendo uma previsão que não se encontra prevista no Código de Processo Penal, que consiste na busca pessoal feita na presença do juiz ou do presidente do inquérito.

O art. 240, § 2º, do Código de Processo Penal também trata da busca pessoal e dispõe que esta ocorrerá quando houver fundada suspeita de que alguém oculte consigo arma proibida ou com uma das seguintes finalidades: a) apreender coisas achadas ou obtidas por meios criminosos; b) apreender instrumentos de falsificação ou de contrafação e objetos falsificados ou contrafeitos; c) apreender armas e munições, instrumentos utilizados na prática de crime ou destinados a fim delituoso; d) descobrir objetos necessários à prova de infração ou à defesa do réu; e) apreender cartas, abertas ou não, destinadas ao acusado ou em seu poder, quando haja suspeita de que o conhecimento do seu conteúdo possa ser útil à elucidação do fato; f) colher qualquer elemento de convicção.

A seguir um quadro comparativo entre o art. 240, § 2º, e art. 244, ambos do Código de Processo Penal.

Art. 240, § 2º, do Código de Processo PenalArt. 244 do Código de Processo Penal
Art. 240. A busca será domiciliar ou pessoal. § 2o Proceder-se-á à busca pessoal quando houver fundada suspeita de que alguém oculte consigo arma proibida ou objetos mencionados nas letras b a f e letra h do parágrafo anterior.Art. 244. A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar.

Enquanto o art. 240, § 2º, do Código de Processo Penal detalha as hipóteses que autorizam a busca pessoal, o art. 244 do mesmo diploma processual é mais genérico, pois se limita a dizer que a busca pode ocorrer para verificar se a pessoa está sob a posse de “arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito”.

Corpo de delito significa o conjunto de vestígios e elementos deixados pela infração penal. Não tem relação com o corpo humano, mas sim ao conjunto de vestígios e elementos probatórios que constituem a materialidade delitiva.

“Papéis” deve ser interpretado em sentido amplo, e de forma progressiva, uma vez que este termo “papéis” está contido no Código de Processo Penal de 1941, devendo-se incluir hoje, como decidido pelo Superior Tribunal de Justiça[3], registros em agendas eletrônicas, telefones com conteúdo diverso, notas fiscais, encartes de propaganda e tabelas com informações variadas.

O art. 244 do Código de Processo Penal é mais amplo e genérico e abrange as hipóteses contidas no art. 240, § 2º, que são exemplificativas.

A busca pessoal de natureza processual em razão da prisão é de natureza investigativa e preventiva, pois visa averiguar se o agente possui algum objeto ilícito, bem como evitar que esteja com qualquer objeto que coloque em risco a integridade dos policiais, de terceiros e a própria integridade.

Quando decorre da fundada suspeita pode, igualmente, ser de natureza preventiva e investigativa, pois se o agente porta um objeto ilícito, como arma e drogas, a busca visará apreender esse objeto com fins investigativos, além de prevenir a ocorrência de crimes, como a prática de roubo ou homicídio que poderá estar em vias de ser praticado. O mesmo raciocínio se aplica às buscas domiciliares.

A seguir, quadro que permite a visualização das buscas pessoais de natureza administrativa e processual:

Busca pessoal administrativa ou preventivaCaracterísticasExemploPrevisão
Blitz– Fiscaliza o regular funcionamento do trânsito; – Fiscaliza o cumprimento das normas de trânsito.Guarnição policial realiza blitz em local que possui alto registro de acidentes decorrentes do uso de bebida alcoólica, ocasião em que o policial poderá abordar qualquer veículo.Arts. 23, III e 269, § 1º, ambos do CTB.
Recinto esportivo– Busca realizada no torcedor antes de ingressar no local de competição esportiva; – Geralmente, é realizada por seguranças contratados pela organização do evento; – A Polícia Militar pode realizá-la.Os policiais poderão realizar buscas quando o torcedor for ingressar no estádio.Art. 13-A, III, da Lei n. 10.671/13.
Serviços aduaneiros– Busca realizada por autoridade aduaneira; – É realizada em veículos procedentes do exterior ou a ele destinado, seja pela via marítima, aérea ou terrestre; – Visa prevenir e reprimir a ocorrência de infração à legislação.Autoridade aduaneira realiza buscas, em um veículo procedente do exterior quando este passa pelo local alfandegado (local de realização da fiscalização).Art. 37, § 4º, do Decreto-Lei n. 37/66.
Segurança da Aviação Civil– É realizada pelo Agente de Proteção da Aviação Civil; – Ocorre aleatoriamente ou quando for detectado qualquer objeto de natureza suspeita; – Passageiro que não possa, por motivo justificado, ser inspecionado por equipamento detector de metal.    Agente de Proteção da Aviação Civil visualiza objeto suspeito dentro da mala de mão de passageiro ao passar pelo raio-x, ocasião em que é selecionado para passar por uma busca pessoal. É possível também que qualquer passageiro seja escolhido, aleatoriamente, para passar por uma busca pessoal, sem que haja qualquer fundamento.Arts. 116 e 117 do Decreto Federal n. 7.168, de 5 de maio de 2010 e art. 3º da Resolução n. 515/19 da ANAC.
Contratual– Decorre de uma relação privada; – É uma condição para que a pessoa entre no local.  O frequentador de uma boate, ao nela ingressar sujeita-se a passar por uma revista privada.– Contrato; – Art. 6º, I, do CDC (segurança do serviço prestado).
Busca pessoal processualCaracterísticasExemploPrevisão
Prisão– Decorre da simples prisão, sem em razão de mandado ou em flagrante.Policial efetua a prisão de agente que acabara de praticar o crime de corrupção ativa que, comumente, não se utiliza arma.Art. 244 do CPP
Fundada suspeita– Ocorre nas hipóteses em que o agente esteja na posse de arma proibida ou objetos que constituam corpo de delito.Policial realiza abordagem de agente que possuía um volume na cintura semelhante a uma arma de fogo.Art. 244 do CPP
Domiciliar– Decorre da simples busca domiciliar, em razão de mandado ou em flagrante de crime permanente.Policial realiza busca domiciliar em razão do cumprimento de mandado de busca e apreensão. Poderá realizar busca pessoal em todos que estejam dentro da casa.Art. 244 do CPP

b) Quanto ao contato corporal: imediata e mediata

A busca pessoal pode ser realizada mediante contato físico direto do policial com a pessoa que a recebe (busca imediata ou direta) ou mediante a utilização de instrumentos que dispensam o contato físico, como um detector de metal portátil (busca mediata ou indireta).

Na prática os policiais não possuem nas ruas detectores de metais portáteis e realizam a busca mediante o contato físico com o corpo do abordado. De qualquer forma, ainda que houvesse detector de metal, o contato físico se faz necessário, pois outros objetos, como drogas, não são identificados por esses detectores.

A utilização de equipamentos que permitem detectar armas, sem que seja necessário o toque pessoal, é comum em alguns prédios públicos, como fóruns, bem como em casas noturnas, em razão da necessidade de se garantir uma maior segurança nesses ambientes.

O art. 3º da Lei n. 10.792/03 estabelece que “Os estabelecimentos penitenciários disporão de aparelho detector de metais, aos quais devem se submeter todos que queiram ter acesso ao referido estabelecimento, ainda que exerçam qualquer cargo ou função pública.”, o que demonstra a adoção pela lei, nos casos de ingresso em estabelecimentos penais, da busca pessoal mediata ou indireta, como regra, pois, como dito, essa busca não detecta todo e qualquer objeto ilícito ou proibido de ser levado aos presídios.

Em um cenário ideal a utilização nos presídios de body scanner (scanner corporal), como ocorre nos aeroportos, é a melhor solução, pois permite detectar a presença dos objetos que estão com a pessoa, como eventuais drogas, ainda que em tenham sido inseridas nas cavidades humanas, de forma que haja maior segurança e menos constrangimento para os visitantes dos presos, que não precisarão passar por outras revistas.

c) Quanto ao grau de invasividade: ligeira, minuciosa e completa

Toda busca pessoal, naturalmente, gera um desconforto em quem a sofre, o que aumenta de acordo com o grau de invasividade. O grau de rigor da busca é definido pelo policial de acordo com cada caso, sendo comuns as buscas ligeiras, minuciosas e completas.

A busca ligeira é uma busca rápida, realizada de forma superficial e ocorre, comumente, em entrada de shows, estádios, com o fim de constatar a presença de armas ou de objetos que possam ser utilizados como armas. Pode ser realizada mediante contato das mãos de quem a realiza com o corpo da pessoa ou mediante a utilização de um detector de metal. Normalmente, são verificadas a cintura, quadril, braços e entre as pernas. A pessoa que sofre a abordagem não é colocada em posição incômoda ou que cause desconforto. Geralmente, o tom de voz de quem realiza a busca ligeira não altera. Não é necessário que haja fundada suspeita para a realização da busca ligeira, já que é realizada como condição para o ingresso em um determinado local, de forma preventiva e por razões de segurança.

A busca minuciosa ocorre nos casos de fundada suspeita de que o abordado porte objetos ilegais, como drogas ou armas, sendo, normalmente, realizada pela polícia na rua. A pessoa que sofre a abordagem recebe ordens do policial para que se posicione de forma adequada para o início da busca, como “mãos na cabeça”, seguida da ordem para se virar de costas, ou “mão na parede”. O tom de voz do policial é firme. De acordo com cada caso e diante dos riscos o policial pode determinar que a pessoa se ajoelhe ou até se deite no chão antes de sofrer a abordagem. Há contato corporal com o abordado e o policial toca com as mãos em diversas partes do corpo (cintura, quadril, braços, entre as pernas), pode terminar que retire eventual calçado e meias.

A busca minuciosa pode apresentar diferentes graus de invasividade, a depender de cada caso, como fundada suspeita de porte de arma, de drogas e da colaboração do agente. Nesse tipo de busca, se houver detector de metal, o policial pode utilizá-lo e complementar a busca com as mãos, já que o detector não identifica drogas.

A busca completa, também denominada de revista íntima,é a busca mais invasiva e deve ocorrer em casos extremos, pois a pessoa que a sofre se despe e entrega suas roupas aos policiais que examinarão todo o corpo da pessoa. É uma busca, que pela própria natureza, é constrangedora. O fato de ser constrangedora não retira a sua legalidade quando houver justa causa para a sua realização. Após retirada a roupa a pessoa é observada enquanto é determinado que levante os braços, abra as pernas e realize agachamentos. Dada a exposição, essa busca deve ser realizada em local isolado, sem público.

Tome como exemplo uma denúncia de que uma pessoa transita na rua e leve drogas no orifício anal ou que uma mulher transporte drogas na vagina. Os policiais abordam a pessoa e durante a busca minuciosa encontram drogas dentro da cueca ou calcinha. Nesse caso há fundamento idôneo suficiente para a realização da busca completa.

Sempre que possível a busca completa deve ser substituída por scanner corporal que permita constatar a presença de objetos estranhos dentro do corpo humano, como ocorre em aeroportos, o que é possível de ser feito também em hospitais.

Em estabelecimentos penais não é incomum que sejam realizadas revistas íntimas nos presos após receberem visitas de familiares, com o fim de constatar se receberam objetos que não podem adentrar nos presídios, como celulares e drogas.

Seja qual for a busca, deve sempre ser realizada de forma razoável, proporcional e motivada.

d) Quanto ao sujeito ativo da medida: estado ou particulares

 A busca pessoal pode ser realizada pelo estado ou por particulares. Enquanto estado, somente as autoridades previstas em lei podem executá-la. Ao particular não há o direito ou faculdade de realizar busca pessoal em razão da fundada suspeita, devendo estas ocorrerem contratualmente, como nas casas de show, ou se houver previsão normativa que autorize a realização das buscas, como o caso dos aeroportos que são administrados pela iniciativa privada.

Os policiais previstos no art. 144 da Constituição Federal possuem, dentro de suas atribuições, legitimidade para realizarem buscas pessoais sempre que houver fundada suspeita, pois atuam em nome do estado que possui o poder de polícia.

No tocante aos guardas municipais, o tema é controverso, sendo decidido pelo Superior Tribunal de Justiça que é lícita a revista pessoal executada por guardas municipais, com a existência da necessária justa causa para a efetivação da medida invasiva, nos termos do art. § 2º do art. 240 do CPP, bem como a prova derivada da busca pessoal[4].

A Guarda Municipal é um órgão de segurança pública, atua nos casos de flagrante delito (art. 5º, XIV, da Lei n. 13.022/14) e sempre que houver fundada suspeita está autorizada a proceder à busca pessoal.

Em se tratando da contratação de seguranças privados, não há que se falar no surgimento do poder de polícia de “natureza privada”. O poder de polícia sempre pertencerá ao poder público.

O Superior Tribunal de Justiça decidiu ser ilícita a revista pessoal realizada por agente de segurança privada contratada pela Companhia Paulista de Trens Metropolitanos – CPTM, por não ser autorizada pela lei a realização de busca pessoal de natureza privada[5]. Em razão dessa ilegalidade as provas decorrentes da busca pessoal realizada por agentes de segurança privada são ilícitas.

O inteiro teor cita trecho do Tratado de Direito Administrativo 4, coordenado por Maria Sylvia Zanella di Pietro, Revista dos Tribunais, págs. 353/355, sendo importante destacar os seguintes trechos:

A contratação de segurança privada por particulares para a defesa pessoal e de seu patrimônio apenas pode envolver o manejo de poderes privados. Não implica a delegação de poderes públicos a particulares para o exercício de segurança privada.

As empresas de segurança privada atuam no âmbito do direito privado e exercem poderes privados. Daí que os poderes de defesa podem exercer são apenas aqueles tolerados pelo direito privado e que têm o seu uso da força no contexto de legítima defesa e de flagrante delito. (destaques nossos)

(…)

Em que pese ter sido reconhecida a ilicitude da busca pessoal realizada por agentes de segurança privada, alguns apontamentos se fazem relevantes. Com efeito, o particular não pode realizar buscas pessoais pelas vias públicas ou forçar que uma pessoa se submeta a buscas pessoais se não houver uma relação contratual prévia e aceitação por parte de quem sofrerá a busca. Ocorre que a busca pessoal feita por particulares se torna lícita quando houver um contrato que a preveja, como condição para o ingresso em casas noturnas e estádios de futebol, sendo possível aplicar o mesmo raciocínio às estações de trens e de metrôs.

A partir do momento em que uma pessoa adquire o bilhete para utilizar o transporte ferroviário é possível que conste expressamente que está sujeita a sofrer buscas pessoais, em caso de fundada suspeita de portar objetos ilícitos, e caso não concorde possui a opção de utilizar outros meios de transporte. Além do mais, a contratação de segurança privada para atuarem nas estações de trem e de metrô, ainda que venha a ter por finalidade precípua, a segurança patrimonial, por um dever de boa-fé e dever de segurança dos usuários das estações, deve assegurar também a incolumidade física das pessoas e seria de todo incongruente e completamente desrazoável impedir que os agentes de segurança privada atuem preventivamente quando constatarem a presença da fundada suspeita, como um volume na cintura semelhante a uma arma de fogo. Não é necessário que aguardem o agente roubar os usuários para, em seguida, efetuarem a prisão como qualquer um do povo.

Por fim, na rua, o particular, seja segurança ou não, como uma pessoa que transita em via pública, como qualquer outra, em que pese estar autorizado a efetuar prisão em flagrante (art. 301 do CPP, flagrante facultativo), não poderá realizar buscas pessoais, ainda que haja fundada suspeita. O procedimento correto, nesses casos, consiste no acionamento da Polícia Militar. Pode parecer um contrassenso a lei autorizar o particular a efetuar a prisão (o mais), mas não autorizar a busca pessoal (o menos), contudo não há previsão em lei para que o particular assim proceda e em se tratando de restrição de direitos (restrição da liberdade, ainda que por curto período, e contato corporal por terceiro) e de medidas invasivas – como são as buscas pessoais -, a interpretação não deve contemplar os particulares.

De qualquer forma, nos casos em que um particular efetuar a prisão em flagrante (facultatividade) poderá reter o agente até a chegada da polícia, e durante essa retenção poderá realizar busca pessoal no agente para retirar eventuais objetos ilícitos, como uma arma de fogo. Pense na hipótese em que o particular efetua a prisão de um agente que acabou de praticar o crime de roubo e está com uma arma na cintura. O particular, lutador de artes maciais e muito corajoso, imbuído pelo espírito de justiça e de ajuda ao próximo, consegue segurar o agente que está com a arma na cintura. Nesse caso a busca pessoal pelo particular será lícita, pois já não havia simples fundada suspeita, mas sim a prática de um crime e o agente estava em flagrante e a ausência de busca pessoal colocaria a vida do particular e de terceiros em risco, sendo uma medida completamente razoável, pois é de todo incabível interpretar que o preso poderia ficar com a arma em seu corpo até a chegada da polícia. Ao retirar a arma de fogo do agente preso o particular atua amparado pela excludente de ilicitude do estado de necessidade, razão pela qual não responde por porte ilegal de arma de fogo.

e) Quanto ao sujeito passivo da medida: individual ou coletivo.

A busca pessoal pode ser realizada em pessoas escolhidas de forma fundamentada (individual) ou em pessoas escolhidas indistintamente (coletiva). A distinção não reside no fato da busca ser executada, simultaneamente, em uma ou em várias pessoas, mas sim no critério de seleção de quem sofrerá a abordagem.

Durante o policiamento de rotina realizado pela Polícia Militar, ao se deparar com uma ou várias pessoas em atitude que caracterize a fundada suspeita, proceder-se-á à abordagem individual, ao passo que a abordagem realizada indistintamente em todas as pessoas que entram em um estádio de futebol ou uma casa de show, é coletiva.

f) Quanto à decisão da execução da busca: com e sem autorização judicial.

Como regra as buscas pessoais não necessitam de autorização judicial, desde que sejam feitas em uma das hipóteses autorizadas pelo art. 244 do Código de Processo Penal e arts. 180, 181 e 182, todos do Código de Processo Penal Militar. Isto é, não é necessária autorização judicial quando a abordagem policial decorrer de prisão em flagrante ou cumprimento de mandado de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma ilegal ou de objetos que sirvam como elementos de prova ou sejam instrumentos ou produtos de crime ou quando ocorrer durante a realização de busca domiciliar, seja em decorrência de mandado de busca e apreensão ou em razão de flagrante delito. O art. 182, “e”, do Código de Processo Penal Militar traz hipóteses que autorizam a busca pessoal sem autorização judicial, havendo uma previsão que não se encontra prevista no Código de Processo Penal, que consiste na busca pessoal feita na presença do juiz ou do presidente do inquérito.

Afora essas hipóteses, a busca pessoal necessita de autorização judicial, como o caso em que a polícia deseja abordar um agente que não esteja em fundada suspeita e costumeiramente seja visto andando pelas ruas, o que é de difícil acontecimento prático, mas é possível ocorrer, sobretudo se envolver autoridades com prerrogativa de foro.

Pode-se citar como exemplo um parlamentar com foro por prerrogativa de função no Supremo Tribunal Federal que esteja sendo investigado e a Polícia Federal requer mandado de busca e apreensão e de busca pessoal para que sofra abordagem onde quer que seja localizado.

Elementos para a caracterização da fundada suspeita e realização da busca pessoal

A lei não especifica os critérios e elementos necessários para caracterizar a fundada suspeita e, consequentemente, justificar a realização da abordagem policial, o que cabe à doutrina e jurisprudência.

Marcelo de Lima Lessa apresenta as distinções entre mera suspeita, suspeita e fundada suspeita, a saber: “Mera suspeita é o ‘talvez seja’; suspeita é o que ‘parece ser’ (ambas são frágeis, indicam suposições ou simples desconfianças); de outra banda, a fundada suspeita (exigida pela nossa lei) é o ‘tudo leva a crer’”.[6]

Guilherme de Souza Nucci[7] explica que:

Suspeita é uma desconfiança ou suposição, algo intuitivo e frágil, por natureza, razão pela qual a norma exige fundada suspeita, que é mais concreto e seguro. Assim, quando um policial desconfiar de alguém, não poderá valer-se, unicamente, de sua experiência ou pressentimento, necessitando, ainda, de algo mais palpável, como a denúncia feita por terceiro de que a pessoa porta o instrumento usado para o cometimento do delito, bem como pode ele mesmo visualizar uma saliência sob a blusa do sujeito, dando nítida impressão de se tratar de um revólver. Enfim, torna-se impossível e impróprio enumerar todas as possibilidades autorizadoras de uma busca, mas continua sendo curial destacar que a autoridade encarregada da investigação ou seus agentes podem – e devem – revistar pessoas em busca de armas, instrumentos do crime, objetos necessários à prova do fato delituoso, elementos de convicção, entre outros, agindo escrupulosa e fundamentadamente. (grifo nosso)

Aury Lopes Júnior[8] leciona que fundada suspeita é “Uma cláusula genérica, de conteúdo vago, impreciso e indeterminado, que remete à ampla e plena subjetividade (e arbitrariedade) do policial.” E que:

Trata-se de ranço autoritário de um Código de 1941. Assim, por mais que se tente definir a “fundada suspeita”, nada mais se faz que pura ilação teórica, pois os policiais continuarão abordando quem e quando eles quiserem. Elementar que os alvos são os clientes preferenciais do sistema, por sua já conhecida seletividade. Eventuais ruídos podem surgir quando se rompe a seletividade tradicional, mas dificilmente se vai além de mero ruído. Daí por que uma mudança legislativa é imprescindível para corrigir tais distorções.

Renato Brasileiro de Lima sustenta que para que haja fundada suspeita “não basta uma simples convicção subjetiva para que se proceda à busca pessoal em alguém. Para além disso, é necessário que haja algum dado objetivo que possa ampará-la.”[9].  Norberto Avena entende que funda suspeita é a “desconfiança ou suposição, algo intuitivo e frágil”[10].

Os tribunais pouco se debruçam a respeito do conceito de fundada suspeita, sendo encontrados poucos julgados, de forma que não é possível afirmar que há jurisprudência a respeito do tema, mas sim precedentes.

O Supremo Tribunal Federal[11] já decidiu que a “fundada suspeita”, prevista no art. 244 do CPP, não pode fundar-se em parâmetros unicamente subjetivos, exigindo elementos concretos que indiquem a necessidade da revista, em face do constrangimento que causa e que não se configura a fundada suspeita a alegação de que o indivíduo trajava um “blusão” suscetível de esconder uma arma, sob risco de se referendar condutas arbitrárias, ofensivas a direitos e garantias individuais e caracterizadoras de abuso de poder.

O Superior Tribunal de Justiça já decidiu pela possibilidade de se realizar a busca pessoal nas seguintes situações:

            a) O comportamento excessivamente nervoso do indivíduo e o fato de ser conhecido pelos policiais em razão do envolvimento com o tráfico de drogas na região, caracteriza fundada suspeita, o que autoriza a realização de busca pessoal[12];

            b) O veículo parado durante a madrugada, com quatro indivíduos em seu interior caracteriza a fundada suspeita e justifica a realização da abordagem policial[13];

            c) Indivíduo que deixa para trás uma sacola ao visualizar a polícia gera fundada suspeita de que estava na posse de objetos ilícitos, o que autoriza a busca pessoal[14];

            d) A interceptação telefônica escutada antes da busca pessoal, em que a polícia constata informações da existência de documentos com o investigado que poderiam elucidar o crime investigado, torna a busca lícita[15];

            e) A abordagem policial realizada em local conhecido como sendo de intensa criminalidade atrelado ao horário noturno justifica a busca pessoal[16].

Em caso concreto no qual um agente havia escondido drogas dentro de seu próprio corpo, foi conduzido a um hospital para realizar exame radioscópico, momento em que foi constatada a existência de cápsulas de drogas em seu estômago e intestino. O Superior Tribunal de Justiça decidiu que o referido exame não consiste em autoincriminação, por constituir uma extensão da busca pessoal, como já ocorre com detectores de metais. Ponderou que a busca pessoal teve por finalidade, inclusive, preservar a própria integridade física do agente, pois as cápsulas de cocaína poderiam se romper no interior do seu corpo, causando risco de morte e que em um juízo comparativo entre os interesses envolvidos, não se mostrou desarrazoada a busca pessoal realizada.[17]

Em outro caso, um agente passou por uma busca pessoal realizada pela Polícia Militar, sendo narrado pelos policiais que o prenderam que avistaram de longe, em via pública, um indivíduo de cor negra e que um veículo estava parado junto a ele como se estivesse vendendo/comprando algo e que o indivíduo ao perceber a aproximação da viatura policial mudou o semblante e saiu andando sorrateiramente jogando algo no chão. O Ministro Relator Sebastião Reis Júnior, do Superior Tribunal de Justiça, consignou em seu voto que “o que despertou a fundada suspeita do policial militar, a justificar a busca pessoal no agente, foi originariamente a cor da pele, uma vez que avistou, ao longe, um indivíduo de cor negra em pé, no meio-fio da via pública, parado junto a um veículo” e destacou que “a cor da pele foi o fator que primeiramente despertou a atenção do agente de segurança pública, o que não pode ser admitido”, e decretou a nulidade da busca pessoal e, consequentemente, absolveu o agente. No entanto, o voto do relator não prevaleceu, tendo a 6ª Turma do STJ decidido que o uso da expressão “cor negra” foi mera descrição da pessoa envolvida e foi reconhecida a legalidade da busca pessoal e das provas produzidas.[18]

Nos seguintes casos o Superior Tribunal de Justiça decidiu pela impossibilidade de se realizar a busca pessoal:

            a) A mera indicação de que o agente, primário e sem antecedentes, era conhecido da guarnição pela prática do crime de tráfico de drogas, tendo em vista que diversos usuários já assumiram ter comprado drogas do abordado, fatos estes que nunca foram oficializados porque referidas pessoas têm muito medo, já que se trata de traficante supostamente faccionado, bem como de haver notícias de que referido automóvel seria utilizado para a prática do crime de tráfico de drogas, não se revela suficiente para justificar a busca pessoal. Não tendo havido a indicação sobre a instauração de procedimento investigatório prévio ou de que, no momento da abordagem, havia dado concreto sobre a existência de fundada suspeita a autorizar a busca veicular, verifica-se a ocorrência de ilegalidade, estando ausente de razoabilidade considerar que, por si só, meros parâmetros subjetivos, embasados em presunções ou suposições, advindas de denúncias de usuários não oficializadas, enquadrem-se na excepcionalidade da revista pessoal[19];

            b) Indivíduo que apresenta o comportamento de alguém que está perdido ou a procura de informações, ou ainda assustado, não se enquadra no conceito de fundada suspeita, sendo a realização de busca pessoal ilícita[20];

            c) Indivíduo que procura ingressar em condomínio, mas morador recusa a recebê-lo, ocasião em que este demonstra inconformidade, não caracteriza fundada suspeita, razão pela qual a realização de busca pessoal é ilícita[21];

            d) Indivíduo que demonstra comportamento nervoso, sem nenhum indicativo concreto de possuir objetos ilícitos, não legitima a busca pessoal.[22]

            e) Denúncia anônima, intuição policial (tirocínio policial), busca de rotina com finalidade preventiva, nervosismo da pessoa e a ausência de descrição concreta de fatos que caracterizem a fundada suspeita tornam a busca pessoal ilegal.[23]

Como se pode notar a doutrina e a jurisprudência não apresentam um conceito fechado do que seja fundada suspeita, dependendo da análise de cada caso. O conceito de fundada suspeita na verdade é aberto, genérico, vago, impreciso, indeterminado. Não há parâmetros seguros que definem se uma pessoa se encontra em fundada suspeita, sendo o controle de legalidade realizado posteriormente à abordagem, pelo Poder Judiciário, caso seja encontrada alguma ilegalidade, como armas e drogas.

A constatação se o agente se encontra em situação que caracterize fundada suspeita deve ocorrer antes da realização da abordagem policial, sob pena da apreensão de eventuais provas (drogas e armas, por exemplo) serem consideradas ilícitas. Aplica-se aqui o mesmo entendimento que o Supremo Tribunal Federal aplicou às buscas domiciliares decorrentes das situações de crime permanente, ao fixar a tese de que “A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados.”

De fato, o conceito de fundada suspeita varia de acordo com o intérprete, o que causa insegurança jurídica, sendo necessário traçar balizas que possam contribuir com a identificação de uma pessoa em atitude que caracterize a fundada suspeita.

Dessa forma, o local, o contexto e o comportamento do indivíduo são critérios que podem ser analisados para fins de caracterização da fundada suspeita.

Local: os policiais que trabalham na rua conhecem, objetivamente, os locais de maior incidência criminal e que apresentam maiores riscos para os transeuntes, comércio, veículos em circulação, residências. Esse conhecimento do policial não pode ser desprezado, pois decorre de dados objetivos (índices de criminalidade) e da experiência profissional que é adquirida ao longo do tempo, o que se denomina “tirocínio”. Tome como exemplo uma busca pessoal realizada em um local conhecido como “ponto de tráfico” (boca de fumo). A presença de um indivíduo, por si só, nesse local, justifica a abordagem policial.

Contexto: o contexto refere-se a todas as circunstâncias do fato e conhecimento, por parte dos policiais, do que está ocorrendo na região no momento da abordagem. Cada contexto enseja uma fundada suspeita diversa. Se houve um roubo a mão armada sendo passadas as características de que houve a participação de dois agentes, um com camisa preta, de cor branca e o outro alto e magro, pessoas com características semelhantes poderão ser abordadas pelos policiais. Por outro lado, se não houve nenhuma notícia da prática de crime, mas moradores informam à polícia que há uma pessoa desconhecida no bairro, com um volume na cintura, há indicativos de fundada suspeita que legitima a busca pessoal. A depender da cidade e do bairro em que os policiais trabalham, estes conhecem todos os moradores, inclusive, pelo nome, sendo justificável a abordagem policial de desconhecidos em uma determinada rua pacata e frequentada somente por moradores locais.

Comportamento do indivíduo: o comportamento do indivíduo é, certamente, um dos principais fundamentos para se realizar a abordagem policial. O nervosismo, a mudança de trajeto e a dispensa de objetos ao visualizar a viatura policial, correr da polícia, o cheiro de droga, a alta velocidade no trânsito em via de baixa velocidade e o fato de possuir qualquer sinal de anormalidade no local em que está, como objetos volumosos em partes do corpo, são fundamentos que caracterizam a fundada suspeita e legitima a abordagem policial.

   Em que pese o nervosismo ser um importante indicador, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que a busca veicular lastreada apenas em supostos comportamento nervoso do agente, sem nenhum indicativo concreto da existência de substância ilícitas no interior do automóvel, é ilegal, ainda que se localize, posteriormente, expressiva quantidade de droga.[24]

Não é necessária a presença cumulativa desses critérios, sendo suficiente a presença de um deles.

Os treinos policiais, a vivência, experiência, lida diária com a criminalidade, o enfrentamento do crime, o conhecimento prático e teórico que os policiais possuem formam o seu tirocínio policial, o que, para o Código de Processo Penal, doutrina e jurisprudência, não legitima, por si só, a busca pessoal.

O tirocínio policial deve estar atrelado a outros elementos que permitam “objetivar” os fundamentos da busca pessoal, não sendo suficientes a presença somente de elementos subjetivos, que consistem na concepção estritamente subjetiva do policial de que determinada pessoa porte drogas ou armas.

Suspeita é uma suposição, uma imaginação, uma desconfiança. É um elemento frágil. Note que por ser a abordagem policial uma medida invasiva, não é suficiente a simples “suspeita”, sendo necessário que esta seja fundada, o que vai além da suposição, imaginação e da desconfiança, como um volume na cintura, uma denúncia anônima, uma ligação 190 com passagem de informações, dentre os fatores abordados acima ao tratarmos do local, contexto e comportamento do indivíduo. O tirocínio policial não é aceito pela doutrina e jurisprudência como “fundada suspeita” para legitimar a abordagem policial, mas do tirocínio policial é possível diligenciar e observar o indivíduo com o fim de possuir elementos objetivos que legitimarão a busca pessoal.

Por ser a busca pessoal, quando detectada a fundada suspeita, de natureza urgente, a própria lei dispensa a necessidade de autorização judicial.

Após a realização da busca pessoal na rua e nada sendo encontrado com o abordado é recomendável que os policiais expliquem os motivos da abordagem e o trabalho feito pela polícia no intuito de prevenir a ocorrência de crimes e que a abordagem é feita para a própria segurança da sociedade. Dizer que a abordagem é de rotina não é fundamento que justifique a sua realização, já que o art. 244 do Código de Processo Penal exige a presença de fundada suspeita e ao se limitar a explicar os fundamentos da abordagem como sendo de rotina possibilita que qualquer pessoa seja abordada sem que haja critérios justificáveis.

O Superior Tribunal de Justiça no RHC 158.580/BA, julgado em 19/04/2022, discorreu sobre diversos aspectos da busca pessoal que servem de paradigma para as instituições policiais em se tratando de abordagem policial, cujos apontamentos a seguir são relevantes, conforme se extrai da ementa e do interior teor do voto do relator, seguido por unanimidade.

            a) Exige-se, em termos de standard probatório para busca pessoal ou veicular sem mandado judicial, a existência de fundada suspeita (justa causa) – baseada em um juízo de probabilidade, descrita com a maior precisão possível, aferida de modo objetivo e devidamente justificada pelos indícios e circunstâncias do caso concreto – de que o indivíduo esteja na posse de drogas, armas ou de outros objetos ou papéis que constituam corpo de delito, evidenciando-se a urgência de se executar a diligência.

            b) A normativa constante do art. 244 do CPP não se limita a exigir que a suspeita seja fundada. É preciso, também, que esteja relacionada à “posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito”. Vale dizer, há uma necessária referibilidade da medida, vinculada à sua finalidade legal probatória, a fim de que não se converta em salvo-conduto para abordagens e revistas exploratórias (fishing expeditions), baseadas em suspeição genérica existente sobre indivíduos, atitudes ou situações, sem relação específica com a posse de arma proibida ou objeto (droga, por exemplo) que constitua corpo de delito de uma infração penal. O art. 244 do CPP não autoriza buscas pessoais praticadas como “rotina” ou “praxe” do policiamento ostensivo, com finalidade preventiva e motivação exploratória, mas apenas buscas pessoais com finalidade probatória e motivação correlata.

            c) Não satisfazem a exigência legal, por si sós, meras informações de fonte não identificada (e.g. denúncias anônimas) ou intuições e impressões subjetivas, intangíveis e não demonstráveis de maneira clara e concreta, apoiadas, por exemplo, exclusivamente, no tirocínio policial. Ante a ausência de descrição concreta e precisa, pautada em elementos objetivos, a classificação subjetiva de determinada atitude ou aparência como suspeita, ou de certa reação ou expressão corporal como nervosa, não preenche o standard probatório de “fundada suspeita” exigido pelo art. 244 do CPP.

            d) O fato de encontrar objetos ilícitos – independentemente da quantidade – após a revista não convalida a ilegalidade prévia, pois é necessário que o elemento “fundada suspeita de posse de corpo de delito” seja aferido com base no que se tinha antes da diligência. Se não havia fundada suspeita de que a pessoa estava na posse de arma proibida, droga ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, não há como se admitir que a mera descoberta casual de situação de flagrância, posterior à revista do indivíduo, justifique a medida.

            e) A violação dessas regras e condições legais para busca pessoal resulta na ilicitude das provas obtidas em decorrência da medida, bem como das demais provas que dela decorrerem em relação de causalidade, sem prejuízo de eventual responsabilização penal do(s) agente(s) público(s) que tenha(m) realizado a diligência.

            f) Há três razões principais para que se exijam elementos sólidos, objetivos e concretos para a realização de busca pessoal – vulgarmente conhecida como “dura”, “geral”, “revista”, “enquadro” ou “baculejo” –, além da intuição baseada no tirocínio policial:

                        1ª) evitar o uso excessivo desse expediente e, por consequência, a restrição desnecessária e abusiva dos direitos fundamentais à intimidade, à privacidade e à liberdade (art. 5º, caput, e X, da Constituição Federal), porquanto, além de se tratar de conduta invasiva e constrangedora – mesmo se realizada com urbanidade, o que infelizmente nem sempre ocorre –, também implica a detenção do indivíduo, ainda que por breves instantes;

                        2ª) garantir a sindicabilidade da abordagem, isto é, permitir que tanto possa ser contrastada e questionada pelas partes, quanto ter sua validade controlada a posteriori por um terceiro imparcial (Poder Judiciário), o que se inviabiliza quando a medida tem por base apenas aspectos subjetivos, intangíveis e não demonstráveis;

                        3ª) evitar a repetição – ainda que nem sempre consciente – de práticas que reproduzem preconceitos estruturais arraigados na sociedade, como é o caso do perfilamento racial, reflexo direto do racismo estrutural.

            g) Em um país marcado por alta desigualdade social e racial, o policiamento ostensivo tende a se concentrar em grupos marginalizados e considerados potenciais criminosos ou usuais suspeitos, assim definidos por fatores subjetivos, como idade, cor da pele, gênero, classe social, local da residência, vestimentas etc. Sob essa perspectiva, a ausência de justificativas e de elementos seguros a legitimar a ação dos agentes públicos –– diante da discricionariedade policial na identificação de suspeitos de práticas criminosas – pode fragilizar e tornar írritos os direitos à intimidade, à privacidade e à liberdade.

            h) “Os enquadros se dirigem desproporcionalmente aos rapazes negros moradores de favelas dos bairros pobres das periferias. Dados similares quanto à sobrerrepresentação desse perfil entre os suspeitos da polícia são apontados por diversas pesquisas desde os anos 1960 até hoje e em diferentes países do mundo. Trata-se de um padrão consideravelmente antigo e que ainda hoje se mantém, de modo que, ao menos entre os estudiosos da polícia, não existe mais dúvida de que o racismo é reproduzido e reforçado através da maior vigilância policial a que é submetida a população negra”. Mais do que isso, “os policiais tendem a enquadrar mais pessoas jovens, do sexo masculino e de cor negra não apenas como um fruto da dinâmica da criminalidade, como resposta a ações criminosas, mas como um enviesamento no exercício do seu poder contra esse grupo social, independentemente do seu efetivo engajamento com condutas ilegais, por um direcionamento prévio do controle social na sua direção” (DA MATA, Jéssica, A Política do Enquadro, São Paulo: RT, 2021, p. 150 e 156).

            i) A pretexto de transmitir uma sensação de segurança à população, as agências policiais – em verdadeiros “tribunais de rua” – cotidianamente constrangem os famigerados “elementos suspeitos” com base em preconceitos estruturais, restringem indevidamente seus direitos fundamentais, deixam-lhes graves traumas e, com isso, ainda prejudicam a imagem da própria instituição e aumentam a desconfiança da coletividade sobre ela.

            j) Daí a importância, como se tem insistido desde o julgamento do HC n. 598.051/SP (Rel. Ministro Rogerio Schietti, 6ª T., DJe 15/3/2021), do uso de câmeras pelos agentes de segurança, a fim de que se possa aprimorar o controle sobre a atividade policial, tanto para coibir práticas ilegais, quanto para preservar os bons policiais de injustas e levianas acusações de abuso. Sobre a gravação audiovisual, aliás, é pertinente destacar o recente julgamento pelo Supremo Tribunal Federal dos Embargos de Declaração na Medida Cautelar da ADPF n. 635 (“ADPF das Favelas”, finalizado em 3/2/2022), oportunidade na qual o Pretório Excelso – em sua composição plena e em consonância com o decidido por este Superior Tribunal no HC n. 598.051/SP – reconheceu a imprescindibilidade de tal forma de monitoração da atividade policial e determinou, entre outros pontos, que “o Estado do Rio de Janeiro, no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, instale equipamentos de GPS e sistemas de gravação de áudio e vídeo nas viaturas policiais e nas fardas dos agentes de segurança, com o posterior armazenamento digital dos respectivos arquivos”.

            k) Mesmo que se considere que todos os flagrantes decorrem de busca pessoal – o que por certo não é verdade –, as estatísticas oficiais das Secretarias de Segurança Pública apontam que o índice de eficiência no encontro de objetos ilícitos em abordagens policiais é de apenas 1%; isto é, de cada 100 pessoas revistadas pelas polícias brasileiras, apenas uma é autuada por alguma ilegalidade. É oportuno lembrar, nesse sentido, que, em Nova Iorque, o percentual de “eficiência” das stop and frisks era de 12%, isto é, 12 vezes a porcentagem de acerto da polícia brasileira, e, mesmo assim, foi considerado baixo e inconstitucional em 2013, no julgamento da class action Floyd, et al. v. City of New York, et al. pela juíza federal Shira Scheindlin.

            l) Conquanto as instituições policiais hajam figurado no centro das críticas, não são as únicas a merecê-las. É preciso que todos os integrantes do sistema de justiça criminal façam uma reflexão conjunta sobre o papel que ocupam na manutenção da seletividade racial. Por se tratar da “porta de entrada” no sistema, o padrão discriminatório salta aos olhos, à primeira vista, nas abordagens policiais, efetuadas principalmente pela Polícia Militar. No entanto,  essas práticas só se perpetuam porque, a pretexto de combater a criminalidade, encontram respaldo e chancela, tanto de delegados de polícia, quanto de representantes do Ministério Público – a quem compete, por excelência, o controle externo da atividade policial (art. 129, VII, da Constituição Federal) e o papel de custos iuris –, como também, em especial, de segmentos do Poder Judiciário, ao validarem medidas ilegais e abusivas perpetradas pelas agências de segurança.

            m) O Manual do Conselho Nacional de Justiça para Tomada de Decisão na Audiência de Custódia orienta a que: “Reconhecendo o perfilamento racial nas abordagens policiais e, consequentemente, nos flagrantes lavrados pela polícia, cabe então ao Poder Judiciário assumir um papel ativo para interromper e reverter esse quadro, diferenciando-se dos atores que o antecedem no fluxo do sistema de justiça criminal”

            n) Em paráfrase ao mote dos movimentos antirracistas, é preciso que sejamos mais efetivos ante as práticas autoritárias e violentas do Estado brasileiro, pois enquanto não houver um alinhamento pleno, por parte de todos nós, entre o discurso humanizante e ações verdadeiramente transformadoras de certas práticas institucionais e individuais, continuaremos a assistir, apenas com lamentos, a morte do presente e do futuro, de nosso país e de sua população mais invisível e vulnerável. E não realizaremos o programa anunciado logo no preâmbulo de nossa Constituição, de construção de um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.

Distinção entre fundada suspeita e fundadas razões

A fundada suspeita legitima a busca pessoal, na forma do art. 244 do Código de Processo Penal e possui um menor rigor do que as fundadas razões, tanto é que o Superior Tribunal de Justiça decidiu que a mera intuição acerca de eventual traficância praticada pelo agente autoriza a abordagem policial (busca pessoal) em via pública para averiguação, o que, no entanto, não autoriza o ingresso em domicílio.[25]

O art. 244 do Código de Processo Penal exige a presença de fundada suspeita para a realização de busca pessoal, enquanto o art. 240, § 1º, do CPP exige a presença de fundadas razões para a realização de busca domiciliar, termo este inclusive utilizado pelo Supremo Tribunal Federal no RE n. 603.616/RO, que fixou as balizas necessárias para legitimar o ingresso da polícia em residência nos casos de flagrante.

Art. 240. A busca será domiciliar ou pessoal. § 1o Proceder-se-á à busca domiciliar, quando fundadas razões a autorizarem, para:  Art. 244. A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar.

O conceito de fundada suspeita e de fundadas razões não se encontram definidos pela lei, sendo verdadeiros conceitos abertos e que depende do intérprete.             Guilherme de Souza Nucci explica que suspeita é uma desconfiança ou suposição, algo intuitivo e frágil, por natureza, razão pela qual a norma exige fundada suspeita, que é mais concreto e seguro. Em relação às fundadas razões, Nucci ensina que significa a existência de indícios razoáveis de materialidade e autoria.[26]

Norberto Avena[27] leciona que:

Por fundadas razõescompreende-se o conjunto de elementos objetivos que permitem ao juiz formar sua convicção quanto a possuir, efetivamente, o indivíduo, em seu domicílio, o material objeto da diligência. Já por fundadas suspeitasentende-se a desconfiança ou suposição, algo intuitivo e frágil, diferindo, pois, do conceito de fundadas razões, que requer uma maior concretude quanto à presença dos motivos que ensejam a busca domiciliar. A motivação, na busca pessoal, encontra-se no subjetivismo da autoridade que a determinar ou executar.

Em que pese a jurisprudência utilizar os termos “fundada suspeita” e “fundadas razões” sem o rigor técnico, pois esses conceitos acabam se confundindo nas fundamentações e são utilizados indistintamente, possuem importante distinção jurídica e prática, na medida em que o primeiro autoriza a busca pessoal sem mandado, mas não autoriza a busca domiciliar sem mandado, enquanto o segundo autoriza a busca pessoal e a busca domiciliar sem autorização judicial.

Para o Superior Tribunal de Justiça, a fuga para o interior de residência ao avistar o policial, que se encontra em diligência de trânsito de rotina, justifica a abordagem policial fora da residência. Nota-se haver um maior rigor na análise do ingresso em domicílio, pois a inviolabilidade domiciliar é um direito fundamental.

Esquematicamente, os conceitos ora estudados podem assim serem visualizados.

Fundada suspeitaFundadas razões
Arts. 240, § 2º, e 244, ambos do CPPArt. 240, § 1º, do CPP
Conceito vagoConceito vago
Desconfiança, suposição atrelada a algum elemento concreto[28], como um objeto na cintura por debaixo da blusa que pode ser uma arma.Indícios razoáveis de materialidade e autoria da prática de crime.
Autoriza a busca pessoalAutoriza a busca pessoal
Não autoriza a busca domiciliarAutoriza a busca domiciliar
Há um menor rigor para a exigência da fundada suspeitaHá um maior rigor para a exigência das fundadas razões
Exemplos: 1. Indivíduo que corre ao visualizar a polícia pode ser abordado na rua.   2. Indivíduo é visualizado com um objeto por debaixo da blusa, parecido com uma arma de fogo, em razão do volume, justifica a busca pessoal.   3. Indivíduo é visto em local conhecido como ponto de tráfico, o que caracteriza a fundada suspeita e justifica a busca pessoal.   4. Indivíduo é visto vendendo drogas em uma movimentação atípica na porta de sua residência, o que é constatado após a realização de campana e abordagem de usuários que compraram a droga. Quando o agente comparecer na porta de sua residência será possível realizar a busca pessoal.Exemplos: 1. Indivíduo que corre ao visualizar a polícia não pode ser abordado, caso entre em sua residência. 2. Indivíduo é visualizado com um objeto por debaixo da blusa, parecido com uma arma de fogo, em razão do volume, dentro de sua casa, que possui portão de grade, não justifica a busca domiciliar. 3. Indivíduo é visto em local conhecido como ponto de tráfico, o que, por si só, não justifica a busca domiciliar.   4. Indivíduo é visto vendendo drogas em uma movimentação atípica na porta de sua residência, o que é constatado após a realização de campana e abordagem de usuários que compraram a droga. A polícia poderá realizar busca domiciliar sem autorização judicial.  

Considerações finais

A abordagem policial é um dos principais instrumentos jurídicos de trabalho dos policiais, o que torna essencial, por parte dos policiais, o conhecimento da lei, da doutrina e da jurisprudência, que foi um dos propósitos deste artigo.

A discricionariedade na realização da busca pessoal reside na constatação dos elementos da fundada suspeita, na análise, pelo policial, se há fundada suspeita, a qual, após ser detectada, em tese, torna-se um ato vinculado, isto é, obriga o policial à sua realização, já que o art. 240, § 2º, do Código de Processo Penal é incisivo ao dizer que proceder-se-á – note a determinação legal ao usar o verbo “proceder” no futuro do presente do indicativo – à busca pessoal quando houver fundada suspeita e o art. 244, do mesmo diploma legal, preconiza que a busca pessoal independerá de mandado no caso de fundada suspeita, em razão da impossibilidade de se esperar uma decisão judicial, dada a urgência da medida e em observância ao princípio da oportunidade, além de ser obrigação do policial atuar na preservação da ordem pública (art. 144 da CF). Dessa forma, é possível falar que o policial, ao realizar a busca pessoal, atua no estrito cumprimento do dever legal.

O Superior Tribunal de Justiça já decidiu que “não se mostra razoável conferir a um servidor da segurança pública total discricionariedade para, a partir de mera suposição (algo intuitivo e frágil,), sair revistando as pessoas pela rua e seus pertences e, então, verificar se com elas há ou não alguma substância entorpecente. A ausência de justificativas e de elementos seguros a autorizar a busca pessoal pode acabar esvaziando o próprio direito à privacidade e à intimidade de sua condição fundamental.”[29]

A abordagem policial tem por dever prevenir delitos e condutas ofensivas à ordem pública e decorre do poder de polícia.[30]

Sempre que o policial realizar abordagens e registrar ocorrências é prudente que especifique no registro quais elementos o levaram a realizar a busca pessoal, com a finalidade de atender ao disposto no art. 244 do Código de Processo Penal, até porque quando for ser ouvido na justiça, caso seja questionado, dificilmente vai se lembrar de quais elementos, dados, circunstâncias foram utilizados para a realização da busca pessoal e não há nenhuma vedação à consulta a apontamentos por parte do policial durante a audiência (art. 204, parágrafo único, do CPP). Pode imprimir o Boletim de Ocorrência, ler antes da audiência e levar um pequeno papel com tópicos para se recordar.[31]

A busca pessoal que resulte na apreensão de objetos ilegais, como armas e drogas, sem que seja procedida de fundada suspeita acarreta ilegalidade da apreensão dos bens, razão pela qual é de fundamental importância que os policiais especifiquem as razões da busca pessoal. Isto é, a localização de objetos ilícitos “por sorte” não legitima a abordagem, já que a constatação da fundada suspeita deve ser prévia à sua realização, sob pena das provas serem consideradas ilícitas na forma do art. 157 do Código de Processo Penal.

A Lei n. 13.869/19 – Lei de Abuso de Autoridade – prevê no artigo 25 que constitui abuso de autoridade o ato de “Proceder à obtenção de prova, em procedimento de investigação ou fiscalização, por meio manifestamente ilícito”. Diante dessa previsão, o policial que realiza a abordagem, prende e, posteriormente, o judiciário reconhece a ilegalidade da abordagem, por ausência de fundada suspeita, incide nesse crime? Como os requisitos da fundada suspeita possuem um grau de subjetividade, não é possível se falar em “meio manifestamente ilícito”. Pode até ser ilícito na avaliação dos julgadores, mas a manifesta ilicitude é de difícil caracterização, em razão do subjetivismo na análise dos requisitos da fundada suspeita, que varia de intérprete para intérprete e a divergência na avaliação dos fatos não configura abuso de autoridade (art. 1º, § 2º). Além do mais, a abordagem policial realizada no dia a dia, durante o policiamento ostensivo, tem por fim prevenir a ocorrência de crimes e fiscalizar se os abordados portam objetos ilegais, o que afasta o dolo específico de abusar da autoridade (art. 1º, 1º).

O mesmo raciocínio se aplica ao art. 33 da Lei de Abuso de Autoridade, que prescreve ser crime “Exigir informação ou cumprimento de obrigação, inclusive o dever de fazer ou de não fazer, sem expresso amparo legal”. A partir do momento em que o policial, na rua, determina que uma pessoa coloque as mãos na cabeça e vire de costas para passar pela abordagem, impõe um dever de fazer, ainda que momentâneo e rápido. Caso não esteja presente a fundada suspeita, não há amparo legal para assim proceder. Contudo, a ausência de amparo legal não é expressa, pois a fundada suspeita encontra previsão em lei, sendo a divergência somente quanto aos requisitos da fundada suspeita – avaliação dos fatos -, o que impede a prática de abuso de autoridade (art. 1º, § 2º). De mais a mais, não se encontra presente, também, o dolo específico de abusar da autoridade (art. 1º, 1º).

Caso o policial realize a busca pessoal em uma pessoa que não gosta, por questões pessoais, e sempre que a visualiza na rua realiza abordagem policial, sem nenhum fundamento, com o intuito único e exclusivo de demonstrar poder e expor o abordado, praticará o crime de abuso de autoridade previsto no art. 33 da Lei n. 13.869/19.

REFERÊNCIAS

ANUNCIAÇÃO, Diana; TRAD, Leny Alves Bonfim; FERREIRA, Tiago. “Mão na cabeça!”: abordagem policial, racismo e violência estrutural entre jovens negros de três capitais do nordeste. Saúde e Sociedade, [S.L.], v. 29, n. 1, 2020. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/s0104-12902020190271. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-12902020000100305&tlng=pt. Acesso em: 14 fev. 2021.

AVENA, Norberto. Processo Penal. 10. ed. São Paulo: Editora Método, 2018.

HOFFMANN, Henrique. Além de investigativa, busca pessoal pode ser preventiva. Disponível em:<https://www.conjur.com.br/2017-set-05/academia-policia-alem-investigativa-busca-pessoal-preventiva>. Acesso em: 15 fev. 2021.

LESSA, Marcelo de Lima. Busca pessoal processual, busca pessoal preventiva e fiscalização policial: legalidade e diferenças. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5482, 5 jul. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/61753. Acesso em: 17 fev. 2021.

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 7. ed. Salvador: Juspodivm, 2020.

LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2020.

NASSARO, Adilson Luís Franco. A busca pessoal e suas classificações. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1356, 19 mar. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9608. Acesso em: 18 fev. 2021.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 19ª. ed. ver., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2020.


[1]             Nesse sentido decidiu o Superior Tribunal de Justiça no que tange ao mandado de prisão:  RHC 118.451/PR, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, 6ª Turma, julgado em 04/08/2020, DJe 12/08/2020.

[2]             REsp 1.120.113/SP, Relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe de 10/10/2011 e STJ – REsp: 1685575 SP 2017/0157723-3, Relator: Ministro HERMAN BENJAMIN, Data de Julgamento: 03/10/2017, T2 – SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 16/10/2017.

[3]             APn 843/DF, Rel. Ministro Herman Benjamin, Corte Especial, j. em 06/12/2017, DJe 01/02/2018.

[4] AgRg no HC 597.923/SP, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 20/10/2020, DJe 26/10/2020.

[5]             HC 470.937/SP, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em 04/06/2019, DJe 17/06/2019.

[6]            LESSA, Marcelo de Lima. Busca pessoal processual, busca pessoal preventiva e fiscalização policial: legalidade e diferenças. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5482, 5 jul. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/61753. Acesso em: 17 fev. 2021.

[7] NUCCI, Guilherme de Souza.  Manual de processo penal e execução penal. 11. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014.  p. 473.

[8] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2020.

[9] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 7. ed. Salvador: Juspodivm, 2020.

[10] AVENA, Norberto. Processo Penal. 10. ed. São Paulo: Editora Método, 2018.

[11] STF – HC: 81305 GO, Relator: Ilmar Galvão, Data de Julgamento: 13/11/2001, Primeira Turma, Data de Publicação: DJ 22-02-2002.

[12]           HC 614.339/SP, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, j. 09/02/2021, DJe 11/02/2021.

[13]           AgRg no AREsp 1403409/RS, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, j. 26/03/2019, DJe 04/04/2019

[14]           HC 552.395/SP, Rel. Ministro Jorge Mussi, 5ª Turma, j. em 20/02/2020, DJe 05/03/2020.

[15]           HC 216.437/DF, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, 6ª Turma, j. em 20/09/2012, DJe 08/03/2013.

[16]           No caso o Superior Tribunal de Justiça não adentrou ao mérito, sob o argumento de que “Se o Tribunal de origem, mediante valoração do acervo probatório produzido nos autos, entendeu, de forma fundamentada, ser ‘legítima’ a abordagem policial questionada, tendo em vista o local e o horário em que o paciente foi abordado, não cabe a Esta Corte análise acerca da alegada ausência de ‘fundada suspeita’, na medida em que demandaria exame detido de provas, inviável em sede de writ.”, em que pese ter adentrado ao mérito em outros casos que envolviam. HC 385.110/SC, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, 5ª Turma, julgado em 06/06/2017, DJe 14/06/2017.

[17] STJ – HC 257.002/SP, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, 5ª Turma, julgado em 17/12/2013, DJe 19/12/2013.

[18] STJ – HC: 660930 SP 2021/0116975-6, Relator: Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Data de Publicação: DJ 26/04/2021

[19]           AgRg no AREsp 1689512/SC, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, 6ª Turma, j. em 18/08/2020, DJe 26/08/2020.

[20]           HC 529.554/SP, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, 6ª Turma, j. em 10/12/2019, DJe 13/12/2019.

[21]           REsp 1576623/RS, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, j. em 08/10/2019, DJe 14/10/2019.

[22] STJ – HC: 695815 SP 2021/0307186-5, Relator: Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Data de Publicação: DJ 09/11/2021.

[23]  RHC 158.580/BA, Rel. Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, j. 19/04/2022.

[24] STJ – HC: 695815 SP 2021/0307186-5, Relator: Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Data de Publicação: DJ 09/11/2021.

[25] STJ, HC 415332, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, j. em 16/08/2018.

[26] NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 19ª. ed. ver., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2020.

[27] AVENA, Norberto. Processo Penal. 10. ed. São Paulo: Editora Método, 2018.

[28]          “A ‘fundada suspeita’, prevista no art. 244 do CPPnão pode fundar-se em parâmetros unicamente subjetivosexigindo elementos concretos que indiquem a necessidade da revista, em face do constrangimento que causa. Ausência, no caso, de elementos dessa natureza, que não se pode ter por configurados na alegação de que trajava, o paciente, um” blusão “suscetível de esconder uma arma, sob risco de referendo a condutas arbitrárias ofensivas a direitos e garantias individuais e caracterizadoras de abuso de poder. Habeas corpus deferido para determinar-se o arquivamento do Termo. (HC 81305, Min. ILMAR GALVÃO, DJ 22-02-2002).

[29]           STJ – REsp: 1576623 RS 2016/0003404-9, Relator: Ministro Rogerio Schietti Cruz, Data de Julgamento: 08/10/2019, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 14/10/2019 .

[30]           HC 385.110/SC, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, 5ª Turma, julgado em 06/06/2017, DJe 14/06/2017.

[31]           Interpretação extraída do seguinte julgado: STJ – RHC 104.682/MG, j. 13/12/2018.

Porte de arma nas eleições 2022 de acordo com a Resolução n. 23.669/2021 do Tribunal Superior Eleitoral

A Resolução n. 23.669/2021, que trata dos atos gerais das eleições 2022, foi alterada para tratar do porte de armas nas 48 horas que antecedem o pleito e nas 24 horas que o sucedem.

O art. 154 passou a prever o seguinte:

Art. 154. A força armada se conservará a 100 metros da seção eleitoral e não poderá se aproximar do local da votação e não poderá adentrar sem ordem judicial ou do presidente da mesa receptora nas 48 horas que antecedem o pleito e nas 24 horas que o sucedem, exceto nos estabelecimentos penais e nas unidades de internação de adolescentes, respeitado o sigilo de voto.

§ 1º A redação prevista no caput não se aplica aos integrantes das forças de segurança em serviço junto à Justiça Eleitoral e quando autorizado ou convocados pela autoridade eleitoral competente.

§ 2º A previsão prevista no caput desse artigo aplica-se inclusive aos civis que carreguem armas, ainda que detentores de porte ou licença estadual.

§ 3º Aos agentes de força de segurança pública que se encontrem em atividade geral de policiamento no dia das eleições, fica permitido o porte de arma de fogo na seção eleitoral no momento que forem votar, não se aplicando, excepcionalmente, a restrição prevista no caput.

§ 4º Os tribunais, juízas e juízes eleitorais, no âmbito das respectivas circunscrições, poderão solicitar à presidência do TSE, a extensão da vedação constante no caput do parágrafo 2º deste artigo aos locais que necessitem de idêntica proteção.

§ 5º. O Tribunal Superior Eleitoral no exercício do seu poder regulamentar e de polícia adorará todas as providências necessárias para tornar efetiva essas vedações, mediante resolução ou portaria considerada a urgência.

§ 6º. O descumprimento do caput e parágrafo 2º desse artigo acarretará a prisão em flagrante por porte ilegal de arma, sem prejuízo do crime eleitoral correspondente.

Nota-se pela leitura do artigo acima que somente é possível que militares das Forças Armadas se aproximem do local da votação, se houver autorização ou ordem judicial ou do presidente da mesa receptora, com exceção dos estabelecimentos penais e nas unidades de internação de adolescentes.

Em se tratando de policiais e militares das instituições de segurança pública que estejam em serviço junto à Justiça Eleitoral, poderão, quando autorizados ou convocados pelo juiz eleitoral ou presidente da mesa receptora, permanecerem armados nas proximidades do local de votação.

Os policiais e militares que no dia das eleições estejam em qualquer atividade de policiamento poderão portar armas de fogo na seção eleitoral quando forem votar.

Os civis que possuem porte de arma, em nenhum caso, poderão se aproximar do local de votação armados ou votarem armados.

Aquele que descumprir a determinação do Tribunal Superior Eleitoral incidirá na prática do crime de porte ilegal de arma de fogo (art. 14 da Lei n. 10.826/03).

Esquematicamente, o cenário pode assim ser visualizado:

Quem?Pode portar arma ao votar?PrevisãoConsequência
Militar do Exército de serviço.Sim. A regra é que permaneça a 100 metros da seção eleitoral e somente se aproxime mediante autorização/ordem judicial ou do presidente da mesa receptora.Art. 154, caput, §§ 1º e 3º da Resolução n. 23.669/2021.Não há, por se tratar de exercício regular de um direito.
Policial Civil, Federal, Rodoviária Federal, Penal e Guarda Municipal.Sim, desde que esteja em atividade geral de policiamento. A norma dá a entender que abrange somente os policiais e guardas que estejam de serviço na rua. E os policiais que trabalham em delegacia, presídio ou internamente? Obviamente, não vão sair na rua uniformizados e sem arma. Seria o caso de trocarem de roupa e deixarem a arma na delegacia/presídio? É um tema bem polêmico.  Entendo que deve ser feita uma interpretação extensiva para abranger também todos os policiais que estejam de serviço no dia, não somente na rua.Art. 154, caput, § 3º da Resolução n. 23.669/2021.Não há, por se tratar de exercício regular de um direito.   Observação: caso o meu entendimento não prevaleça poderá ser interpretado como crime de porte ilegal de arma de fogo (art. 154, § 6º, da Resolução n. 23.669/21 c/c art. 14 da Lei n. 10.826/03).  
Policial MilitarSim. A maioria dos policiais trabalha na rua no dia das eleições, logo, para os policiais militares não haverá maiores discussões. O militar que trabalhar no quartel no dia das eleições estará em apoio à atividade geral de policiamento.Art. 154, caput, § 3º da Resolução n. 23.669/2021.Não há, por se tratar de exercício regular de um direito.  
Policiais e militares que não estejam de serviçoNão.Art. 154, caput, §§ 3º e 6º da Resolução n. 23.669/2021.Porte ilegal de arma de fogo (art. 154, § 6º, da Resolução n. 23.669/21 c/c art. 14 da Lei n. 10.826/03).
Civil que possui porte de arma.Não.Art. 154, § 2º, da Resolução n. 23.669/2021.Porte ilegal de arma de fogo (art. 154, § 6º, da Resolução n. 23.669/21 c/c art. 14 da Lei n. 10.826/03).

A prisão de eleitores e de candidatos nas eleições 2022. A polícia pode cumprir mandado de prisão e prender em flagrante delito nas vésperas e no dia das eleições?

O Código Eleitoral prevê no art. 236 que “Nenhuma autoridade poderá, desde 5 (cinco) dias antes e até 48 (quarenta e oito) horas depois do encerramento da eleição, prender ou deter qualquer eleitor, salvo em flagrante delito ou em virtude de sentença criminal condenatória por crime inafiançável, ou, ainda, por desrespeito a salvo-conduto.”

Há duas correntes acerca de prisão dos eleitores em razão do disposto no art. 236 do Código Eleitoral.

1ª corrente: os eleitores somente podem ser presos, no período indicado, nas exceções previstas no art. 236 do Código Eleitoral: a) flagrante delito; b) sentença condenatória por crime inafiançável; c) desrespeito a salvo-conduto.

Para a 1ª corrente, neste ano (2022), os eleitores não podem, em regra, serem presos a partir de 00:00 do dia 27 de setembro até as 17:00 horas do dia 04 de outubro. Caso haja segundo turno, não podem ser presos a partir de 00:00 do dia 25 de outubro até as 17:00 horas do dia 1º de novembro.

Os candidatos não podem ser presos desde 15 (quinze) dias antes das eleições[1] até 48 (quarenta e oito) horas depois do encerramento das eleições. Portanto, nas eleições 2022, os candidatos não podem ser presos a partir de 00:00 do dia 17 de setembro até as 17:00 horas do dia 04 de outubro, no primeiro turno e a partir de 00:00 do dia 15 de outubro até as 17:00 horas do dia 1º de novembro, se houver segundo turno.

2ª corrente: os eleitores podem ser presos normalmente. O art. 236 do Código Eleitoral não foi recepcionado pela Constituição Federal, uma vez que o art. 5º, LXI, define as hipóteses em que cabem as prisões, devendo estas serem aplicadas durante o período eleitoral ou não.

FUNDAMENTOS

1ª CORRENTE (APLICAÇÃO DO ART. 236 DO CÓDIGO ELEITORAL)

No caso de flagrante em delito o eleitor poderá ser preso e o juiz poderá converter a prisão em flagrante em preventiva (art. 312 do CPP).

Em que pese não ser possível a prisão preventiva, abre-se exceção quando decorrer da prisão em flagrante. Com efeito, o Código Eleitoral data de 1965 e naquela época bastava a prisão em flagrante para que o eleitor permanecesse preso. A prisão em flagrante se sustentava por si só. Com as modificações legislativas, hoje não mais se mantém uma pessoa presa, simplesmente, por ter sido presa em flagrante. É necessário que haja conversão da prisão em flagrante em preventiva.

Assim, é possível a decretação de prisão preventiva e o cumprimento imediato quando decorrer de conversão de prisão em flagrante. Admite-se a prisão em flagrante com os seus desdobramentos decorrentes.

Veda-se no período mencionado acima somente o cumprimento de mandados de prisão, mas não a conversão da prisão em flagrante em preventiva ou até mesmo a decretação da prisão provisória (preventiva ou temporária), postergando-se, no entanto, o cumprimento do mandado.

Há uma suspensão temporária de cumprimento de mandados de prisão, salvo se o mandado de prisão for decorrente de sentença criminal condenatória por crime inafiançável. Essa possibilidade deve ser vista com cautela, pois o Código Eleitoral data de 1965 e naquela época era possível a decretação da prisão com base em sentença criminal condenatória, ainda que não tivesse transitado em julgado, o que não é mais possível, pois configura antecipação de pena e hoje encontra vedação expressa no art. 313, § 2º, do Código de Processo Penal. Portanto, a nosso ver, essa hipótese, atualmente, não é mais aplicável, pois não mais subsiste a prisão decorrente de sentença condenatória e toda prisão antes do trânsito em julgado e início do cumprimento da pena configura verdadeira hipótese de prisão preventiva e como esta prisão não pode ser cumprida durante o período indicado, não é possível o seu cumprimento.

São crimes inafiançáveis o racismo, a tortura, o tráfico de drogas, terrorismo, crimes cometidos por grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático, além dos crimes hediondos e crimes militares.

É vedado, também, o cumprimento de mandado de prisão civil (pensão alimentícia), pois não é mencionado como exceção no art. 236 do Código Eleitoral.

Quem não pode votar pode ser preso. Quem não é eleitor pode ser preso. Isto é, aqueles que tiveram seu título eleitoral cancelado podem ser presos normalmente, ainda que seja prisão decorrente de mandado sem sentença condenatória.

Assim, as pessoas que estão com os direitos políticos suspensos ou os perderam; que deixaram de votar em 03 (três) eleições consecutivas, não justificaram a ausência na votação, não recolheram a multa imposta e que tiveram o título eleitoral cancelado por não realizarem o cadastro biométrico não podem votar e, consequentemente, podem ser presas.

A perda ou a suspensão dos direitos políticos ocorrem nos casos de cancelamento da naturalização por sentença transitada em julgado; incapacidade civil absoluta; condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos; recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa, nos termos do art. 5º, VIII e por ato de improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º (art. 15 da Constituição Federal).

De toda forma, para quem defende a plena validade do art. 236 do Código Eleitoral, é possível que a polícia realize operação policial entre 5 (cinco) dias antes e até 48 (quarenta e oito) horas depois do encerramento da eleição visando o cumprimento de mandado de prisão, desde que este seja cumprido em desfavor de pessoa que não vota ou, se votar, seja mandado decorrente de sentença penal condenatória por crime inafiançável.

O eleitor que sofrer violência, moral ou física, na sua liberdade de votar, ou pelo fato de haver votado pode pleitear perante o juiz eleitoral o salvo-conduto (art. 235 do Código Eleitoral) com o fim de garantir o seu direito à locomoção e ao voto livre, sem que tenha receios de ser impedido de exercer o seu direito fundamental ao voto.

Quem descumprir o salvo-conduto, seja policial, militar ou qualquer pessoa, pela literalidade do Código Eleitoral, pode sofrer prisão por desobediência pelo período de até 05 (cinco) dias.

Art. 235. O juiz eleitoral, ou o presidente da mesa receptora, pode expedir salvo-conduto com a cominação de prisão por desobediência até 5 (cinco) dias, em favor do eleitor que sofrer violência, moral ou física, na sua liberdade de votar, ou pelo fato de haver votado.

Parágrafo único. A medida será válida para o período compreendido entre 72 (setenta e duas) horas antes até 48 (quarenta e oito) horas depois do pleito. (destaque nosso)

José Jairo Gomes[2] ensina que:

No salvo-conduto pode ser cominada prisão de até cinco dias, em caso de desobediência. Essa prisão não possui natureza penal, senão político-administrativa, cujo sentido é garantir a liberdade de sufrágio do eleitor. Resta, porém, saber se essa modalidade de prisão harmoniza-se com a Constituição Federal. É que o sistema constitucional somente aceita prisão civil (no sentido de não penal) “pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia” (CF, art. 5º, LXVII; STF, Súmula Vinculante nº 25).

Trata-se de prisão inconstitucional, dada a sua natureza político-administrativa e a vedação de prisão civil fora da hipótese autorizada constitucionalmente (pensão alimentícia).

De qualquer forma, para o policial ou militar que estiver trabalhando na rua e se deparar com uma ocorrência que decorra do descumprimento de salvo-conduto, deverá apresentar o descumpridor ao juiz eleitoral, pois neste caso, cabe ao juiz realizar este filtro de constitucionalidade.

Prisão realizada fora das hipóteses permitidas pode configurar o crime eleitoral previsto no art. 298 do Código Eleitoral[3].

A proibição de prisões no período eleitoral mencionado tem como finalidade evitar perseguições políticas ou qualquer abuso que possa comprometer as eleições, no sentido de direcionar a prisão de determinados eleitores por terem preferência por certo partido ou candidato, bem como para evitar repercussões, que possam favorecer ou não, candidatos.

2ª CORRENTE (INAPLICABILIDADE DO ART. 236 DO CÓDIGO ELEITORAL)

O tema suscita polêmicas, pois para forte corrente doutrinária[4] e há decisões judiciais nesse sentido, o art. 236 do Código Eleitoral não foi recepcionado pela Constituição Federal, uma vez que o art. 5º, LXI, define as hipóteses em que cabem as prisões, devendo estas serem aplicadas durante o período eleitoral ou não.

Nesse sentido:

Não pode o Código Eleitoral, norma infraconstitucional, estabelecer restrições às espécies de prisão constitucionalmente estabelecidas, haja vista que o inciso LXI do artigo 5º da Constituição Federal expressamente prevê que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente”.(Habeas Corpus nº 0027246-58.2014.4.03.0000, 5ª Turma do TRF da 3ª Região, Rel. Paulo Fontes. j. 01.12.2014, unânime, DE 10.12.2014) (destaque nosso)

O Professor Igor Pinheiro sustenta a inconstitucionalidade do art. 236 do Código Eleitoral e apresenta vários argumentos, dentre os quais se encontram: a) dever de segurança para a sociedade (art. 144 da CF); b) Trata-se de um escudo protetor às diversas associações/organizações criminosas que tentam macular o processo eleitoral por meio da compra de votos, transportes de eleitores e outras práticas de corrupção que desigualam as oportunidades e impedem, muitas vezes, que o resultado das urnas seja espontâneo; c) O art. 236 do Código Eleitoral data de 1965, época em que havia influência dos “coronéis” para prender opositores políticos; d) Há uma proteção deficiente da lisura eleitoral ao aplicar o art. 236 do CE, dentre outros.

Para essa corrente, é possível que a polícia realize operação policial entre 5 (cinco) dias antes e até 48 (quarenta e oito) horas depois do encerramento da eleição visando o cumprimento de mandado de prisão, independentemente, de ser pessoa que vota ou não. Hipótese mais tranquila para a atuação policial consiste em efetuar a prisão decorrente de mandado de prisão quando se deparar com a pessoa ocasionalmente, como uma blitz ou abordagem em via pública.

Em qualquer caso não deve haver desvio de finalidade, como focar o cumprimento de mandado de prisão especificamente para um grupo de pessoas que sabe que votará em candidato que contraria os interesses da autoridade que mandou cumprir o mandado de prisão.

Quem prender eleitor durante o período vedado no art. 236 do Código Eleitoral, pratica crime de abuso de autoridade?

Vejam bem. O art. 9º da Lei de Abuso de Autoridade diz que é crime “Decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais”.

Como há os dois entendimentos, não há abuso de autoridade, caso o policial prenda o eleitor no período vedado, como cumprir o mandado de prisão que não decorra de uma sentença condenatória por crime inafiançável.

Isso porque o art. 1º, § 2º, da Lei n. 13.869/19 preconiza que a divergência na interpretação da lei, que é o caso, não configura abuso de autoridade, além de ter que estar demonstrado o dolo específico de abusar da autoridade.

O Professor Igor Pinheiro (Crimes Eleitorais e Conexos – Eleições 2022, Editora JHMIZUNO) explica bem a distinção entre o crime eleitoral do art. 298 do Código Eleitoral e o art. 9º da Lei de Abuso de Autoridade.

  CRIMES RELACIONADOS COM A DECRETAÇÃO DE PRISÃO EM PERÍODO ELEITORAL  COMENTÁRIOS
  – ARTIGO 298, DO CÓDIGO ELEITORAL:  Prender ou deter eleitor, membro de mesa receptora, fiscal, delegado de partido ou candidato, com violação do disposto no Art. 236. Pena – Reclusão até quatro anos.  No caso do descumprimento da “garantia eleitoral” do artigo 236 do Código Eleitoral há previsão de crime.   É importante registrar que, tal como se dá com todos os crimes eleitorais, a prática desse tipo penal exige ação dolosa, de modo que se o juiz, ao decretar a prisão, declarou incidentalmente a não recepção desse crime eleitoral, não há que se falar em infração penal ou disciplinar de sua parte.   Também não podemos desconsiderar a questão prática do magistrado não conhecer tal vedação legal (algo muito recorrente diante da sazonalidade da função eleitoral e do pouco estudo pela maioria dos profissionais do Direito, infelizmente, mas confirmada inclusive pelo fato da disciplina figurar como optativa no fluxograma das faculdades). Nesse caso, a sua ignorância pode ensejar a aplicação do erro de tipo, previsto no artigo 20 do Código Penal e que exclui o dolo, tornando a conduta atípica.   Nesse sentido, leciona Cleber Masson, quando diz que “o Código Penal trata de forma idêntica o erro e a ignorância. Ambos podem ensejar a aplicação do instituto do erro de tipo. Destarte, quando se fala em ‘erro’, utiliza essa palavra em sentido amplo, compreendendo o erro propriamente dito e a ignorância. (…) O erro de tipo, seja escusável ou inescusável, sempre exclui o dolo” (MASSON, Cleber. Direito Penal, Vol.1. São Paulo: Método, 14ª edição, 2020, p.272/273).   Igual situação é a do Promotor de Justiça (Eleitoral ou não), Delegado de Polícia ou do agente policial que participam ou determinam o cumprimento de mandados de prisão no “período vedado”.   Em suma, portanto, o referido crime eleitoral não está mais em vigor na nossa análise e, para quem entende o contrário, é preciso que fique demonstrado o dolo do agente.  
  ARTIGO 9º, DA LEI DO ABUSO DE AUTORIDADE: Decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais: Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. Parágrafo único.  Incorre na mesma pena a autoridade judiciária que, dentro de prazo razoável, deixar de: I – relaxar a prisão manifestamente ilegal; II – substituir a prisão preventiva por medida cautelar diversa ou de conceder liberdade provisória, quando manifestamente cabível; III – deferir liminar ou ordem de habeas corpus, quando manifestamente cabível.      Demonstrada a tese de não-recepção dos artigos 236 e 298 do Código Eleitoral, ainda existe a possibilidade de que a decretação de prisão em período eleitoral possa configurar crime de abuso de autoridade, como apontado pelo artigo 9°, da Lei n°13.964/2019.   Inicialmente, é de se destacar que o artigo 1° da Nova Lei do Abuso de Autoridade ter o agente praticado a conduta típica com manifesto deliberado de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal, de modo que é incompatível com os tipos penais do abuso de autoridade o dolo eventual ou o dolo genérico. Trata-se de medida imprescindível para que se possa diferenciar o agente que cometeu um erro, ou mesmo uma ilegalidade de boa-fé (por equívoco, mas sem o propósito deliberado de abusar das prerrogativas estatais que lhe foram outorgadas) daquele que agiu com o claro propósito preordenado de praticar a conduta típica para uma daquelas finalidades específicas exigidas pela lei. É importante registrar que essa válvula de escape trazida pela lei (inserida por emenda no Senado Federal) é o que permite diferenciar o agente corrupto (que deve ser punido exemplarmente) daquele que age de boa-fé, por convicção jurídica ou baseado em doutrina/jurisprudência não pacificadas. Sem isso, a lei seria toda inconstitucional, pois todo e qualquer erro seria abuso de autoridade. Assim, o magistrado que resta convencido dos motivos fático-jurídicos apresentados pelo Ministério Público ou pela Polícia quanto ao cabimento da prisão e motiva isso expressamente em sua decisão não comete crime algum (eleitoral ou de abuso), ainda que sua decisão venha a ser reformada e independentemente do período, pois, em alguns casos, a prisão pode ser a única forma idônea de fazer cessar a reiteração criminosa, garantir a livre produção da prova ou a aplicação da lei penal  (vide comentários ao artigo 236 supra). Portanto, não é crime de abuso de autoridade a autorização judicial para o cumprimento de medidas prisionais e outras cautelares em qualquer período da disputa eleitoral, salvo se demonstrado concretamente que o magistrado deferiu o pedido com a finalidade específica exigida pelo artigo 1° da citada lei. O dolo específico faz parte da tipicidade, nunca é demais lembrar, motivo pelo qual a justa causa para a instauração de investigação voltada a apurar crime de abuso de autoridade deve ser exigida previamente de maneira rígida, sob pena de se legitimar tentativas criminosas de constrangimentos a autoridades. As representações por supostos abuso de autoridade devem trazer, portanto, elementos de prova ou indícios nesse sentido, sob pena do representante, ainda que advogado seja[5], incorrer em calúnia (artigo 138, do Código Penal) ou  denunciação caluniosa (artigo 338, do Código Penal ou 326-a, do Código Eleitoral), que devem ser apurados pelo Ministério Público à luz da Súmula 714 do Supremo Tribunal Federal (STF): “É concorrente a legitimidade do ofendido, mediante queixa, e do ministério público, condicionada à representação do ofendido, para a ação penal por crime contra a honra de servidor público em razão do exercício de suas funções.” Em sentido parecido com o que defendemos, surge o disposto no Enunciado 29 do Grupo de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal (GNCRIM): “Representações indevidas por abuso de autoridade podem, em tese, caracterizar crime de denunciação caluniosa (CP, art. 339), dano civil indenizável (CC, art. 953) e, caso o reclamante seja agente público, infração disciplinar ou político-administrativa.” Sobre a conduta típica em si, para que não se declare a inconstitucionalidade pura e simples da lei, parece-nos ser cabível uma interpretação conforme à Constituição da tipificação em comento para estabelecer que só há crime quando seja determinada a privação de liberdade de alguém contra enunciado expresso de uma súmula vinculante (como no caso das de número 24[6] e 25[7]) ou contra tese fixada em sede de repercussão geral ou recurso repetitivo, uma vez que tais institutos visam a exatamente manter a uniformidade da jurisprudência e o próprio sistema já coloca tais entendimentos como forma de garantir a isonomia no julgamento de casos similares, em especial no tocante às súmulas vinculantes.   Observe-se, porém, que se houver o descumprimento de tais precedentes motivadamente não terá a autoridade responsável incorrido, ipso facto, no delito de abuso de autoridade descrito no artigo 9°, pois ainda será preciso que se demonstre cabalmente que a mesma agiu com o dolo específico de prejudicar outrem, beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou que agiu por mero capricho pessoal. E isso, é ônus probatório da acusação, nunca é demais lembrar, sob pena de responsabilidade penal objetiva.   Do contrário, será um error in judicando, passível de ser sanado via reclamação, habeas corpus ou o recurso cabível, sem que se possa cogitar de qualquer responsabilidade do julgador.   Trata-se de premissa básica para assegurar também a independência funcional das autoridades, que poderão ficar refém dos criminosos.   Também não haverá o crime, por exemplo, se o magistrado decretar prisões em desrespeito ao disposto no artigo 236, do Código Eleitoral, se o mesmo tiver declarado incidentalmente a não-recepção desse dispositivo, como defende quase toda a doutrina eleitoral.   Mais grave, porém, é o disposto no parágrafo único desse mesmo artigo, que traz três hipótese de penalização dos magistrados que, “dentro de prazo razoável” (sem especificar qualquer critério cronológico fixo ou objetivo[8]), “deixar de: I – relaxar a prisão manifestamente ilegal”.   Aqui, mais uma vez, falta previsibilidade da conduta que se quer coibir, pois, salvos aquelas hipóteses acima referidas (súmulas vinculantes, teses de repercussão geral, recursos repetitivos ou decisões em controle concentrado de constitucionalidade), não há um parâmetro seguro para o magistrado sobre o que se entende por “prisão manifestamente ilegal”.   No mesmo juízo de inconstitucionalidade incide o inciso II, segundo o qual também comete crime quem, “dentro de prazo razoável, deixar de substituir a prisão preventiva por medida cautelar diversa ou de conceder liberdade provisória, quando manifestamente cabível.”   Sendo repetitivo, mas não há como ser diferente diante de tamanha inépcia legislativa: como criminalizar a conduta de um magistrado que, interpretando a lei à luz de certa doutrina ou jurisprudência (ainda que minoritárias) entende não ser o caso de conversão da prisão em medida cautelar ou de que não cabe a liberdade provisória, se na mesma lei consta dispositivo que imuniza a conduta de quem age amparado em divergência na interpretação da lei (artigo 1°, §2°)?   Trata-se de uma clara contradição interna da lei, agravada pelo uso de expressões genéricas e imprecisas, como já apontado acima.   O mesmo raciocínio vale para o inciso III, que diz ser crime deixar de “deferir liminar ou ordem de habeas corpus, quando manifestamente cabível.”

Qual entendimento você policial deve seguir?

Recomendo observar as normas institucionais que tratem da atuação policial no período das eleições, se houver, claro. Do contrário, deve seguir as orientações do superior hierárquico que deve ficar à vontade para adotar um dos entendimentos, pois ambos são fundamentados, em que pese o meu posicionamento pessoal ser pela segunda corrente.


[1] Código Eleitoral. Art. 236 (…) § 1º Os membros das mesas receptoras e os fiscais de partido, durante o exercício de suas funções, não poderão ser detidos ou presos, salvo o caso de flagrante delito; da mesma garantia gozarão os candidatos desde 15 (quinze) dias antes da eleição.

[2]GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 14ª Edição. São Paulo: Editora Atlas. 2018. p. 524.

[3] Art. 298. Prender ou deter eleitor, membro de mesa receptora, fiscal, delegado de partido ou candidato, com violação do disposto no Art. 236:Pena – Reclusão até quatro anos.

[4] CÂNDIDO, Joel João. Direito Eleitoral Brasileiro, 10 ed., 2ª tiragem. Bauru : Edipro, 2003.

[5] O Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu que o advogado não possui imunidade profissional quanto ao tipo penal de calúnia: EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PENAL. CALÚNIA. CRIME NÃO ALCANÇADO PELA INVIOLABILIDADE PREVISTA NO ARTIGO 133 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. DOLO. MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. RECURSO DESPROVIDO. 1. A inviolabilidade do advogado por seus atos e manifestações no exercício da profissão, estabelecida pelo art. 133 da Constituição da República, é relativa, não alcançando todo e qualquer crime contra a honra. 2. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é pacífica no sentido de que o crime de calúnia não é alcançado pela imunidade. Precedentes. 3. O trancamento da ação penal, pela via do habeas corpus, se dá excepcionalmente, quando evidente o constrangimento alegado. 4. Questão relativas ao dolo da prática criminosa remetem à análise aprofundada dos elementos fático-probatórios, não podendo ser conhecidos na via extraordinária. 5. Agravo regimental desprovido. (RE 585901 AgR, Relator(a):  Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, julgado em 21/09/2010, DJe-190 DIVULG 07-10-2010 PUBLIC 08-10-2010 EMENT VOL-02418-07 PP-01514 RF v. 106, n. 412, 2010, p. 373-375).

[6] Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo.

[7] É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito.

[8] No caso, o “legislador ordinário” deveria ter utilizado a mesma técnica do artigo 97-A, da Lei n°9.504/1997, que mensura, em um ano, a duração razoável do processo na seara eleitoral para determinados tipos de ações. Não agindo dessa forma, deixou ao critério do subjetivismo de cada julgador o quantum que determinará o que é ou não “prazo razoável”.

Os militares de folga podem comparecer às ruas e aos eventos decorrentes do dia 07 de setembro?

07 de setembro é um dia histórico e um dos mais marcantes para o Brasil em razão da independência proclamada por Dom Pedro às margens do Rio Ipiranga, ao gritar “Independência ou Morte”.

A pintura abaixo, de autoria de Pedro América, simboliza o grito do Ipiranga: “Independência ou Morte”.

Não há nenhuma vedação ou proibição para que militares, de folga e em trajes civis, saiam às ruas para assistir aos desfiles ou manifestar apreço à independência do Brasil. Ainda que houvesse seria inconstitucional.

A grande discussão consiste na participação de militares para protestar em atos políticos, o que encontra vedação em alguns regulamentos disciplinares.

O Estatuto dos Policiais Militares do Distrito Federal – Lei n. 7.289/84 – prevê no art. 45 que “São proibidas quaisquer manifestações coletivas, tanto sobre atos de superiores quanto as de caracter reivindicatório ou político.”

O Decreto Distrital nº 23.317/02 prevê que se aplica à Polícia Militar e Corpo de Bombeiros Militar o Regulamento Disciplinar do Exército – Decreto nº 4.346/02 -, que por sua vez prevê no Anexo I, item 57, como transgressão disciplinar “Manifestar-se, publicamente, o militar da ativa, sem que esteja autorizado, a respeito de assuntos de natureza político-partidária”.

No âmbito da Polícia Militar de Minas Gerais não há vedação semelhante, pelo contrário, o art. 14, XVI, do Código de Ética dos Militares do Estado de Minas Gerais considera transgressão disciplinar “comparecer fardado a manifestação ou reunião de caráter político-partidário, exceto a serviço” e o Estatuto dos Militares do Estado de Minas Gerais – Lei Complementar n. 5.301/69 – prevê no art. 30 que “É proibido o uso de uniforme em manifestações de caráter político-partidário, exceto em serviço.” Extrai-se, em uma leitura a contrario sensu que os militares estaduais em Minas Gerais podem participar de atos político-partidários, desde que não estejam fardados ou em serviço.

Veja que no âmbito da Polícia Militar do Distrito Federal, o que também pode ser aplicável a outras instituições militares estaduais, a depender do regulamento, veda-se a participação em manifestações coletivas de ato político.

O grande “X” da questão é definir o que é um “ato político”.

O ato político é todo ato que se relaciona à política, que, por sua vez, refere-se à capacidade e habilidade das pessoas se relacionarem e influenciar outras. No dia a dia é da natureza do ser humano praticar atos políticos. Como já dizia Aristóteles, o homem é um ser político por natureza. A política decorre do simples convívio em sociedade. Exemplificativamente, se um grupo de pessoas se reúne para pedir pela regulamentação do homeschooling pelo Congresso Nacional, esse grupo pratica um ato político.

Note que ao se proibir a prática de “ato político”, genericamente, sem delimitar, acaba por inviabilizar um direito sagrado de toda pessoa, independentemente, da profissão, de se manifestar e de influenciar terceiros, inclusive instituições, razão pela qual fere a liberdade de expressão e consiste em uma interpretação inconstitucional.

De mais a mais, em nada afeta, para os militares, a hierarquia e a disciplina o fato de se reunir para pedir pelo fim da corrupção, pela democracia,

pela redução da carga tributária, pela aprovação de um projeto de lei que entende ser interessante pelo país. Portanto, vedar a prática de “ato político” genericamente é manifestamente inconstitucional.

Sendo assim, é necessário interpretar que a vedação é para prática de ato político-partidário – o que possui previsão expressa em regulamentos militares -, o que também deve ser visto com cautela. Estariam os militares proibidos de participar de atos político-partidários em qualquer situação ou somente se estiverem fardados ou em serviço?

O ato político-partidário ocorre quando a política é voltada para fins eleitorais, de eleger políticos e de alcançar o poder.  

Precisas são as lições do cientista político Rogerio Dultra dos Santos ao explicar o que é atividade político-partidária no parecer “Conceito, natureza e extensão da atividade político-partidária, da dedicação à mesma e sua distinção de atividades políticas e político-sociais em geral”[1]

Assim, não basta a ligação ao partido político para que a “atividade político-partidária” se complete ou se caracterize de forma plena. Ela precisa consistir numa atividade cuja finalidade precípua seja alcançar a vitória eleitoral e ocupar cargos no Estado. A atividade político-partidária poderia, inclusive, se dar sem filiação formal ao partido. Mas a sua caracterização demanda, no entanto, a vinculação e o apoio regulares e específicos a um mandato, ou a grupo ou tendência interna, cujo objetivo é a vitória eleitoral nas disputas intra-partidarias ou eleitorais propriamente ditas. Neste caso, o militante não-filiado opera na prática como se fosse: ele cumpre tarefas regulares vinculadas a um mandato, a um candidato ou a uma fração do partido e pode receber salário para isto. Este militante pode esperar, assim, caso o partido seja vitorioso, espaço – em forma de cargos – no governo.

A atividade político-partidaria é, portanto, o sinônimo inafastável da atividade político-eleitoral. A finalidade da ação politica aqui não é a mesma dos grupos de pressão, dos movimentos sociais ou dos lobbies, mas sim a de alcançar o poder. A atuação recai diretamente sobre as ações capazes de garantir vitória política através do sufrágio. Nesses termos, a chamada militância político-partidária tem um claro caráter de profissionalização e de regularidade quase laboral. Requer assiduidade, compromisso e assunção de tarefas de natureza burocrática. A dedicação à atividade político-partidaria se insere no rol específico da atuação na estrutura do partido, seja na direção do pleito por mandato representativo, seja na dinâmica da atividade político-burocratica de apoio.

A simpatia ideológica, a militância eventual, a manifestação pública de apoio (a candidato, ideia ou programa) ou a participação eventual em atividades de partido ou manifestações de rua organizadas por redes de movimentos sociais não caracterizam necessariamente atividade político-partidária por conta da ausência da regularidade e do labor, da falta de objetivo eleitoral e vinculação a mandato, corrente ou mesmo a partido definido, e que implicariam na ideia de dedicação, conforme se exige no texto constitucional.

Nota-se que a participação em manifestações de rua organizadas por movimentos sociais não caracteriza, necessariamente, atividade político-partidária.

Ocorre que a restrição imposta por regulamentos militares é mais profunda e veda a participação em manifestações de caráter político-partidário, isto é, ainda que o militar não pratique ato que caracterize atividade político-partidário, é suficiente a sua participação em movimentos que sejam de caráter político-partidário.

Deve ser feita uma leitura constitucional da vedação da manifestação e participação do militar em movimentos de caráter político-partidário, pois a liberdade de expressão e de reunião constituem direito fundamental e os militares não são excluídos desses direitos, em que pese possuírem uma maior limitação.

A Constituição Federal, em diversas passagens, quando quis excluir os militares, o fez expressamente, como autorizar a prisão por transgressão disciplinar ou por crime propriamente militar, sem ordem judicial; ao vedar o habeas corpus para as punições disciplinares militares; ao proibir a sindicalização, a realização de greve e a filiação partidária.

A restrição aos direitos fundamentais deve ser interpretada restritivamente e o art. 5º, XVI, da Constituição Federal diz que todos – sem excluir os militares – podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização. Da mesma forma o art. 5º, IV, da CF assegura a liberdade de expressão sem excluir os militares.

A Constituição Federal quando quis excluir a possibilidade de determinadas categorias participarem de atividades político-partidárias foi expressa e somente previu para os juízes e membros do Ministério Público (art. 95, parágrafo único, III, e art. 128, II, “e”).

Isso não significa que leis não possam restringir a participação de outras categorias, como a dos militares, contudo, a interpretação deve ser restritiva e interpretar como proibição total é inconstitucional, por restringir, injustificadamente, direito fundamental que não fora restrito nem pela própria Constituição.

o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, promulgado no Brasil por intermédio do Decreto n. 592/1992, prevê que toda pessoa tem direito à liberdade de expressão e que ninguém poderá ser molestado por suas opiniões e permite que haja restrições, desde que previstas em lei e que sejam necessárias para a proteção da segurança nacional, ordem, saúde e moral públicas.

ARTIGO 19

1.     Ninguém poderá ser molestado por suas opiniões.

2.     Toda pessoa terá direito à liberdade de expressão; esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro meio de sua escolha.

3.     O exercício do direito previsto no parágrafo 2 do presente artigo implicará deveres e responsabilidades especiais. Conseqüentemente, poderá estar sujeito a certas restrições, que devem, entretanto, ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para:

a) assegurar o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas;

b) proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde ou a moral públicas.

A Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica – incorporada ao Brasil por intermédio do Decreto Federal nº 678/1992 – possui previsão semelhante.

Artigo 13.  Liberdade de pensamento e de expressão

1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão.  Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha.

2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei e ser necessárias para assegurar:

a. o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou

b.  a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.

Logo, não há nenhuma ilegalidade – inconvencionalidade – em restringir o direito à liberdade de expressão de determinadas categorias de profissionais em razão da função que exercem, desde que seja uma restrição justificada e legítima, na medida em que, em se tratando de militares, a ausência de restrição poderá comprometer a segurança nacional e a ordem pública.

Portanto, a melhor interpretação, a meu ver, consiste em permitir que militares da ativa participem de movimentos políticos, inclusive de natureza político-partidária, desde que observe os preceitos que regem as instituições militares – hierarquia e disciplina -, e tenha uma participação mais passiva, sem assumir a liderança do movimento, o que demonstra uma participação ativa e haverá uma linha tênue entre a o direito à liberdade de expressão e a quebra da hierarquia e disciplina, até porque militares não devem criticar publicamente atos de superiores ou do Governo, sob pena de incidir no crime militar de crítica indevida.

Maiores responsabilidades e restrições recaem sobre os comandantes, uma vez que a Polícia Militar, com frequência, será acionada para garantir a segurança de movimentos político-partidários ou para conter eventual desordem que envolva esses movimentos e deverá atuar de forma técnica e imparcial e a partir do momento que um comandante se envolve em movimentos político-partidários, ainda que em horário de folga e em trajes civis, poderá comprometer a imagem e a credibilidade institucional nas atuações em movimentos político-partidários da oposição e eventual uso da força poderá ser visto como um uso da força político, sob a alegação de que o comandante foi visto participando de movimento político-partidário do adversário ou de um partido que possui ideologia diversa.

Diante de todo o exposto podemos concluir, em uma leitura constitucional e convencional, que militares podem participar de manifestações político-partidárias, desde que:

a) A reunião seja pacífica, logo não deve haver nenhum ato que perturbe a ordem pública, como invasão de qualquer local, interrupção do trânsito, queima de objetos e congêneres.

b) O militar não esteja armado.

c) O militar não esteja fardado.

d) O militar não esteja em horário de serviço, salvo se for para trabalhar, ou seja, para participar enquanto protestante deve estar de folga, férias, licença.

e) Da manifestação não seja deflagrada greve, seja por qual for o motivo (art. 143, § 3º, IV c/c art. 42, § 1º, ambos da CF e STF – ARE 654.432).

f) Não haja por parte dos militares atos que possam configurar quebra da hierarquia e disciplina.

g) A participação seja passiva, como a mera presença física, sem assumir a liderança do movimento.

Não há crime militar pelo simples fato de militares participarem de movimentos político-partidários.

Por que não há crime de motim? A simples participação no protesto por vários militares é um direito, se observadas as condições acima, e não há crime de motim. Haverá crime de motim caso um superior determine que militares cumpram a escala de serviço, mas decidem descumprir e compareçam ao movimento (art. 149, I, do CPM).

Por que não há crime de reunião ilícita? No crime de reunião ilícita a finalidade é, originariamente, discutir ato de superior ou assunto atinente à disciplina militar, o que não está presente ao participar de um movimento político-partidário.

Por que não há o crime de crítica indevida? Para haver esse crime deve ocorrer crítica pública a ato de superior ou assunto atinente à disciplina militar ou a qualquer resolução do Governo. O superior indicado no tipo penal do art. 166 do CPM pode ser o Governador? O tema é divergente. Para parte da doutrina, somente os militares podem ser superiores (o que parece prevalecer). A outra corrente entende que como o Governador é a autoridade máxima, Chefe Supremo das Instituições Militares Estaduais, também pode ser superior. O movimento político-partidário busca fortalecer, dentre outros fatores, a ideologia do partido e não criticar atos de superior ou assuntos atinentes à disciplina militar. Se o movimento criticar resolução do Governo, os militares devem abster de participar. Saliento que a mera presença física do militar não é suficiente para atrair a incidência do crime de crítica indevida, o qual exige uma ação.  

De toda forma, entendo que a crítica respeitosa, ainda que por militares, com fins construtivos, decorre da liberdade de expressão mitigada que os militares possuem e não deve sofrer repressão penal.

Exposto todo esse contexto, voltamos à pergunta inicial, os militares de folga podem comparecer às ruas no dia 07 de setembro?

As comemorações decorrentes do dia 07 de setembro constituem um ato cívico, que é aquele que demonstra o valor do país e da sociedade, o respeito pela nação e a reafirmação da relevância do país ser independente.

O comparecimento aos eventos cívicos decorrentes do Dia da Independência não só é um direito dos militares, como é a demonstração de um sentimento de patriotismo, o qual é uma característica dos militares.

Não é possível impedir que militares de folga, sozinhos ou acompanhados de suas famílias, compareçam às ruas e assistam aos eventos cívicos, o que para os militares é um ato de orgulho e amor pela carreira que escolheu perfilhar.

Discussões podem surgir se o evento cívico, posteriormente, for transformado em um evento político-partidário. Nesta hipótese os militares podem participar? Observadas as restrições expostas acima, entendemos que sim.

Querer silenciar militares a todo custo é um ato antidemocrático e os relegam a cidadãos de segunda categoria. A liberdade de expressão deve ser exercida ainda que para ouvir o que não nos agrada e os militares podem exercê-la com responsabilidade, sem ferir a hierarquia e a disciplina.


[1] Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/parecer-rogerio-dultra-casara-cnj.pdf .