Piada com negros e homoafetivos é crime?

Esse tema suscitou muitas discussões, recentemente, em razão da Lei n. 14.532, de 11 de janeiro de 2023, que promoveu diversas alterações na Lei de Racismo – Lei n. 7.716/89 – e acrescentou o art. 20-A.

Art. 20-A. Os crimes previstos nesta Lei terão as penas aumentadas de 1/3 (um terço) até a metade, quando ocorrerem em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação.     (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)

A alteração legislativa migrou para a Lei de Racismo o crime de injúria racial ou decorrente de cor, etnia ou procedência nacional.

Art. 2º-A Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional.     (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)

Pena: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.       (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)

Veja que a lei foi expressa ao prever que as condutas previstas na Lei de Racismo como crime terão a pena aumentada em 1/3 se forem praticadas em contexto de DESCONTRAÇÃO, DIVERSÃO OU RECREAÇÃO.

O crime de injúria previsto no Código Penal exige o elemento subjetivo específico (dolo específico), o que é denominado de animus injuriandi. Isto é, exige que haja a intenção de injuriar.

Ao transportar para a Lei de Racismo o crime de injúria racial ou preconceituosa (art. 2º-A) e criar a referida causa de aumento quando a injúria ou outro crime na Lei de Racismo ocorrer em um contexto de descontração, diversão ou recreação, continuou a exigir a intenção de injuriar?

Tenho visto que a tendência é consolidar que a intenção de injuriar continua sendo exigida e que o animus jocandi (intenção de brincar, ironizar) não foi criminalizado.

Entendo que ao prever causa de aumento para os casos de descontração, diversão ou recreação, visou o legislador coibir toda hipótese de “brincadeiras” com conteúdo racista, preconceituoso, no sentido de extirpar da sociedade as práticas cotidianas de pequenos atos que são reiterados e isso acaba inconscientemente influenciando as pessoas e no todo acaba por fomentar atos de preconceito. Visou combater o racismo estrutural, inconsciente.

A lei visou igualar todas as pessoas, inclusive nas piadas. Não se vê – ou não é comum de se ver – piadas com brancos e héteros e acredito que o legislador quis, com a alteração legislativa, acabar, sobretudo, com as piadas envolvendo negros e homoafetivos, além de piadas que envolvam etnia e procedência nacional. A lei quis coibir piadas com grupos minoritários, em razão da condição de minoritários, visando a proteção integral e superação do preconceito e racismo ao longo do tempo.

Discute-se se as manifestações artísticas e culturais, que decorrem de um direito constitucional e do direito fundamental à liberdade de expressão podem continuar. Da mesma forma que a manifestação artística e cultural está na Constituição Federal, a vedação ao preconceito e ao racismo também encontram proteção constitucional.

Piadas que venham a induzir ou a incitar a discriminação ou preconceito decorrente de cor ou opção sexual também podem caracterizar crime com a referida causa de aumento (art. 20 da Lei de Racismo).

Entendo que não há crime no ato de chamar pessoas próximas, do convívio, por apelidos que a própria pessoa se sinta acolhida. Conheço uma pessoa que é chamada de “Negão” e ao perguntar para ela como quer ser chamada vai responder “Negão”, pois não existe, no caso, qualquer ofensa e sequer o objeto jurídico tutelado pelo tipo penal é ofendido (a proteção de pessoas pertencentes a grupos minoritários).

O tema é muito recente e não sabemos o que os tribunais superiores vão decidir. Fato é que há uma linha muito tênue para se dizer quando haverá ou não crime.

Civil pode ser julgado pela Justiça Militar Estadual?

Na hipótese em que o militar praticar um crime militar e exonerar (der “baixa”) ou for excluído, poderá, enquanto civil, ser processado e julgado perante a Justiça Militar Estadual, pois a qualidade de militar deve ser aferida quando da prática do fato delituoso (tempus delict).

Crime militar cometido por militar no exercício da função. Em homenagem à garantia do juízo natural, a competência deve ser fixada sempre em relação à qualidade que o recorrente apresentava no momento do cometimento do fato, não podendo ser alterada por conta de alteração fática posterior (exoneração).

RHC 20.348-SC, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 24/6/2008.

Não há falar em incompetência da Justiça Militar se, à época dos fatos, o paciente era soldado da Polícia Militar e, no momento da prática dos crimes, se identificou como tal, fazendo uso de arma da corporação e, embora não estivesse fardado, estava acompanhado de outros militares devidamente fardados e em situação que denotava estarem todos em atividade.

STJ – HC 80.461 – MS Relator: Ministro Arnaldo Esteves Lima. DJ 19/08/09.

A respeito da possibilidade de civis serem julgados perante a Justiça Militar Estadual ao praticarem fatos definidos como crime no Código Penal Militar, o tema é controverso, mas é pacífico que não praticam crime militar na esfera estadual.

1ª corrente (prevalece): a Constituição Federal define no art. 125, § 4º, que compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e como a Justiça Comum não julga crimes militares, pelo menos em primeira instância, pois em segunda instância nos estados em que não existe Tribunal de Justiça Militar, cabe ao Tribunal de Justiça comum julgar os crimes militares em grau de recurso, não há que se falar em crime militar praticado por civil no âmbito estadual por inexistir órgão competente para processar e julgar civis por crimes militares, o que implica dizer que, por opção política do legislador, civis não praticam crimes militares em nível estadual.

Renato Brasileiro de Lima[1] ensina que:

Como o civil não pode ser processado e julgado pela Justiça Militar Estadual, caso pratique determinado delito contra as instituições militares estaduais, será processado na Justiça comum se os fatos por ele praticados encontrarem definição na lei penal comum. É nesse sentido o teor da súmula nº 53 do STJ(“Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar civil acusado de prática de crime conta instituições militares estaduais”). Na mesma linha, eis o teor da súmula nº 30 do extinto Tribunal Federal de Recursos: “Conexos os crimes praticados por policial militar e por civil, ou acusados estes como coautores pela mesma infração, compete à Justiça Militar Estadual processar e julgar o policial militar pelo crime militar (CPM, art. 9º) e à Justiça Comum, o civil”. (destaque nosso)

A Súmula n. 53 do STJ diz que “Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar civil acusado de prática de crime contra instituições militares estaduais”, sendo extraída de sua interpretação que para os civis serem julgados por crimes contra as instituições militares estaduais deve haver correspondência do fato típico no Código Penal comum daquele previsto no Código Penal Militar ou que o fato deve ser previsto na legislação penal comum, ainda que não encontre correspondência no CPM. Isto é, o julgamento de civis por crime contra as instituições militares estaduais ocorre somente se houver crime previsto na legislação penal comum, pois não praticam os crimes previstos no Código Penal Militar, já que não são julgados pela Justiça Militar Estadual.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é pacífica no sentido do civil responder perante a Justiça Comum por crime que atenta contra as instituições militares estaduais, no entanto, deve haver previsão da conduta como infração penal na legislação penal comum.

Com efeito, a Justiça Militar Estadual é competente para julgar militares integrantes das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros, quando pratiquem crimes, na forma do art. 9º, do CPPM.

Não possui competência para julgar civil. Sua competência é mais restrita. Interpretação da Lei Maior. Incidência da Súmula 53 desta Corte Superior de Justiça, segundo a qual “compete à Justiça Comum estadual processar e julgar civil acusado de prática de crime contra instituições militares estaduais”.

Destarte, em se tratando de estelionato previdenciário que, em tese, atinge patrimônio da Polícia Militar de São Paulo, está afastada a competência da Justiça Militar da União, por ausência de violação de interesses das Forças Armadas. De outro lado, em se tratando de crime supostamente praticado por civil, também está afastada a competência da Justiça Militar do Estado de São Paulo, ainda que configurada prejuízo ao patrimônio da Polícia Militar daquele Estado, haja vista a redação restritiva do artigo 125, § 4º, da Constituição Federal.

Conflito conhecido para declarar competente o Juízo de Direito do Departamento de Inquéritos Policiais e Polícia Judiciária de São Paulo – DIPO 3, o suscitado.

(CC n. 170.531/SP, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Terceira Seção, julgado em 24/6/2020, DJe de 29/6/2020.) (destaque nosso)

2ª corrente (minoritária): essa corrente critica a primeira, pois sustenta que há uma confusão entre o conceito de competência e de crime, pois o órgão julgador não possui nenhuma relação ao se definir se uma conduta é criminosa ou não.

Adriano Alves-Marreiros, Guilherme Rocha e Ricardo Freitas[2] ensinam que:

Não se pode deixar de aplicar a lei por não gostar dela, por não conhecê-la ou por não entendê-la. Não pode deixar, portanto, de ser aplicado o Código Penal Militar, quando há ofensa às instituições militares estaduais, apenas porque a Justiça Militar Estadual não pode julgar civis. Muda a competência, mas não muda a lei, não muda a natureza de crime militar da conduta, como, aliás, ocorre com qualquer outra justiça. Ademais, este posicionamento é reconhecido na Súmula 53 do STJ (de 1992, posterior à Constituição atual), isto é, aquela regra de competência afasta, indiscutivelmente, a aplicação da Lei Adjetiva Castrense, já que esta é aplicável, apenas, nos seus estritos termos (em especial, seu art. 6.º), nos processos perante as Justiças Militares estaduais.

Aliás, a Constituição atribui competência ao STF para processar e julgar os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica nos crimes comuns. Em geral se entende que, neste dispositivo constitucional, crime comum é aquele que não se caracteriza como crime de responsabilidade, não excluindo, assim, os crimes militares (que, neste caso, fariam parte dos crimes comuns). Mas tal discussão não é relevante em obra que trata de direito penal, até porque o entendimento diverso – o de que, em crimes militares, os comandantes citados não seriam julgados pelo STF – também nos levaria a concluir que se trata de crime militar, só que julgado na própria Justiça Militar. A mesma Carta atribui ao STJ competência para processar e julgar desembargadores federais. Todas essas pessoas não podem, então, ser processadas por crimes militares? Parece ser óbvia a resposta negativa, caso contrário, todos aqueles que têm foro por prerrogativa de função estariam fora do alcance da Lei Penal Militar, podendo cometer condutas delituosas previstas no Código Penal Militar sem consequências penais, ferindo gravemente o princípio da igualdade. (destaque nosso)

Milton Morassi do Prado [3]escreve que: 

O ponto nevrálgico da discussão se consubstancia na possibilidade, ou não, do não-militar praticar ilícito tipificado como crime militar em desfavor de militar do Estado.

Entendemos pela ocorrência desta possibilidade, pelos motivos a seguir aduzidos: primeiro, e conforme já citado, em face da imperatividade da manutenção da regularidade das instituições militares estaduais. Segundo, pela indisponibilidade do Estado na tutela dos bens jurídicos penais militares que, pela natureza de sua constituição, não podem ser disponibilizados como alguns bens tutelados pelo direito penal comum.

Assim, por exemplo, uma facção criminosa que atente contra a vida de um militar do Estado, simplesmente pelo fato deste ser um integrante de uma Instituição Militar Regular, com o único intuito de ofendê-la, não está apenas ofendendo o bem jurídico da vida, mas também o bem jurídico penal militar regularidade das Instituições militares, ocorrendo, portanto o dever de tutela do Estado, preconizado no inciso III do artigo 9º do Código Penal Militar.

(…)

O fundamento de inexistência de prestação jurisdicional da matéria ora em testilha balda-se em deveras inconformidade com os ditames do Estado Democrático de Direito, mormente quanto à ofensa ao contido no artigo 2º da Lex Mater, uma vez que a ausência de tutela pelo Estado-juiz consubstancia em deveras insegurança jurídica ao deixar de providenciar a devida proteção dos bens jurídicos penais militares.

Pelo exposto, cumpre consignar que, em que pese a divisão jurisdicional, compete à justiça comum, comumente denominada de “justiça residual”, a prestação jurisdicional nos casos não amparados pelas Justiças Especializadas.

Por este turno, faz-se pertinente concluir que o foro competente para processar e julgar os civis pela prática de crime militar em desfavor dos militares do Estado é da Justiça Comum. (destaque nosso)

Os argumentos da corrente minoritária são relevantes e nos leva a refletir se não há um equívoco ao afastar a possibilidade de civis serem julgados perante a Justiça Comum pela prática de crime militar.

Ao estudar o histórico de julgados que justificou o Superior Tribunal de Justiça a editar a Súmula n. 53, que dispõe que “Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar civil acusado de prática de crime contra instituições militares estaduais”, o STJ apresentou três conflitos de competência com as seguintes ementas:

Competência – Crime militar praticado por civil – Art. 125, § 4º, Constituição Federal. Os crimes militares praticados por civil, são de competência da Justiça Comum, face à expressa determinação constitucional (art. 125, § 4°), que não permite à Justiça Militar Estadual processar e julgar partes estranhas à corporação militar. Conflito procedente. (CC 1.258-SP)

Constitucional. Competência. Civil. Prática de crime militar contra instituição militar estadual. 1. A Constituição – art. 125, § 4.0 – confere à Justiça Militar Estadual competência para julgar apenas os policiais militares e bombeiros militares nos crimes militares definidos em lei. 2. Assim, compete à Justiça Comum Estadual julgar civil acusado da prática de crime contra instituições militares estaduais. (CC 1.525-RS)

Constitucional. Crime militar praticado por civil contra policial militar. Competência. À Justiça Militar Estadual não cabe processar e julgar civil, ainda que pela prática de crime contra instituição policial militar – CF, art. 125, § 4!l. Precedentes do STJ. (CC 2.117-RS)

Ao estudar os votos das decisões nota-se claramente que o STJ não disse que civis não praticam crimes militares, pelo contrário, asseverou que civis praticam crimes militares, mas nestes casos devem ser julgados perante a Justiça Estadual.

Trecho do voto no CC 1.525-RS: “Os civis, como deflui da norma, devem ser julgados, mesmo quando acusados de praticarem crimes militares, pela Justiça Comum Estadual.”

A Justiça Comum pode possuir competência para julgar matéria afeta à outra justiça, desde que decorra de previsão constitucional, como ocorre quando a Constituição Federal possibilita que a Justiça Estadual julgue causas trabalhistas quando a comarca não for abrangida pela Justiça do Trabalho (art. 112) e que a lei autorize que causas de competência da Justiça Federal em que forem parte instituição de previdência social e segurado possam ser processadas e julgadas na justiça estadual quando a comarca do domicílio do segurado não for sede de vara federal (art. 109, § 3º).

Até o advento da Lei n. 13.043/2014 as execuções fiscais propostas pela União, que são de competência da Justiça Federal, eram propostas perante a Justiça Estadual nas cidades que não continham a Justiça Federal.

Destaca-se que a competência da Justiça Comum é residual, face à inexistência de vácuo de competência, logo, toda matéria que não esteja prevista para ser julgada por qualquer outro ramo da justiça, deve ser julgada pela Justiça Comum, como é o caso dos crimes militares praticados por civis. Assim, pode-se afirmar que implicitamente a Constituição Federal determinou que a Justiça Estadual comum julgue os crimes militares praticados por civis contra as instituições militares estaduais.

A aplicação da Súmula n. 53 do STJ como ocorre atualmente e há bastante tempo contradiz o próprio teor da súmula, o que fica comprovado ao se estudar as razões de sua origem, que deixou consignado de forma expressa que os civis que praticam crimes militares no âmbito estadual devem ser julgados pela Justiça Comum.


[1]  LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal: volume único. 8 ed. Salvador: Juspodivm, 2020. p. 439.

[2] ALVES-MARREIROS, Adriano; ROCHA, Guilherme; FREITAS, Ricardo. Direito Penal Militar: teoria crítica & prática. São Paulo: Método, 2015.

[3] Disponível em: < https://jusmilitaris.com.br/sistema/arquivos/doutrinas/crimemilitarcivilcontrapm.pdf>. Acesso em: 17/10/2022.

Atirador de elite (sniper): quem autoriza o disparo e por qual excludente de ilicitude está amparado?

O sniper é o atirador de elite (pode ser militar ou não). O sniper possui uma habilidade acima do comum, além de treinos e cursos que o tornam habilitado a se credenciar como apto a efetuar disparos com alta precisão (precisão cirúrgica). O militar/policial que é sniper não possui autonomia para atuar isoladamente, age comandado por um superior que também possui experiência e conhecimento para gerenciar a ocorrência e decidir o momento exato do disparo. Quando o comando da ocorrência verifica que não é mais possível prosseguir nas negociações ou quando não é mais viável, pois o sujeito não colabora e há risco para os reféns, autoriza o atirador de elite a efetuar o tiro de comprometimento, que pode ser letal.

No teatro de operações o Comandante é a pessoa mais habilitada para decidir o momento do disparo, pois todas as informações concentram nele. O Comandante recebe informações em tempo real do negociador, do sniper, de outros militares que estão trabalhando na ocorrência, do comando etc. Enfim, quem tem mais informações tem mais segurança e conhecimento para decidir. Qualquer interferência política sujeita a operação ao fracasso. Trata-se de um ambiente de tensão, altamente técnico e que conta com o trabalho de profissionais experientes e treinados.

Há divergências quanto à excludente de ilicitude aplicável ao sniper.

1ª corrente: O sniper atua em legítima defesa de terceiros. São defensores dessa corrente Rogério Greco e Cezar Bitencourt.

2ª corrente: O sniper atua em estrito cumprimento do dever legal, ao passo que o Comandante que determinou o disparo atua em legítima defesa de terceiros. É o entendimento de Gilmar Luciano Santos, com o qual concordo.

Com efeito, o sniper somente pode atuar mediante o cumprimento de ordem. O Comandante do teatro de operações avalia o momento ideal para a atuação do atirador de elite e ao autorizar o disparo, o Comandante age em legítima defesa de terceiros e quem puxa o gatilho (sniper) cumpre ordem do Comandante, por atuar no estrito cumprimento do dever legal, cuja ordem é legal (disparar em um agente que pratica agressão atual ou iminente contra terceiros).

Não se pode falar em estrito cumprimento do dever legal de matar, pois o dever legal de matar ocorre somente em tempo de guerra. Em tempo de paz, provocar a morte de terceiros só é permitida em legítima defesa ou em estado de necessidade. Ocorre que o atirador de elite não atua por vontade própria, mas sim por determinação de superior hierárquico. O disparo efetuado pelo sniper consiste, na verdade, no acionamento do gatilho pelo Comandante por intermédio de um profissional altamente capacitado.

Por essas razões, entendo que o Comandante do teatro de operações que determina o disparo, sendo o momento do disparo avaliado pelo sniper, atua em legítima defesa de terceiros e o militar que aciona o gatilho atua em estrito cumprimento do dever legal.

Para ficar claro destaco que o Comandante autoriza o disparo, dá o “sinal verde”, mas o momento do disparo é definido pelo sniper que sabe exatamente o momento exato de puxar o gatilho. Essa autorização do Comandante na verdade é ordem. O sniper não pode se recusar a efetuar o disparo. Na prática o militar que faz papel de sniper sabe disso e não descumpre a ordem. São militares muito bem treinados, preparados e disciplinados! O disparo do sniper possui “precisão cirúrgica”. São policiais que treinam muito e possuem pontaria certeira. É óbvio que, hipoteticamente, se a ordem for criminosa, como atirar em situação que não justifique, pois o sequestrador, por exemplo, se rendeu, o sniper deverá descumprir a ordem, sob pena de responder por homicídio, juntamente, com o Comandante. Somente em situações excepcionais o atirador de elite pode atuar sem prévia autorização do Comandante, como o exemplo de haver falha na comunicação, pois o aparelho que estabelece a comunicação estragou durante o contato e o militar/policial visualiza que o agente infrator está com o dedo no gatilho, tendo inclusive já puxado um pouco o gatilho.

Caso o militar se recuse a disparar, mesmo tendo condições para tanto, pratica o crime de recusa de obediência e se em razão do atraso no disparo, ficar comprovado que o agente infrator matou a vítima, poderá até mesmo responder pelo homicídio da vítima, já que o militar é agente garantidor e responde pelo resultado, na forma do art. 13, § 2º, “a”, do CP e art. 29, § 2º, do CPM.

Na hipótese em que o militar sniper disparar sem autorização, há entendimento que deve responder por homicídio. Ocorre que o disparo do sniper, sem autorização, se o agente infrator estiver colocando em risco a vida de terceiro, não afasta a presença de excludente de ilicitude, pois no mundo real a situação autorizava o disparo, sendo discutível o momento do disparo, o que deve ser dito pelo Comandante. Portanto, entendo que não responde por homicídio, somente por crime militar que, a depender do caso, poderá ser recusa de obediência, inobservância de norma, descumprimento de missão.

Nessas ocorrências complexas, quem decide sobre a vida do agente infrator é ele próprio e não a polícia. O agente tem plena ciência que se não ceder poderá ser morto a qualquer momento. Por vezes é até uma forma do agente infrator praticar suicídio por intermédio da polícia. É o que se chama de “suicide by cop” ou suicídio por policial.

A atribuição para investigar o fato, por envolver crime doloso contra a vida praticado contra civil (art. 9, § 1º, do CPM), para o Superior Tribunal de Justiça (RHC n. 112.726/PR) e para as Polícias Civis, é da Polícia Civil, e para as Polícias Militares, prevalece ser da Polícia Militar.

Por fim, o Comandante que autorizou o disparo e o militar que efetuou o disparo devem ser presos em flagrante? Não, no caso ouve os envolvidos, realiza perícia no local dos fatos e colher as provas e a autoridade policial lavra o despacho não ratificador e, se for o caso, instaura inquérito policial. Essa é a interpretação dos arts. 27, 28 e 246, § 2º, todos do CPPM e art. 304, § 1º, do CPP.

O militar pode realizar busca pessoal no superior hierárquico?

O Código de Processo Penal Militar manda observar expressamente a hierarquia somente para as buscas pessoais que ocorrerem no decorrer do inquérito policial militar. Nada fala quanto à observância da hierarquia nas demais buscas pessoais, como as que ocorrem fora do inquérito, a exemplo da abordagem policial a uma pessoa em via pública que se encontra em situação de fundada suspeita. O Código de Processo Penal comum também silencia a respeito. Portanto, em razão da ausência de previsão legal não há óbices, em um primeiro momento, que militares realizem busca pessoal em superiores hierárquicos em razão de fundada suspeita.

Ocorre que a hierarquia e disciplina militares, são pilares institucionais previstos na Constituição Federal e se irradia para todas as relações entre os militares, seja nos horários de trabalho ou de folga, seja na vida profissional ou pessoal.

O subordinado hierárquico deve chamar o superior de “Senhor”, mesmo se encontrá-lo em ambiente privado (art. 9º do RCONT), salvo se nas relações da vida pessoal for dispensado pelo superior.

Quando um subordinado hierárquico se depara com um superior em uma solenidade ou reunião, ainda que particular, deve, obrigatoriamente, apresentar-se ao superior de maior hierarquia presente (art. 34, IX, do RCONT).

O superior hierárquico tem direito à continência, o que constitui um dever do subordinado hierárquico que estiver fardado, ainda que o superior esteja em trajes civis e fora do horário de serviço, desde que seja reconhecido e identificado (art. 16, X e XI, do RCONT). Em se tratando de superior que o militar deve obrigatoriamente reconhecê-lo, dispensa-se a identificação. Por exemplo, todos militares são obrigados a reconhecerem o seu próprio comandante e o Comandante-Geral da instituição a que pertence.

O Código de Processo Penal Militar, visando preservar a hierarquia, em diversos momentos assegura a preservação da hierarquia e disciplina, como prever que a prisão de militar deverá ser feita por outro militar de posto ou graduação superior; ou, se igual, mais antigo (art. 223) e que a busca domiciliar ou pessoal no curso do inquérito, será executada por oficial, designado pelo encarregado do inquérito, atendida a hierarquia do posto ou graduação de quem a sofrer, se militar (art. 184). Prevê ainda que o preso militar, ao ser apresentado em juízo, será acompanhado por militar de hierarquia superior (art. 73)

Dessa forma, tenho que a previsão contida no art. 184 do CPPM deve se irradiar para outros tipos de buscas pessoais, em razão de aplicação extensiva, pois visa preservar a hierarquia e disciplina ao se realizar busca pessoal em superior hierárquico, situação que também deve ser preservada nas buscas que ocorrem em razão de fundada suspeita na rua. 

Nesses casos de busca pessoal em superior hierárquico, dada a situação de busca que não pode esperar um tempo maior, pois exige atuação imediata, não havendo superior disponível para a sua realização, deve ser feita por subordinado hierárquico. Aplica-se, mutatis mutandis, a lógica do art. 249 do Código de Processo Penal que prevê que “A busca em mulher será feita por outra mulher, se não importar retardamento ou prejuízo da diligência.” Isto é, a busca em superior hierárquico do militar que realizou a abordagem deve ser feita por outro militar, superior hierárquico ao abordado ou se par, mais antigo, salvo se no momento da busca não houver superior disponível para a realização da busca e se este ao ser acionado for demorar para comparecer fisicamente ao local da abordagem.